segunda-feira, 19 de julho de 2021

SOS para Lúcio

 Meu grande, caro, brilhante, entusiasmado e estimulante amigo Lúcio Emílio,


de tantos emílios e figurinhas trocadas ......

(pausa)

[Há quem diga e-mail, por que ainda não sabem que os spanglish-hablantes dizem emílio , e que isso poderia nos inspirar a driblar mais uma palavra gringa, numa boa. Já o Elpídio de Toledo, que tem me levado generosamente a Rilke, acaba de usar emilho , ainda hoje. Emelho , prefere o Sérgio Pizzolli, um outro amigo meu que não está no sítio . Ou, para ficar com o minimalismo do Mauro Bartholomeu, e-1/2 também é muito bom.]

(continuo)

mas eu digo emílios , porque trocados com você, Lúcio Emílio. Você que já uma vez me fez saber da existência da Xuxa Preta (cf. neste site), e que agora me faz ter enorme curiosidade em saber dessa figura incrível: PEDRO MORALEIDA.

Ainda não li o artigo "Retrato de um jovem nitzschiano", em que você discorre especificamente sobre esse artista plástico (1977-1990). Refiro-me ao artigo seguinte: "Falavam tão bem de mim, eu pensei que tinha morrido", que termina com um pedido de "SOS, Zé Pedro", por conta de uma frase em alemão no alto de uma das obras.

E eu, que sou tradutor do idioma de Fassbinder, prontamente salto da caixinha, como um "jeca-in the box". Vamos à frase:

"Ich will doch nur, dass ihr mich liebt" ["Eu quero na verdade apenas que vocês me amem", seria a tradução literalíssima, palavra a palavra] Trata-se do título de um filme desse cineasta que acabo de mencionar como falante do idioma que traduzo [e a isso se chama "visão prospectiva"], Rainer Werner Fassbinder (1936-1982). O título do filme (o Instituto Goethe possui uma cópia em SP?): "Eu só quero que vocês me amem".

Na Folha de hoje, por coincidência, li matéria sobre um cineasta francês, François Ozon, que acaba de filmar a primeira peça de teatro escrita pelo diretor de "Lola", "Lili Marleen" e "O casamento de Maria Braun", escrita aos 19 anos de idade. O filme se chama "Gottes d Eau sur Pierres Brulantes" [Gotas d Água sobre Pedras Escaldantes]. Morto aos 36 anos de idade, Fassbinder deixou uma obra (filmes e peças de teatro, como ator e diretor, além de farta produção literária, entre peças, roteiros e ensaios) só comparável, em termos de produtividade e de criatividade [e não sou eu a afirmá-lo, mas a crítica alemã], a outro alemão que todo mundo conhece ["ao menos, como Instituto", diria o sacana do Hubert Fichte]: Wolfgang von Goethe.

Minha ex-colega e orientadora de pesquisa junto à UNESP de Araraquara, Ilma Esperança, autora de "O cinema operário alemão na República de Weimar" (imperdível; Ed. da UNESP), possui um acervo completo de cópias em vídeo dos filmes de Fassbinder (alguns inéditos entre nós), além de farto material bibliográfico (em sua maior parte, também inédito em nosso idioma). E eu já me preparo para trabalhar com ela num belo projeto sobre uma obra que se pode dizer monumental em todos os sentidos. Isso, logo que tiver terminado o meu tiro de guerra, digo, defendido o meu doutorado. Aguarde. Quem sabe, mais adiante, algum dia, nalgum Centro Cultural perto de você.

Lúcio, sigo agora adiante, ao teu texto sobre PEDRO MORALEIDA. Você, que tem o condão de me fazer perceber que o mundo ainda está aí inteiro por ser descoberto. Lúcio é o teu nome, e você me aparece sempre pela frente carregando uma luz forte, apontando adiante, para os caminhos por onde ainda não hei, não hemos passado. Pode seguir, que eu vou na tua cola. Mais adiante a gente torna a fazer um pit-stop para uma troca de entusiasmos.

O SOS do título tem mão dupla, é claro. É atendimento, mas também é um pedido de "SOS, Lúcio Emílio", sempre que o mundo estiver parecendo um pouco velho e cansado.

Abraço

zé pedro antunes

Dialética do Esclarecimento" de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno

 Dialética do Esclarecimento" de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno




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Observação preliminar do tradutor:



Ao longo do ano 2000, o semanário Die Zeit, de Hamburgo, publicou uma série de textos de autores famosos, tendo por mote "o meu livro do século". O de Peter Bürger, sobre o livro "Dialética do Esclarecimento", de Horkheimer e Adorno, é o quinto dessa longa série, que, por algum tempo, esteve disponível na edição online do hebdomadário.

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Peter Bürger: o meu livro do século

(Trad. de José Pedro Antunes)





Dificilmente se pode hoje imaginar o que significou, para a geração que cresceu na República de Adenauer dos anos 50, a descoberta dos textos de Adorno, quando, no início dos anos 60, eles começaram a aparecer na edition suhrkamp e em outras séries de livros de bolso: "Eingriffe", "Drei Studien zu Hegel", "Ohne Leitbild", "Prismen", "Kulturkritik und Gesellschaft". O que, até então, não passava de um abafado mal-estar nas relações, ali era trazido ao conceito. O que vivíamos como falta de ar tornou-se objeto da crítica.



Mas com isso não estava ainda aplainado o caminho para a leitura de "Dialética do Esclarecimento". Foi em meados dos anos sessenta, ao folhear, no primeiro ano de sua publicação, a revista "Sinn und Form" (Sentido e Forma), editada em Berlim Oriental por Peter Huchel, que eu - ao lado de textos de Benjamin, Bloch, Lukács e Werner Krauss - me deparei com a passagem sobre o episódio das sereias na "Odisséia". O livro, porém, não podia ser encontrado nem no comércio nem na Biblioteca da Universidade de Bonn; fui lê-lo, finalmente, na Biblioteca Präsenz do Parlamento Federal. É obvio, os pressupostos para a sua compreensão não mos havia transmitido a escola ou a universidade dos anos cinqüenta, sendo obrigado a elaborá-los para mim mesmo com o meu próprio esforço.



Mas já então - assim, hoje, quer me parecer - fascinava-me algo que só tornaria a encontrar na "Fenomenologia do Espírito" de Hegel: um pensar que recebia da literatura o seu impulso. A princípio, aliás, irritava-me o gestus da representação que parecia zombar de cada análise histórica, quando os autores comparam o Odisseu atado ao mastro, a espreitar o canto das sereias, com um freqüentador de concertos, mas seus comparsas, que com as orelhas tapadas são obrigados a remar com todas as forças dos seus músculos, com os modernos operários de fábricas. Para mim, foi ficando porém cada vez mais claro: não se tratava, aqui, de interpretação, antes, de adivinhar, na constelação de personagens e acontecimentos do épico pré-histórico, os contornos do sujeito moderno. Abertamente, utilizavam-se os autores de um fato: o épico homérico conjugava uma quantidade de categorias - prazer e renúncia, auto-afirmação e auto-entrega, dominação, trabalho e arte - num contexto complexo e, ao mesmo tempo, dinâmico, que permitia pensar o sujeito como resultado de um processo dialético: O Eu não vive primeiramente na satisfação imediata de suas necessidades, às quais aprende a renunciar; é à renúncia que ele deve, e muito, a sua auto-afirmação, razão pela qual, para ele, a imagem da felicidade está ligada à exigência da perda de si mesmo. "A humanidade teve que se submeter a terríveis provações até que se formasse o eu, o caráter idêntico, determinado e viril do homem, e toda infância ainda é de certa forma a repetição disso. [...] O medo de perder o eu e o de suprimir com o eu o limite entre si mesmo e a outra vida, o temor da morte e da destruição, está irmanado a uma promessa de felicidade, que ameaçava a cada instante a civilização." Frases como esta esclareciam não apenas o mal estar na sociedade, mas, ao mesmo tempo, abriam o acesso às próprias experiências pessoais com a ambivalência, cujas condições sociais elas nomeavam. Logicamente, felicidade só poderia haver na esfera da arte, para fora da qual a práxis havia sido banida violentamente, o que, na época, eu não queria perceber, e, nos escritos dos surrealistas, procurava pelos vestígios de um pensamento para o qual o inteiramente outro sempre era possível.



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Peter Bürger, nascido em 1936, foi professor de Teoria Geral da Literatura e Literatura Românica na Universidade de Bremen, onde se aposentou em 1998. Dono de vasta produção teórica e crítica, é autor de duas obras capitais sobre a literatura vanguardista: "O surrealismo francês" (1971; 2a. ed. revista e ampliada em 1996) e "Teoria da Vanguarda" (1973), ambas por mim traduzidas.



- Max Horkheimer/Theodor W. Adorno: Dialektik der Aufklärung. Philosophische Fragmente; Fischer Taschenbuch Verlag, Frankfurt am Main 1997.

- Max Horkheimer/Theodor W. Adorno: Dialética do Esclarecimento. Fragmentos Filosóficos; tradução: Guido Antonio de Almeida; Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro 1985.

Bernardo, Cartas da Imprecisão e do Delírio

 

 

Bernardo, Cartas da Imprecisão e do Delírio

 

Eu acordei naquela manhã de sonhos intranqüilos, liguei o computador e escrevi uma carta, por e-mail, esculhambando o Bernardo, escritor amigo meu:

 

Olá, seu escrevinhador infame que escreve com tintas um painel de sangue e merda. Fico muito feliz em saber que você é o sádico e eu o masoquista. Queria parodiar seus livros, fazer comédia na Globo com eles, zorra total. Você é um resenhista de merda, um escrevinhador reacionário, não é um escritor talentoso como eu. Morra de inveja! Queria pisar em você pior do que o Mainardi pisa no Brasil, queria te esmagar como uma barata. Você fica com essa bichice mal resolvida de cantarolar que de cada pensador eu herdarei só o cinismo... Ah, vá caçar quem te jante! Não concordo com seus gatafunhos! Não me ridicularize pelo fato de eu morar no interior, daí eu não te ridicularizo por morar na Bahia e não ser zen, não ter nascido e sim estreado, dentre outras cositas más. Não me mande mais suas cocadas, digo, seus rabiscos mal escritos.

 

Atenciosamente,

 

Raimundo Periquito

 

Depois dessa purgação, senti-me melhor, fiz café, abri outro e-mail, fui trabalhar, etc. Quando retornei à noite, criei coragem para ouvir a resposta de Bernardo. Li o e-mail que veio em resposta:

 

Raimundo, feio de cara e bom de bunda: isso não foi uma rima nem uma solução nem eu me chamo Raimundo, meu poeta irmão, o nome de que meu cu arde e faz alarde é Carlos Drummond de Andrade. Nome que invejo a fundo. Espero que meus poemas telegráficos não te aborreçam. Você não deveria ter casado. Sua mulher anoréxica é psicopata. Eu me recuso a ir visitar vocês ou responder seus e-mails, ou deve dizer emelhos. Não, não gosto de vocês gordos. Porque, afinal, ninguém tem culpa do seu sobrepeso. Nem da sua vida ruim. Vá trabalhar, vagabundo, vai. E pare de mamar nas tetas do seu pai e da sua mãe. Você já é adulto. Pare de me mandar correntes com anjos e boatos de que Lula está para lançar o socialismo populista. Chega, chega, chega. Não se esconda atrás da web e de pseudônimos. Não ataque o conceito de LPB, literatura popular brasileira ou algo assim. Existe a literatura prá pular brasileira? Ou seja: factóide ou não, esse conceito vende livros, abre portas abertas, etc, etc. E não me venha com essa de copa da literatura brasileira que futebol e literatura não tem nada a ver. Vendo futebol é que você engordou doze quilos diante da televisão. E de tanto ver TV, você desanimou de votar em Dilma e Lula. Mas foi a doutrinação da TV contra eles, coisa do PIG. Sacou? PIG. Partido da Imprensa Golpista. Não temos culpa se o avião caiu. Não me importa também que a mula manque, o que eu quero é rosetar. Não me importo com você e suas neuroses, reacionário é a mãe, tá. Quem é Diogra Mainardi, sua sogra? Eu uso aquela revista, sim, aqui tem dela, pois tá faltando Personal. Me deixe resenhar. Sou feliz assim. A esperança venceu o medo e sou um escritor, enfim.

Abraços do Bernardo.

 

Baqueado, lavei o rosto e fui tentar dormir. O Bernardo tinha me dado um soco verbal, uma porrada no queixo. Adormeci de madrugada. No outro dia, de manhã, fui conferir meus dois e-mails. Decidi nunca mais utilizar o nickname de Raimundo Periquito.

Diário de um Ghost Writer

 

Diário de um Ghost Writer

 

Eu estava em casa de meu pai, contando que atribuíram a mim um livro sobre segurança pública que ele escreveu, quando um rapaz ligou da padaria. Sassá Mutema (ele afirmou usar esse nome artístico e ter vindo da Bahia para Minas) era um negro de longos cabelos bem cuidados e olhos azuis artificiais. Chegou desesperado, precisando de um trabalho sobre Misticismo na Internet, mas revelou estar traumatizado com a rede. O trabalho era para o dia seguinte, mas topei assim mesmo.

 

6 de abril

 

Sassá Mutema chegou com um casaco bege, imitando pele de jaguatirica, falando fluentemente a língua da Tabatinga, um quilombo aqui de Bom Despacho. Ao receber o trabalho, suas lentes celestes se iluminaram. Ele afirmou ser um pai de santo, só não fazia aquele tipo de trabalho, mas fazia trabalhos de descarrego, curava mal olhado, benzia cobras, desenfeitiçava e jogava búzios. Colocou-se à disposição, se precisasse. Eu quis puxar assunto, dizendo que já sabia de vários centros de candomblé e umbanda que estavam atendendo pela Internet; enfim, podia-se falar na Webcam, prontamente, com um preto velho ou uma pomba gira, que baixavam on line. Sassá nada disse; ao sair, despediu-se com um “muito obrigada”.

 

 

7 de abril

 

 

Hoje vários alunos de uma faculdade privada local me procuraram para que eu os ajudasse com as resenhas de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de Max Weber. Fiquei o dia inteiro fazendo um coquetel teórico, misturando comentários tirados do Meira Penna (Opção Preferencial pela Riqueza). Acrescentei uma pimentinha marxista para contrabalançar, ficou no ponto.

Pediram uma monografia de História Local a respeito da antiga ferrovia que unia nossa pequena cidade a Belo Horizonte e que foi desativada há trinta anos. O foco devia ser um episódio de um acidente na ferrovia, quando o gongo bateu na lateral da locomotiva e nenhum passageiro arriscou um pio. As ferromoças (o equivalente das aeromoças de hoje) fizeram questão de tranqüilizar todos logo a seguir. O aluno frisava o papel da mulher na construção da ferrovia. Um trabalho de micro-história. Falei da decadência das ferrovias a partir do governo JK e cheguei ao específico.

 

8 de abril

 

O telefone hoje não parou. Uma aluna que fez Pós numa cidade litorânea me trouxe seu caderno de anotações. Aparentemente, ela ficou o tempo todo na praia, pois as anotações não tinham pé nem cabeça. Meu olhar experiente me levou a pensar que ela copiou as anotações de alguém que as fez em código, para entendimento próprio. Só consegui esclarecer que trabalhos a donzela deveria fazer, contatando os professores dela na tal cidade litorânea. Para justificar o atraso, inventei uma doença rara, a síndrome de Münchausen. Um dos mestres, condoído, respondeu errando o nome da aluna: “Eu já te respondi isso, Maria Aparecida!” E ainda desejou melhoras no tratamento da doença rara. Quando eu fizer minha Pós em Literatura, pretendo escrever sobre o divertido trabalho do escritor fantasma.

O Príncipe e o Ventríloquo

 

 

O Príncipe e o Ventríloquo

 

Numa festa chique em Petrópolis, o príncipe João de Orleans e Bragança estava rodeado do que lhe restava de sua corte. A imprensa presente buscava avidamente obter alguma notícia que pudesse gerar uma manchete ligada à realeza luso-brasileira.

A namorada do príncipe João, Priscila, no último janeiro, partiu sozinha numa turnê pelo Nordeste. Um repórter resolveu interpelar o príncipe João mais diretamente:

--Quando Vossa Majestade pretende casar-se com Priscila? Quais são suas intenções para com ela?

O príncipe, entediado, respondeu:

--Depois de minha viagem ao Iraque, respondeu com ênfase.

Flashes espoucaram, exclamações de admiração, rostos estupefatos. Finalmente os herdeiros da monarquia brasileira produziam uma notícia polêmica, um gesto voluntariamente ousado. A notícia do alinhamento do rapaz no esforço de guerra norte-americano, de forma independente, varreria o País como um rastilho de pólvora, comentavam em todas as mesas da festa. Vários convidados tomavam porres, repórteres e políticos presentes ligavam frenéticos para o embaixador norte-americano, que alegou não estar sabendo de nada.

Alheio à polêmica, o príncipe continuava bebendo à larga e comendo fartamente. Lá pelas tantas, um outro repórter, invejoso do furo obtido pelo colega, lembrou-se de perguntar:

--Mas, Sr. João, quando é sua viagem ao Iraque?

--Não pretendo ir ao Iraque, disparou o rapaz, num esgar de tédio.

Percebendo-se logrados, os jornalistas presentes deram urros de fúria. Vituperaram contra o príncipe, chamando-o fraco, mentiroso, galhofeiro, ridículo. Ao ouvir, em meio ao generalizado ranger de dentes, a exclamação do nome de Maria Antonieta, o príncipe levantou a voz indignado:

--Não vou tolerar esse tipo de agressão, ainda mais levando em conta que meu tio é ventríloquo.

Nova onda de indignação entre os presentes. A coisa toda teria sido obra do tio do príncipe, Barão de Itaguaí, presente à festa e iniciado nas artes do ventriloquismo! Seria ele o responsável pela frase que, segundo o príncipe, não passou de uma brincadeira.

A coisa toda ficou afinal reduzida a uma nota no Correio da Cidadania, de autoria do meu amigo Laerte Braga. No contexto em que estava inserida, era um ataque à futilidade dos políticos presentes na tal festa, entre os quais o controverso e “malufístico” prefeito Alberto Bejani, de Juiz de Fora, além de Martius das Chagas, representante daquilo que, nas irônicas palavras de Laerte, chamou de “ala monarquista do PT”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Diário de um Ghost Writer

Poeta à Procura de Editor

 

Poeta à Procura de Editor

 

Belo Horizonte, tarde da noite. Um rapaz andava furtivo pelas ruas do Centro, entre as criaturas que circulavam na região: michês, vagabundos, boêmios, travestis, funcionários de bares e boates.

De repente, um spray. Gesto felino, Picasso dando uma pincelada num quadro, escrevia um poema na parede de um prédio ou casa. Para exercer aquele seu talento, o jovem jornalista André Duarte, que usava o sucinto pseudônimo de Spider, precisava ser rápido e ter olho de lince: a qualquer momento poderiam surgir gangues de pichadores que disputavam com ele o território. Se o pegassem escrevendo, a surra era certa. Ele só julgava que duas gangues faziam pichações interessantes, mais próximas das grafites: os Leiloeiros e os Falsários. Ele implicava com Leiloeiros: apreciava mais os Falsários. Os Leiloeiros faziam estranhas garatujas gestuais, como se pintassem quadros de Pollock ou Basquiat. Por não gostar desses dois pintores, Spider os desprezava e às vezes pichava: “fora os Leiloeiros, viva os Falsários” em algum canto de muro, muito discretamente, buscando evitar represálias. Os Falsários tinham como referência não a pintura ocidental, mas sim os ideogramas chineses e japoneses; assim como os alfabetos árabe e cirílico. Mas, principalmente, Spider era fascinado pelo aproveitamento que eles faziam do alfabeto georgiano, como na pichação transcrita adiante: “ანოტაციების მსოფლიო ცენტრი 34 ენაზე!”

Certa feita, o “poeta à procura de editor”, como ele se intitulava, escreveu na parede de um consultório de dentista, bem próximo à Rua da Bahia: “remédio contra a cárie: poesia”. Na parede de uma peixaria, lascou: “o peixe existencialista: nada”. Um dia revelou à grande imprensa que o “poeta à procura de editor” era ele. Pouco depois, obteve grande sucesso editorial, não com a poesia, mas com o best-seller educativo “Docência e Insanidade” e o clássico da Administração: “Quem Cuspiu no Meu Chope?”. Mas isso foi antes que ele enlouquecesse. Foi internado num subúrbio da cidade de Barbacena. Eu o visitei no manicômio e esqueci de tirar o meu brinco. Ele me entregou uma rosa e, apontando para a própria orelha, disse: “eu não sou bicha não, mas você, hein...” Devido à qualidade de seus escritos literários, jamais reunidos em livro enquanto André Duarte, digo, Spider, ainda tinha lucidez, reproduzo aqui o início do conto Vindima, que faz parte do livro Parafernália Teratoscópica (agora sou eu quem está em busca de editor!): “Por mais que eu deseje descer ao Inferno, as luzes estão apagadas, não há ninguém em casa e amanhã todos ainda estarão bêbados demais, incapazes de me receber”.

 

 

 

 

 

 

 

O Andarilho Mais Rico do Mundo

 

O andarilho mais rico do mundo

 

Lúcio Emílio do Espírito Santo

 

 

            Descansava eu, alguns dias atrás, em pequeno sítio nos arredores de Bom Despacho, perambulando por entre os ipês, jatobás e outras espécies terrivelmente torturadas pela seca desse ano, quando adentrou o portão um jovem, barba ruiva, camiseta esgarçada, calça jeans encardida, um pé calçado e o outro descalço. O rosto, já sulcado pela inclemência do sol, emanava estranha luz. Não tive medo algum daquele desconhecido. Saudei-o e pedi que ficasse à vontade. O intruso sentou-se no chão, perguntou se podia beber da água da torneira ao lado. A água brota de uma pedra e não tem qualquer tipo de contaminação. Curioso, comecei a fazer-lhe um montão de perguntas.

            O forasteiro não queria dar muitas explicações. Hesitava quando tinha que dizer o próprio nome, de que lugar estava vindo, para onde ia, como vivia, por que se transformara em andarilho. Nada pude arrancar dele, nem ao menos a sua idade, se seus familiares sabiam do seu paradeiro e se tinha noção do lugar onde se encontrava. Depois de refrescar-se na torneira, passou a brincar com o guardião do sítio, o vira-lata Dragão.

            O desconhecido cessou bruscamente a brincadeira e pediu um prato de comida. Tínhamos acabado de almoçar e a comida se conservava quente, no rabo do fogão de lenha. Eu mesmo lhe fiz o prato, carregado no angu, feijão roxo, quiabo, couve, abobrinha e frango caipira. O andarilho não quis achegar-se à mesa da varanda. Sempre misterioso, comeu com calma e, pela maneira como usava os talheres e o guardanapo, via-se que sabia algo de etiqueta. Fiz-lhe ainda outras perguntas sobre amenidades e temas de que todo mundo gosta, como futebol, política, religião e namoradas. Tudo em vão.

            Assim que terminou a refeição, o estranho homem abriu sua mochila e disse que queria me pagar aquele prato de comida. Surpreso, disse a ele que não iria receber de forma nenhuma. Ele insistiu. Eu resisti. Um prato de comida é coisa que se dá de bom grado. Não se cobra isso de um visitante faminto. O andarilho teimoso meteu a mão na mochila e me deu três pedras. Meio desconcertado, recebi as três pedras e, ainda sem saber o que fazer com elas, vi o andarilho despedir-se e sumir na curva do caminho.

            Não me desfiz das pedras. Guardo-as a sete chaves. Elas estimulam a minha imaginação. Já pensei, por exemplo, em comprar alguma coisa com elas. Será que alguém as aceitaria? E se, de repente, passássemos a considerar moeda de troca todas as pedras do mundo? Não compreenderíamos melhor a significação do dinheiro convencional, que é um meio e não um fim em si mesmo? E se, de repente, os bilhões e bilhões que os políticos desviam dos cofres públicos virassem pedras, quantos caminhões não seriam necessários para transportar esses meros fragmentos de rocha?

            Ignoro em que parte do planeta está agora o andarilho. Só sei que não há nem pode haver, no mundo, homem mais rico do que ele, pois, pedra é o que mais tem na natureza.