quinta-feira, 13 de abril de 2023

UM NOVO PARTIDO

 

UM NOVO PARTIDO





Laerte Braga





Quando o sociólogo Chico Oliveira disse num testemunho no I Fórum Social

Brasileiro, em BH, no início de novembro, que não vou discutir caráter,

estou além disso, buscando decifrar o enigma das esquerdas brasileiras

no futuro, estava enterrando o PT lulista, uma página virada e

mostrando a fantástica vitalidade intelectual e ética de quem tem caráter.

Foi outra figura notável da esquerda brasileira, Plínio de Arruda

Sampaio, o pai, quem, noutra frase, definiu o que estava por vir e está

em plena ebulição, desde o show de sábado e domingo, ao custo de 150 mil

reais, para expulsar Heloísa Helena e os deputados Babá, João Fontes e

Luciana Genro. O primeiro pato a levantar é o que leva mais chumbo.

O que está claro na ação política do governo e do grupo paulista que

domina o partido e o governo, é que foi feita a opção pelo modelo

reformista, com políticas sociais assistencialistas, sem a menor

preocupação de mudanças, ou compromissos com a história e o caráter do

Partido dos Trabalhadores.

Li hoje uma frase dita por Lula, em que afirma que se fosse para ser

presidente e fazer o que FHC faz (a frase é de 2000) preferia perder a

vida. Não perdeu a vida e o que disse foi mero jogo demagógico e

mentiroso de quem faz igualzinho a FHC e quer continuar a fazer.

A principal lição que fica da destrambelhada do PT, ou do que Leonardo

Boff chama de ordem e caos, numa análise do caso Heloísa Helena, é que a

idéia de um novo partido não pode prescindir do movimento social.

Eleições são meios e não fim e Lula, na medida do que faz, prova isso.

Partido e movimento social têm que andar juntos.

A busca de mudanças nas estruturas políticas, econômicas e sociais do

País não pode, por exemplo, ficar à mercê do risco do deputado Paulo

Delgado virar ministro de alguma coisa. Ou de Luís Fernando Furlan e

Roberto Rodrigues integrarem um Ministério de um governo eleito sob a

égide das mudanças.

O governo Lula é o exemplo mais deslavado de mergulho nos salões do

poder podre das elites e o líder sindical forjado na luta, pelo visto,

buscava apenas sombra e água fresca, de preferência correndo o mundo e

brincando de messias. Com um diretor a tiracolo, para edições precisas,

efeitos especiais indispensáveis, além de um monte de figuras

desprezíveis, algumas tangenciando os negócios da burguesia, se

transformando em parte desse processo corrupto e podre que, segundo o

próprio Lula, antes de ser presidente, presidia e continua a presidir o

Brasil desde o descobrimento.

O novo partido vai ser uma realidade indispensável. Mas terá que ser

conseqüência de formulações que envolvam todo o conjunto da luta popular

e terá que refletir isso. Ter consigo, por exemplo, a tarefa e o

desafio, de trazer de volta o movimento sindical para seus objetivos

básicos e históricos.

A CUT, neste momento, é só uma Força Sindical do B. Os sindicatos, em

sua esmagadora maioria, não são mais que corporações distante da

compreensão da luta de classes. Há júbilo na CUT pelo simples fato que,

no 1º de maio de 2004, vai poder sortear apartamentos e carros,

apresentar shows com artistas regiamente pagos, nos moldes do negócio

concorrente, disputando público e atenções e, lógico, votos, afinal o

ano vai ser de eleições. Vicentinho é candidato, outra vez, a prefeito.

Questões decisivas para o futuro da luta popular, que não se esgotam na

conjuntura nacional, perpassam a América Latina, perceber a

globalitarização em curso e entender todo o processo que desemboca em

luta de resistência para sobrevivência.

O governo Lula não tem esse compromisso. É só uma continuação dos

outros. O que muda é o estilo. Um, o anterior, preferia a lógica do

cinismo científico, outro a lógica do cinismo messiânico.

Lula vai agora cuidar da Globo. Tal e qual fez FHC uns três meses antes

de sair. 250 milhões de dólares a fundo perdido. É só um detalhe, um

exemplo de opção.

Os transgênicos são outra realidade que o governo não terá força para

reverter, pelo simples fato que o jogo é de me engana que eu gosto.

A expulsão dos que lutaram pelo PT fiel aos seus compromissos, ao seu

programa, à sua história é o fator de demarcação dos campos. A cara de

Lula é um terno Armani.

O primeiro pato a levantar foi o governo. Vai ser preciso agora engolir

a dor do partido ultrajado na intolerância de meia dúzia de capatazes e

não nos assustarmos com as pesquisas que aprovam Lula.

O jogo hoje é jogado com equipamentos de última geração, máquinas

eletrônicas para votar e mostrarem os resultados desejados pelo poder e

a única mudança visível no processo de transformação do ser humano em

gado, está no apelo publicitário da calça que pretendia ser sinônimo de

liberdade. Neste momento, ela se apresenta como sinônimo de ousadia.

A degringolada no PT é inevitável e cada dia mais e mais vão se

aperceber disso.
Comentarios

Sobre a Supremacia da Água Doce e a Palavra da Água em Água e os Sonhos, Gaston Bachelard

Sobre a Supremacia da Água Doce e a Palavra da Água em Água e os Sonhos, Gaston Bachelard


Gaston Bachelard (1884-1962), nascido em Bar-sur-Aube, Champagne, França. O próprio nome de sua cidade já significa que ela está situada sobre o rio Aube. Esta região do leste da França é cortada por muitos rios: Sena, Meuse, Aube, Marne, Aisne, Semois, Moselle e o Reno. Próximo do rio Aube há também o lago Madine, com mais de 1.100 hectares. Esse tema da água tem, portanto, uma ressonância autobiográfica que ele mesmo assumiu: “Nasci numa região de riachos e rios, num canto da Champagne povoado de várzeas, no Vallage, assim chamado por causa do grande número de seus vales. A mais bela das moradas estaria para mim na concavidade de um pequeno vale, às margens da água corrente, à sombra curta dos salgueiros e dos vimeiros. E, quando outubro chegasse, com suas brumas sobre o rio...” (BACHELARD, 1998, p.8)

Nos capítulos que analisamos, assim como em todo o texto, ele toma o simbolismo como um universo autônomo, e não o referindo o tempo à realidade como faz Freud. Embora utilize –de forma bastante pessoal, diga-se de passagem – o termo “materialismo”, Bachelard se afasta do realismo. Neste estudo ele faz, basicamente, observações psicológicas sobre a imaginação material, tomando, das narrativas mitológicas, apenas os exemplos que pudessem ser reavivados presentemente em devaneios naturais e vivos.

Tendo se tornado mais conhecido por sua contribuição à filosofia da ciência, Bachelard desenvolveu uma epistemologia própria, o “aproximacionalismo”, ou seja, a idéia de que a abordagem do objeto científico deve ser feita através do uso sucessivo de diversos métodos. Em torno do tema do materialismo, em seu pensamento se cruzam ciência e poesia, razão e devaneio. Ele também se utiliza de uma fenomenologia. Para ele, pelo que pude observar, a percepção é uma vivência. A consciência possui uma essência diferente da essência dos fenômenos, pois ela é doadora de sentido às coisas e estas são receptadoras de sentido. Os fenômenos seriam, além das coisas materiais, naturais e ideais, os resultados da vida e ação humanas. Os sonhos, por exemplo, seriam fenômenos: significações ou essências que aparecem à consciência e que são constituídos pela própria consciência.

Na página 5, o filósofo afirma: “Sonha-se antes de contemplar. Antes de ser um espetáculo consciente, toda paisagem é uma experiência onírica. Só olhamos com paixão estética as paisagens que vimos antes em sonho.”

O tema do sonho, presente na passagem acima, é recorrente na obra de Bachelard: para ele, a razão não pode andar senão de mãos dadas com outras formas de conhecimento, tais como o sonho e a imaginação. Ele diz na página 24: “A nosso ver, a experiência poética deve ser posta sob a dependência da experiência onírica.” Já a razão, o sonho e a imaginação estariam no mesmo patamar.

Falando da água, Bachelard dá primazia para a água doce, e acaba por falar mal do mar. Para ele, a primeira experiência do mar seria da ordem da narração. A viagem distante, e as aventuras marinhas são antes de tudo aventuras e viagens contadas. A divisão entre conto e mito não seria tão bem feita, no tocante à mitologia do mar. O inconsciente marítimo é portanto um inconsciente falado, um inconsciente que se dispersa em narrativa de aventuras, um inconsciente que não dorme. Talvez imaginando que poderiam lhe colocar a objeção de que as grandes narrativas da mitologia grega, mitologia mais influentes da civilização ocidental, são em geral poemas do mar, Bachelard encontrou um autor chamado Charles Ploix que postula a origem celeste de Poseidon. E também esse mesmo autor completa, a respeito do fato de Poseidon ter sido chamado de deus do mar: “deve entender-se não o mar, mas o grande reservatório de água doce (potamos) situado nas extremidades do mundo”(PLOIX, apud Bachelard, 1998, p.162). A esta altura, Bachelard emite uma explicação que mais parece um devaneio: “foi uma perversão que salgou os mares”. Para ele, a água doce é feminina, a água violenta, colérica, é associada ao temperamento masculino.

Para falar da água colérica, Bachelard cita Swinburne e Edgar Poe. Cria até um complexo de Swinburne, inspirado na disposição aquática desse poeta inglês, criado na ilha de Wight, e tendo um rio como limite da propriedade da família. Swinburne se tornou um nadador intrépido, depois de ter superado o medo da água. O complexo de Swinburne, tal qual o denomina Bachelard, seria um desafio viril às águas. As águas flagelam; Swinburne afirma nunca ter tido medo do mar, por ter sido levado ainda criança ao mar, pelos braços do pai. A imagem predominante do complexo de Swinburne é a flagelação das ondas, relacionada por ele com um masoquismo.

Esse mesmo complexo se repetiria na obra de Edgar Poe: Bachelard antoa que Poe desejava reviver o instrutor de natação enérgico, o papel do Pai nadador, atirando o filho de sua bem-amada Helena e um outro rapaz nas águas. Para Bachelard, todas as formas de iniciação colocam problemas edipianos. Nos textos de Poe, o componente melancólico acompanha as intuições da água na poética do escritor.

Bachelard observa que o mar em fúria é um tema em vários escritores: Victor Hugo, Michelet, Balzac. Ele articula ao complexo de Swinburne as brincadeiras das crianças diante do mar: “Quando o Oceano deixava suas areias, Mariana gostava de perseguir a onda que fugia e de vê-la voltar sobre ela. Então era ela que fugia...Fugia, mas passo a passo, com um pé que só cede a contragosto e que gostaria de deixar-se alcançar.”

Bachelard também articula um complexo de Xerxes. Seria a exemplo do rei persa que mandou chicotearem as águas, depois que elas derrubaram duas pontes que ele havia mandado erguer. Um detalhe: talvez isso tenha ocorrido porque o rei persa se achasse um deus. Bachelard vê nesse complexo de Xerxes traços de sadismo, e mostra que no devaneio de certos escritores existem ligações com o complexos de Xerxes.

O último capítulo do livro, a Palavra da Água, se abre com uma bela epígrafe, em que Claudel, como um outro poema de Mallarmé citado anteriormente, encontra relações entre o espelho e a água: “Espelho menos que arrepio...ao mesmo tempo pausa e carícia, passagem de um arco líquido sobre um concerto de musgo.”

O texto destaca a palavra francesa “rivière”, que julga a mais francesa das palavras: “É uma palavra que se faz com a imagem visual da rive (margem) imóvel e que, no entanto, não cessa de fluir...” (BACHELARD, 1998, p.195)

Para Bachofen, “a” é a vogal da água, ela comanda aqua, wasser, apa e é a letra inicial do poema universal. Existiria também o canto do riacho, “maravilhosa logorréia da natureza-criança”. Ele colhe definições tais como a de Paul Fort: “o Verbo que se faz águas”. Para Bachelard, a liquidez é um princípio da linguagem: a linguagem deve estar inchada de águas. Para falar do momento em que se aprende a falar, Bachelard cita o dadaísta Tzara: “uma nuvem de rios impetuosos enche a boca árida”. Bachelard busca correspondências das imagens com o som e cita Lucrécio: “assim, todos os tons da natureza morta ou animada têm seu eco e sua consonância na natureza viva”. A imaginação faz o papel de sonoplasta. Ou melhor: ele busca correspondência das imagens com a palavra da água: “a beleza nasce do som murmurante”.

Finalizando, vale a pena notar que Bachelard, num ensaio sobre Monet chamado As Ninféias ou As Surpresas de uma Alvorada de Verão, escreveu: “Não se sonha junto à água sem formular uma dialética do reflexo e da profundeza.” A Água e os Sonhos é marcados por essa relação de oposição: o reflexo o levou a pensar em Narciso, a profundeza em Caronte, o barqueiro que levava para a ilha dos Mortos.



O Excêntrico e Exemplar Paul Ricoeur (1913-2005) -- 03/06/2007 - 19:45 (Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior)

 



Um dos mais importantes vultos da filosofia francesa, Paul Ricoeur, nascido em Valence em 1913, faleceu em Chatenay Malabry, perto de Paris, numa sexta-feira, 20 de maio de 2005. Esse curto artigo surgiu inspirado pelo curso e pelos artigos a respeito de Ricoeur, de autoria da professora Jeanne Marie Gagnebin no IEL-UNICAMP e por obra da pouca ou nula repercussão que sua morte obteve em nossas universidades e suplementos literários: diante desse silêncio, torna-se importante apresentar a trajetória desse pensador.


Nascido próximo de Paris, Ricoeur perdeu seus pais muito cedo, tendo vivenciado de forma concreta a experiência da orfandade. Interessou-se por Filosofia ainda no liceu, inspirado pelo carisma de um professor dessa disciplina chamado Dalbiet. Na juventude aproximou-se dos cristãos de esquerda franceses, escrevendo artigos para revistas dessa orientação religiosa e coloração política, iniciando uma carreira de filósofo. Durante a Segunda Guerra Mundial, Ricoeur ficou recluso na Alemanha, onde aproveitou para ler e traduzir autores alemães como Karl Jaspers. Ao retornar para a França, ficou absolutamente chocado por não ter ouvido falar em Auschwitz durante seu encarceramento.

Espantado com a radicalidade do mal que veio à tona no final da Segunda Guerra, escreveu seus primeiros livros tratando daquilo que coloca radicalmente em questão a onipotência da vontade humana: a finitude, a culpabilidade, o mal: figuras dolorosas do involuntário. Notemos também que o problema do mal foi abordado desde então pelo viés simbólico, ou seja, de seus símbolos primários e seus mitos. Seu primeiro livro, Filosofia da Vontade, desdobrado em outro chamado Finitude e Culpabilidade, colocou alguns temas-chave da obra de Ricoeur: a não-soberania do sujeito consciente e sua relação simbólica e cultural com esse outro que lhe escapa.

Ricoeur, nesse período, procurou destronar não só a filosofia clássica do sujeito autônomo (Descartes e Kant), mas também seus sucedâneos contemporâneos, o existencialismo e o personalismo, com sua ênfase nos conceitos de responsabilidade e decisão. Buscou apoio em três vertentes distintas, mas que se reforçavam mutuamente na denúncia do humanismo metafísico. Primeiro, um pensamento poetizante que se reclama justamente do segundo Heidegger, seguidor de Nietzsche; depois o estruturalismo tanto lingüístico como, sobretudo, antropológico (Lévi-Strauss); enfim, a renovação da psicanálise com a doutrina lacaniana. Os três movimentos têm em comum a convicção de que não há sujeito algum que seja mestre de sua fala. Mesmo que não neguem as variações pessoais e estilísticas, essas tendências teóricas tendem a transferir a dinâmica de liberdade e de invenção, tradicionalmente atribuída à pessoa do sujeito individual, para uma entidade sistêmica tão eficaz como impessoal.

Atento, porém, aos excessos do estruturalismo e da psicanálise, Ricoeur resolveu confrontar-se com Freud, Marx e Nietzsche, controvérsias expressas nos livros Da Interpretação, Ensaio sobre Freud, de 1965, e O Conflito das Interpretações, Ensaios de Hermenêutica, de 1969. Notemos como eram recorrentes no pensamento de Ricoeur os conceitos de sujeito e de interpretação. O livro sobre Freud despertou a ira dos lacanianos, que por muito tempo ora o acusavam de plágio, ora o desqualificaram implacavelmente, tachando-o de filósofo cristão de menor importância, que ousara desafiar o mestre Lacan. A perseguição dos lacanianos fez com que Ricoeur, que nunca gostou de polêmicas públicas, ficasse até os anos 80 sem falar em psicanálise; a essa tumultuada recepção de seus textos seguiu-se a atitude hostil que tiveram os estudantes rebeldes de 1968 contra ele, ao invadirem seu gabinete na Sorbonne e lhe atirarem uma lata de papéis sobre a cabeça. Tais experiências desagradáveis fizeram com que Ricoeur ficasse muitos anos fora de seu país natal, partindo para lecionar e produzir no exterior, passando longos períodos nas universidades de Louvain (Bélgica) e Yale (EUA).

Paul Ricoeur foi um filósofo que muitas vezes em sua trajetória tomou uma posição mediana. Isso o fez excêntrico na França, em especial em Paris. Ao mesmo tempo, sua trajetória deu exemplo de diálogo com os textos alheios e tomada de posturas independentes. Ponderando sobre a filosofia analítica e a metáfora em uma de suas obras dos anos 70, Metaphore Vive (A Metáfora Viva), Ricoeur conseguiu ao mesmo tempo atrair o ódio dos desconstrutivistas fanáticos e o desdém complacente dos analíticos xiitas. Podemos dizer que a vertente fenomenológica do pensamento de Ricoeur o defendeu dos encantos entrecruzados do estruturalismo, da desconstrução e também da filosofia analítica.

Enquanto sua obra voltou-se contra os pensamentos com ambições totalizantes (Marx e Althusser, por exemplo), como em seu livro Ideologia e Interpretação, em sua vida Ricoeur se opôs especialmente à guerra da Argélia e à guerra da Bósnia. Simpático à esquerda, de família de velha tradição protestante, cruzou a obra de Marx dialogando especialmente com o althusserianismo e protestando contra a utilização no marxismo no Leste Europeu e na URSS. Segundo Ricoeur, essa utilização transformava o pensamento de Marx, pensamento que se batia pela conscientização, também em mantenedor de uma falsa consciência, completando um estranho ciclo. Para Ricoeur, a idéia de uma compreensão do mundo passa necessariamente pela análise dos signos e das obras que encontramos no mundo e que precedem nossa existência individual.

Pensador preocupado com o tempo, a narrativa e a leitura, capaz de dedicar uma densa obra de três volumes a tais temas (Tempo e Narrativa), Ricoeur fazia suas, citando-as, as palavras de Marcel Proust no texto Em Busca do Tempo Perdido: “Mas, para voltar a mim, pensava mais modestamente em meu livro, e seria mesmo inexato dizer, pensando naqueles que o leriam, em meus leitores. Pois não seriam, segundo eu, meus leitores, mas os próprios leitores de si mesmos, meu livro não passando de uma espécie de lente de aumento como aquelas que oferecia a um freguês o dono da ótica de Combray: meu livro graças ao qual eu lhes forneceria o meio de lerem a si mesmos.”

















Lúcio Emílio do E. S. Júnior, Mestre em Estudos Literários (UFMG) e Doutorando em Teoria e História Literária (UNICAMP)

Carmen, uma Novela Multimídia

(trabalho para a disciplina de Márcia Abreu, segundo semestre de 2006, UNICAMP, aluno Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior)





Nosso trabalho foi o de pesquisar as várias adaptações dessa novela de Prosper Mérimée. Podemos dizer que uma das razões do sucesso foi a simplicidade e a força do enredo, no qual sobressaiu-se a personagem central, a cigana Carmen. A história de uma mulher cercada de mistério, praticante de magia, sedutora, nos pareceu também ter uma grande capacidade de seduzir. E essa capacidade manteve-se intocada quando da transposição para outros sistemas semióticos.

Mérimée iniciou o texto com um curioso artifício retórico: o narrador afirmou ter ido para a Espanha apenas para estudar uma famosa batalha do tempo dos romanos. Ele expõe sua teoria a respeito da batalha com veemência, para em seguida narrar, como causo, divertissement, a história de Carmen. O tema da batalha dos romanos é um falso enredo. O texto dissimula, faz-se de maroto, imitando a própria personagem. Não foi só olhar dessa Fênix cigana que teve algo de traiçoeiro.

O estilo do texto de Mérimée nada teve de rebuscado. A narrativa vai diretamente ao ponto, não faz complexos exercícios de estilo, concentrando-se em narrar a ação. Afinal, a maior parte do texto foi uma narrativa dentro de uma narrativa. A narrativa de Don José foi a narrativa de condenado à morte. A correlação entre as narrativas e a morte já foi notada desde as Mil e Uma Noites, da princesa Sherezeade e a Odisséia de Homero.

Carmen talvez tenha feito sucesso por ter como protagonista uma mulher cheia de vontade de potência. Quem sabe daí o fascínio de Nietzsche, tantalizado por sua Salomé e necessitado de forças desmesuradas tropicais para opor aos homens temperados e nórdicos, esses Parsifals cantados por Wagner, esse Wagner que, da mesma idade do pai de Nietzsche, parece-nos ter se transformado numa imago paterna negada. Nietzsche escreveu contra a liberação feminina, mas precisamos prestar muita atenção àquilo que Nietzsche combateu. Com freqüência, Nietzsche encontrou seus inimigos dentro de si mesmo e naquilo que ele admirava. Nietzsche ironizou e desdenhou da luta pela liberação feminina, desprezando-a, opondo-se a ela, mas sabia que se opunha a uma tendência forte; para Nietzsche, Darwin não está com a razão e nem sempre são os fortes que vencem. O cristianismo, religião combatida por ele como platonismo para o povo, propugnadora de uma moral de rebanho, ou seja, de fracos, de ovelhas, de vítimas, resiste bravamente dois mil anos de história.

Se, do final do século XIX em diante, ocorreu a liberação das mulheres e a sua subida a um protagonismo antes inalcançável socialmente, isso com certeza foi uma das forças ocultas que impulsionou Carmen, essa maga-cigana-hispana. Uma protagonista mulher passou a ser algo essencial, algo chamativo, senão ilustrativo de uma época em que as mulheres passaram de dominadas a dominadoras. Ou melhor, passaram a ter a possibilidade de exercer formas de dominação, ainda que imaginárias e ilusórias.

Carmen, mulher finalmente dona de si mesma, liberada, esfinge com segredo, indecifrável devoradora de homens. Seus olhos eram olhos de gato que quando observavam o forasteiro desavisado adquiriram aquele aspecto de olhos de gato olhando um pardal, ou seja, olhos de um universo oposto, olhos hostis, interessados em aniquilar seu opositor, ameaçadores. A cigana mágica olhou o homem como uma presa, com um olhar da mesma natureza daquele com que o senhor olha o escravo, o burguês olha o proletário, o mais forte olha o mais fraco.

O simples olhar do gato para o pardal bastou para assustá-lo e fazê-lo movimentar-se. Tivemos a oportunidade de, num sítio, verificar o olhar de um gato diante de um pardal, experiência sugerida por Mérimée para que pudéssemos entender o olhar de Carmen diante do incauto forasteiro, claramente atraído por seus encantos carnais e sobrenaturais. O gato, que simplesmente passava próximo a uma fonte de água onde bebericavam os pardais, ao vê-los prontamente movimentou os olhos e o pescoço num movimento brusco. Há um brusco interesse que acompanha cada movimento atentamente. O olhar irradia tal força que os pardais, ao se sentirem fixados por ele, prontamente afastam-se instintivamente. Trata-se de instinto provocando instinto; o olhar do gato é a linguagem do predador e a esquiva dos pardais é o pressentimento da vítima. Os pardais temem entrar no raio de ação do predador. O narrador escapou por pouco de entrar no raio de ação de Carmen, de tornar-se mais de seus homens seduzidos e vitimados. Por isso seu relato foi tão potente, trata-se do relato de um sobrevivente, que se apropria, por afinidade, do relato de uma vítima marcada de morte, Don José. O narrador, que andou pelo fio da lâmina, sente na carne a lâmina que irá matar Don José.

Podemos também dizer que Carmen foi uma mulher que inverteu a tendência predatória do homem em relação à mulher. O predador é um ser que destrói outro ser vivo violentamente, matando e consumindo esse ser como forma de obter energia vital. A atitude aproxima-se da atitude de pilhar, roubar, rapinar, extorquir, consumir. As relações de dominação do homem em relação à mulher passam por atitudes desse tipo, como parte de uma relação de dominação estabelecida na pré-história, com base na força bruta. Invertendo essa relação, mostrou o narrador, desencadeou forças que não pode controlar. A metáfora do pássaro retornou na ópera, de forma transformada. Carmen foi a portadora de um amor que foi como um pássaro rebelde que ninguém poderia aprisionar. Carmen, de gata devoradora de pássaros passou a ser a emissora de um ser semelhante ao pássaro, o amor. Um ser análogo.

Há também a comparação do olhar da cigana com o olhar do lobo. O lobo é outra metáfora de um predador que essa mulher que inverteu os papéis encarnou. Ao realizar essa inversão, caracteristicamente, foi vítima da repressão, primeiro social, acusada na fábrica de perturbar a moral burguesa, digamos assim, depois punida com a morte pela ousadia de trocar um homem por outro, ou seja, consumir um e passar adiante, decidindo sugar a energia vital de outro, ou seja, comportar-se como os homens com freqüência se comportam. A metáfora do pássaro retornou no libreto de Bizet, mas com Carmen no papel de pássaro que quer ser livre, ou seja, vítima em potencial da escravidão e do encarceramento. Carmen foi lido como um elogio ao feminismo, mas também encerrou uma dura repressão, com o assassinato final da cigana, uma dura lição contra a mulher que inverteu o papel a ela reservado na sociedade.. Fênix, espanhola, toureira, representou e firmou uma certa imagem da mulher latina, mediterrânea, cheia de vitalidade e capaz de romper tabus e enfrentar o mundo masculino naquilo que ele teve de mais marcial, o soldado. Afinal, nas guerras o homem tem papel preponderante. Seus poderes mágicos não foram suficientes para derrotar as razões que a razão desconhece.











2. A ÓPERA





A atualidade de Carmen é o fator preponderante para este êxito estrondoso. Nos dez primeiros anos, Carmen foi representada mil vezes, um recorde invejável. Bizet adaptou a novela de Prosper Mérimée. O ballet adaptado pelo compositor soviético Ridion Chedrin, que fez o trabalho para sua mulher, a primeira bailarina do Bolshoi de Moscou, Maia Plistskaya, uma das mais célebres bailarinas do mundo.O bailado seguiu a ópera famosíssima, de mesmo nome, de autoria de Georges Bizet, que teve sua estréia no Ópera-Comique, em Paris, em 3 de março de 1875. A ópera é um dos mais estrondosos sucessos musicais de todos os tempos, embora tivesse fracassado na estréia. A história da cigana e seu destino terrível já foi apresentada de todas as maneiras possíveis, e em todas as artes.

O bailado estreou em Moscou em 1970. Chedrin utilizou as magníficas melodias, com uma orquestração excepcional, utilizando principalmente cordas e muita percussão.

O prelúdio da ópera começa com o vigoroso ritmo refletindo a festiva atmosfera da tourada do último ato. Então, soa o vibrante refrão da famosíssima canção do Toreador.

Esta é seguida pelo sombrio motivo do destino. Justamente aí há um crescimento orquestral que é seguido por um coro explosivo.

Os personagens do Ballet são os mesmo da ópera, destacando-se Carmen, Toureador e Don José. O bailado, que dura 45 minutos, em contraposição às duas horas e meia da ópera, apresenta as seguintes partes:

• Introdução;

• Dança;

• Primeiro Intermezzo;

• Rendição da Guarda;

• Entrada de Carmen e Habanera;

• Cena;

• Segundo Intermezzo;

• Bolero;

• Toureador;

• Toureador e Carmen;

• Adágio;

• Adivinhação do Destino;

• Final.



Carmen é uma ópera em quatro atos de Georges Bizet com libreto de Henri Meilhac e Ludovic Halévy, baseada na novela homônima de Prosper Mérimée. Ambientada em Sevilha, na primeira metade do século XIX, narra a história do oficial de exército Don José, que, prometido à jovem Micaëla, deixa-se seduzir pelos encantos da cigana Carmen, causando para si inúmeros problemas como a prisão e o rebaixamento no exército por facilitar-lhe uma fuga quando ela fora declarada culpada por agredir uma colega na fábrica de cigarros onde ela trabalha. Abandonando a vida honrada para se entregar à vida errante junto aos ciganos, Don José vê Carmen trocá-lo pelo toureiro Escamillo e, tomado por uma crise de ciúmes, mata-a.

É o mais popular triângulo amoroso numa ópera. É uma das mais conhecidas óperas de todos os tempos. E algumas de suas árias ficaram tão populares que foram até plagiadas em publicidade. Carmen, de Georges Bizet (1838-1875), no entanto, é a história de uma mulher que gostava de homens. E por eles era capaz de tudo: de abandoná-los e de levá-los a matar. E até à morte.

A ópera de Bizet foi baseada em novela do francês Prosper Mérimée, com acréscimo de personagens, como Micaela, para ser o contraponto da cigana Carmen. O compositor teve medo que a moral da época rejeitasse a ópera por causa da personalidade de Carmen, uma das mais fortes e dominadoras.

Somente no ano de 2002, a Ópera Illustrata de Curitiba fez 10 apresentações didáticas, levando ao palco as óperas mais famosas, como "La Traviata", "Porgy and Bess", "O Barbeiro de Sevilha", "La Bohéme" e "Madame Butterfly", sempre com grande aceitação do público.

Ópera cheia de vitalidade, "Carmen" utiliza elementos instrumentais, harmônicos e rítmicos da música espanhola. Na época de sua estréia, a obra foi considerada obscena, e a música, muito criticada.

Em Curitiba, por exemplo, a direção artística do espetáculo esteve a cargo de Neyde Thomas, orientadora de muitos dos cantores que participaram das apresentações. Desta vez, os papéis principais são desempenhados por Fátima Castilho (Carmen), Anderson Marks (Don José) e Silvia Suss (Micaëla).

A direção cênica é de Lucianna Raitani, e o acompanhamento ao piano, de Joaquim do Espírito Santo. Como aconteceu em todas as edições, um especialista é convidado para comentar a obra antes das interpretações ao vivo, intercaladas com imagens em DVD de montagens internacionais. Desta vez, os comentários serão do maestro Flávio Stein.

Como uma iniciativa bem sucedida, a "Ópera Illustrata" deve ser retomada em 2003 com novas montagens, aproveitando o mesmo formato de apresentação.





2.1. PASSAGENS MUSICAIS FAMOSAS





Carmen é, provavelmente, a ópera não-italiana com maior número de árias famosas, dentre as quais podemos destacar:

• Abertura

• L amour est un oiseau rebelle (Habanera do primeiro ato)

• Les tringles des sistres tintaient (primeira ária do segundo ato)

• Votre Toast (Canção do Toureador, segundo ato)

• La fleur que m avais jetée (ária de Don José, segundo ato)

• Intermezzo Mêlons, coupons! (ária das cartas, terceiro ato)

• Je dis que rien m émpouvante (ária de Micaëla, terceiro ato)

• Aragonesa (prelúdio do quarto ato)

• Les voici la quadrille (coro da tourada, quarto ato)



Bizet parecia adivinhar que a empatia palco-platéia seria criada já no início do 1º ato, com Carmen cantando a mais famosa ária: “L’amour est um oiseau rebelle que nul ne peut apprivoiser” (O amor é um pássaro rebelde que ninguém pode aprisionar). Muito mais que uma declaração: o resumo da obra. E esta independência diante da sociedade e do amor, ela volta a mostrar no final do mesmo ato, ao advertir: “Si tu ne m’aimes pas, je t’aime, se je t’aime, prends garde à toi” (Se não me amares, eu te amarei, e se eu te amar, tenha cuidado).

A partir daí, com o seu envolvimento com Don José, um cabo que cuida da ordem em Sevilha, fica claro que a relação será de morte quando Carmen paquera soldados e com o toureiro Escamillo. “Carmen, il es temps encore, oui, il est temps encore...Ô ma Carmen. Laisse-moi te sauver, toi que j’adore, et me sauver avec toi” [Carmen, estamos ainda em tempo, sim, em tempo ainda...Oh minha Carmen, deixa-me salvá-la, a ti, a quem adoro, e salvar-me contigo, clama, apaixonado, don José. A resposta dela chega no final da ópera: “Eh bien! frappe-moi donc ou laisse-moi passer” (Pois bem, então mata-me ou deixa-me passar)].





2.2. UMA OUTRA CARMEN





Carmen (1983), filme do italiano Francesco Rossi com o tenor espanhol Plácido Domingo e o soprano norte-americano Julia Migenes-Johnson. Orquestra Nacional da França, sob direção do maestro Lorin Maazel. No cinema, Carmen foi adaptado várias vezes. Pouco após o sucesso do filme Gilda, com Rita Hayworth, o mesmo diretor e a mesma atriz principal uniram-se para dar vida à personagem que mudou a vida do soldado Don José ao seduzi-lo.





2.3. CARMEN: UMA VERSÃO BRASILEIRA DE AUGUSTO BOAL





O espetáculo "Carmen", dirigido por Augusto Boal, teve uma receita muito simples: utilizou a mesma música da obra de Bizet, apenas interpretada por instrumentos e ritmos diferentes, e cantada sem a impostação lírica. A ópera contou a história da cigana Carmen. Vivendo entre a pior laia de contrabandistas, bandidos e rufiões, acabou sendo morta por José, um soldado apaixonado que não agüentou vê-la em outros braços. A montagem de Boal utilizou ritmos bem brasileiros como o frevo, samba, maracatu, baião e modinhas imperiais para contar o enredo, porém manteve-se fiel à harmonia original da ópera.

O resultado foi um espetáculo muito mais próximo da realidade brasileira, as possibilidades de identificação foram evidentes, já que o tema foi universal, a fogosidade de Carmen teve tudo a ver com a mulher brasileira e a música esteve ao alcance de qualquer compreensão. Segundo Boal, o objetivo não foi popularizar, mas nacionalizar a ópera, buscando uma autenticidade pessoal.

Depois de "Carmen", existem outras adaptações a caminho. Seu grupo já estava trabalhando em "La Traviata", e desejava ainda fazer a "A Cavalgada das Valquírias", de Wagner, "O Barbeiro de Sevilha" e sete versões de diferentes Orfeus.







3. CARMEN NO CINEMA





Em 1983, Carlos Saura produziu uma adaptação de Carmen. Percebemos a personagem Carmen manter uma identidade, mantendo especificidades nas três produções. No livro existiu uma Carmen ladra, assassina, mas capaz de cuidar do amado com dedicação sincera e atitudes ternas. Sua liberdade, os envolvimentos amorosos foram insuportáveis e seu amante a mata. Na ópera, Carmen foi operária de uma fábrica de charutos e seduziu Dom José. Apareceu Micaëla, mocinha da terra natal a contrastar com Carmen, a cigana. Micaëla simbolizou o contato com a mãe amada. Carmen, paixão, desvio e a mulher amada. Carmen encontrou novo amante, um toureiro. Ela se negou a ficar com Dom José que a matou ao som de aplausos às verônicas em segundo plano. A heroína caiu suave sobre os braços algozes, tal pássaro inocente. O filme retratou a montagem do balé Carmen, ao mesmo tempo em que uma trama concomitante a esta se desenvolveu. Procurou-se uma bailarina para interpretar Carmen. Não importava a técnica aperfeiçoada ou a experiência das candidatas. O que procurou, o coreógrafo encontrou numa bailarina inexperiente. Apaixonaram-se e as histórias se entrelaçaram, livro, ópera e roteiro. Perceberam-se três "Carmens" distintas. A da ópera foi uma heroína, possui força e nobreza por seguir seus desejos. A Carmen do livro roubou, incitou crimes e quando foi assassinada não teve a morte triunfal que apareceu na ópera. No filme, Carmen foi uma mulher comum. O coreógrafo lhe vai dando os contornos da Carmen do livro e da ópera e aparecem as citações a estas duas outras obras. Mesmo com tantas diferenças, a identidade permaneceu. Na novela de Mérimée, somos surpreendidos por momentos em que uma imagem se destaca, presentifica-se em nós. Surpreendidos por tal imagem, somos remetidos a outros universos, a outras imagens. Não se trata de uma imagem material e sim de um estado de alma, de um movimento, de uma ação. Estado que nos toma, movimento que se desprende do livro. O movimento é o de rapidez, o de revezamento entre amor e paixão, entre belo e feio, lealdade e traição, liberdade e aprisionamento, vida e morte. Tudo isso estava presente em Mérimée, ressurgiu em Bizet de forma transformada e reapareceu em Saura.

Como uma Fênix, mais do que simples fonte de inspiração para Bizet e libretistas, algo pareceu surgir na novela de Mérimée e se instalar na ópera de forma independente. Tal pássaro, de rapidez absoluta, não nos permitiu a definição da trajetória e que nos entonteceu com presença eterna. Citemos G. Bachelard: "A Fênix dos poetas explode em palavras inflamadas, inflamantes. Está no centro de um campo ilimitado de metáforas. Uma tal imagem não pode deixar a imaginação tranqüila." (BACHELARD, 1981, p. 23). Esta apresentou-se quando o narrador descreveu Carmen com recortes poéticos na narrativa. A poesia estava no "nó de duas palavras valorizadas por sua união" (BACHELARD, 1981, p. 45). Os recortes não falavam de substâncias, possibilitaram-nos experimentar o dinamismo que produziam por metáforas repetidas, conjugadas, produtoras de impacto. "Para não vos fatigar com uma descrição prolixa, acrescentarei apenas que a cada defeito ela reunia uma qualidade que se destacava mais fortemente ainda pelo contraste" (MÉRIMÉE, 1999, p. 9). A cigana foi representada pelo conjunto entre o bom e o mau, o bem e o mal, o feio e o belo. Tal Medusa, cuja beleza do rosto contrastava com o terror de seus cabelos de serpentes e o reflexo no escudo de Perseu o protegeu talvez por, entre outros significados, estar o de ser reflexo turvo demais, impedindo o contraste definido. Eis o ingrediente para repetir Carmen de forma singular, a sedução dos contrastes. Fala-se de duas faces da moeda, de equivalências. O que seduziu em Carmen e petrificou em Medusa foram os opostos lado a lado. Na ordinária de Mérimée, sobressaíram os roubos, a ternura. Nas árias de Bizet, as modulações indo sempre do grave ao agudo bruscamente, permitindo apenas a cantoras experientes a dádiva do convite a esta interpretação. A Habanera trouxe na letra a conjugação "l’oiseau rebel". Os outros personagens giravam como satélites, pois a protagonista impôs a todos um desafio: o de viver segundo a lei do desejo, o confronto com os opostos.

Bachelard colocou que um pintor podia pintar uma Fênix incendiada e dar à sua obra o título de O Amor. Da mesma forma, Carmen, ao cantar a Habanera, suscitou muitas imagens, dentre elas a da liberdade. Bachelard prosseguiu dizendo que a função fabuladora adquiriu toda a sua extensão pela palavra. A imagem visual foi apenas um instantâneo. A função fabulatória pertencia ao reino do poético. Ao analisar a imagem da Fênix, destacou os atributos que escapavam à condição natural e se instalavam em outro terreno, o reino do poético. A imagem Carmen que possibilitou muitas metáforas é o que a ligava a imagem da Fênix. "Imagem tornada Verbo". A imagem Fênix suscitou uma série de metáforas que se contradizem e ao mesmo tempo se alimentavam mutuamente: a vida, a morte, o masculino, o feminino. Carmen promove uma dança de contradições, um revezamento de opostos. Tal imagem não se descreveu, só podemos nos referir a ela através das metáforas que foi capaz de suscitar. Como Bachelard disse a respeito da Fênix: "A Fênix é então um instante, um instante poético. Não se descreve o que surge. O gênio está em provocá-lo" (BACHELARD, 1983, p. 45). Aproximando Fênix de Carmen, esta citação resumiu o que Mérimée, Bizet e Carlos Saura fizeram ao produzirem suas obras. O que pareceu surgir na novela de Mérimée e instalar-se na ópera, renascendo de outra forma no filme de Carlos Saura e que ressurgiu em nossa alma, a cada vez que entramos em contato com qualquer uma das três expressões, foi Carmen, a mesma Fênix perpetuando-se em imagens sempre renovadas.

Existiu também uma versão de Carmen dirigida pelo diretor espanhol Vicente Aranda e protagonizada pela atriz Paz Vega, Carmen (2003). A versão moderna do clássico começou seguindo a original e apresentou Mérimée como um viajante-narrador, em uma de suas incursões pela Espanha. Durante uma tarde, quando buscou um lugar para repousar, ele teve seu primeiro contato com o atormentado Don José (Leonardo Sbaraglia). Sem conhecer sua história, ele dividiu sua refeição e charutos com o homem que teve sua vida destruída ao se apaixonar por Carmen. A única informação que recebeu de seu guia espanhol é que se trata de um assassino que foi banido da cidade.

Ao visitar uma igreja, Mérimée acabou por encontrar a cigana, uma belíssima jovem em sensuais trajes vermelhos e pretos, que se diz filha do diabo. Ela o convenceu a ver sua sorte nas cartas, mas as previsões são interrompidas com a chegada de seu amante, que expulsou o escritor. José reconheceu o francês, mas manda-o embora. Eles voltaram a se encontrar alguns dias depois quando Mérimée descobriu que José foi preso. Em seu cárcere e à beira de sofrer a pena de morte, ele contou para o atento ouvinte sua história.

Apesar do conhecido desfecho trágico, o longa-metragem marca pela atenção dada ao relacionamento amoroso e à paixão inflamada do casal. Com muitos tons vermelhos e amarelos e cenas tórridas de sexo, foi trazido para a tela o lendário calor espanhol. Tudo isso com a ajuda da beleza natural da atriz Paz Vega, que aparece em diversos nus, inclusive frontais.

Para viver o casal protagonista de seu vigésimo quarto filme, Vicente Aranda, também diretor de Os Amantes (1991) e Paixão Turca (1994), escolheu dois destacados jovens (e belos) atores, o argentino Leonardo Sbaraglia, de 34 anos, e a espanhola Paz Vega, 28.

Paz Vega começou sua carreira em 1999, com os filmes Zapping, Sobreviviré e Nadie Conoce a Nadie. Dois anos depois recebeu o Goya de Atriz Revelação, por sua atuação no sensual Lucia e o Sexo, de Julio Medem. No Brasil, tornou-se conhecida por sua participação em Fale com Ela, de Pedro Almodóvar. Seu último filme exibido no país foi o musical O Outro Lado da Cama, de Emilio Martínez Lázaro.

Além das dezenas amantes que povoam a ficção de Mérimée, na vida real Carmen teve adoradores de peso. Não morreria de ciúmes o apaixonado José ao saber que os diretores Cecil B. Mille, Jean-Luc Godard, Carlos Saura, Francesco Rosi, Charles Vidor, dentre outros lhe dedicaram filmes? Por sua carga dramática e elementos como amor, paixão, sexo, ciúmes e assassinato, a história da indomável cigana já foi produzida em países como a Argentina, Alemanha, Espanha, Estados Unidos, França, Inglaterra, Itália, México, Suécia, Eslovênia e etc. Isso tudo sem contar as infinitas montagens da ópera de Bizet, que estreou pela primeira vez em março de 1875, feitas anualmente em várias partes do planeta.

4. ARTES PLÁSTICAS





Nas artes plásticas, Carmen foi desenhada por ninguém menos que o genial Pablo Picasso, que em 1949 lançou uma edição de apenas 320 exemplares de ilustrações sobre a história da cigana, junto com Gustave Doré. No Brasil, o polêmico diretor teatral Gerald Thomas criou em 1986 o espetáculo "Carmen com Filtro", com Bete Coelho no papel principal, dando também sua versão para o mito (Dominique Valansi).

Carmen cigana envolvente, quente como o sangue espanhol, criada pelo escritor Prosper Mérimée em 1845 e transformada em ópera 30 anos depois por Georges Bizet, Carmen continua modelo de mulher fatal em plenos anos 80 após ter encantado cineastas célebres como Ernest Lubitsch, Charles Vidor e Otto Preminger. "O amor é filho da boemia e jamais admitiu leis" - proclama o livreto da ópera que atraiu um dia até o filósofo Nietzsche. Na área cinematográfica, Francesco Rosi, Jean-Luc Godard, Peter Brook e Carlos Saura são os mais recentes apaixonados, criando diferentes versões da mesma personagem. Do enfoque operístico de Rosi, passando pelo coreográfico de Saura, à versão desconcertante e fragmentada de Jean-Luc Godard, com a linda holandesa Maruschka Detmers, há Carmens para todos os gostos, reforçando no cinema o mito da operária provocante, que tira do sério um soldado e depois troca-o por um toureiro.

O espanhol Carlos Saura realizou o seu Carmen apoiado principalmente na coreografia de Antônio Gades (que fez também a coreografia do filme-ópera de Francesco Rosi) e na guitarra flamenga de Paco de Lucia. Este Carmen é simplesmente a despojada filmagem de um ensaio de balé sobre a história de Prosper Mérimée, tendo como trama os diálogos entre os bailarinos que intercalam as danças, sempre exuberantes e passionais. Essa proposta, despretensiosa e documental, contrasta bastante com o aspecto altamente dramático de outras versões, com estrelas do porte de Theda Bara, Pola Negri e Rita Hayworth. Sem se preocupar em reviver a tragédia de Carmen, o filme de Saura é um simples e tradicional espetáculo de dança hispânica, feito sob medida para agradar exclusivamente os amantes da dança e da Espanha.





5. CONCLUSÃO





Podemos supor que o texto Carmen tenha tocado num ponto arquetípico do imaginário, daí suas freqüentes adaptações e a atração exercida. Um texto bastante claro e sucinto foi o ponto de partida desse personagem, que desde então passou a povoar o imaginário da humanidade, ligado a esse forte nome.





6. BIBLIOGRAFIA





BACHELARD, Gaston. Psicanálise do Fogo. São Paulo: Martins Fontes, 2005.





MÉRIMÉE, Prosper. Correspondance générale. Éd. M.Parturier avec la coll. de P.Josserand et J.Mallion, t. I-VI: Paris, Le Divan, 1941-1947; t. VII-XVII: Toulouse, Privat, 1953-1964.





MÉRIMÉE, Prosper. Études sur les arts du Moyen Age. Éd. Pierre Josserand, Paris, Flammarion, 1967.





MÉRIMÉE, Prosper. La Correspondance Mérimée - Viollet-le-Duc. Éd. Françoise Bercé, Paris, éditions du CTHS, 2002, coll. Format, 42.





MÉRIMÉE, Prosper. La Guzla (1827). Éd. Antonia Fonyi, Paris, Kimé,1994, coll. Rencontres.



MÉRIMÉE, Prosper. La Naissance des monuments historiques: la correspondance de Prosper Mérimée avec Ludovic Vitet, 1840-1848, introduction et notes par Maurice Parturier, avant-propos de Françoise Bercé. Éditions du CTHS, 1998, 335 p. coll. Format, 30.





MÉRIMÉE, Prosper. Notes de voyage (1835-1840). Présentation de P.-M. Auzas, Paris, Hachette, 1971 (édition complète du Centenaire).





MÉRIMÉE, Prosper. Théâtre de Clara Gazul. Romans et nouvelles. Éd. Jean Mallion. P. Salomon, Paris, Gallimard,1979, coll. de la Pléiade, 21.







6.1. OBRAS OU REVISTAS CONSAGRADAS A PROSPER MÉRIMÉE





BERCÉ, Françoise. Des monuments historiques au patrimoine du XVIIIe siècle à nos jours ou "Les égarements du cœur et de l esprit". Paris, Flammarion, 2000, 225 p.





BILLY, André. Mérimée. Paris, Flammarion, 1959.





CHABOT, Jacques. L Autre Moi. Fantasme et fantastique dans les nouvelles de Mérimée. Aix-en-Provence, Édisud, 1983.





CHELEBOURG, Christian. Prosper Mérimée. Le sang et la chair.Une poétique du sujet. Paris, Minard, "Archives des Lettres modernes", n° 280, 2004.

DARCOS, Xavier. Mérimée. Paris, Flammarion,1998, coll. Grandes biographies.





DUBÉ, Pierre Hubert. Bibliographie de la critique sur Prosper Mérimée, 1825-1993. Genève, Droz, 1997, coll. Histoire des idées et critique littéraire, 358.





F. P.BOWMAN. Prosper Mérimée. Heroism, Pessimism and Irony. Berkeley, Los Angeles, University of California Press, 1962.





FERMIGIER, André. Mérimée et l Inspection des monuments historiques dans Les lieux de mémoire. Dir. Pierre Nora, II, La Nation pp.593-611.





FONYI, Antonia (dir.). Prosper Mérimée: écrivain, archéologue, historien. Genève, Droz, 1999, coll. Histoire des idées et critique littéraire, 374.





GIRAULD-LABALTE, Claire. Les Angevins et leurs monuments, 1800-1840: l invention du patrimoine. Angers, Société d études angevines, 1996, 361 p.





LAGARDE, Pierre de. La Mémoire des pierres. Paris, Albin Michel, 1979, 332 p.





LÉON, Paul. La Vie des monuments français: destruction, restauration. Paris, Picard, 1951, 584 p.





LÉON, Paul. Mérimée. Paris, Éditions du patrimoine, Connaissance des arts, 2003, 68 p.

LÉON, Paul. Mérimée et son temps. Paris, PUF, 1962, 488 p.





MONDENARD, Anne de. La Mission héliographique: cinq photographes parcourent la France en 1851. Paris : Monum, éd. du patrimoine, 2002, 319 p.





RÉAU, Louis. Histoire du vandalisme: les monuments détruits de l art français. Tome II, XIXe et XXe siècles. Paris, Hachette, 1959, 342 p. coll. Bibliothèque des Guides bleus.





REVUE EUROPE, numéro spécial consacré à Prosper Mérimée, 1975.





REQUENA, Clarisse. Unité et dualité dans l œuvre de Prosper Mérimée. Mythe et récit. Paris, Champion, 2000.



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Odisseu, Odisséias: Um Estudo das Adaptações para Cinema, TV e Música da Epopéia Homérica

 Odisseu, Odisséias: Um Estudo das Adaptações para Cinema, TV e Música da Epopéia Homérica


Lúcio Emílio do E. S. Júnior





1. Introdução





Pretendo, nessa comunicação, abordar as adaptações da Odisséia de Homero para o cinema e a televisão, discutindo também uma letra de música inspirada numa passagem comentada por Adorno. Sabemos, de antemão, que Adorno não tem a menor expectativa nesse tipo de adaptação, que ele chama de “semicultura”:



A semicultura é aquele verniz de saber que é fornecido pela indústria do lazer, quando ela se propõe a ser “cultural”. Então, apresentam-se, por exemplo, adaptações de clássicos da literatura universal para o rádio, para a televisão, para o cinema, e até mesmo para história em quadrinhos, conseguindo a proeza de eliminar da obra o que ela tem de essencial (ADORNO, apud: DUARTE, 1997, p. 23).



Assim sendo, estou consciente da opinião de Adorno a respeito desse tipo de obra sobre a qual me debruço. Creio que A Dialética do Esclarecimento apresentou uma inovadora interpretação da Odisséia, um marco para as análises posteriores de tal texto. No entanto, penso ser urgente analisar esse tipo de produção, num esforço de manter atualizada a teoria crítica. Ou seja, é necessário que se investigue mais a fundo os artefatos da “semicultura”, procurando desvendar o tal momento em que a essência da obra original é tocada.





2. Duas Odisséias





A primeira versão cinematográfica da Odisséia (Itália, 1955, direção: Mário Camerini. Atores: Kirk Douglas, Anthony Quinn, Silvana Mangano) iniciou-se com discussões entre Penélope e os pretendentes. Telêmaco não chegou a partir em busca do pai; ele apenas questionou a mãe para saber se o pai ainda vivia ou não. Nos jardins do palácio, uma cena referiu-se ao próprio Homero: um poeta cego, tocando um instrumento de corda que lembrava uma harpa, contou a história da tomada de Tróia. A narrativa passou, então, para o momento em que Ulisses chegou à Faécia, encontrou a princesa Nausícaa e foi levado ao palácio do rei Antinoô: a partir daí, em flashback, narrou-se o encontro de Ulisses com o cíclope Polifemo e com a feiticeira Circe, para depois retomar o fio da trama no momento em que Alcinoô aceitou ceder um navio para levá-lo à Ítaca. O filme se encerra com a matança dos pretendentes e o reencontro entre Ulisses e Penélope.

Já na adaptação mais recente da Odisséia (EUA, 1997, direção de Andrei Konchalovsky. Atores: Armand Assante, Greta Scacchi, Geraldine Chaplin) as primeiras cenas são as do nascimento de Telêmaco, que serão retomadas posteriormente. A esposa de Ulisses se ergueu logo após o parto, que nem sequer foi assistido por uma parteira; esses detalhes tenderam a afastar a narrativa do realismo e sinalizar para o terreno da fábula e da fantasia a qual ela pertence. A seguir, a câmera girou em torno de Odisseu com seu filho, transmitindo a embriaguez do rei em receber seu herdeiro. Depois houve um grande plano geral com a armada grega no mar, rumando para Tróia. Numa narrativa mais linear do que a homérica e a versão cinematográfica anterior, nesta versão norte-americana não há flashbacks. Vemos en passant cenas da Ilíada: o momento em que Aquiles matou Heitor e o ardil do cavalo de Tróia, que quase foi impedido pelo adivinho Laocoonte.

O cavalo de Tróia foi um momento em que Ulisses usou a inteligência e venceu o adivinho e o mito (Laocoonte, no entanto, foi morto por uma serpente marinha mandada por Poseidon). Os dois filhos de Laocoonte escaparam. Laocoonte foi um dos “vilões” da história, e, como os pretendentes e Tirésias, ele riu estrepitosamente, o que Ulisses nunca fez. As cenas em que a serpente agarrou Laocoonte foram em close, intercaladas, explorando a forte emoção provocada. A seguir, Ulisses desafiou os deuses, dizendo-se vencedor solitário de Tróia. Poseidon, que o havia ajudado mandando a serpente marinha matar Laocoonte, enfurece-se. Ulisses insistiu que ninguém o impediria de voltar a Ítaca, e logo Poseidon o fez sentir sua maldição: seu barco perdeu-se no nevoeiro, indo ter à ilha dos ciclopes. No poema homérico é apenas depois de furar o olho de Polifemo que Ulisses foi amaldiçoado por Poseidon. Segue então uma narrativa clara, sem falatório ou entrechos, como a maior parte das cenas, que são diurnas, como uma linha reta que atravessasse os mitos, da ilha dos ciclopes até a Ítaca, perpassando Éolo, Circe e Calipso.

Notei, na narrativa, uma escolha: a opção pelos homens e não pelos deuses. Tal foi ilustrado no episódio em que a deusa Calipso ofereceu a Ulisses a imortalidade, e ele preferiu voltar a ser homem. No entanto, Palas Atena (Geraldine Chaplin), já tinha lhe prometido “ter seu nome nos lábios de gerações sem fim”, o que já seria a imortalidade, de certa forma. A cena apontou também para o espectador essa imortalidade: o herói está ali, existindo materializado em imagens, e a deusa profetizou também que os espectadores, depois de assistirem o filme, ficarão _ se nessa altura já não estão _ com o nome de Ulisses em seus lábios. Durante a cruel guerra de Tróia, o herói foi um guerreiro adoçado: em meio a uma batalha se preocupa em salvar criancinhas. Essa adaptação utilizou recursos como esse para provocar adesão ao herói Ulisses e repulsa por seus opositores.

Ulisses e seus homens, enquanto estavam no barco, perdidos em meio ao nevoeiro, queixaram-se da música de Ântifo. Eles ameaçaram jogá-lo ao mar, aparentemente porque ele repetia com muita insistência o mesmo tema na flauta. Diferente do poema homérico, Ulisses disse algo bastante significativo ao gigante: gabou-se de que sua cabeça estava cheia de segredos, todos os segredos do mundo. Em resposta, o ciclope falou que iria cuspir fora a cabeça de Ulisses. Nesta passagem podemos ver, simbolizado, o choque entre o mito e a razão. O que Ulisses tem na cabeça é o esclarecimento, chave para iluminar todo o mundo. A razão quebra com os mitos, é indigesta para eles, por isso Polifemo prefere rejeitar essa cabeça tão inteligente.

A música, ausente do poema original, tem um papel fundamental nessa passagem do filme: fez adormecer o gigante, quando dela se utilizou o até então pouco tolerado flautista Ântifo. Sua arte encontrou uma utilidade: o ciclope teve seu olho furado e sua mão cresceu em direção aos olhos do espectador, num lance de metalinguagem. Na versão de Camerini, Ulisses e seus homens fizeram vinho e sapatearam, enquanto Polifemo batia palmas. De tanto beber vinho, o gigante acabou tendo o olho vazado por Ulisses. Nessa passagem podemos dizer que a música foi usada de forma regressiva, no sentido adorniano. Na mais antiga das versões, Polifemo se infantilizou; na mais recente, dormiu ao som da música, ou seja, não escutou, deixou a música como o mero acompanhamento da bebedeira. Assim como Polifemo, estamos às voltas com a música, mas nós não a escutamos. Ela é apenas pano de fundo para nossas outras atividades. Reforçando o papel alienante da música, também Ulisses relatou que parte do feitiço de Circe era “encher seus ouvidos com canções”.

Ainda a respeito da música, pensamos ser necessário discutir o episódio das sereias. As sereias foram, segundo Juan José Saer, mitologicamente importantes pelos seguintes motivos:



Poucas criaturas desfrutaram de tanta posteridade quanto estes monstros femininos – Medusa e as demais Górgonas, Quimera, Cila e Caribdes, etc. – da mitologia greco-romana, mas somente as sereias foram se adaptando aos tempos que corriam para, por fim, graças à colaboração de Hans Christian Andersen (1805-1875), entre outros, representarem o oposto do que eram, ainda que se possa reconhecer que uma parte (secundária) do mito primitivo lhes atribui beleza e fidelidade. (SAER, 20-05-2002)



O episódio das sereias ressoou ainda nos tempos atuais. Citaremos, logo abaixo, a letra, inspirada nesta passagem da Odisséia, de autoria de Eric Clapton e Martin Sharp, e gravada pela banda Cream nos anos 60:



Tales Of Brave Ulysses



You thought the leaden winter would bring you down forever,

But you rode upon a steamer to the violence of the sun.

And the colors of the sea blind your eyes with trembling mermaids,

And you touch the distant beaches with tales of brave Ulysses:

How his naked ears were tortured by the sirens sweetly singing,

For the sparkling waves are calling you to kiss their white laced lips.



And you see a girl s brown body dancing through the turquoise,

And her footprints make you follow where the sky loves the sea.

And when your fingers find her, she drowns you in her body,

Carving deep blue ripples in the tissues of your mind.





The tiny purple fishes run laughing through your fingers,

And you want to take her with you to the hard land of the winter.



Her name is Aphrodite and she rides a crimson shell,

And you know you cannot leave her for you touched the distant sands

With tales of brave Ulysses; how his naked ears were tortured

By the sirens sweetly singing.



The tiny purple fishes run lauging through your fingers,

And you want to take her with you to the hard land of the winter.



Trata-se, acima, de uma criação livremente inspirada no episódio. Nela, a figura feminina atrai, mas é também um colo guloso, devorador. E Ulisses teve as orelhas nuas torturadas pelas sereias que cantavam docemente: música essa que produzia a mais traiçoeira promessa de felicidade. Na canção Tales of Brade Ulisses (Contos do Bravo Ulisses), sobeja a ambiguidade entre a viagem no espaço, _ que é a que fez o personagem da epopéia _ e a viagem lisérgica, ou seja, a busca do estado alterado de consciência provocado pelas drogas. A Odisséia, seria, em si, a própria alienação, sob a forma de alucinação e delírio, estado transitório entre a autoconservação e a autodestruição do eu.

O episódio das sereias me pareceu atrair os músicos por acenar com uma evidente metalinguagem: trata-se da música fazendo o elogio da sedução da própria música. Vale a pena, inclusive, destacar a passagem da delirante letra que se refere aos pequenos peixes que passam rindo entre os dedos. Nesta passagem, o riso dos peixinhos pareceu simbolizar uma tomada de consciência. Adorno comentou a respeito: “Se o riso é até hoje o sinal da violência, o prorrompimento de uma natureza cega e insensível, ele não deixa de conter o elemento contrário: com o riso, a natureza cega toma consciência de si mesma enquanto tal e se priva assim da violência destruidora” (ADORNO, 1985, p.78). A adaptação cinematográfica preferiu utilizar o riso com o sinal negativo. Na versão mais recente da Odisséia, Ulisses ri pouco, os pretendentes gargalhavam todo o tempo, Laocoonte riu muito antes de ser devorado, num anticlímax, pela serpente marinha; até mesmo Tirésias riu.O riso agourento de Tirésias, assim como o de Laocoonte, foi algo acrescentado. Quem se opunha a Ulisses sempre gargalhava e era sinistro.

Finalizando, podemos dizer que a Odisséia foi costurada com a Ilíada, e os roteiristas souberam aproveitar as possibilidades presentes: amor, guerra, magia, relação conflituosa do homem com um ser superior. Sabendo tratar-se de um filme hollywoodiano, ao observarmos a longa despedida que o herói faz de sua esposa, depreendemos que ele um dia voltará; mesmo no poema original os pretendentes puderam ver um sinal de mau agouro, que ignoraram, e que anunciou o seu destino. Data da dramática separação do casal a concepção do final feliz. O maior motivo da matança dos pretendentes que ensangüentou o final do filme talvez tenha sido esse: Penélope, após dar à luz à Telêmaco e ver o marido viajar para Tróia, continuou prenhe de um final feliz.





3. Conclusão





Podemos dizer que as adaptações de A Odisséia para o cinema são um rico material para a observação, ao vivo, dos processos da indústria cultural em ação; afinal, podemos ali entrelaçar dois temas abordados por Adorno, em diferentes passagens da Dialética do Esclarecimento: a indústria cultural, representada par excellence pelos filmes americanos, e a epopéia homérica.









Bibliografia:





ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. A Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1985.

BÜRGER, Peter. As Lágrimas de Odisseu. Trad. Zé Pedro Antunes. Texto inédito.

DUARTE, Rodrigo. Adornos: Nove Ensaios Sobre o Filósofo Frankfurtiano. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997.

HOMERO, A Odisséia. Abril Cultural, 1978.

SAER, Juar José. Ulisses, O Homem que Ouviu o Canto. Folha de São Paulo, Caderno Mais! 10/02/2002.


Anos Rebeldes

 

(E aí, Zé Pedro e Bruno, meus dois uilconianos leitores. Eu queria sua opinião bem crítica sobre esse texto. Queria a visão de quem viveu pelo menos alguma coisa desse tempo: os anos 60. De uma forma ou de outra. Quero que fiquem à vontade para propor correções).

Abraços do Lúcio Jr.



No romance elaborado a partir do roteiro da minissérie televisiva Anos Rebeldes, de autoria de Gilberto Braga (adaptação de Flávio de Campos e Sérgio Marques), o grupo da mesma faixa etária, o peer group ( ou "o clã") representa principalmente para os jovens uma extraordinária comunidade de ação e comunicação no decorrer da história. Assim, a coincidência ac0idental do nascer coletivo e do entrar no mundo dos contextos tanto micro como macro-sociais provoca realmente uma consciência coletiva, que pode ir além de comunicações ocasionais e demonstrações de simpatia. Mas nem todas as formações etárias desenvolvem identidade de geração. Para isso é necessária a existência de circunstâncias especiais. Para que haja uma situação "objetiva" de geração é necessário um acontecimento central marcante, histórico e determinante de traços biográficos e que tem de ser intensamente receptivo no contexto de grupo de jovens e também em instituições sociais adequadas. Para os jovens de Anos Rebeldes, versão romanceada, notamos que esse acontecimento é o golpe de 1964.



Nascer no mesmo ano ou em anos subseqüentes é biograficamente um acaso e sociologicamente desinteressante. Todavia observa-se freqüentemente no cotidiano que pessoas mais ou menos na mesma faixa etária se entrosam, se comunicam e se entendem "espontaneamente" e que no mínimo podem discutir mais facilmente sobre complexos temáticos específicos.



Mas depois dos anos 60 tornou-se difícil criar uma identidade de geração, apesar dos esforços mercadológicos da mídia. É esta dificuldade que pretendo tematizar aqui, buscando suas razões. A tese é a sociedade burguesa e moralista, patriarcal e de direita. As antíteses são os despudorados hippies e os revolucionários de classe média. O não surgimento de uma síntese provoca sintomas mórbidos por todos os lados.



A questão é que a queda do muro de Berlim não foi marcante para os jovens como a Segunda Guerra e as transformações de 1968 foram para as gerações anteriores, embora seja o grande acontecimento deste final de século. A juventude televisiva dos anos 80 só assistiu aos eventos bem à distância. E sem muito envolvimento emocional, já que 1989 acabou sendo uma restauração, uma volta ao capitalismo e a economia de mercado tal como antes de 1917, quando o regime soviético criou uma opção de outro modo de produção e conseguiu mantê-la funcionando - ainda que transformada numa "utopia burocrática". Em 89, os ideólogos do capitalismo determinaram que qualquer crítica a este sistema deveria ser silenciada. E entre estes ideólogos estavam vários componentes da geração 68, dividida agora entre os que aderem ao neoliberalismo triunfante e os que se entregam à melancolia pela perda das utopias.



"Geração" pode, em primeiro plano, ser caracterizada como uma modalidade da consciência coletiva, como variante especial na família dos "sentimentos coletivos". Após os de 45, também aos de 68 foi possível a formação de uma geração. E continua a ser este o mais proeminente exemplo de identidade duradoura de geração. Tanto que continua a influenciar os jovens de hoje, que tendem a buscar modelos no passado toda vez que não conseguem construir uma identidade com as referências culturais disponíveis. A série de Gilberto Braga só fez alimentar esta busca de uma utopia regressiva.



Gerações somente surgem através de um longo período de tempo e além de tendências conjunturais. Na parte jovem de hoje já há marcas potenciais de geração. A juventude de hoje diverge fundamentalmente de outros grupos etários. Há hoje tendências que podem proporcionar o surgimento de um novo modelo cultural que deverá se diferenciar do modelo das gerações precursoras, ou seja, tanto da geração que viveu a Segunda Guerra e o mundo pré-atômico quanto da geração da transformação de valores. As faixas etárias mais jovens vivenciam importantes mudanças: a descrença na militância política tradicional, novas línguas da cultura popular (rap e techno), profundas mudanças na tecnologia e no mercado de trabalho, vivência intensa da TV, vídeo e quadrinhos. O termo geração "X" não é muito usado no Brasil - a mídia norte-americana e européia é que o usam para definir que é uma geração cuja identidade permanece incógnita. Aqui o impeachment de Fernando Collor em 92 criou o rótulo "Geração Carapintada". O único traço notável da geração pós-68 é ainda a relação extremamente contraditória com os modelos anteriores. Hoje há muita gente defendendo posições de direita com discurso de esquerda e anarquistas de má-fé, espécimes desconhecidos para as gerações anteriores. Vale a pena tentar explicar os fatores que levaram a tão bizarras posturas.



Mas a contradição essencial é que, embora haja tais traços de formação de geração, ao mesmo tempo percebemos que as referências culturais dos anos 60 ainda se mostram mais atraentes. E desde a geração 68 não foi possível a formação de uma identidade geracional sólida. Só que nem sempre o avanço é positivo. Elementos como drogas, orientalismo, festivais de música demonstram desgaste, mas alargaram seu campo de influência. Na maior parte das vezes, todos aceitam as velhas idéias recauchutadas. Aliás, o significado propriamente dito da formação de geração é demonstrar que "nós não somos como vocês, e que vocês não conseguem acompanhar nossas transformações". Uma afirmação de continuidade na ruptura. O que torna a questão complexa é que as transformações podem ser reacionárias ou intrinsecamente negativas, conceito difícil de ser apreendido pela geração dos anos 60, acostumada a ver toda ruptura ou manifestação de desprezo pela tradição como positiva.



Os anos 80 provaram que o conservadorismo político pode conviver com a liberação dos costumes e com o vale-tudo nas artes sem ameaçar a ordem estabelecida. É colocando em pauta tais questões que poremos na ordem do dia os problemas da geração que se sucedeu à que viveu 1968, o chamado ano que não acabou.



O romance Anos Rebeldes tem um início que parafraseia o romance O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger, uma referência importante para a geração 68 norte-americana:





Se você quiser mesmo saber, provavelmente você vai querer que eu conte onde foi que nasci, como é que foi a minha infância, que é que meus pais faziam na vida, etc. Mas não é isto o que eu quero contar. (BRAGA, p.3: 1992)





O passado recente, exibido na tela da Globo com a estética subhollywoodiana da telenovela, somado a cacoetes de Nouvelle Vague, faz propaganda de uma utopia regressiva, e embora revisite a história da esquerda brasileira, o faz como quem revê um passado vencido.



Escrevendo na orelha do livro de Gilberto Braga, Zuenir Ventura adota a versão de que, em 1992, uma nova geração superou a de 68, tendo desenvolvido características próprias. No entanto, o romance, assim como a minissérie, tentam ocultar os conflitos dos anos 60. A história mostra um retrato de época para o grande público, mas joga novas sombras sobre esse passado, adotando uma versão conciliatória.



Zuenir Ventura adotou um ponto de vista conciliador em seu livro 1968: O Ano que Não Terminou, mas às vezes age como um termidoriano, um neoconservador, como quando diz que "os jovens preferiam errar com Sartre a acertar com Raymond Aron". Ele equaciona essa disputa com a polêmica Alceu Amoroso Lima versus Nelson Rodrigues. Aqui parece que Zuenir Ventura tornou-se reacionário e passou preferir Nelson Rodrigues, que é o dramaturgo da chanchada liberal da classe média, e por isso os diretores de pornochanchada dos anos 70 sentiram tanta afinidade com sua obra. O que sucede é que no livro 1968, o Ano que Não Terminou, Caetano Veloso e Nelson Rodrigues se consagram e Sartre e o Dr. Alceu são tidos como cachorros mortos.



Quem não tem utopia, vive a história como fatalidade. Edgar, personagem principal do romance e também narrador, tenta reunir os fragmentos da época. Ele avisa que é uma "pessoa em quem se pode confiar". Edgar está em busca do passado, mas diz ser "um homem realizado, feliz, em paz". No final do relato, Edgar se revela adepto da cocaína, separado de Maria Lúcia há vinte anos, ameaçado de enfarte, em decadência física e, supomos, moral. O romance deve ser lido como a narrativa de um membro da geração 68, mas um sujeito atípico: viveu sempre nas beiradas da vida, sem lutar por uma causa nobre, sem fazer carreira na editora, de onde há muito foi afastado. Enfim, a história dos anos 60/70 em Anos Rebeldes é contada sob a ótica de um fracassado, e não de um homem bem-sucedido, ou, pelo menos, que esteja em paz com sua consciência. É bom lembrar que o próprio Fernando Collor dizia gostar dos Beatles e inventou para si um passado de lutas nos anos 60, quando de fato cresceu politicamente à sombra da ditadura militar. Edgar se mostra contraditório e traiçoeiro. Ele cita Swift: "bem-aventurados os que nada esperam, porque estes nunca se decepcionarão."



Durante o romance, Edgar dá sinais contraditórios, mas ao final a contradição é flagrante e desonesta. O romance deve ser relido à luz de seu niilismo terminal. É Caetano Veloso que, apesar de conciliador, examina a sua geração no pós-68:





Não tínhamos atingido o socialismo, não tínhamos sequer encontrado uma face humana no socialismo existente; tampouco tínhamos entrado na era de Aquarius ou no Reino do Espírito Santo; não tínhamos superado o Ocidente, não tínhamos extirpado o racismo e não tínhamos abolido a hipocrisia sexual. (VELOSO, p.111: 1998)





Vamos supor que os desejos autodestrutivos de Edgar são decorrentes de todas essas derrotas. O relato foi gerado sobre a influência da Rede Globo, interessada que ela está em camuflar a sua origem em 1965, sob as benesses do regime militar. Gilberto Braga é o mais prestigiado produtor de sucessos globais, tais como Vale Tudo e Anos Dourados. Parafraseando Flaubert, Gilberto Braga é Odette Reutermann, assim como o autor da Educação Sentimental dizia ser Madame Bovary. Braga encena que matou o lado mau-caráter e reacionário da Rede Globo, ajudando um aparelho ideológico da ditadura militar a posar de progressista, justamente às vésperas da vitória de Collor em 1989, que irá consagrar o estilo Reutermann de ser e de viver.



O romance Anos Rebeldes revisita o passado, ocultando a tragédia e propondo que a história se repita como farsa. A farsa foi levada ao extremo por Fernando Henrique a partir de 1994.



O deboche escatológico do personagem Galeno com as aulas de canto orfeônico simbolizam a negação que alguns membros da geração 68 fazem da era Vargas:





-Aaaa-rranca pentelho, bate cu, bate culhão.



-Bumm-da, bumm-da...



-Caralim, caralim...



-Bebe limonada pra cagar de madrugada...



(BRAGA, 1992: p.17)





Galeno também agride o amigo Waldir com violência que denota homofobia e demonstra uma fixação com relações anais:





-Afinal, ô Galeno, o Vianinha vem pra Semana ou não vem?



O Waldir não devia...Era ele fazer a pergunta e já se arrepender de ter feito. Galeno partia com tudo para cima do outro.



-O Vianinha vem, minha Moita tímida, vem, sim. Pra conhecer estes teus peitinhos bicudos de tanta punheta e essa tua bundinha roliça.



(BRAGA, 1992: p.18)





O canto orfeônico foi também ridicularizado por José Miguel Wisnik, num ensaio sobre Villa-Lobos, O Orfeão do Estado Novo, Este Coqueiro que Dá Coco. O canto orfeônico é redundante, afirma Wisnik. E Villa-Lobos associou-se ao autoritarismo de Getúlio Vargas, conclui o professor uspiano. O valor estético de Villa-Lobos é atrelado a uma condenação política por um concretista/tropicalista, entusiasta ao mesmo tempo de Roberto Carlos e Schoenberg, Carmen Miranda e Stockhausen. Mesmo o autoritarismo de Vargas pode ser relativizado por sua atuação progressista, em especial no final da vida:





O segundo governo de Getúlio Vargas, eleito democraticamente em 1951, com um plano autônomo de desenvolvimento econômico em setores estratégicos - minerais, petróleo, siderurgia, energia nuclear – associado a uma política externa altiva, sacode a América Latina. Reproduzido continentalmente, transfiguraria o rosto e o andar do sul do Rio Grande. Em quantidade e qualidade. Para os Estados Unidos, Vargas era um pusilânime joguete dos comunistas, enveredado pela trilha do colaboracionismo. Colocara à mercê do comunismo o gigante latino-americano. Vargas, o homem que derrotara os comunistas em 35 liquidando a ANL, agora negava a sua história e sentava as bases para que os comunistas tomassem o poder ao abrir-lhes as portas do governo e da máquina administrativa. (MIR, p.18: 1994)





Mais adiante, surgem duas temáticas, a afetividade adolescente e a relação familiar conflituosa. Maria Lúcia é uma representante da juventude dos anos 90 dentro no seriado, é quem encarna as demandas da geração seguinte: "O que estraga papai é o excesso de idealismo, a falta de pés na terra." (BRAGA, 1992: p.15) A moça encaminha as opiniões de uma geração mais pragmática, os filhos da geração 68, mas prioriza somente a liberação dos costumes. O que estraga Maria Lúcia, por sua vez, é sua apatia política, a preferência pela indiferença e antipatia pela militância. Ela deseja um quarto só dela, onde possa se ver livre dos livros e dos intelectuais que seu pai traz para casa. Para Maria Lúcia, um par de sapatos vale mais que Shakespeare, mas o romance tentará minorar essa tendência conservadora da personagem, esboçando uma psicanálise banal: Maria Lúcia apaixona-se por João, militante político, e não por Edgar, um democrata liberal insatisfeito com a ditadura militar.



Nelson Rodrigues foi um pai simbólico, o pai burguês moralista da geração 68, o patriarca moralista e nacionalista de direita que os jovens radicais queriam aniquilar. Em alguns momentos, sua dramaturgia e crônicas têm certo valor artístico, mas noutros é o equivalente intelectual do golpe abaixo da cintura. Curiosamente, numa das cartas enviadas para o Pasquim, Caetano definiu-se como um Nelson Rodrigues prafrentex. Naquele momento, Caetano já demonstra a seguinte postura: é a favor da liberação sexual, do progressismo de costumes, mas é contra os nacionalistas e comunistas que apoiaram Jango.



Em Anos Rebeldes, mais que as teorias políticas ou sociológicas, a questão geracional é que fornece a explicação para as posturas dos personagens. A filha do nacionalista de esquerda, o jornalista Orlando Damasceno, é moderada ao extremo. João, filho de udenista, assume um radicalismo político. Num dado momento, Maria Lúcia ataca João, militante orgânico, e não Edgar, que é a verdadeira esquerda festiva:





A última palestra que meu pai fez lhe valeu um processo que está rolando até hoje. Mas o garoto não entendeu, insistiu. Esse pessoal da esquerda festiva não sabe o que é ter de responder a processo. (BRAGA, 1922: p.21)





Maria Lúcia insiste na ‘privacidade’. Nas anotações de seu diário, que junto com as anotações da mãe de Heloísa (uma grã-fina) e das interpretações de Edgar, correm como relatos paralelos durante o romance, ela nunca fala em feminismo. Quando João se aproxima do pai de Heloísa para propor-lhe uma palestra no colégio Pedro II, confronta-se com Maria Lúcia, mas o confronto se resolve num romance açucarado, que concilia os contrários. João é duro com Maria Lúcia:





-Quem ‘tá me dando a impressão de não ser assim tão fã do seu pai é você. Foram homens como ele que modificaram o mundo, viu, Maria Lúcia? Ter medo de processo é...eu acho uma atitude medíocre. (BRAGA, 1992: p.21)





O pai de Maria Lúcia, aparentemente simpatizou com o segundo governo Vargas: "João se animou e perguntou por um estudo sobre a questão do petróleo que o seu Damasceno tinha escrito no início do governo Getúlio". (BRAGA, p.41, 1992) Maria Lúcia inverte papéis, assumindo autoridade para reprovar o "envolvimento irresponsável" do pai com estudantes esquerdistas. Edgar narra que ele, João e Maria Lúcia foram assistir Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. O diário de Maria Lúcia não comenta o filme, nem comenta livros, embora a moça seja filha de jornalista e casada com editor. Não ficamos sabendo nada sobre seus gostos, mas supomos que prefere a telenovela Direito de Nascer aos filmes de Glauber Rocha, como o próprio Gilberto Braga, que renega Glauber, chamando-o de caótico. Em consonância com essa adotada publicamente, Glauber Rocha em Anos Rebeldes é desculpa para uma trepadinha sem magia, papo furado de intelectualóide:





-Terminei o primeiro ato, Heloísa, dei pruns amigos julgarem, a opinião foi unânime: comercialmente muito arriscada pra essa época de crise. E no segundo ato eu ia precisar no mínimo de uns oitenta figurantes, pra cena de incêndio da cidade, sabe como é peça brechtiana... Resolvi partir pro cinema. Produção modesta, eu acho que a saída é o Cinema Novo: uma idéia na cabeça e uma câmera na mão! Ontem à noite eu estava inspirado. Escrevi trinta laudas de roteiro, de um sopro só! Se a modéstia não me impedisse, eu diria que lembra um pouco a construção operística do Gláuber! (sic) (...) Se você quiser passar lá em casa, um dia desses...Eu lia pra você em voz alta... (BRAGA, 1992: p. 88)





A trepadinha sem magia nem sequer se completa, pois Galeno falha com Heloísa. Aparentemente ele não superou as tendências homossexuais da adolescência. Galeno e Heloísa prenunciam os comportamentos da geração lanchonete:





Superar a compulsão/depressão (o eixo é comum a ambas) significa ainda superar as formas de relação ostentatórias, individualistas e auto-afirmativas encobertas sob as bandeiras ideológicas da nossa geração-lanchonete. Já não vivemos a austeridade nauseante da sala-de-jantar paterna, móveis escuros, gravata e silêncio de garfos. (...) Mas o hambúrguer rápido e descartável comido no balcão. A sedução compulsiva e entediada, a trepadinha sem magia depois da festa e a relação abortada no dia seguinte. Vivemos a vigência de todos os rituais da liberdade sob vigilância constante de nossos companheiros. (KEHL, Maria Rita. 1979: p. 52)





Maria Lúcia, propagandista de uma moral pequeno-burguesa, só se decide lutar contra a ditadura quando seu pai é preso. Ela perde então a virgindade física e política ao mesmo tempo. Edgar se aproveita da militância absorvente e da ética de sacrifício total de João para conquistar Maria Lúcia. Edgar diz ter notado a profunda diferença dos dois, que, reflete ele, está presente na seguinte frase: "desprendimento radical não casa com amor por vitrolinhas". Mais adiante, Edgar mostra mais uma vez que não está revendo o passado por hobby. Ele critica a transformação reacionária do amigo Waldir: "Hoje, Waldir é um desses economistas que dizem que para salvar o país é preciso arrochar salário, ‘aplacar a ponta da demanda’ ". (BRAGA, 1992: p.46)



Seu mergulho no passado revela rancores e inveja. Edgar não é um narrador confiável. Sua visão é dirigida. João abandona a idéia de cursar jornalismo e opta por Ciências Sociais, curso que Fernando Henrique Cardoso também cursou nos anos 50/60. A postura de Maria Lúcia é de absoluta incompreensão: "-Fazer Ciências Sociais por quê? Já tem Faculdade de Jornalismo!" (BRAGA, 1992: p.57) O materialismo chão de Maria Lúcia é o exato contrário do materialismo marxista, a jovem tem apenas apetite pelo gozo direto da coisa. A esquerdista e grã-fina Heloísa é ainda mais ridícula: "(Heloísa) foi esquiar em Saint-Moritz e tinha acabado de voltar, ia tentar vestibular de novo, mas não sabia para quê." (BRAGA, 1992: p.62)



Aqui é importante fazer a ressalva de que, sendo interpretado pela atriz Cláudia Abreu, o personagem da jovem esquerdista ganhou uma consistência maior do que os de João (Cassiano Gabus Mendes) e de Maria Lúcia (Malu Mader). Críticos da Folha de São Paulo na época atacaram o casal Cassiano-Malu: tudo o que o personagem de Cassiano dizia se tornava bobagem. Já Malu Mader tinha "a sutileza de uma capivara". O melodrama revê a década de 60 para aplainar as contradições, detratando as molas sociais situadas no pré-64. Edgar discute com João, entrelaçando o drama individual e coletivo com má-fé:





Primeiro, que eu não acredito que você possa fazer a Maria Lúcia feliz. Você está muito preocupado com a felicidade da população oprimida do Brasil, mas não se preocupa com a felicidade de quem está pertinho de você, da sua namorada, dos seus amigos. (BRAGA, 1992: p.65)





Em primeiro, Edgar coloca a questão política como secundária, e começa com uma afirmação categórica traiçoeira. Edgar simplesmente propõe que João abandone Maria Lúcia para que outro homem a satisfaça. Podemos também supor que Edgar está interessado em João, e nem tanto em Maria Lúcia: "A única vez na vida em que eu lamentei não ser homossexual foi por causa do João", diz ele. (BRAGA, 1992: p.91)



O moralismo da tradicional família mineira é ridicularizado pelo chocho tropicalismo de Galeno:





- Sobre esta moda de minissaia aí? Teve um deputado lá de Belo Horizonte que falou na Câmara: ‘Ninguém levantará a saia da mulher mineira!’



E Galeno arrematou, no meu ouvido desta vez:



- E a jurupoca do homem mineiro também ninguém levanta...



(BRAGA, 1992: p.99)





Galeno equaciona a intensidade da experiência sexual como inversamente proporcional às proibições vigentes no tempo. Quanto mais proibição, menos intensidade. Caetano Veloso concorda com essa posição: "Não aceito com facilidade esses argumentos que submetem a intensidade da experiência sexual às proibições vigentes no tempo da formação sexual de quem os formula." (Veloso, 1998: p.474) Como disse Maria Rita Kehl, saltamos da família patriarcal para a prática da antropofagia sem culpa, fast-food do amor.



A esquerda obteve um grande impulso com a revolução dos valores ocorrida nos anos 60, ganhando espaço ao combater as proibições. Caíram nessa época as últimas barreiras do patriarcado, um dos elementos que permitiu que a mesma revolta se espalhasse pelo mundo inteiro, tanto entre os estudantes parisienses quanto na Praga de Aleksander Dubcek, entre os hippies e yippies da América psicodélica e no Chile de Salvador Allende.



Mas o que estava nascendo, no final dos anos 60, não era um novo matriarcado, nem sequer o matriarcado de Pindorama, e sim a sociedade de consumo, uma sociedade onde mesmo as bandeiras mais progressistas foram absorvidas pelo neocapitalismo. O canto de sereia pecuniária chegou aos ouvidos dos filhos de Marx e da Coca-Cola. Surgiu, nos anos 70, uma nova direita, e os filhos da geração 68 já nasceram sem quaisquer vestígios de Marx, restando só a Coca-Cola. Foi com razão que a mídia os rotulou de geração Coca-Cola. Os anos subseqüentes a 1968 são permeados de contradições e dilemas praticamente insolúveis: com a liberação do corpo, veio também um vagalhão de vulgaridade. Depois da rigidez dogmática do stalinismo, o shopping center da mente e a lavagem cerebral da TV; depois do fim da família patriarcal, o mergulho na dissolução pornô dos costumes. A revolução política fracassa, uma vez que o neocapitalismo exerce uma dominação social e produz uma falsa consciência, divulgada em telenovelas tranqüilizantes contra a contestação, instalando no Brasil dos anos 80 uma democracia burguesa onde só um grupo reduzido de tecnocratas toma as decisões importantes. A continuidade do regime de 64 está garantida, agora com representantes civis. As proibições arbitrárias da ditadura militar foram substituídas pela coação e a cooptação daquilo que Lucien Goldmann chama de "capitalismo de organização."



Na narrativa de Anos Rebeldes confundem-se deliberadamente hippies e militantes de esquerda. Heloísa, militante de esquerda e grã-fina, faz amor livre:





Quando Heloísa já estava achando que o destino dela era entrar para um convento, aconteceu com o professor de violão. Do jeito que ela queria: foi muito bom e sem nenhum compromisso. (BRAGA, 1992: p.101)





O pai esquerdista de Maria Lúcia é conservador em matéria de costumes. Já Maria Lúcia é progressista em termos de costumes e indiferente em política. Ela recorre à ideólogos de esquerda estrategicamente, pela primeira e última vez:





Papai foi procurar um telefone na minha agenda e descobriu, na minha bolsa, uma caixa de pílulas anticoncepcionais. (...) É incrível como uma pessoa tão progressista nuns assuntos possa ser tão quadrada em outros! (...) O problema é que essa posição dele não tem nada a ver com ideologia. Já vi amigos do papai discriminando até homossexual. (...) Falei de Freud, Marcuse e dos tabus que há gerações pesavam sobre a sexualidade (BRAGA, 1992: p.105).





Igualmente é incrível como Maria Lúcia pudesse ler Marcuse, uma vez que até então não comentara livro algum em seu diário, nem sequer os do pai. E que nem sequer discutisse o feminismo, nem um livro como O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir. Só aceita participar da política numa situação extrema, na ocasião em que seu pai é preso. Aí sim, ela aceita a luta, pois só acredita em envolvimentos pessoais.



João e seu Damasceno avançam para propostas diferentes. João é a favor da luta armada e Damasceno da conscientização das massas. É a contraposição do partidão, o PCB de orientação pró-soviética, com os grupos foquistas afins de Cuba.



A questão da droga vem à baila, com Edgar assumindo a posição indiferente que sempre teve a vida toda:





Maconha, para mim, era pra ficar doidão mesmo, para não estar nem aí. (...) Além do meu momento pessoal, ficar doidão facilitava no trânsito em meio a uma agressividade crescente das pessoas. Era difícil você se aproximar de uma roda em que não houvesse uma polarização aguda. (BRAGA, 1992: p.105)





Em meio a um jogo da verdade, modismo que o psicanalista Cristopher Lasch tachou de sintoma de um novo narcisismo, João é questionado sobre suas leituras de Karl Marx:





-Você leu O Capital?



-Tudo, não. Li umas partes da ‘Crítica da Economia Política’. O que me interessa mais são os manuscritos do jovem Marx. (BRAGA, 1992: p.130-131)





A sucinta fala de Edgar pode servir de estímulo para a discussão da obra de Marx, mas podemos supor que na postura do rapaz está refletida simplesmente a "revolução dos jovens" que o faz supor que o Marx "jovem" dos Manuscritos sabe mais que o Marx "maduro" de O Capital.



Como ressonância à entrada dos jovens no mercado consumidor, os meios de comunicação mitificam a juventude, e esta mudança econômica altera até o comportamento do jovem militante João.



Já a eficiência de Edgar enquanto editor é reveladora. Edgar na verdade não se importa muito com livros e com cultura. Quer status e dinheiro e escolheu a profissão errada. Uma parte da população brasileira saiu da cultura oral para os meios audiovisuais, sem passar pela velha cultura humanista, assentada em filosofia e literatura. Diante de um editor preocupado em manter o bom nível, Edgar é pragmático ao extremo:





O dr. Queiroz, ele parecia querer se imolar no idealismo de só editar o chamado material de qualidade, de peso cultural. A vontade era de dizer: -Dr. Queiroz, fala com o balanço da contabilidade que nós temos de editar apenas cultura! Se ele sair do vermelho só com isso, a gente edita, combinado? (BRAGA, 1992: p.133)





Edgar postula o rebaixamento de nível, enquanto na vigência da ditadura é que uma editora nacional, a Civilização Brasileira, conseguiu manter um nível altíssimo, mesmo apesar da perseguição dos militares, publicando bons escritores, fugindo dos manuais marxistas. O dr. Queiroz parece ser uma caricatura do marxista Ênio Silveira, editor da Civilização Brasileira na época. Mas, como já dissemos, Edgar deve ser avaliado como um niilista. Maria Lúcia é complementar a ele em seu desejo de se demitir, de passar para o outro lado das trincheiras: "Não tenho idade nem vocação para me sentir responsável pelo futuro de um país que já começou errado, sei lá se tem chance de dar certo algum dia". (BRAGA, p.133) Maria Lúcia é o bode total, o derrotismo, o desejo que a juventude dos anos 90 apresenta de fugir do país.



Edgar se valeu do fato de que João se entregou a uma ética de sacrifício total para conquistar Maria Lúcia:





-Olha, João, eu nunca escondi de você que eu...Você sabe que quem pode acabar sendo o maior beneficiado nisso tudo sou eu. Porque, se você escolher ficar pichando muro pela rua, quebrando vidraça de banco, botando fogo em carro, você vai perder a Maria Lúcia para mim. (BRAGA, 1992: p. 135)





Galeno estava se dedicando, então, à poesia concreta, inspirado pelos irmãos Campos, Ezra Pound, Cummings e outros. Edgar e Galeno se mantinham alheios às polarizações da época:





O Galeno tinha me alertado que, além de um maior apuro no paladar, a maconha aguçava os sentidos (...). Nem eu nem o Galeno estávamos dando a mínima para aquela xaropada de festival. (BRAGA, 1992: p. 138)





Edgar adota a posição apática que lhe acompanha vida afora, mas mesmo assim avalia equivocadamente o impacto das canções de protesto: "Caminhando também acelerou a roda-viva, serviu de razão ou pretexto para uma nova onda repressiva. Em artigo, um general pediu a prisão de Geraldo Vandré." (BRAGA, 1992: 140) Isso é o que Glauber chamava de revisionismo time-life realizado por tropicanalhas.



Em 1968, as ações armadas já tinham começado, e o objetivo dos militares era combater esses focos de contestação violenta. Pouca influência sobre o aumento da violência teve essa canção -- ela foi antes produto do confronto entre a ditadura e a oposição representada pela Frente Ampla, unindo Jango, Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda.



Outro momento de virada é o ato institucional número cinco, em 13/12/1968. João e Heloísa entram na luta armada, Galeno faz uma montagem "tropicalista de protesto" de Fedra, de Racine. Galeno explica suas idéias:





Eu tenho a minha visão do Racine, entende, Edgar? Fedra, para mim, não é só a mulher que se apaixona pelo enteado. Minha concepção é, por assim dizer, original, uma Fedra...tropicalista e engajada! Hipólito é o oprimido pelo poder econômico! (BRAGA, 1992: p. 145)





Anos Rebeldes é marcado pela hegemonia dos tropicalistas. Os personagens reproduzem trechos de músicas da patota de Caetano nas falas do cotidiano e Baby e Alegria, Alegria tocam incessantemente, bem mais do que as músicas de seus opositores, como Sérgio Ricardo, Edu Lobo ou Geraldo Vandré. O tropicalismo é equiparado com a esquerda engajada, porém o grupo baiano bem cedo se afastou de um compromisso com a arte engajada de Vianinha, Augusto Boal e outros. Assim como a tropicália debocha dos desajustes subdesenvolvidos entre a bossa e palhoça, observando-as à luz das modas internacionais, o Brasil na peça de Galeno surge exótico para os próprios brasileiros:





Os figurinos e os adereços de cenário davam um clima ‘tropicalista’, como era moda. Num canto da arena, uma criada grega arrumava frutas, entre as quais abacaxis, jacas e bananas, muitas bananas. (BRAGA, 1992: p. 145)





A versão de Fedra aqui apresentada é avacalhada, equacionada com Carmen Miranda, é uma peça clássica que se torna Kitsch. Aliás, a dimensão "popular" dos Anos Rebeldes, a esperança que Zuenir Ventura apresenta de que este seriado esclarecesse o grande público, se desvanece. O produto oferecido é Kitsch, falso, cheio de situações inverossímeis, entretenimento barato como as telenovelas, mas ousa misturar cenas reais, imagens de jornais, revistas, músicas e têm atores que viveram a época, como Giafrancesco Guarnieri (que aliás dá um depoimento sentimentalóide), como personagens. Pretende, então, passar uma mensagem política conciliatória que, aliás, ajudou a ascensão posterior de Fernando Henrique Cardoso, sociólogo que fez oposição chique ao regime militar e que encenou um exílio depois de receber uma polpuda aposentadoria precoce por ordem do regime militar. Ficou para o senso comum a imagem de que a minissérie global gerou os carapintadas, "movimento juvenil" que derrubou o presidente Collor. No entanto, o fim da era Collor não foi o final do neoliberalismo no Brasil. Pelo contrário, demonstrou a hegemonia da televisão sobre várias gerações, evidenciando sua enorme influência política e comportamental.



Fernando Henrique sempre foi um democrata liberal, com amplo sucesso entre os que posam de esquerda, como o personagem Edgar, narrador do livro:





Olha, João, eu podia te dizer que essa opção pela guerrilha só retarda a volta da democracia, podia te dizer que sou democrata e não comunista, que eu tenho tanto horror a ditadura de direita quanto de esquerda! (BRAGA, 1992: p. 156)





Edgar é também um liberal, e os liberais optam com freqüência pela ordem estabelecida quando uma revolução ameaça seus interesses de classe; aqui no Brasil, o golpe de 1964 é o maior exemplo disso. Edgar se revela retrógrado na relação com o colega de editora, Dr. Queiroz:





-O senhor é voto vencido, eu sinto muito. Foram livros como este que comprometeram a editora. Ainda por cima de um autor de esquerda. Dr. Queiroz, nós dependemos de bancos. Estimular, neste momento, por idealismo...(BRAGA, 1992: p. 167)





O pragmatismo de Edgar é suicida. Num outro momento em que nega a si mesmo, Edgar renega o livro do qual ele copia o início de sua narrativa:





Alguns dias mais tarde, encontrei Maria Lúcia na editora. Elogiei-lhe o parecer sobre O Apanhador no Campo de Centeio, de J.D. Salinger, mas falei que tinha dúvidas se a tradução deste livro traria lucro significativo para a editora. (BRAGA, 1992: p. 168)





Edgar é mais realista que o rei e só poderia fracassar, pois sua decadência moral já se anuncia; ele passou para outro lado, descobriu que o que vale é a rapinagem, ele despreza quem gosta de boas leituras e por isso é ruim na profissão que escolheu. Mais ridículo que esse editor de livros chulos é Heloísa, a guerrilheira grã-fina. O mundo dos muito ricos é apresentado como um Olimpo onde tudo pode acontecer. Braga segue o velho mandamento de que "telenovela sem mansão não funciona". O direito de nascer da teledramaturgia brasileira coincide com o começo das restrições à liberdade dos indivíduos no Brasil, só restituídos quando o capitalismo tecnocrático já foi firmemente instalado país adentro. A dramaturgia televisiva é o núcleo a partir do qual circulam as mensagens da "Hollywood do Jardim Botânico", que é onde as massas desinformadas desaprendem a viver, pois não vêem o que se passa ali com espírito crítico. Confundem realidade com ficção, e o funcionamento do aparelho ideológico do estado fica garantido. Daí a naturalidade com que o senso comum reproduz o ideário neoliberal.



A inverossimilhança travestida de realidade é levada ao extremo quando as diferenças entre João e Maria Lúcia se acabam na cama. A cama, em Anos Rebeldes, é o paraíso da feijoada. Num outro momento, João deixa o aparelho onde permanece clandestino para assistir o revéillon em Copacana, onde acaba encontrando Maria Lúcia(!). A liberdade do artista não pode ser confundida com a distorção deliberada de fatos históricos. João, em sua clandestinidade que se parece mais com o exílio regado a champagne de FHC, encontra-se com o hippie Galeno. As divergências entre a fuga para as drogas e a militância política ficam encobertas.



Curioso é o capítulo em que a união João-Maria Lúcia se restaura, apenas para terminar logo depois. Depois de esperar mais oito anos, João e Maria Lúcia voltam, mas Maria Lúcia resolve botar um ponto final em sua aproximação com João e a esquerda. E o que afasta Maria Lúcia é a volta de João à militância:



Meu querido diário, cansado e velho de guerra, você sabe onde fica a Encruzilhada Natalino? (...) Ontem de manhã, o telefone tocou. Era o Marcelo chamando o João para uma reunião. Iam tratar da reorganização partidária e discutir o problema dos sem-terra. (...) Levantei devagar e fui embora sem me despedir de ninguém. (BRAGA, 1992: p. 156)



No final do livro, Edgar se revela um sujeito adepto das drogas, que começaram para ele apenas como uma fuga das polarizações políticas. Mas sua decadência moral já tinha começado no tempo da ditadura. Ele sempre viveu pelas beiradas da vida, sem lutar por causa nobre, sem fazer carreira na editora. Revela então que não vai à editora há muito. Edgar reuniu, em dois pólos, duas posturas da geração 68 no presente: o conformismo otimista e o niilismo desesperançado. Mas é entre essas duas falas que oscila Edgar em toda a narrativa, e é com esses marcos teóricos que deve ser lido o folhetim eletrônico Anos Rebeldes.

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