(Texto de Lúcio Jr premiado no concurso Imagens da Vida Universitária, Colação de Estudante II, março de 1997).
O hospital Borges da Costa, prédio em estilo neoclássico, datado do início do século, há dezesseis anos é protagonista de uma crise infindável. O prédio já foi morada de mendigos e depois foi tomado pelos estudantes de baixa renda.
O Borges da Costa retrata a crise urbana em nosso País: de prédio componente da elitista Faculdade de Medicina no início do século, tornou-se atualmente um refúgio dos deserdados. Foi do neoclássico ao neo-hippie. É um símbolo da universidade brasileira e de suas distorções.
O Borges da Costa não é Haight-Asbury, Belo Horizonte não é San Francisco. Ali não floresce nenhuma contracultura, nenhum underground. A necessidade é que obrigou os estudantes da ocupar o velho hospital de câncer. Os hippies dos Estados Unidos, que se juntavam em bairros como Haight-Ashbury em San Francisco, Greenwich Village e na Carnaby Street em Londres eram filhos da abundância, não da penúria. Os “bórgios” são estudantes carentes que geralmente levam adiante cursos pouco valorizados no mercado de trabalho (Filosofia, Sociologia, Letras, História, Belas-Artes) e que sofrem de solidão, desamparo, pobreza. Não estão fora do sistema, estão à margem, vivendo numa zona de litígio, numa terra de ninguém. São órfãos do milagre brasileiro (não é à toa que o Borges foi ocupado em 1980, ano do início da recessão e da ´década perdida`).
No livro Feliz Ano Velho, datado mais ou menos daquela época, Marcelo Rubens Paiva escrevia que, na UNICAMP, ele via três turmas distintas: a dos caretas, a dos revolucionários e dos desbundados. No Borges, há um rescaldo desse período: há os hippies recaídos, que não são inocentes como as “crianças da flor”, são jovens que buscaram modelos no passado e perambulam como sonâmbulos frustrados, ligados em alguma viagem psicodélica ou amargurados e agressivos com o fim do sonho.
O edifício Borges da Costa foi do neoclássico ao neo-hippie em meio século. Apesar do lado festivo e sonhador, existe também um lado barra pesada de dois suicídios: um deles, um estudante de Economia chamado Carlos Eduardo, eu conheci: era esquerdista radical, veio do interior, foi se desiludindo com o curso, com a política, teve atritos com os grupúsculos que dominam o Borges e, em meio à tristeza e à marginalidade, acabou se matando em dezembro de 1992.
Eu me lembro de tê-lo visto nas passeatas do impeachment daquele ano. Estávamos todos esperançosos naquele momento e ele não. Mantinha-se com reservas. Para ele ainda faltavam muitas coisas. Hoje sei que o Edu não agüentou esperar. Foi embora sem se despedir.
O Borges para mim é mistura de tudo isso, de dor e celebração doidivanas, de rabiscos coloridos e lamentos, de uma festa onde li meus poemas e da realidade da morte de Carlos Eduardo dias depois, de hippies e de mendigos, do sonho e do alcoolismo.
“Antes eu sonhava/Agora já não durmo”. O Borges é Legião Urbana. Uma Bósnia estudantil, uma guerra civil de todos contra todos, é Fernando Pessoa e César Pedroso, um poeta e morador que escrevia poemas como Mulher do Capitão: “Bota bota na xota”. Faço questão de reproduzi-lo assim mesmo, na íntegra. Eu me lembro das noites intermináveis em que minha turma do segundo período da Filosofia encontrava-se no Borges e, descrentes, chegávamos à conclusão de que valia, na vida, o poema de Maiakóvski: “Melhor morrer de vodka do que de tédio!” Escrevi um poema chamado Anjo Exterminador naquele final de 1992 e início de curso; sintetiza o que eu sentia naquela época:
Madrugada –sombras solitárias, rua morta
Não era mórbido o sorriso púrpura de seda
& o ar ficou pesado, choveu outra vez
Vai chover de novo.
O espectro flutuou transido nas colinas de mármore
E da própria garganta saiu o grito do assassino de si
Foi o deleite final do Anjo Exterminador
Das trevas surgem gêmeas siamesas dizendo, blasfemando:
“Dorme, dorme pálida criança, calma e vasta repousa a cidade
Cerra teus olhos enquanto o céu se abre
Em estertores vermelhos”.