terça-feira, 27 de outubro de 2020

Matadouros de Anjos

 Recentemente, observando a semelhança entre dois textos, resolvi recolher as duas violentas pérolas e me debruçar sobre elas. Uma é de Eustáquio Gorgone de Oliveira, e outra de Luiz Alberto Brandão Santos. A primeira é Matadouros:




Matar! Matar! Matar!

Panças e bexigas floridas

Nas paredes, no chão.

Chifres serrados se tornam

Genuflexórios da dor.

E os punhais vão separando

A língua, os olhos.

Orquídeas roxas de sangue

Brotam nos ladrilhos

Do corredor.

(O sol é uma lâmpada

Que ilumina pela janela

As correntes de ferro.)

Matar! Matar! Matar!

Dentro das veias secam

Rios de violetas.

Algumas flores fogem para os intestinos.

Mas os punhais vão procurando

As raízes da vida.

Até o músculo é um vento

Que os homens retalham. (Jornal Poiesis, ano V, número 45, março de 1997)



Nesta elegia sem adeus, Eustáquio insiste em olhar para o mundo como um grande matadouro, onde a morte é organizada que o ser humano orquestra. O humanismo é o grande ausente deste texto. O ego se vê diante da contingência, sente a finitude da carne, descobre que o ser é o ser para a morte, e o texto fixa as evidências obsessivas, claramente densas e já repisadas, da extinção da vida.

O poema encena também o genuflexório onde o autor se senta para orar depois da experiência excruciante do negativo. O próprio ritual da comunhão é uma antropofagia ritual; como um apóstolo descrente, o poeta constata a profundidade do corte que atingiu a civilização definida por Jesus, e para transcrever essa medusina experiência em palavras, recorre à observação da morte em escala industrial nos matadouros de animais. Luiz Alberto Brandão narra experiência semelhante, construindo, para transmiti-la, uma poética de anjos, que segundo ele “constitui-se de dogmas absolutamente escorregadios. Deve ser, sobretudo, rigorosamente impalpável.” Novamente, uma espécie de Judas sincero arranca a carne e a devora com sofreguidão, bebe o vinho e, pândego, se embriaga ao Comer Um Anjo: “Pelo faro/ Come-se um anjo/ Minuciosamente/ Mastiga-se a fibrosa/ Textura do seu nada/ Lentamente o oco azulado dos seus pântanos de asas/ A alimentar abstrações/ E descuidos/ Basta engolir aquele ar rarefeito/ Movediço./ Com o gosto úmido de galhos altos/ De diamantes em fatias luminosas./ Sabor caudaloso de minúsculas nostalgias/ Tempera-se somente o calafrio/ Do seu imponderável sexo de rosas./ O gosto de ângulos/ Somente/ Tosta-se o puro movimento/ Que se desprende dos músculos/ Tem gosto de silvos/ De silvos e cabelos/ Granulados/ em camadas levíssimas/ Basta inebriar/ Para que sejam insaciáveis as fomes/ Mas atenção:/ Ao comer um anjo/ Prepare seu sorriso/ Mais tosco/ Mesmo gargalhe/ Pois o corpo corrói-se/ Com a absurda delicadeza dos vácuos/ Estranhezas/ Trepidações/ A estufar todas/ As têmporas e linfas/ Suspira-se granito/ Arrota-se uma infinidade de cacos vazios/ E finalmente dorme-se/ Primitivo sono de nuvens/ Ou então/ Para aqueles de paladar intratável/ Vomita-se uma canção bizarra/ Uma canção bizarra e docemente longínqua.” (Revista Literária, ano XXVII, número 25, dez.93, jan. 94)

Como no poema de Eustáquio, a experiência do eu lírico simula a aventura de Perseu, a de olhar no rosto das Górgones; é como se o eu do poeta, ao invés de decapitar a Medusa, devorasse o monstro. Daí talvez Perseu também saísse suspirando granito e arrotando cacos da cultura clássica greco-romana.

Completando a idéia de que Matadouros e Comer um Anjo são poemas de beira-abismo, são fragmentos que observam o impasse de uma civilização, diante da qual o abismo se abriu, cito Walter Benjamin, que comenta em seu texto Sobre o Conceito de História:



Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. (Magia e Técnica, Arte e Política, Walter Benjamin, p. 226, Ed. Brasiliense)



O anjo da história citado acima enfrenta o progresso, que, enfim, se mostrou algo diferente do previsto por Hegel e Marx. O principal alvo de Walter Benjamin, a meu ver, é o materialismo histórico, e para tanto dispõe de uma figura mística para o desmistificar.

O poeta, ao descrever a receita de como se come um anjo, voluntariamente equaciona comer com copular, e de fato, é comum em várias línguas esta semelhança entre os dois vocábulos. É de profanação, dessacralização que de fato estamos falando. Tanto no poema de Eustáquio como no de Luiz Alberto, o eu devorador, matador, sádico, glutão, goza ao se entregar aos instintos de morte. O anjo é o mediador entre Deus e os homens. Na Bíblia é ele quem anuncia a chegada de Jesus. Matar o anjo e deleitar-se com sua carne, como se fosse carne de frango, é bruta negação de Deus. Na ausência de Deus, não há culpa, piedade, má consciência. A subjetividade de um, em Matadouros, busca a beleza na destruição do outro, desafia Deus em seu sadismo, saboreia e deglute o sexo do seu mensageiro, pois crê que Deus, se existe, é um proprietário desleixado e pode ser desafiado.

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