sábado, 26 de fevereiro de 2022

Annie Ernaux: entre “a memória dos outros” e a escrita de si mesma

 


* Por Luciene Guimarães *

Na mesma década em que nasceu a  escritora Annie Ernaux,  na Normandie, em 1940, que Marguerite Duras, nascida em 1914, começava a publicar sua obra. Em 1985, Duras vence o prêmio Goncourt, pela publicação de O amante. Em 2017, Annie Ernaux recebe o prêmio Marguerite Yourcenar pelo conjunto da sua obra. Bem que as duas escritoras não sejam contemporâneas e a obra de Duras possa se imbuir de um espírito transgressor, as duas escritoras se aproximam pela mesma tradição literária que as consagrou: escrever suas memórias.

Em três livros de Ernaux que chegaram às mãos do leitor, O lugar, Os anos e O acontecimento, (Editora Fósforo, os dois primeiros com tradução de Marília Garcia),  a narrativa da autora vai desenrolado um enorme novelo de um tempo linear, a memória subjetiva e familiar que se mesclam com a memória coletiva. Em O lugar, a história começa nos anos 20, e em Os anos, as memórias se desenrolam desde sua infância, na década de 40, até os anos 2000.

O lugar dessas memórias é justamente  a Normandia, origem de sua família, mas também o lugar que ficou para sempre na História, marcando o fim da Segunda Guerra. As crianças “guardavam na memória todas aquelas histórias”, casos contados pelos adultos, “época fabulosa – da qual entenderiam mais tarde a ordem dos acontecimentos, a Debacle, o Êxodo, a Ocupação, o Desembarque, a Vitória.” No dia em que ficou conhecido como “o dia D”, Annie Ernaux ainda era criança, mas anos mais tarde entendeu o que tudo aquilo significou. A Normandia é também o lugar de Marguerite Duras e que tanto nutriu sua obra e seu processo criativo. Também o lugar onde viveu e trabalhou, escrevendo e filmando, em Trouville, à beira mar, onde passava os verões.

A documentarista Michelle Porte, amiga pessoal de Marguerite Duras, publicou nos anos 70 um livro de entrevistas com a autora sobre os seus lugares, Les lieux de Marguerite Duras. Porte, a mesma que entrevistou Duras, publicou também Le vrai lieu, entrevista com Annie Ernaux. Ao aceitar o convite, como comenta no avant-propos, Ernaux diz estar convencida que o lugar geográfico e social, onde nascemos e vivemos, oferece aos textos escritos, não uma explicação, mas um cenário de fundo da realidade, onde mais ou menos eles são enraizados. Se para Proust, a vida é a própria literatura, para Ernaux, como ela mesma diz a Porte, “a literatura é ou deveria ser a própria iluminação ou a opacidade da vida”.

“A memória dos outros fazia com que fizéssemos parte do mundo”  

“Milhares de palavras vão sumir de repente, palavras que serviram para nomear coisas, rostos de pessoas, ações e sentimentos. Palavras que serviram para organizar o mundo, disparar o coração e umedecer o sexo (…) Tudo vai se apagar em um segundo, o vocabulário acumulado, do berço ao leito final, será eliminado. Restará somente o silêncio, sem palavra alguma para nomeá-lo.”

Em Ernaux, a palavra dá sentido ao mundo, escrever é uma tentativa quase desesperada de agarrar o tempo fugidio da memória familiar, que escapará com os anos e que está atrelada à memória coletiva, “assim como milhares de imagens que estavam na cabeça dos avós mortos há meio século e dos pais também mortos.” É na ânsia de contar essas memórias, e que podem desaparecer, a familiar, a coletiva , onde o lugar da autora se afirma, o que motiva o narrador de Os anos.  Só a escrita pode guardar o que é contado, como se paralisasse a ampulheta do tempo, mas também como se pudesse recuperar o tempo que se esvaiu. “Assim como o desejo sexual, a memória nunca se interrompe. Ela equipara mortos e vivos, pessoas reais e imaginárias, sonhos e história.” O que revela a voz do narrador, que o vivido pode ser organizado numa narrativa.

Em O lugar, em que a autora narra a vida do próprio pai; o avô é também lembrado: “Sempre que me falavam do meu avô, começavam dizendo que ele ‘não sabia ler nem escrever’, como se sua vida e sua personalidade não pudessem ser compreendidas sem esta informação básica.”

Marguerite Duras trataria a memória de forma diferente, pois em Duras, a narrativa da memória é fragmentada e atravessada pelo esquecimento, pelo silêncio, pela dor, pelo trauma, como um testemunho do seu tempo. Já para Annie Ernaux, essa memória se desenrola de forma linear, o tempo é um guia que se detém à narrativa. A história coletiva não se desvencilha da familiar, nem quando são as memórias infantis que prevalecem. Ela tarz crianças que escutam os assuntos da vida dos adultos, na mesa de jantar, por exemplo. “A memória dos outros fazia com que também fizéssemos parte do mundo”, diz o narrador. É assim que o texto de Os anos e O lugar, tecido pelas memórias, é construído. Para o narrador de Os anos, a história familiar e a história coletiva são uma única coisa. Através dos anos, fatos, objetos, eventos da cena francesa do pós-guerra emerge: “A França era imensa e formada por populações que se diferenciavam de acordo com as comidas e os modos de falar. Em julho, os ciclistas do Tour de France atravessavam o país inteiro e nós acompanhávamos o percurso no mapa Michelin preso à parede da cozinha.” À medida que o fio se estende na evolução dos acontecimentos, outras imagens surgem, o desalento da guerra: “Em velhos cartazes, a imagem em três por quatro do general Charles de Gaulle usando um quepe, com o olhar perdido.”

Se em Duras, é através da descrição de uma fotografia que o narrador de O amante começa a desvelar o passado, da mesma forma, em Ernaux, o narrador de Os anos, se vale de fotografias antigas para contar memórias. Annie Ernaux, muito provavelmente leitora de Duras, revela entre as camadas do palimpsesto da escrita, sua influência. Eis onde os processos criativos se encontram. Para Marília Garcia, tradutora arrebatada pela obra de Ernaux, tanto Annie Ernaux quanto Marguerite Duras fazem parte de uma mesma tradição literária, mesma fonte onde bebeu também Proust. Memória involuntária proustiana, memória oscilando entre esquecimento e lembrança durassiana e a memória linear de Ernaux, são modalidades que se divergem. Entretanto, a memória linear de Ernaux evoca também o gênero de Montaigne, o ensaio, como lembra Marília Garcia. Assim, o leitor aprende que nos anos 70 a influência dos anúncios publicitários criava uma sociedade cada vez mais adepta ao consumismo. A sociedade agora tinha um nome, “sociedade de consumo”. Era um fato sem discussão, uma certeza que, gostando ou detestando, não tinha mais volta. “O aumento do preço do petróleo deixava a todos atônitos. O clima de consumo estava no ar e havia uma apropriação das coisas e dos bens. Comprávamos uma geladeira duas portas, um Renault R5 no impulso, uma semana no Club Hôtel em Flaine, um studio em Grande-Motte.” Em contrapartida, os ideais de maio 68 impregnaram toda a geração jovem, o feminismo e a conquista do aborto viraram bandeira de protesto pela emancipação feminina. Até que ponto maio de 68 – que ela tem a impressão de ter perdido, pois a vida já estava estabelecida demais – está na origem da pergunta que a deixa sossegada? “Será que eu poderia ser mais feliz se levasse outra vida?” Começa a imaginar a si própria fora da situação conjugal e da família.

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A seguir, entrevista com Marília Garcia, tradutora e também poeta. Depois de traduzir O lugar Os anos, ela trabalha na tradução de A vergonha , que também sai pela Fósforo.

Como foi ou está sendo sua relação com a obra de Annie Ernaux? Antes de traduzir, você já era leitora da autora? Ela era inédita no Brasil? Descobri Annie Ernaux através da tradução, a partir do convite da editora, e a autora já havia sido traduzida, pela editora Objetiva, nos anos 90, mas apenas um livro, A paixão simples. A narrativa de Ernaux me cativou de imediato. O lugar, livro que em ela conta a vida familiar, a história do pai  me comoveu, uma tradução que ao terminar, não pude conter as lágrimas. Por uma questão de agenda, não pude me dedicar à tradução de O acontecimento, [traduzido por Isadora Pontes], livro em que o tema central é o aborto nos anos 60, época em que ainda era proibido na França, um livro que foi adaptado para o cinema [filme de Audrey Diwan, Leão de Ouro no Festival de Veneza] mas estou trabalhando na tradução de A vergonha, o próximo a ser publicado pela Fósforo.

O que você tem a dizer do processo tradutório? Alguma dificuldade no texto de Ernaux? O processo tradutório exige sempre uma releitura, uma “segunda mão”, e esse processo tradutório, pelo menos o processo material, pode ser comparado a uma pintura, que inacabada, precisa de retoques. Como o texto de Annie Ernaux  é impregnado de muitas referências culturais, da cultura francesa, há sempre um cuidado com algumas expressões que aparecem e com as próprias referências. Mas as várias ferramentas de pesquisa que a própria Web proporciona, ajuda bastante.

Há alguma semelhança entre Marguerite Duras e Annie Ernaux. Você crê que Ernaux sofreu influência ou era leitora de Duras? Certamente. É possível que Annie Ernaux tenha conhecido bem a obra de Duras, ou mesmo que ela não tenha lido tudo, elas compartilham da mesma tradição literária.

Você acha que “traduzir é perder”, ou seja que ao verter o texto para outra língua, há algo que se perde? Como poeta, traduzir prosa e poesia impõe diferentes procedimentos? É uma boa pergunta… Talvez haja uma perda porque é impossível fidelidade ao texto de partida, mas há também ganhos, que talvez estejam na recepção da obra, pois o leitor ganha o que não pôde ler em outra língua. Quanto à traduzir prosa e poesia, há uma forma,  ritmo, rima, métrica que se impõe no poema, eis o  desafio.

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Foto de Annie Ernaux: Catherine Hélie (c) Editions Gallimard 

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Duas Cartas de Pedro Rogério Couto Moreira

 


 

A propósito da coluna da semana passada, recebi duas cartas de um importante jornalista que viveu em Bom Despacho, Pedro Rogério Couto Moreira (nascido em 1945, repórter da Globo entre 1978 e 1986, como se pode encontrar no site Memória Globo), o “Pedrim do Sô Benigno”, atualmente residente em Brasília. Pedro publicou os seguintes livros: “Hidrografia Sentimental – Aventuras sem malícia de um repórter na Amazônia”; “O almanaque do Pedrim”; “Bela noite para voar – Um folhetim estrelado por JK”; “Jornal Amoroso”; “Jornal AmorosoEdição Vespertina”; “Amor a Roma, amor em Roma”; “Memórias da diverticulite: Geografia sentimental de Miguel Torga em Minas”; “Passeio pela magia na história de Carlos Magno”; “Palavras cruzadas”; “Diário da falsa Cruz de Caravaca. Sob o céu de Belo Horizonte”; “O livro de Carlinhos Balzac e Fortuna Biográfica de Vivaldi Moreira”.

 Pedro viveu em Bom Despacho entre 1951 e 58. Pedro Rogério foi praticamente o co-autor do livro de Zé Toniquinho, tendo “preparado os originais” desse texto tão marcante para nós. Seguem as cartas:

            No recente artigo “Maura Lopes Cançado: Nossa Maior Escritora”, de autoria do excelente jornalista Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior, foi dito que o meu romance “Bela Noite para Voar” inspirou a minissérie da TV Globo sobre a vida do presidente Juscelino Kubistchek. Há aqui um engano. Na verdade, o livro foi a base do roteiro do filme dirigido por Zelito Viana, com o mesmo título, estrelado por Mariana Ximenes.

            A figura singular de Maura Lopes Cançado foi o molde da criação de Princesa, personagem do meu romance “Bela Noite para Voar”. Maura Lopes Cançado vive no coração de todas as mineiras que amam os desafios da vida.

                A outra carta, encaminhada por Pedro Rogério, mas de outro autor, é de um bondespachense que reside no Rio, o advogado José Márcio Machado Brandão Couto, neto do seu Benigno, que foi coletor federal de 1940 a 1960 em Bom Despacho. Recentemente, depois de ver as fotos de nossa cidade atual, escreveu:

            Só não tinha visto o Campinho do Padre e o pré-Seminário. Desde o final dos anos 80, Bom Despacho tenta modernizar-se. Primeiro, as Tvs e suas novelas tiraram a pureza de uma juventude recatada e avessa a excessos, depois a entrada dos computadores com seus sites acessados sem limite de idade. Engenheiros, querendo tornar a cidade uma megalópole, projetaram e realizaram obras absurdas pro tamanho de Bom Despacho, tais como prédios residenciais altíssimos que, num sinistro de fogo, nenhuma escada Magirus conseguiria salvar alguém. Tragédia à vista.

            Só nos resta mesmo a saudade de uma época lúdica –para nós –quando, inocentes, soltávamos papagaio e jogávamos finca na praça.

            Nem a chegada da cidade foi preservada: da estrada via-se a majestosa torre da igreja matriz; hoje, o cimento de dois espigões empana as bençãos que dali mesmo já recebiam seus visitantes ou simples passantes.

 

 

 

 

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

A Nossa Maura Lopes Cançado: Nossa Maior Escritora

 


 

            Em nossa cidade não faltam artistas e, em especial, escritores. Na cidade há a Academia Bom-Despachense de Letras e até  mesmo um editor anda por aqui, recentemente homenageado pela Câmara Municipal: Eduardo Lucas Andrade, da Editora Literatura em Cena. No entanto, a escritora de renome nacional que já viveu aqui, e pouco celebramos, foi Maura Lopes Cançado. Precisamos dar mais atenção a esse nome. Quem tem esse sobrenome na cidade é parente dela. A esposa do Dr. Clodomiro, Dona Ângela, é parente afastada dela e Rodrigo Anaya Rojas, meu tio, comentou sobre o assunto falando comigo falando na “tia Maura”.

            Maura era filha de um fazendeiro rico de São Gonçalo de Abaeté, ela veio aqui, ainda nos anos 40, aprender a pilotar no bairro São Vicente, então Campo de Aviação – que na época era realmente um aeroporto. Como ela conta em sua “autobiografia” Hospício é Deus, editado pela primeira vez em 1965 e reeditado em 2015 pela Editora Autêntica, ela uma vez quis tentou jogar o avião em cima de uma casa. Ao tentar justificar-se, ela afirmou ser fascinada pela idéia de causar um acidente de avião. Ela não cita Bom Despacho no livro, mas o jornalista Maurício Meireles citou nossa cidade como importante na formação da escritora no prefácio que escreveu para a editora Autêntica.

 Maura, então apenas uma menina de dezesseis anos (ela nasceu em 1929), dividia sua paixão por aviação com Jair Praxedes, filho do famoso Coronel Praxedes (também da mesma idade). Ela contou, em seu diário de hospício, ter sido casada durante um ano com Jair Praxedes, mas ter-se apaixonado pelo seu sogro, desiludindo-se do casamento. Ambos tiveram um filho chamado Cesarion Praxedes O jornalista Pedro Rogério Couto, que vive em Brasília, afirmou que Maura foi uma das fontes inspiradoras de um romance chamado Bela Noite para Voar (2001, Thesauros), livro em que foi baseado um filme de Zelito Viana. A vida e obra de Maura inspiraram também o romance A Origem da Água, de Ana Cristina Braga Martes. A partir dos anos 60, fixou-se no Rio de Janeiro, onde trabalhou no jornal Correio da Manhã e, segundo ela, Fernando Sabino foi quem a indicou para sua primeira editora.

No Rio, conheceu artistas tais como Tônia Carrero, por quem disse, em carta a Vera Brant, ter se sentido desprezada. Maura vivia entrando e saindo de internações em clínicas psiquiátricas. Torquato Neto, jornalista e letrista da tropicália, ficou no mesmo hospital, em Engenho de Dentro (título aproveitado por ele), e citou Hospício é Deus. Em crise, dilapidava heranças, brigava com os amigos, perdia empregos. Depois de sua morte, em 1993, foi lembrada em artigos por Carlos Heitor Cony, Reinaldo Jardim, Nelson de Oliveira e Ferreira Gullar, entre outros. Hoje na internet existem vários vídeos, lives, e várias dissertações de mestrado sobre sua obra.

            Em 2011, no último de nossos festivais de inverno, realizei o roteiro de um vídeo sobre Maura chamado Hospício é Deus, junto do cineasta Sérgio Villaça. Curiosamente, o  vídeo foi colocado no canal de um membro da família Lopes Cançado e teve 3.200 visualizações. Eu convido vocês a verem o vídeo e a sonharem com novos festivais de inverno:

Endereço do vídeo no canal de Jorge Lopes Cançado: <https://www.youtube.com/watch?v=-9KDTXnXbZ4>>.

 

 

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Café, escritores, livros e citações

 


* Por Luciene Guimarães *

Se você é leitor e se a companhia de um livro atrai uma xícara de café, imagine como é esse ritual para o escritor, em que a criatividade  parece ser beneficiada pela intensidade do sabor do café expresso. Mas não se trata aqui de discutir o próprio café, seu aroma, a sensação, se é turco, ristretto, ou com creme,  mas do ritual da escrita, que se passa muitas vezes em torno do café, dos lugares de encontro e discussão literária, mas também da solidão do escritor, quando quer matutar as palavras.

Escritores e cafés estabelecem entre eles uma relação simbiótica. Foi frequentando cafés que muitos escritores fizeram a fama dos recintos , que por sua vez,  só se tornaram conhecidos porque foi onde Borges, Fernando Pessoa, Machado de Assis, ou mesmo Zola ou Rimbaud, passaram por ali. Passavam para se aquecer ou esquecer de algo, ou mesmo permanecer, ficar, discutir, se juntar às efervescências sociais, ou se isolar num canto para elaborar sua escrita.

Se você é um leitor curioso, uma visita a  Buenos Aires pedia ir ao centro e comer um churros com chocolate no Café Richmond, famoso porque Borges ali se reunia com seu grupo literário, quando jovem, ritual diário.  Conhecido também por Júlio Cortázar, que em um dos contos do  seu fabuloso Histórias de cronópios e de famas, faz  referência ao recinto : “ Enquanto toma café no Richmond da Flórida, o cronópio molha uma torrada com suas lágrimas naturais.” A rua Flórida, onde ficava o café, hoje deu lugar a uma loja de departamentos americana, para a tristeza dos cronópios.

No Rio,  a tradicional e histórica Confeitaria Colombo, ilustríssima pelas passagens de  Machado de Assis e Olavo Bilac, esse último, frequentador assíduo, foi fundada em 1894, na transição para a República. Em Esaú e Jacó, Machado evoca uma suposta confeitaria, que serve de motivo para as ironias   do fim do Império: “Custódio enfiou um casaco de alpaca e voou à Rua da Assembleia. Lá estava a tabuleta, por sinal que coberta com um pedaço de chita (…). Levantada a cortina, Custódio leu: “Confeitaria do Império”. Era o nome antigo, o próprio, o célebre (…)” A confeitaria, que seria a do “Império” ou a da “República”, aludiria à Confeitaria Colombo.

Mas entre a História e a literatura, qual é a definição de um café literário? O termo “literário” que acompanha certos cafés pode ser bastante restritivo, diz a  Encyclopédie Universalis. O fato é que o que o ritual de encontro nos cafés que marcaram a história não se restrigem só à literatura, mas logo se juntaram a eles representantes dos outros campos da criação, das artes dramáticas às artes plásticas, e por todos aqueles que tinham algo a ver com estes círculos, tais como comerciantes de arte, livreiros, editores, colecionadores, bancas de jornais, etc. Filósofos, acadêmicos e cientistas têm ali um lugar, assim como ideólogos, políticos e até teólogos. O Café de Flore, em Paris, é um ícone nesse sentido, de encontros de discussão das humanidades, como o grupo da Rue Saint Benoît, grupo intelectual de esperançosos do pós-guerra, da resistência da ocupação francesa, centrado na figura da escritora Marguerite Duras, mas onde participavam também filósofos e escritores, como  Maurice Blanchot, Georges Bataille, e aqueles que se tornaram políticos importantes, como François Miterrand. É preciso ressaltar, no mesmo café, a presença também icônica do casal filósofo Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Estes também frequentavam o Café Les Deux Magots, lugar  marcado pelas visitas assíduas de Verlaine, Rimbaud e também Ernest Hemingway.

Além da forte sociabilidade, “os estabelecimentos foram, em um ou outro grau, uma espécie de escritório acadêmico, projetado para trocar opiniões e confrontar ideias da maneira mais livre possível.” Para muitos escritores, estar num café fez atiçar a criatividade e a imaginação, mantendo a inspiração acessa. Fugir da solidão, abstrair o burburinho da vida urbana, fazer-se de voyeur, trocar a escrivaninha pela mesa do café virou hábito de alguns. Hemingway escreveu Paris é uma festa, livro em que ele mesmo deixa escapar que escreveu parte dele num “café na Place St. Michel”.  A vida boêmia dos escritores na Paris de vanguarda misturava desejo e escrita: “Uma moça entrou no café e sentou-se perto da janela. (…) Olhei para ela, senti-me perturbado e numa grande excitação. Desejei colocá-la no meu conto, ou noutra parte qualquer, mas a moça se colocara de maneira a poder acompanhar o movimento da rua e da entrada do café, e compreendi que estava à espera de alguém. Por isso, continuei a escrever.” Eis uma presença efêmera, uma cena de relance, que evoca a passante de Baudelaire. Apollinaire foi outro escritor que permanecia longas horas no Café de Flore, escrevendo. Sartre e Simone de Beauvoir escreveram um livro inteiro ( “Os mandarins”) no Café Les Deux Magots. Hoje, o título do romance dá nome a uma sala do café parisiense.

Entre os contemporâneos, a escritora Patti Smith, também se rendeu ao sabor e charme dos cafés. Em seu livro Devoção, em meio a tantos nomes da cultura francesa que ela mesma cita, ela também se reconhece num estilo “voyeur”, em  que imaginar a cena inspira o livro. “Acordo mais cedo que o normal. Chego ao Flore bem na hora em que a cafeteria está abrindo, peço uma baguete com geleia de figo e café preto. O pão ainda está quente. ” Ao regressar à sua casa, nos EUA, ela diz cair em nostalgia: “Já em Nova York, tive dificuldade para me reacomodar quimicamente. Mais do que isso, sofri crises de nostalgia, uma saudade de estar onde estivera. Tomar café da manhã no Café de Flore, as tardes no jardim Gallimard, surtos de produtividade num trem em movimento.”

A química do café ou dos cafés também agiu em Enrique Vila-Matas, escritor espanhol. Em seu livro  Paris não tem fim, dedicado a uma longa estadia na França, entre confissões e fugas, ele diz : “Creio que naqueles dias, era eu quem dava as costas para o mundo, para o mundo todo. Sem leitores, sem ideias concretas sobre o amor nem a morte, e, para completar, escritor pedante, que escondia a fragilidade de principiante, eu era um horror ambulante. (…) E passei a fumar cachimbo, que julgava (talvez influenciado por fotografias de Sartre no Café de Flore.)”. Seja pela xícara de café que reanima os ânimos da escrita, ou seja pelo lugar repleto de surpresas e passagens dignas de Baudelaire, café e escritores parecem ter uma química perfeita.

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Luciene Guimarães é tradutora e especialista da obra de Marguerite Duras. Doutora em Littérature et arts de la scène et de l’écran pela Université Laval, (Canada), com uma tese desenvolvida também sobre a literatura e o cinema de Marguerite Duras.

 

Marguerite Duras para além da literatura

 


* Por Luciene Guimarães *

Poucos escritores do século XX tiveram o mesmo fôlego de Marguerite Duras em sua intensa obra. A conhecida escritora de O Amante (prêmio Goncourt nos anos 1980), não publicou apenas romances, como também suas crônicas jornalísticas para o jornal francês Libération, escreveu peças de teatro, roteiros para TV, ainda se dedicando a uma vasta atividade cinematográfica (cerca de 20 filmes produzidos). Como se não bastasse, foi tradutora, vertendo para o francês, peça de Anton Tchekhov e contos de Henry James. No Brasil, a obra dessa intensa escritora e cineasta ganhará novo alento com a publicação e reedição de algumas de suas obras, por algumas editoras brasileiras, como o livro Escrever, pela editora Relicário, além de outros títulos que estarão em breve no prelo. Mesmo que a obra de Marguerite Duras suscite bastante interesse dos leitores brasileiros , o público entretanto, talvez desconheça outras facetas da genial escritora.

Nascida na antiga colônia da Indochina, (hoje Vietnã), em 1914, Duras passou a vida exorcizando os fantasmas da infância, trazendo à tona através da escrita a própria memória: de um lado, os eventos que abalaram o século, como a Segunda Guerra e a efervescência de 1968, de outro, os conflitos familiares e afetivos. Em alguns livros, como Barragem contra o Pacífico, de inspiração autobiográfica, é no espaço da Indochina da infância, que as mazelas da vida colonial são desveladas. De fato, Duras conviveu com a frustração de uma mãe instrutora escolar que sonhou com a riqueza prometida na colônia francesa, onde o mar invadiu as terras da família provocando sua ruína. Outro livro escrito nos anos quarenta e depois esquecido, retomado anos mais tarde, A dor, relato confessional na angústia em salvar a vida do então marido, Robert Antelme, escritor e militante da Resistência que foi perseguido e quase morto pela Gestapo.

Os lugares de criação

 Ao longo da vida, Marguerite Duras escolheu viver em três lugares, destinados ao trabalho de criação, lugares esses carregados de simbolismos e significativos para as fases de sua carreira. O apartamento em Paris, na rue Saint-Benoît, que acolhia discussões de intelectuais; sua casa em Neauphle-le-Château, adquirida com a venda dos direitos de Barragem contra o Pacífico para o cinema; e os verões em Trouville, onde ela habitava no apartamento onde morou Marcel Proust. O apartamento à rua Saint-Benoit, endereço nobre perto do Café de Flore e lugar de efervescência política e intelectual, sobretudo nos anos da Guerra, tornou-se ícone do envolvimento da escritora com a vida intelectual na França, levado em particular pelo círculo de intelectuais conhecido como o “ grupo Rue Saint-Benoît”. Entre alguns de seus membros estavam filósofos, escritores e cineastas, como Maurice Blanchot, Dyonis Mascolo, Edgar Morin, Maurice Nadeau, Claude Roy e Elio Vittorini. O grupo formado por intelectuais unidos por uma forte amizade desde a Resistência, procuravam se opor a certos princípios, subvertendo o poder. Se, depois da guerra, a maioria de seus membros estavam inscritos no Partido Comunista, alguns o abandonaram, como Vittorini na Itália, outros foram excluídos, como Antelme, Mascolo e Duras, em 1950.

A casa na pequena cidade de Neauphle-le -Château, nos Yvelines, tornou-se também locação para alguns de seus filmes, como Nathalie Granger (1973). Gerard Depardieu, Jeanne Moreau, Delphine Seyrig e Bulle Ogier foram protagonistas do seu cinema, praticado sobretudo nos anos setenta e início dos anos oitenta.

Entre a escrita literária e a atividade cinematográfica

 Foi justamente a exigência da escrita, para ela, solidão e fardo, que a levou se ausentar da literatura durante a década de setenta para se dedicar exclusivamente ao cinema. A transição para o cinema, foi para ela, escritora já consagrada, uma experiência árdua. A inserção no meio cinematográfico deu-se à margem do cinema comercial ou de grande público, contando com orçamento modesto, o que a levou a sobreviver fora do circuito de distribuição em grandes salas. Seus filmes eram projetados em festivais de cinema experimental na França, e em países vizinhos. Um desses festivais, foi o Festival d’Hyères, que surgiu no início dos anos setenta, motivado pelo cineasta experimental radicado americano, Jonas Mekas. O Festival d’Hyères – que tinha esse nome por ser realizado em Hyères, uma pequena cidade turística no sul da França – surgiu ainda quando a relação da cinefilia com o cinema de autor eram férteis, o que propiciava verdadeiros rituais de encontros entre filme, público e autores. Cineastas como Jean-Luc Godard, Chantal Akerman, Jean Eustache e Jean-Marie Straub, todos franceses que despontaram no cinema de autor, eram frequentes em festivais, mostrando seus filmes na programação. Duras, não só projetava seus filmes produzidos nos anos setenta, como fazia parte do júri. Sabe-se que a estética experimental influenciou seu estilo. Sua inserção no meio cinematográfico deu-se então pela via do cinema alternativo, longe dos holofotes de Cannes e que ela apreciava e valorizava como forma política de resistência e oposição à indústria do cinema. Com dois filmes indicados para o Festival de Cannes (India Song et Le Camion) em 1975, e 1977, sua posição era de renúncia absoluta ao mundo do cinema europeu e das estrelas de Hollywood. Ela frequentou Cannes mas sem nenhuma afinidade com o glamour do evento cinematográfico, preferindo se recolher no quarto de hotel. O Festival d’Hyères que sempre privilegiou seu cinema, foi para ela, um lugar de encontro, cumprindo o ritual cinéfilo de debater com cineastas e com o público. Sua exigência com um espectador que “não sabia ver, não sabia ler” (as imagens) foi quase seu lema de protesto ao espectador passivo que se rendia ao cinema de sábado à noite para ver filmes americanos.

Duras excêntrica

 Outra excentricidade da escritora, diz respeito à venda dos direitos autorais de seus romances. Duras os cedia a cada vez que eram solicitados, mas depois, arrependida – não se sabe – ou talvez, frustrada pelas adaptações não corresponderem às expectativas, ela renuncia a todos. Foi assim com Barragem contra o Pacífico, filme de Renée Clement, o mesmo se deu com Peter Brooke, quando vendeu Moderato Cantabile e foi ainda mais grave com seu livro mais célebre, O amante, publicado em 1985. O cineasta francês Jean-Jacques Annaud comprou os direitos, convidou Duras para opinar nas filmagens e no roteiro, uma espécie de conselheira. Antes das filmagens começarem, Duras teve que se afastar por problemas de saúde, e então Annaud realiza o filme mesmo assim. Ao perceber o estilo comercial do filme, ela se arrepende do projeto, mas sem sucesso. Em revanche, ela responde ao projeto , não com outro filme, mas publicando um novo livro: O amante da China do Norte. Com uma linguagem próxima da cinematográfica, ela afirma: “é um livro, é um filme. “

Duras não se confessava grande cinéfila, dizia não ter estímulo de procurar filmes em cartaz, preferindo os filmes da TV . Havia uma razão para tal: fórmulas repetitivas, como se fossem enformados, realizados como produtos em série. Era exigente quanto à forma do filme. Apenas um cineasta era admirado por ela: Jean-Luc Godard. Por algumas vezes, se encontraram e registraram suas conversas, essas publicadas em livro anos mais tarde, como diálogos. Godard a convidou para atuar num de seus filmes, ela conta em Les Yeux verts, longo ensaio para o Cahiers du Cinéma. O filme era Salve-se quem puder (Sauve qui peut : la vie) em que ela deveria aparecer numa entrevista. Como o ambiente não foi favorável, Godard resolve na montagem da cena, deixar apenas a voz off de Duras. Essa escolha não parece ser por acaso. É sem dúvida a voz off dela o que prevalece em todos ou na maioria de seus filmes, principalmente os dos anos 70. Eis a homenagem do amigo Godard.

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Luciene Guimarães é tradutora e especialista da obra de Marguerite Duras. Doutora em Littérature et arts de la scène et de l’écran pela Université Laval, (Canada), com uma tese desenvolvida também sobre a literatura e o cinema de Marguerite Duras.

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segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Olha o Grau, Imprensa Digital!

                                         

                                                    Banda Bone Machine



Olhe o Grau, Imprensa Digital!

 

                Há algum tempo atrás, curiosamente, encontrei em um site na internet meu blog Revista Cidade Sol elencado entre os órgãos de imprensa da cidade, ao lado desse Jornal de Negócios! O meu blog existe há quatorze anos. Ele tem desde ensaios e peças teatrais até trabalhos de faculdade, links de vídeos que cheguei a realizar (como um sobre Maura Lopes Cançado), até poemas, resenhas, indicações de outros sites ou blogs, uma verdadeira barafunda.

Queria nessa coluna retomar isso, então, e comentar a imprensa digital local. O canal Defeitos, de Ragner Lemos e o Delonge, do Tom (no youtube) são voltados para o humor mais popular. O canal da banda Bone Machine é bom canal musical

O canal Liverson Carvalho é um canal voltado para o público juvenil, focalizando no humor. Ele coloca, por exemplo, a mãe para ouvir e comentar suas impressões sobre canções de funk. O resultado é um curioso choque de gerações, uma vez que canções como Boca de Pelo narram situações inenarráveis para a minha geração e as anteriores.

Choque entre gerações também ocorrem quando se trata do mundo das motocicletas. Esses são os principais assuntos de Juka do Grau, o Julianinho da Estrada Veículos, em seu perfil no Instagram. Foi através desse comunicativo rapaz que, sem dúvida, tem talento para jornalista que descobri, ao ver coberturas de eventos como “Motocando” (onde jovens se reúnem para empinar moto), o “grau” (puxar roda) é considerado por alguns um esporte em vias de ser legalizado! E vi o ex-PM Gabriel Monteiro, defendendo, de forma vanguardista, a legalização desse esporte “emergente”.

À luz desses fatos, achei muito curiosa e profética uma “sinopse” que fiz de um filme de Coppola: O Selvagem da Motocicleta (Rumble Fish) Francis Ford Coppola, 1981, publicada no blog revista cidade sol há quatorze anos:

“O Selvagem é um filme sobre a contracultura ambientado nos anos 60, mas filmado no início dos 80. A rebeldia da juventude é o tema do livro de Susan E. Hinton em que o filme é baseado. Susan faz uma defesa da juventude rebelde, mas Coppola parece ter adicionado à história um pouco da descrença que marcou os anos 80. O filme observa a falência da crítica ingênua ao capitalismo americano. Rusty James(Matt Dillon), imagem primordial do “rebel without a cause”, é um jovem agressivo, que mora na parte pobre da cidade e deseja liderar uma gang-e elas estão “fora de moda” na época retratada no filme. O irmão mais velho de Rusty, o motorcycle boy, retorna então da Califórnia. Ele é “como a realeza no exílio” e “nasceu no lado errado do rio”. Ele pode fazer tudo o que quiser, mas ele não encontra nada que queira fazer.” O que motiva sua eliminação pela polícia é uma louca tentativa de libertar os peixes de briga de uma loja de animais (em inglês, Rumble Fishes) e levá-los para o rio. O que o establishment teme, na verdade, é a capacidade que o garoto da motocicleta tem de liderar, de encantar os jovens, de ser um herói para eles; eles o seguiriam, ele e Rusty James poderiam dominar o lado da cidade onde vivem se o garoto aceitasse. A desidratação da contracultura está explicitada nestas palavras: A Califórnia é como uma garota chapada de heroína e doida, alta como uma pipa, sentada no topo do mundo sem saber que está morrendo, nem mesmo quando você lhe mostra as marcas.”



                                                                


quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Cine Regina: A Última Sessão de Cinema

 





Cine Regina: A Última Sessão de Cinema

                                               Lúcio Emílio do E. S. Júnior

 

            Uma de minhas lembranças mais persistentes é o fato de que acompanhei o fechamento do Cine Regina. Lembrei-me do antigo cine ao ler Resposta ao Tempo (Editora Literatura em Cena, 2020), de Alberto Coimbra: “No fundo, bem no meio do hall, a bilheteria (...). Ao entrar no cinema, primeiro o hall com o baleiro no meio. Cartazes de filmes na parede, uma porta e outro hall com os sofás e vários cartazes na parede dos dois lados (...)”. A seguir, ele explica que os cartazes eram de filmes de Marcelo Mastroianni: Esposamante e O Belo Antônio. Esse último contava com Cláudia Cardinale.

            Quando eu tinha dezesseis anos, no ano de 1990, fui a esse cinema ver Lambada, a Dança Proibida, na sessão de domingo à noite. Eu me recordo que eu ia junto aos escoteiros, um deles chamava-se Wilson e passávamos na farmácia logo ao lado, ele ia do trabalho direto ao cinema.

A lambada só era proibida no cinema, pois, na época, você abria uma torneira dançando lambada. A atriz principal (Laura Harring) representava a princesa Nisa e tentava evitar a devastação da Amazônia ao dançar um misto de música caribenha com carimbó de Belém, ao lado de um índio urbano que fazia magia macabra com sua pena de pavão explosiva. Nos dias que correm, Nisa com certeza seria chamada de comunista ao vestir vermelho e exibir “agenda pró-nativos”.

            Em outra sessão diferente, chegam imagens de outro filme visto ali: Os Dragões (1989), filme com o ator Jackie Chan, ainda em sua fase ambientada em Hong Kong e que é conhecida como “anos do Kung Fu”. Se em Lambada ríamos, nesse de luta meu amigo Wellington Mota imitava os golpes. Como em Cine Paradiso, a plateia era um espetáculo à parte.

            Dois anos depois, em 1991, o Cine Regina anunciou seu fechamento, mas como despedida realizou sessão exibindo Cine Paradiso, clássico de Giuseppe Tornatore (1988). Era o cinema falando de si mesmo. Mamãe chamou-me para ir, mas eu não quis fazer essa experiência mágica que seria vê-lo na telona, uma vez que tinha visto o filme em vídeo. O filme fala da volta de um cineasta bem sucedido a uma pequena cidade (Giancaldo), quando morre seu amigo Alfredo, projecionista que lhe ensinou o amor pela sétima arte e que sempre trabalhou no cine que acabou demolido ao final. Na trilha sonora de Enio Morricone, o violino é de cortar o coração. Eu não sabia que filmes como esse podem ser vistos durante a vida toda várias vezes, sempre com novo proveito. Como sinto arrependimento visto essa última sessão de nosso cinema! Logo depois que ele fechou as portas, escrevi um poema sobre o fato:

 

Cine Regina

 

Este cinema, encaixado nas duas lojas.

Uma de tecidos, Cine Regina, uma barbearia.

Este cinema

Flutuando com seu branco letreiro,

Pisca na madrugada,

No abismo,

Sempre piscando.

Na grade, círculos verdes tecem quadrados intrincados.

Na verdade

A entrada é franca.

Entrada tá fechada, vidro fosco.

O vidro fosco abraça as grades.

O Cine se esconde em frágeis andares

De um prédio de ruivas nas janelas.

Quadrados minúsculos seguem feito facetas

Da asa multicor de uma borboleta.

Sentados no meio-fio

Garotos estão vendendo cigarros de menta.

Quisera eu entrelaçar tal cenário

Numa foto em preto e branco retintos.

Para esfregar a imagem nos narizes metálicos

Da metrópole surda-muda & nua.