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terça-feira, 15 de setembro de 2009
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Memória Roda Viva
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Gerald Thomas
16/5/1988
Nesta conversa, o autor e diretor tece críticas ao teatro brasileiro, conta para quem cria suas produções teatrais, revela os nomes da dramaturgia brasileira que admira e relata suas experiências na Anistia Internacional
Antônio Carlos Ferreira: Boa noite. Nós estamos começando o programa Roda Viva que é transmitido, simultaneamente, pela Rádio Cultura AM de São Paulo e retransmitido pelas TVs educativas do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Bahia e Piauí. O entrevistado desta noite é o autor e diretor teatral Gerald Thomas. Gerald Thomas, trinta e três anos, nasceu no Rio de Janeiro, foi criado em Londres onde começou a carreira no teatro e na pintura. Trabalhou também em Nova Iorque no teatro La MaMa [Experimental Theatre], dirigindo, agora, no Brasil e ainda em Nova Iorque. Gerald Thomas se tornou, em pouco tempo, e ao mesmo tempo, um dos mais aplaudidos e criticados diretores de teatro de vanguarda do país. Entre os trabalhos mais conhecidos fez Eletra com Creta [1986] e dirigiu também [a ópera] Navio fantasma [1987] de Wagner e agora está apresentando a Trilogia Kafka [peças baseadas nos textos do escritor theco Franz Kafka (1883-1924), considerado um dos principais escritores da literatura moderna. Sua obra retrata as ansiedades e a alienação do homem do século XX. As mais famosas foram escritas entre 1913 e 1921. São essas: A metamorfose, O processo, O castelo, O foguista]. Um conjunto de três peças: Uma metamorfose, Um processo e Praga, que estão sendo encenadas, alternadamente, no teatro Ruth Escobar, aqui de São Paulo. Gerald Thomas será entrevistado esta noite por: Mario Prata, escritor, roteirista e autor de teatro; Vivien Lando, crítica e diretora de teatro; Aimar Labaki, crítico de arte da Folha de S. Paulo; Maria Amélia Rocha Lopes, jornalista do programa Metrópolis, da TV Cultura; Kleber de Almeida, editor do Caderno de Sábado do Jornal da Tarde; Mário Mazetti, diretor de teatro; Edelcio Mostaço, crítico de teatro da revista Isto É e presidente da Associação Paulista de Críticos de Arte [APCA]; Ilka Marinho Zanotto, crítica de teatro do Caderno Dois do Estado de S. Paulo. O cartunista Paulo Caruso vai fazer alguns desenhos ao longo do nosso programa, que serão mostrados durante a entrevista. Na nossa platéia estão alguns convidados da produção de Roda Viva. Este programa não está sendo feito ao vivo, ele foi gravado. Gerald Thomas, eu estou aqui com o catálogo da peça, da Trilogia Kafka e tem uma página aqui dedicada à crítica, né? O amor da crítica à você. Eu vou ler algumas críticas...
Gerald Thomas: Antônio. É o amor com um risco...
Antônio Carlos Ferreira: O amor com um risco. Eu vou mostrar aqui algumas críticas. Vivien Lando, que está aqui ao meu lado, disse o seguinte: “Viu o galo cantar e não sabe onde”; outra crítica: “Falso inglês, inventor do teatrão de vanguarda dos anos sessenta, embusteiro, impostor”. Tem uma do Mário Henrique Simonsen, economista e, de vez em quando, crítico de ópera, dizendo o seguinte do Navio fantasma: "A parte cênica é um exercício do absurdo, e qualquer um faz absurdos, eu também posso imaginar coisas exóticas. Por exemplo, passar a lua-de-mel com um badejo". Outra crítica: "É o primeiro besteirol brasileiro de luxo com texto de teatro". E mais algumas críticas, que estão aqui colocadas, como frases entreouvidas em corredores de teatro, mesas de bares etc. "É um megalomaníaco com sintomas esquizofrênicos". "É o inventor do FMI no teatro brasileiro". "Era um garoto tão precoce que virou senil aos trinta anos". E outra aqui: "Quem é essa inglesinha para vir aqui cantar de galo em nosso terreiro". Gerald, como é que você recebe essas críticas todas? O que você fez no teatro para receber essa ira toda, pelo menos, de parcela da crítica de teatro brasileira.
Gerald Thomas: Olha, eu recebo de tal forma que eu publico no meu próprio programa. Quer dizer, esse programa é do espetáculo, não é uma... Foi coletado pelos anos aí de trabalho. E a gente... Eu acho curioso, eu me vejo na terceira pessoa. Eu não me levo muito a sério nesse sentido de... Gerald Thomas que sai nos jornais e esse que vai ao ar na televisão é uma outra figura, não tem muita preocupação com o... Não tem muita relação com o diretor de teatro, a pessoa que está ligada, de uma forma e outra, à cultura ou à estética, enfim, à criatividade. Eu acho que é curioso exaltar de forma tão repentina e tão voraz, a xenofobia de um país como o Brasil. Que, geralmente, você vê que um país que se sente por baixo e que está, literalmente, por baixo, vai sempre exacerbar esses pseudodotes nacionalistas e xenofóbicos para tentar levantar a moral de alguma forma.
Antônio Carlos Ferreira: Você acha que essa crítica aqui, o fundo dela...
Gerald Thomas: Não, aí têm várias.
Antônio Carlos Ferreira: Eu sei. Dessas críticas, o que existe de fundo, seria o quê? O fato de você não ser bem brasileiro. Ter nascido aqui, mas ter feito a sua educação artística fora daqui. É isso que está por trás?
Gerald Thomas: Eu acho, é como eu estava dizendo, muitas coisas. Uma, obviamente, tem a ver com isso. A primeira coisa que acontece... Veja o seguinte, é óbvio, ninguém precisa ficar tecendo teses em cima disso. Mas o Brasil está em plena decadência financeira e há uma certa decadência moral que acompanha isso. Junto com isso, dentro disso, existe um teatro fragilizado pela própria mediocridade e falta de criatividade dos últimos vinte anos, vamos dizer, desde talvez o Teatro Oficina. [Então] o poder aquisitivo vai diminuindo. Uma das primeiras coisas que “dançam”, em termos da prioridade do público é pagar, seja lá o que for. Quer dizer, esse tipo de sociedade, esse tipo de sistema financeiro vai criando um ranço rigoroso dentro dessas classes, que vão se desprivilegiando. No caso do teatro é muito difícil. Eu sei que a barra é muito pesada, e noventa e poucos porcento da classe teatral se refugia atrás desse conceito para justificar a montagem de peças fáceis, comerciais, comediazinhas, de entendimento brutal, vamos dizer...
Maria Amélia Rocha Lopes: Gerald, diante disso, que espaço você ocupa no teatro nacional?
Gerald Thomas: Mas eu não tinha acabado de falar ainda o que eu... Espera aí, deixa-me acabar de falar esse negócio.
Maria Amélia Rocha Lopes: Então, após, se você puder me responder, eu agradeço.
Gerald Thomas: Está bom. Então, vem uma pessoa de fora. Eu já cheguei no Brasil, vamos dizer, com algumas reportagens prévias do meu trabalho em Nova Iorque de [Samuel] Beckett que não é um trabalho brasileiro. Eu não estou fazendo samba em Nova Iorque. Enfim, é Beckett, [um dos fundadores do Teatro do Absurdo] um irlandês recluso em Paris que revolucionou o teatro na década de 1950. É profundamente exclusivista, é profundamente hermético para o chamado grande público. E quando eu cheguei para fazer Quatro vezes Beckett [Four times Beckett] no Rio de Janeiro, a imprensa já estava me dando um destaque que os locais, vamos dizer, que os diretores locais não estavam conseguindo. É claro que cria uma... dentro de uma classe que se baseia em egoísmo, em idolatria às avessas, em ranço pessoal - nessa teoria do Oscar Wilde [(1854-1900) escritor irlandês. Escreveu entre outros o romance O retrato de Dorian Gray e novelas como O fantasma de Canterville] - de você ver o teu colega fracassar para você mesmo poder, de alguma forma, dar certo. Imagina o atrito que isso cria... Fora isso, existe uma peculiaridade bem brasileira que é de receber qualquer coisa com; "Hum! Hum! Imagina se eu vou". A diferença é que eu fiquei, eu fui ficando. Não foi um evento isolado. São oito espetáculos no Brasil até agora, em um espaço de dois anos e meio. Esse tipo de produção... e óperas no meio disso, não é? As montagens são meio “operísticas”. Então, cada vez mais, isso é um choque para as pessoas que não conseguem fazer. O ranço vem muito da classe teatral. O público, esse que responde as enquetes diariamente, depois do espetáculo... ou a crítica mesmo, pega os críticos de teatro, não sentem isso na maioria. Agora, a classe teatral, essas coisas entreouvidas aí, vem de pessoas da classe teatral. É óbvio. Eu tomei o lugar deles. Isso... Eu acho que nenhuma revolução é sem sangue.
Antônio Carlos Ferreira: Gerald Thomas, o fato de você ter colocado no catálogo não pode parecer que você também está “curtindo” a idéia de que você pode ser um autor maldito e que, portanto, isso seria o "marketing Gerald Thomas".
Gerald Thomas: Pode ser, claro. Essa história de marketing é muito engraçada. Marketing é uma coisa que soa como marketing. Em dois meses está fracassado. É uma campanha que se faz. Ela tem cheiro de marketing, ela tem sabor de marketing, portanto, não vigora. Vigora o tempo que o marketing traz. Se eu estou há dois anos e meio, literalmente, trabalhando, trabalhando, estreando, escrevendo, dirigindo oito espetáculos, já não se trata mais uma questão de marketing. Quer dizer, eu acho que, agora, é o trabalho em si. Só que as pessoas que fizeram a crítica desse marketing, agora, estão em um beco mais ou menos sem saída. E aí? Como é que a gente sai dessa?
Mario Prata: Gerald! Posso falar?
Gerald Thomas: Oui, oui. Parle.
Mario Prata: É o seguinte: eu queria te confessar em primeiro lugar, que eu tinha um preconceito com você. Esse preconceito que você falou, essa “bichisse” aí. Eu fazia parte dessa “bichisse”. Até que fui ver o espetáculo Metamorfose e fiquei “desbundadamente” apaixonado pelo seu trabalho, pelo seu casamento com Daniela [Thomas, destacada cenógrafa, criou o ambiente da biblioteca, considerado marcante, em que se desenrolam as peças da Trilogia de Kafka], eu acho que é uma das coisas mais bonitas que eu já vi em teatro, sempre. E assim, apaixonado, eu fui para minha casa, para ler o programa, que está na mão de todo mundo aqui, e notei uma coisa, você está falando em marketing aí. No teu programa, o nome Gerald Thomas aparece cento e sete vezes. Você acha que você ainda precisa disso? De colocar o nome cento e sete vezes no teu programa.
Gerald Thomas: Não acho. Em uma das críticas em relação ao programa... O programa foi entregue ao editor, eu estava escrevendo, dirigindo, iluminando e fazendo as trilhas sonoras de três espetáculos simultaneamente. Além de dirigir um por telefone para Nova Iorque. Eu não tive tempo de fazer esse programa. Esse programa foi entregue para um jornalista chamado Edmar Pereira, que, literalmente, compilou e registrou...
Mario Prata: Aliás, o programa é ótimo. É muito bom. Mas tem esse detalhe, achei que ficou agressivo. Acho que você não... Se fosse seu primeiro espetáculo Quatro vezes Beckett, mas hoje, como você falou, você está reconhecido até pela crítica e pelo público. Vai lá e é o sucesso, como você falou, do jovem intelectual. E você falou outra coisa aí, só para complementar a pergunta, que você é dois - tem o que faz o trabalho e o que fala. E o que fala, talvez por isso eu tivesse esse preconceito, porque o que fala me assustava muito, parecia muito a Folha Ilustrada. A impressão que a Folha Ilustrada me dá é que ela foi feita para humilhar o leitor, porque eu não entendo, às vezes, eu pego a Folha Ilustrada e não consigo... É tão “pós”, que passou, né? [risos] E você, às vezes também. Você passava eu não entendia o que você falava. Eu não vou ver o espetáculo desse sujeito, porque eu não vou entender. E o teu espetáculo é a coisa mais clara, mais simples do mundo. Não é, não é... Inclusive, o que falam de você, o que a crítica fala de você, eles complicam. Acho que eles complicam um pouco o seu trabalho. Ele é bem simples, é quase teatro infantil. Isso é um elogio, não é uma “pichação”. Parei.
[risos]
Antônio Carlos Ferreira: Ele não tem pergunta.
Mario Prata: Não. A pergunta era das cento e sete vezes do programa que...
Gerald Thomas: Eu acho um absurdo tanto quanto você acha. E se a gente tivesse tido tempo de fazer uma edição... Se eu tivesse passado os olhos nisso, antes dele ser impresso, eu também faria a mesma coisa. É aquela coisa, quer dizer, as pessoas aqui disseram assim: se ele fosse ao vivo, como sempre é, ele entra no ar às nove sem a menor complicação técnica, sendo gravado, ele atrasou quarenta e cinco minutos. É a mesma coisa em relação a tudo que é o “pré” de uma estréia. O programa é, talvez, a última preocupação que se tenha. Principalmente porque foi uma coisa rodada, literalmente, na madrugada da estréia, ninguém viu. Quando viu, já está tarde demais, já tem dez mil exemplares, têm que ser vendido.
Antônio Carlos Ferreira: Maria Amélia. Por favor.
Maria Amélia Rocha Lopes: Gerald, agora posso?
Gerald Thomas: Agora, você pode.
Maria Amélia Rocha Lopes: Obrigada pela concessão especial! Em uma das entrevistas suas que li, publicada em jornal, você dizia, espero que seja verdade, estava ali escrito, entre aspas, você disse que o teatro nacional era um muzak [palavra usada para se referir à música de elevador, de supermercado, considerada uma música alienada e alienante], em geral é um muzak. Aí, completando àquela primeira pergunta, quando interrompi a sua resposta, que espaço você ocupa dentro desse muzak?
Gerald Thomas: Eu não me incluo dentro disso. Se me incluírem dentro disso, eu não posso fazer nada. Quer dizer, isso cabe aos acadêmicos, historiadores. E tem uma frase que eu uso na peça Um processo, que eu falo assim: “eu acho que deve se tratar o academicismo como leitura subversiva. Vai-se a ela às escondidas, toda vez que a oportunidade surge”. Eu acho que não cabe a mim determinar o espaço, nem sequer tomar conhecimento disso.
Maria Amélia Rocha Lopes: Mas, quando você fala que o que se vê no teatro nacional é muzak, e você não se inclui nele, você já deve estar sabendo que posição você tem, se você não é aquilo, alguma outra coisa você é.
Gerald Thomas: Não, não, não. Eu faço uma exclusão do que eu chamo teatro experimental. Se esse teatro experimental é financiado ou é experimental com dois pedaços de madeira e uma luz, aquela coisa, isso também não cabe a mim definir. O que eu digo é: onde existe pensamento, onde existe o debate do pensamento, o debate de consciências que é, em prática, o que a gente vive, que é chamado de filosofia através dos anos, através dos milênios. Quando acontece isso, ligado à criatividade, à inventividade, à obsessão de uma pessoa querendo falar [...] - que eu acho que o teatro é a respeito disso, desde os gregos é a respeito disso. Então, o teatro tem esses aspectos psicossomáticos, psicanalíticos, terapêuticos, agressivos. Quando eu vejo isso acontecer, e existem [muitos] diretores no Brasil que fazem isso. Eu já não me incluo nesses noventa e tantos por cento que é música de elevador ou muzak, como eles falam. Se uma coisa ficou clara nesses dois anos e meio que eu estou no Brasil é que, realmente, eu falo exatamente aquilo que eu quero falar; eu não tenho o menor problema de diplomacia. Eu acho que o teatro que é feito no Brasil, ou melhor, 92,5% do teatro que é feito no Brasil, uma agressão, um desrespeito ao pensamento contínuo de uma sociedade. Em relação à política, filosofia, cultura, economia e seja lá o que for. É uma agressão, é um desrespeito. Não está diferente da Volkswagen do Brasil, da Chevrolet do Brasil, da Ford do Brasil de fabricarem um carro de qualidades inferiores ao que eles produzem nos países de onde eles vêm, e cobrar um preço mais caro do que o que eles fabricam no país de onde eles vêm. Quer dizer, é a mesma coisa o tempo todo. Ou seja, é a exploração da classe média, não é? E eu não tenho a menor relação com a classe média, na verdade eu repito sempre aquela coisa que pode já parecer muito chata, eu não tomo muito conhecimento do meu público, no sentido de que eu não sei quem são, realmente. Quando eu digo que faço teatro para poucas pessoas, eu me preocupo com poucas pessoas, eu me preocupo com vinte pessoas, a opinião dessas vinte pessoas conta demais. Quer dizer, eu enxergo, eu reconheço vinte, trinta, quarenta pessoas na platéia. O resto eu não sei se são de classe média, ou se são estudantes que vieram de Marte, ou se são fabricadores de massa de tomate. Eu não sei quem são, e nem quero saber. Dessa maneira eu me isolo, mais ou menos, do lado de cá do palco.
Antônio Carlos Ferreira: Ilka, por favor, a sua pergunta.
Ilka Marinho Zanotto: Primeiro eu quero perguntar ao Mario se Metamorfose é a primeira obra de Gerald que você vê?
Mario Prata: Foi a única.
Ilka Marinho Zanotto: Bem, sorte sua, em outros dois casos, porque eu só vi três. Um foi Eletra com Creta (1986), outro Carmem com filtro (1989) e, agora, Metamorfose [Faz parte de uma série de três peças teatrais baseada na obra de Kafka: Um processo, Uma metamorfose e Praga]. Eu não vi Quatro vezes Beckett (1986), não vi Quartett (1986) e não vi [a ópera] O navio fantasma (1987). Então, acontece que esses outros três...
Gerald Thomas: E não viu Um processo.
Ilka Marinho Zanotto: Principalmente. Quatro vezes Beckett sei de fonte limpa, pois a fonte é Sábato Magaldi [crítico teatral] que é extraordinariamente bom. Eletra com Creta e Carmem com filtro, o que me irritava não é a parte artesanal, visual, plástica, formal de iluminador, de artista, etc, que tem o Gerald, e é inegável, tanto os cenários dele quanto...o que me irritava profundamente era um texto que era um "nonsense" deliberado, porque ele pretendia dizer e não dizia, não tinha lógica, era ilógico. Tanto que o título da minha ficha no Caderno Dois [suplemento de domingo do jornal O Estado de S. Paulo], que não fui eu que pus, foi bestialógico, tedioso e etc. Então, era essa parte que me irritava. Em Metamorfose houve o respeito do texto de Kafka, e mesmo o que o Gerald acrescentou estava, não só com senso, como ligado ao contexto, como foi um espetáculo belíssimo. Eu, ontem, realmente, me rendi à arte do Gerald, porque pela primeira vez, no meu ver... Não vi Um Processo, estava...
Mario Prata: Porque eu via também essa crítica, eu acho que o texto...
[risos]
Gerald Thomas: Eu acho que fracassei.
Ilka Marinho Zanotto: É. Exatamente.
Gerald Thomas: Vou ter que tirar de cartaz.
Ilka Marinho Zanotto: Não. Só deixa-me falar da Metamorfose para terminar. Achei um espetáculo que tem uma respiração belíssima, como de um animal vivo, inclusive, os blecautes, você sente aquela pulsação do verdadeiro espetáculo, da verdadeira obra de teatro. Eu não acho que o Gerald seja assim um inovador absoluto, porque como na outra crítica, que eu fiz questão de dizer, e reagindo a sua posição na imprensa, em dizer que nós estávamos cinqüenta anos atrasados, éramos tupiniquins e não conhecíamos nada. E eu tenho o maior respeito pelo que nós fazemos no Brasil. Eu reagi querendo mostrar as fontes do Gerald, e que eu assisti a todas. Porque eu já tenho uma idade que me permitiu com as viagens, assistir a tudo isso que informa. Não quero com isso dizer que ele esteja colonizado, quero dizer que ele assimilou muitíssimo bem, todas essas influências, que vão do Tadeusz Kantor [(1915-1990), artista polonês, pintor, cenógrafo e encenador. Criou espetáculos que ficaram conhecidos mundialmente, como A classe morta] ao Richard Foreman [responsável pela criação do teatro de imagens e do movimento performativo - microfones, cassetes, fios, cordas, objetos], do Ontological-Hysterical Theater [em Nova Iorque]. Inclusive, o que ele escreve parece muito com os manifestos do Richard Foreman, só que dentro da loucura do Richard, há uma logicidade. Eu procurei, assim, exaustivamente nos textos do Gerald, essa logicidade e não encontrei. Encontrei um Heiner Müller [(1930-1959), um dos mais importantes dramaturgos da República Democrática Alemã; recebeu os prêmios Heinrich Mann (1959) e Kleist (1990). Suas principais peças de teatro são: Quartett e Hamletmachine] que não chega a ser.... Então, Gerald, foram os textos que me grilaram. E minha crítica, talvez, tenha sido mais contundente por causa da [sua] posição diante do que se faz aqui. Eu achei que não estava se respeitando o trabalho de criadores imensos que nós temos, como Antunes Filho, Naum Alves de Souza, Flávio Rangel [três destacados diretores de teatro brasileiros], nos seus tempos idos e outras pessoas. Quer dizer, nós fizemos já muita... E, principalmente gente do interior. Eu vou à festivais nacionais por aí, e vejo o pessoal de Vital Santos de Caruaru, [Pernambuco] a turma da Gralha Azul de Santa Catarina, tem gente incrível do teatro do Pará, do Tácito Borralho, da Cobra Norato...
Mario Prata: Londrina.
Ilka Marinho Zanotto: Então, tem gente incrível fazendo teatro nesse Brasil, que eu acho uma falta de respeito dizer isso. Agora, hoje, ele me deu uma porcentagem bem mais adequada, noventa e dois vírgula tantos por cento...
Mario Prata: Mas hoje ele falou que é um falando, e um fazendo. Estou me referindo a um fazendo, que eu achei, realmente...
Ilka Marinho Zanotto: Não. Foi maravilhoso. Metamorfose, eu acho que está o Kafka ali. Eu achei uma interpretação moderna, adequada, aderente ao significado de Kafka. E, exatamente, eu acho que a contradição que havia antes está aqui, explícita aqui. Eu não sei quem escreveu... Se foi o Edmar Pereira...
Gerald Thomas: Os telespectadores...
Ilka Marinho Zanotto: “A constatação da precariedade, superficialidade e formalidade da linguagem é uma das bases do seu teatro. Junto com sua paixão pelas artes plásticas, os livros e a música”. O que é que são os livros, senão a linguagem.
[interrompida]
Ilka Marinho Zanotto: Se a linguagem é precária, formal e superficial. Então, os livros o que são? Que paixão por livros? O que o livro tem? Que a linguagem aqui não é entendida como meio, é entendida como antes, fala inglês, alemão, etc. A língua falada ou escrita, então, é esse paradoxo vivo que ele tenta alimentar, ou que ele é, e que talvez seja até fascinante. Mas é o que irrita no momento em que ele se coloca como porta-voz único do verdadeiro teatro. Na hora em que ele reconhece que noventa e dois vírgula por cento não é, mas que existe gente fazendo o verdadeiro teatro, então, eu estou de acordo com ele.
Gerald Thomas: O Brasil não tem uma tradição de debate. Quer dizer, vocês não agüentam neste país uma figura que é, inclusive, uma espécie de bobo da corte. Vocês não agüentam uma pessoa que tem visão, obsessão e que sofre. Eu não posso falar pelo João Goulart [(1919 -1976) presidente do Brasil entre 1961 e 1964. Foi deposto da dirigência do país por meio de um golpe militar organizado pelo exército brasileiro em 1964], eu até gostaria de tentar. Eu talvez voltasse vinte, vinte e quatro anos no tempo. Eu falo por mim. Eu não autorizo e desautorizo absolutamente nada. Se eu consigo criar paralelos na imprensa que me apóiam, e que embarcam nisso, só quer dizer que eu estou tendo algum respaldo. Agora, o direito de dizer é uma coisa que você não assimilou no exterior.
Ilka Marinho Zanotto: Como o direito de dizer, assim mesmo...
Gerald Thomas: O direito de dizer o que quiser, quer dizer...
Ilka Marinho Zanotto: No momento que você fala que todo o teatro brasileiro é de besteirol, é besteirinha, eu não aceito.
Gerald Thomas: Então, está! Eu falei noventa e dois por cento, então está! Só para te irritar mais ainda, então agora eu vou dizer cento e quarenta e dois por cento, e daí? Que importância tem isso? Se cada um diz o que quer, você entende? Agora, olha que engraçado, quer dizer, eu falo essas coisas e te irrito e você está aqui e está todo mundo aqui, debatendo isso...
Ilka Marinho Zanotto: Eu acho importante o seu trabalho, o de ontem, fantástico.
Gerald Thomas: Não. Não é o meu trabalho. O que você está debatendo agora, pela primeira vez, talvez, chega na televisão o debate sobre a fragilidade do teatro brasileiro. Então, de uma certa forma, graças a eu ter dito isso, há dois anos e meio e agora, é que está se debatendo isso, que pode virar um grande debate nacional.
Ilka Marinho Zanotto: Não é verdade, Gerald. Gerald, não é verdade.
Antônio Carlos Ferreira: Um momentinho. Gerald, tem muita gente agora querendo fazer perguntas. Então, vamos fazer uma ordem, a Vivien que pediu primeiro, depois o Mário, depois Labaki.
Vivien Lando: Gerald, então, eu queria saber, voltando um pouco naquele papo anterior...
Gerald Thomas: Qual papo anterior?
Vivien Lando: Que você estava falando, você vai entender. Quando você está criando um texto, dirigindo, etc, montando um espetáculo e citando, [você faz] uma série de citações no meio, não é? Você está citando porque você quer, porque é uma espécie de descarrego, ou para as pessoas entenderem, ou por outros motivos?
Gerald Thomas: É um descarrego meu. A Ilka falou em Heiner Müller. É muito engraçado quando as pessoas de fora comentam coisas familiares. Heiner Müller é uma pessoa com quem eu trabalho constantemente. Eu fiz a première americana de Quartett e trouxe para o Brasil também. E é inegável, é inegável a influência do Heiner Müller sobre o meu trabalho, inclusive eu vim de Beckett, que é o reducionista máximo, ao exagerador máximo que é o Heiner Müller. Quer tossir? Pode tossir. Quer tossir?
Vivien Lando: Não.
Gerald Thomas: Não. É...
Antônio Carlos Ferreira: Thomas, só um momentinho, por favor. Eu gostaria que você explicasse quem é Heiner Müller para o telespectador.
Gerald Thomas: Heiner Müller é...
Antônio Carlos Ferreira: Nós estamos em televisão. O público é bem mais amplo do que os vinte que você reconhece na platéia.
Gerald Thomas: Heiner Müller veio do Berliner Ensemble [companhia de teatro alemã fundada por Brecht], trabalhou diretamente com o Brecht [Bertolt Brecht (1898-1956) dramaturgo, poeta e encenador. Brecht foi responsável por aprofundar o método de interpretação do teatro épico, que é uma das grandes teorias de interpretação do século XX. Algumas de suas principais obras são: Um homem é um homem, Mãe coragem e seus filhos e A vida de Galileu], era um poeta que, aos dezessete anos chegou para o Brecht e falou: "eu queria trabalhar com você. Essas são as minhas poesias". O Brecht leu as poesias e falou... Falou exatamente o que a Ilka está dizendo para mim: “Você não presta para escrever, é um absurdo”. Aliás, eu estou em boa companhia: [Gustave] Flaubert [(1821-1880) escritor francês. É autor das obras: A tentação de santo Antonio (1874), Educação sentimental (1869), entre outros], Samuel Beckett e Oswald de Andrade [(1890-1954) escritor, ensaísta e dramaturgo brasileiro. Foi um dos grandes nomes do modernismo literário], todos receberam isso na cara, de que os textos não têm lógicas. O Brecht falou assim: “As suas poesias são um fracasso, você não dá para escrever, mas escuta. Faz um favor para mim, traduza a obra completa de Shakespeare para o alemão”. E o Heiner ficou... bom... foi uma das melhores coisas que aconteceu com ele. Aos dezessete anos e meio ele estava traduzindo a obra completa de Shakespeare para o alemão, algumas das coisas, como Coriolano [A tragédia de Coriolano]. Depois o Brecht montou - foi uma das montagens mais influentes no teatro de hoje - é fragmentado [...] E a partir de 1968, 1969, quando o Heiner Müller, que é da Alemanha Oriental [até hoje], conseguiu um passe livre, começou a transitar pela Alemanha Ocidental e trabalhar numa cidade do norte alemã chamada Bochum, e em Bremen, e em Frankfurt e começou a dar uma vazão um pouco mais material. Começou a explorar o espaço dele mais materialmente. Começou a tomar, talvez o lugar, não tomou ainda, mas começou a tomar o lugar que Samuel Beckett teve até... tem até hoje. O Beckett ainda é o maior teatrólogo vivo e não será substituído porque, ao contrário dos brasileiros, eu não acho que tenha que ter uma pessoa e o resto tenha que fracassar para que essa uma pessoa exista. Existe lugar para todos, não é? Mas o Heiner Müller está chegando bem perto da importância, da influência dele no mundo. Então, Heiner é um fragmentista e é uma pessoa que me causou muito impacto por incestuar a Bíblia com Shakespeare, com Flaubert, com o Dante [Alighieri], com o próprio Beckett, com o Brecht, enfim, tudo. Uma frase em cada coisa. É claro, Ilka, que eu não cheguei perto do Heiner Müller. Se eu tivesse chegado perto do Heiner Müller, eu provavelmente estaria sentado em um programa desses, em Frankfurt. Eu não sei se seria mais ou menos agradável, mas enfim. É claro, essas pequenas coisas são óbvias, mas enfim, é o descarrego que importa para mim. Eu acho que é através de uma metáfora, que esse descarrego promove, é um erro para as pessoas. Eu acho um erro para as pessoas julgarem texto desassociado de cenário, desassociado de luz, de movimentação cênica de atores, de respiração, de vassoura, de cabelo, de pó no palco, de fumaça - é tudo uma coisa só. Eu vou me estender nessa resposta. Perdão, mas você não vai cortar não, de jeito nenhum. Senão, eu saio daqui, arranco o microfone e vou embora. É... Está vendo? Metáfora é o que eu estou querendo fazer. O texto tem pouquíssima importância, ou melhor, tem importância no percentual dos ingredientes que compõem o teatro. Se são sete ingredientes, ele tem um sétimo de importância. Se são vinte, então ele tem um vigésimo em importância. O texto não é em si uma coisa que deveria ser publicada e lida isoladamente. Agora, com essa “verborragia”, essa “hemorragia verbal” de palavras, mais uma determinada imagem, que, às vezes, é o próprio contrário do que eu estou dizendo verbalmente, mais uma luz que é o próprio contrário do que eu estou dizendo cenicamente, eu viso imprimir na pessoa uma metáfora e, sem dúvida nenhuma, eu consigo isso. Disso não há a menor dúvida.
Vivien Lando: Pois é! Mas aí só para complementar. Você faz por você e pressupõe que você vai falar direto com a alma do espectador, sem ser julgado analiticamente, é isso?
Gerald Thomas: Eu juro para você que não pressuponho muita coisa. É mais uma tradição, talvez, que não seja muito plausível no Brasil pela precariedade financeira. A minha relação com o meu teatro é muito parecida com a relação de um pintor com a tela dele. Ele não está muito... - eu acho, pelo menos, eu espero realmente que não esteja - muito preocupado com a exposição que vem depois. É muito o contrário de Marcel Duchamp [(1887-1968) pintor e escultor. Inventor do ready made], que pegava um urinol, botava, fazia daquilo um ready made [atitude anti-arte, que marcou o movimento dadaísta] e tinha uma preocupação de manifesto com aquela coisa toda. Eu tenho uma relação muito íntima com o teatro que eu faço. Como aquilo vai ser assimilado pelo público não é mais preocupação minha, em termos, quer dizer, no momento em que ele está sendo concebido, isso não é levado em consideração. Eu levo isso em consideração as dez e quarenta e cinco da noite, quando o espetáculo terminou, aí sim.
Antônio Carlos Ferreira: Gerald, você tem total liberdade para responder aqui, não entendi, inclusive, a sua insinuação antes de responder a pergunta. O programa Roda Viva é um programa... a característica básica dele é a liberdade. Eu só estou preocupado com que todas as pessoas aqui presentes, façam, pelo menos uma pergunta na primeira parte do programa.
Gerald Thomas: Uma só hein!
Antônio Carlos Ferreira: Mário Masetti, por favor.
Mário Masetti: Eu queria. Eu não consegui descobrir até agora a simplicidade que o Mario Prata viu nos seus espetáculos, mas, inegavelmente, eu acho uma coisa da maior importância. Eu acho profundamente importante. O que me preocupa um pouco é o outro lado, e a Ilka tentou levantar os outros noventa e tantos por cento de potencial de teatro no Brasil, que eu acho que está sendo deixado um pouco de lado, não só por você, mas por toda uma certa preocupação como a vanguarda, entre aspas, vamos falar assim, que está deixando de lado e está afastando dos teatros um público mais popular, vamos dizer assim, um público mais... que estaria vendo hoje o jogo Corinthians e o Palmeiras, e não este programa. Então, eu queria saber um pouco mais detalhada essa parte. Se existe mesmo [ou] se não existe mesmo essa sua preocupação com o público de teatro e, segundo, como você vê o ator inserido no seu trabalho. Eu falo isso em função, um pouco, dos espetáculos que eu vi, que... eu sinto que tem muito trabalho de ator, mas não é o trabalho realizado pelo ator, é um trabalho que o ator executa a partir de uma solicitação sua, digamos assim. Não sei se eu consegui ser claro, eu não tenho muita intimidade de falar com a câmera.
Gerald Thomas: Olha, deixa eu dizer uma coisa, é engraçado quando se bate nessa tecla, o teatro brasileiro! Meu Deus! Ninguém percebe até hoje, ou percebeu, me parece, que a coisa é ecológica, independe de mim. Meu Deus do céu! Se eu tiver a força de matar o teatro brasileiro, se vocês estão realmente tão preocupados, então, eu acho que Deus me deu uma força que eu ainda não conheço. Eu sei que eu sou um escolhido por Deus, de uma forma ou de outra, mas não tanto, não como censor, pelo menos, não é? Ou não como uma autoridade. Mas pareço ter esse efeito sobre as pessoas. Agora, a ecologia tem que ser respeitada, ou Darwin [(1809-1882), biólogo e naturalista britânico que se notabilizou pela teoria sobre a evolução das espécies por meio da seleção natural] tem que ser respeitado - o que é bom fica, o que não é bom desaparece. Se está todo mundo, desesperadamente tentando salvar alguma coisa, é porque essa coisa está enferma, ou não? Claro que sim. Se não, isso não seria assunto. Quer dizer, se a coisa virou assunto da maneira como é, é tão óbvio...
Mário Masetti: Eu acho que a gente vive em uma sociedade que tem uma série de coisas em volta que alijam outras coisas. Então, de repente, eu acho que existe toda uma mídia, todo um processo ali de marketing, a gente mesmo falou sobre isso, que, de repente, põe de lado uma outra perspectiva do teatro.
Gerald Thomas: Eu não acho que mídia seja marketing. Isso é desrespeitar a mídia. Marketing é uma coisa colateral. O marketing pode ter uma impressão muito forte sobre a mídia, pode ter até um suborno sobre a mídia. Mas, mídia é mídia. Ela existiu em todas as sociedades, desde que a gente se conhece por...
Mário Masetti: Estou querendo discutir o acesso a essa mídia. É só isso.
Gerald Thomas: O acesso a essa mídia é decidido pelos editores, pelos donos de jornais, pelos pauteiros, que dizer, eu duvido, sinceramente, duvido que os grandes jornais... você vai conseguir se impor através da coisa chamada marketing, culturalmente falando. Isso é coisa de divulgador, eles têm um certo impacto para aquele espaço reservado à divulgação. O resto é vontade filosófica, ideológica de um editor de jornal. Esse aspecto de "denegrir" as poucas coisas que existem dentro de uma sociedade, que tornam ela plausível e viável no dia a dia, é também uma peculiaridade de que eu não gosto muito nesse país. Ao contrário de ficar reclamando e de ser um Telê Santana [técnico da seleção brasileira em 1982 e 1986] nos bares brasileiros e decidir como é que a seleção jogaria, eu tenho um efeito real sobre essa sociedade, na medida em que eu participo dela ativamente. Mais ainda do que a maior parte dos diretores e dos criadores de teatro nesse país, não em qualidade só, mas em termos de quantidade também. Então, esse condicional - como eu faria para ser presidente da República ou como eu faria se eu fosse de teatro, eu sou e digo exatamente o que penso. Eu acho que a sociedade só teria a lucrar, se todas as pessoas expressassem a sua opinião, e substanciassem a sua opinião com trabalho por trás. É claro que falar só por falar, não existe. Tua pergunta: se eu realmente não me preocupo com o público... É uma pergunta que poderia demorar, a resposta podia demorar horas. Preocupação: eu estou fazendo uma peça, meu Deus! Será que está iluminado, e a décima fila vai ver? Não. Não tenho essa preocupação. Preocupação: “posteriori”, quando eu leio as pesquisas que as pessoas escrevem, a maior preocupação do mundo para ver onde esta metáfora está chegando. Algumas me deprimem profundamente, outras me alegram profundamente. Então, como tudo, não existe uma coisa monolítica, “não me preocupo com o público”. Preocupo-me em algumas coisas e em outras não. E a outra? Faz a tua pergunta. Era?
Mário Masetti: Sobre o trabalho de ator.
Gerald Thomas: Sobre o trabalho de ator, é o seguinte: eu uso o ator da forma mais exaustiva possível. Agora, para que as pessoas entendam um pouco meu teatro. Essas que estão vendo pelo vídeo e não foram ver. Existe o trabalho de ator originário de Stanislavski [(1863-1938) ator russo, um dos fundadores do Teatro de Arte de Moscou, criador do Sistema Stanislavski de atuação realista. Entre suas obras destacam-se Minha vida na arte e A preparação do autor], originário do que a União Soviética depositou no Ocidente, no continente Europeu. Esse trabalho é feito através de uma busca emotiva de memória de sensações, onde o ator busca sensações da vida real e tenta transmitir aquele momento decorado, um texto que não foi feito por ele, uma direção que não é feita por ele, repetidamente nove horas da noite, todo dia, ele tenta substanciar aquilo com alguma emoção real. Alguma coisa que leve ele... que faça plausível que ele diga aquilo da forma que ele tem que dizer. Já no meu teatro, a coisa é bem diferente. É essa “verborragia” que não tem essa substância. Uma frase é do James Joyce [(1882-1941) escritor irlandês. Escreveu Dublinenses (1914), que reúne 15 contos que focalizam a cidade, e os romances Retrato do artista quando jovem (1916), Ulisses (1922) e Finnegans wake (1939) entre outras obras], a outra frase é um plágio de Beckett, a outra frase é um plágio de Heiner Müller, a outra coisa é uma coisa direta, vindo da Bíblia ou de Dante. Não tem como viajar com tantas coisas ao mesmo tempo. Essa coisa de linguagem, que foi impressa na minha vida desde pequeno. A língua portuguesa, por exemplo, eu não posso me esquecer que eu ouvi a palavra beterraba pela primeira vez dentro de uma piscina e achei o som estranhíssimo, beterraba... eu estava inundado. Eu estava submerso. Até hoje, a palavra beterraba está acompanhada por algumas toneladas de litros de água para mim. Você entende? Isso é uma impressão. Isso, dentro da arte, se chama impressionismo. O resultado disso, como se coloca isso nos lugares pode ser abstrato, pode ser expressionista, pode ser [movimento] dadaísta, pode ser o que você quiser. Eu prefiro a linha impressionista, porque dá total liberdade de você colocar o que você quiser lá. Para isso, o ator teria que passar pela mesma experiência empírica que é a minha, o que é impossível. Ninguém vive a mesma vida duas vezes, quanto mais duas pessoas vivendo uma só. Então, não adianta tentar decodificar uma coisa, cuja decodificação é muito interior, é muito minha. Já que eu não jogo com entendimento imediato, racional daquela coisa e sim em um plano mais analógico, mais metafórico. Então, não adianta o ator querer levar o trabalho dele para esse lado, quer dizer, o lado do emotivo. São milhões de coreografias no meu espetáculo, é de vital importância onde a cabeça está em relação à corcunda que ele está, eu chamo aquilo de postura de pós-milênio. A sombrancelha, em dado momento, tem que levantar em contraste com uma determinada palavra. Muitos atores acham isso profundamente difícil. Eu acho um desafio fascinante para o ator. E se você conversar com grande parte dos atores com quem eu trabalhei, eles, no final, pelo menos, a não ser que eles mintam para mim profundamente, se sentem profundamente fascinados. Só os atores que não conseguem entrar nesse tipo de trabalho...
Mário Masetti: Vão para os bares falar mal.
Gerald Thomas: Vão para aos bares falar mal.
Antônio Carlos Ferreira: Aimar Labaki
Aimar Labaki: Três perguntas. Primeira: quem são as vinte pessoas para quem você faz e com quem você pode conversar neste país? E quem são os 8% que fazem teatro à sério no país? Segunda coisa... deixa-me terminar, senão depois você me corta...
Gerald Thomas: São três perguntas, subdivididas em três, não é?
Aimar Labaki: Segunda, quando você diz que não está preocupado com a platéia, porque não te importa se na décima fileira estão vendo ou não. Você está mentindo e você pode estar confundindo o público leigo, porque, ao contrário, você tem um apuro técnico inigualável no país. Tanto que você chega ao requinte de avisar o público que na primeira, na segunda fileira ou nas bases, eles não vão ver direito. Então, não é verdade o que você disse. Terceiro lugar, quando você diz que se tivesse chegado a Heiner Müller, você estaria em Frankfurt, você está querendo dizer que o país, para você, o Brasil é um trampolim para a tua carreira lá fora, quer dizer, se você não tem? Desculpa, se você está fazendo e não tem diálogo aqui, então, por que você faz aqui?
Gerald Thomas: A primeira parte da pergunta é para quem eu faço teatro.
Aimar Labaki: E quem são os 8% sérios.
Gerald Thomas: Para ser absolutamente real com você. Eu faço teatro para as pessoas que debatem teatro. Quer dizer, eu faço teatro, não tanto assim para a classe teatral, mas para os teóricos de teatro.
Aimar Labaki: Você pode nomear?
Gerald Thomas: Não. Eu não vou nomear. Mas são críticos de teatro. São pessoas envolvidas em artes cênicas, em artes em geral. Artistas. Pessoas envolvidas com debate filosófico constante de: para onde ir, de onde viemos e para onde vamos. Dentro da questão... A única coisa que me preocupa é filosofia, e depois, em uma outra instância, poesia. O resto não tem a menor importância. Através de qual canal isso sai: pode ser pintura, pode ser cinema, pode ser teatro, música, não importa. Eu dialogo com essas pessoas e imprimo uma impressão metafórica mais leiga, mais abrangente, mais sensorial no resto da platéia. Eu não tenho dúvida disso. Senão o meu teatro estaria vazio, e não está. Está cheio, isto é inegável. Os 8% do teatro que eu acho que está sendo feito de interessante neste país, não sei se vale à pena nomear também, mas existe.
Aimar Labaki: Se não a conversa vai continuar vaga, se você não fala em nomes.
Gerald Thomas: Ah! Mas eu, minha gente! Está bom. Bia Lessa [atriz e diretora. Junto com Gerald Thomas liderou o teatro de imagens nos anos 1980] no Rio de Janeiro; Ulysses Cruz [diretor. Montou peças importantes nos anos 1980 entre elas: O coronel dos coronéis, de Maurício Segall (1981), e o musical Lola Moreno (1982). Nos anos 1990 passou a dirigir novelas para rede Globo de televisão] em São Paulo; Antunes Filho [diretor de teatro, montou, entre outros espetáculos, Macunaíma na década de 1970, Nelson 2 Rodrigues, na década de 1980, e renovou-se a cada lançamento, incorporando as mais diversas influências, do expressionismo alemão e filosofia oriental à física moderna]; Cacá Rosset [criador do grupo de teatro Ornitorrinco que mescla música ao vivo, circo e representações nos espetáculos] eu respeito. Apesar de eu não me encantar pelo [seu] teatro, mas é uma pessoa respeitável. É um teatro inteligente. É uma figura inteligente. Não sei, nomes me escapam no momento, mas enfim. E agora, é claro, não estou citando algum que deveria ser citado e fica profundamente chato isso.
Aimar Labaki: Não, mas o simples fato de você citar alguém já é bom.
Gerald Thomas: O que mais você estava falando? Era o...
Aimar Labaki: Segundo...
Gerald Thomas: Que é uma mentira? Não. Não é. Não é no sentido seguinte. A minha preocupação é visibilidade física. É claro que eu quero que seja visto. Eu não quero... não me interessa como aquilo é visto. Você entende a diferença? É qualitativa. Mais uma vez é quantitativa nossa discussão, e não deveria entrar nisso. Quando eu não quero que as pessoas sentem na primeira nem na segunda fila ou nas laterais ou nas últimas do balcão, eu estou sendo específico. Elas estão comprando um produto pela metade. Agora, as pessoas que estão frontais, como se o ator está iluminado, ou não está iluminado, ou tem um facho de luz em um outro lado que não do lado do ator, isso aí não tem a menor importância para mim. Isso não tem importância para mim. Não. A terceira parte da sua pergunta, não se esqueça, eu vim de lá para cá, eu não estou me lançando aqui para voltar para lá. Eu tenho uma carreira em Londres, frágil, péssima, muito pequena, sem importância nenhuma. Na Alemanha, incidentes isolados de muito grande repercussão, muito mais em função do... [inaudível, possivelmente Julian Beck (1925-1985) fundador do The Living Theater, companhia de teatro sediada em Nova Iorque que se opunha à lógica comercial dos espetáculos da Broadway e tinha influências do escritor, dramaturgo e diretor de teatro Antonin Artaud] ter estado em uma dessas peças e ter morrido durante a peça. E a peça, eu ter juntado a fragilidade real de uma pessoa com um texto frágil, sobre fragilidade real do Beckett. Não tenho dúvidas sobre isso. Não é a minha genialidade, entre aspas, que me fez um pouquinho conhecido na Alemanha. E em Nova Iorque onde eu tenho um trabalho no [teatro] La MaMa e no Theater of New York City bastante constante. O trabalho no Brasil não me serve em absolutamente nada para voltar para lá. Porque nada que é feito aqui, tem o menor respaldo lá fora. Estou dizendo, se eu fosse Heiner Müller, eu estaria em Frankfurt. É tão real o que eu estou dizendo. Você está entendendo? Eu dialogo em português.
Aimar Labaki: Você preferiria fazer em Frankfurt à fazer em São Paulo?
Gerald Thomas: Claro que não. Eu poderia ter ficado em Frankfurt em 1985, trabalhar lá agora.
Antônio Carlos Ferreira: E o que você está fazendo aqui? É a pergunta óbvia, então.
Gerald Thomas: O que eu estou fazendo no Brasil?
Antônio Carlos Ferreira: Por que você está fazendo teatro aqui?
Gerald Thomas: Eu acho o Brasil... Meu Deus do céu! Primeiro, eu sou parte brasileiro. Você vê pelo meu sotaque que eu sou carioca, não é? Eu adoro este país, só que eu tenho um ponto de vista muito crítico. Eu acho que uma sociedade flui e progride criticamente, não é bajuladoramente, não é todo mundo se alisando mutuamente dizendo: "Meu Deus! Que horror! É real! Que pena! Que maravilha como seria!" Isso também é óbvio. Porque eu estou no Brasil também é óbvio. Eu tenho uma importância enorme nesse país e dou uma importância enorme a este país para a minha vida. Além do mais, encontrei aqui uma companhia de teatro com a qual a minha relação é fantástica. Tenho um lugar no teatro brasileiro que não tenho em outros países. Não sei se é... não é por causa da minha genialidade, entre aspas, mas por causa da deficiência do lugar. E, enfim, tenho uma relação bastante sensorial com esse país. Como tenho certeza que todo o mundo aqui tem. Poucas pessoas admitem isso.
Kleber de Almeida: É o seguinte. Você tem uma posição crítica em relação ao país. Mas, ao mesmo tempo, você pretende que o seu teatro atinja um número restrito de pessoas. Você não acha que há uma contradição nisso?
Gerald Thomas: Acho.
Kleber de Almeida: Então, explica isso.
Gerald Thomas: Eu adoro contradições. Não tenho dúvidas que o meu teatro só atinge uma parcela mínima da população. Seria ridículo constatar o contrário. Quer dizer, eu não faço, nem farei, nem em uma sociedade no plural como é a Europa, eu faria um teatro para milhares, milhares de pessoas. Basta lembrar um pouco a história e ver que a peça que mais influenciou a história recente do teatro foi Esperando Godot de Beckett. Que estreou em 1953 em Paris e foi feita para 75 pessoas, das quais trinta e três e meia, saiam no primeiro ato, no primeiro intervalo. E que a exposição de Marcel Duchamp, nos Estados Unidos em 1911 teve uma freqüência baixíssima. No entanto, eu tenho noção de que são poucas cabeças, essas cabeças vão influenciar outras cabeças, e outras e a árvore genealógica vai se alastrando dessa forma.
Maria Amélia Rocha Lopes: Gerald. As suas peças têm um forte impacto visual. Pelo menos foi que eu senti assistindo. Eu queria saber se sem a Daniela Thomas, esse teatro, seu espetáculo, seria o mesmo.
Gerald Thomas: Não sei. Provavelmente não. Obviamente não, não seria.
Maria Amélia Rocha Lopes: Obviamente não, mas, seria, sei lá, teria a mesma qualidade. A sua presença, acho, que é tão forte, tão marcante. Eu queria saber. As pessoas podem ser trocadas assim e se manter o mesmo espetáculo.
Gerald Thomas: Não, não. O trabalho da Daniela é único nesse sentido, é bastante particular. Como, por exemplo, o trabalho da Bete Coelho, inegável. Quer dizer, será que eu conseguiria fazer Um processo sem a Bete Coelho? Talvez até... sairía alguma coisa, mas nada parecido com o que está. Será que eu conseguiria fazer o Navio fantasma sem o Wagner. É óbvio que não. Quer dizer, o que é histórico já existe. Se um dia eu fizer uma peça sem a Daniela, aí vamos ver como é que faz, não é? Não sei, eu acho que não é possível no momento.
Maria Amélia Rocha Lopes: Que peso tem em um espetáculo, a presença da Daniela? Quer dizer, ela faz cenários e figurinos. No total, o resultado disso seria, 70% da Daniela, 30% de Gerald Thomas.
Gerald Thomas: Não. É difícil, porque o próprio processo de criação já é incestuoso e já é diluído dentro dessa porcentagem toda. Não é, ela... eu digo para ela: “atenção, faça cenários e figurinos, vai e eu te encontro no dia da estréia”. Claro que não, milhares de conversas, correções, eu sou pintor, não é? Eu tenho uma estética muito específica e a estética final é dada pela luz. Se eu apontar uma luz geral para aquele cenário, eu não sei se você vai achar a mesma coisa. Se eu der uma luz específica, um costura junto com o outro, você entende? Um faz a coisa em virtude do outro. Eu digo a mesma coisa, faço a luz porque tenho aquele cenário que ela faz. Mas o processo de criação é muito mútuo, nesse sentido.
Mario Prata: Gerald. Dentro disso, antes de começar o espetáculo, você está com a preocupação. Você está com o figurino em degradê no ar, que é meio a cor do teu espetáculo, é meio a tua cor. Ela estava falando da Daniela. E... você está com um isqueiro amarelo que você está preocupadíssimo escondendo, desde que você chegou. Você chegou a perguntar para o Tonico [Antônio Carlos Ferreira] se o isqueiro não ia destoar. Ele, acho, não ouviu ou não acreditou. Eu estou acreditando, porque você está preocupadíssimo com esse amarelo, está tapado, então...
Antônio Carlos Ferreira: Eu ouvi e sei que não atrapalha em nada.
Mario Prata: E, é a sério essa preocupação sua, eu estou vendo que é sério isso. É possível um dia ter um amarelo vivo em um espetáculo teu? Da cor do seu isqueiro?
Gerald Thomas: Se fosse para colocar o amarelo em justaposição crítica, talvez. É como ele é, como cor não. Eu não vejo o mundo “coloridamente”, eu vejo o mundo em preto e branco ou em cinza mesmo. Eu acho que é uma postura filosófica...
Mario Prata: Eu, inclusive, vim de preto e branco em sua homenagem. Eu escolhi o figurino, é verdade.
Gerald Thomas: E eu estou meio de cinza que, na televisão parece azul, não é? Quer dizer, eu tenho problemas com cor.
Mario Prata: E essa preocupação de cor, evidentemente a Daniela também tem a mesma preocupação, ao contrário do pai dela que só trabalha com cor.
Maria Amélia Rocha Lopes: Mas quem é o pai dela?
Mario Prata: O pai dela é o Ziraldo [cartunista. Criador de personagens famosos como o Menino maluquinho] .
Gerald Thomas: Bastante opostos. A propósito, eu acho que a tendência é... vamos dizer, existe nessa falta de cor uma coisa que se chama às vezes erroneamente de niilismo, não é? Mas eu acho que se você aponta uma cor dentro desse negócio todo, ela tem uma importância vital; que ela não teria em um espetáculo de bananas, e abacaxis, e maçãs.
Mario Prata: Porque o isqueiro está lindo na tua mão, esse isqueiro amarelo! É verdade, te dá um brilho.
Antônio Carlos Ferreira: Ele escondeu o isqueiro dentro do... dentro do maço de cigarros.
Mario Prata: Não, ele está desde o começo do programa preocupado com esse amarelo.
Gerald Thomas: É que já me basta o vermelho. Eu estou circundado por vermelho de todos os lados. Agora, realmente, predomina o preto e branco, não é? É incrível, engraçado [olha para cima]. Não, tem um rosa lá em cima.
Antônio Carlos Ferreira: Eu gostaria, agora, que o Edélcio fizesse a sua pergunta.
Edélcio Mostaço: Bem, sem nenhuma ironia com os presentes, mas eu acho que nós estamos um pouco parodiando um espetáculo que está em cartaz, é O encontro de Descartes e Pascal [de Jean-Claude Brisville]. Com um Pascal presente e vários Descartes. Eu acho que existem lógicas muito diferenciadas entre o mundo da criação e o mundo da recepção da obra de arte não é? Então, há uma série de perguntas que eu gostaria de fazer, acho que elas estão ligadas mais à lógica da criação. Uma delas é a seguinte: no seu espetáculo Uma metamorfose, todas as personagens lêem muito, além do quê, a peça se passa dentro de uma grande biblioteca, assim como toda a trilogia. Ou seja, a imagem da biblioteca é muito forte. Eu gostaria de saber o que as personagens lêem. Lembra-me muito a grande biblioteca mítica do Borges [biblioteca que escondia o texto perdido da Poética de Aristóteles]. Para quem leu O nome da rosa [Humberto Eco], deve se lembrar que a grande tragédia dessa biblioteca é a inexistência do livro da Comédia de Aristóteles, não é? Talvez o que explique toda a tragédia inerente a essa...
Gerald Thomas: E labiríntica.
Edélcio Mostaço: Então, eu gostaria de saber o que as suas personagens lêem? Ou que livros faltariam na biblioteca de Kafka.
Gerald Thomas: Olha, tem um livro que está sempre aberto em cima da mesa que é A importância da Tália na psicanálise. Na verdade, é uma parte de uma enciclopédia, e eu tirei, arranquei a página fora e coloquei A importância da tália na psicanálise. Tem um livro de agricultura e tem um de Descartes, passeando por lá, de vez em quando pegam ele, de vez em quando roubam ele. Ah! E tem um... Mas esse é no Processo, no Metamorfose não. No Processo tem o Bertoldo, que é uma paródia do Bertold Brecht, está lendo um livro que foi publicado por Ekhard Shaw, que é um ator de Brecht, sobre como o Brecht foi assassinado nos outros países. Então, ele ri dessa coisa e diz assim: “apesar de tudo, dizem que o senhor ainda sofre de algum respeito em outros países”. E livros em geral. Acho que tem um dicionário.
Edélcio Mostaço: E que livros não existem na biblioteca.
Gerald Thomas: Não existem? Ah, Eu não sei. Acho que tem tudo. Tem a carta original de Pero Vaz de Caminha sobre o descobrimento do Brasil. Tem toda a obra de Beckett. Todo o Dante [Alighieri] está lá; tem até o Heiner Müller em alemão, mas isso os atores não pegam para ler, isso eu te garanto. Tem...
Edélcio Mostaço: A sua obra, inclusive você, colocando essas coisas, reforça o aspecto que eu sempre achei dela, de ser fortemente narcísica. Você... Eu acho que Metamorfose, nesse sentido, é o seu pior espetáculo, porque eu acho que ele é o espetáculo que menos... É mais redundante. É o espetáculo que mais reafirma uma série de siglas que já estão presentes em outros espetáculos. E nesse sentido, então eu te pergunto...
Gerald Thomas: Mas, e o Processo? O que você acha do Processo?
Edélcio Mostaço: O que você pretende fazer daqui para frente? Qual seria o próximo passo, além dessa trilogia da Metamorfose?
Gerald Thomas: Eu te confesso...
Edélcio Mostaço: Você vai continuar se repetindo?
Gerald Thomas: Eu não sei. Não, eu não acho que Metamorfose esteja me repetindo. Ao contrário, eu acho que eu não estou me repetindo. Eu acho que existe uma... existe uma certa falha de ter tentado uma linha que eu nunca tentei antes. Na verdade, eu exagerei na procura da extravagância nesse sentido, que é um pensamento de princípio meio e fim, e Aristotélico, que conta uma história e tem poucas intrusões "shakespeareanas" e "becketianas", enfim. Mas é muito respeitoso, vamos dizer, à linha geral determinada pelo autor Franz Kafka no livro A metamorfose. É exatamente o contrário do que você está dizendo. É por, talvez, ter tentado ir longe demais numa coisa sobre a qual eu não tenho domínio. E você vê, a Ilka já acha o meu melhor que ela viu até hoje. É terrível que não exista uma verdade no mundo. É horrível que não existe uma verdade monolítica. Eu brigo com isso todos os dias. Eu adoraria acordar de manhã um dia, e perceber que uma coisa é. É aquilo. É uma coisa literal. Não é o caso. Eu acho que... bom.
Ilka Marinho Zanotto: Não, eu acho que isso de ele se repetir. Eu acho uma qualidade, porque dizem que o grande autor é o autor de um só livro, a vida inteira. Quer dizer, isso mostra que ele tem uma marca, um estilo, um caráter. E eu achava que não estava completo esse caráter e que na Metamorfose houve essa simbiose. Quer dizer, houve a obra total, ele chegou lá. Inclusive, o ator da Metamorfose, voltando ao [Mário] Mazetti, eu acho que pela primeira vez, o ator do Gerald Thomas, apesar de todo o trabalho inaudito das outras vezes que disseram, o ator nas outras peças, nos outros espetáculos - que eu vi dois - era como uma cor, você mesmo disse, era um elemento a mais, não era o principal e como para mim o teatro - eu ainda sou muito aristotélica - é o ator no palco, eu acho que nessa Metamorfose o ator, de repente, é um ser delineado, é uma criatura de ficção completa e que está no palco fazendo o que ele sabe o que está fazendo, sem ser só por determinação, como disse o Mazetti, do diretor, só um robô. Por mais que fossem magníficos esses robôs, eu sentia falta de algo, dessa alma digamos assim, do espírito que está lá na Metamorfose.
Gerald Thomas: Que engraçado, essa coisa...
Ilka Marinho Zanotto: Agora, quando você entra, Gerald... Isso que eu te pergunto. Então, a primeira pergunta é a seguinte: em Metamorfose mudamos nós ou mudou você? Mudaram as manhãs ou mudou o...?
Gerald Thomas: Não. Acho que mudamos todos, não é? E...
Ilka Marinho Zanotto: Embora seja o mesmo, é diferente entende? O mesmo plasticamente, aquela [sua] beleza formal, que está lá - o pintor está lá - a luz, importantíssima no espetáculo, a respiração, o ritmo. Agora, de repente, entra a outra parte, que eu acho essencial. Agora, outra coisa que eu pergunto: é quando você intervém, de repente me parece, assim, que no "finzinho" do espetáculo você diz: “Meu Deus! Eu fiz, de repente, um teatro de ator, um teatro de ação. Vamos quebrar tudo!” E bota aqueles textos discutindo minimalismo numa discussão estética que, nesse momento, o público, pela primeira vez, se mexe. Eu acho que o público ali fica... Ou se incomoda ou se cansa, e você entra e você ali. Eu achei uma contradição no seguinte: a tua entrada é um naturalista, seria um observador. A gente percebe que é o Gerald observando, o que ele está fazendo, seria uma das interpretações possíveis. Mas você entra como Gerald mesmo. Você não entra como um naturalista teatral. Faltou-me a teatralização dentro da sua veracidade. Você foi verista somente. Seria [como] a Ilka subir no palco, de repente ali, escrevendo aquilo que aconteceu sem representar a Ilka, me faltou essa decalagem, me faltou essa mediação naquele momento. Eu pergunto por quê? Qual é a função tua no palco, exatamente? Não aquela que você me disse que não gosta e por isso está lá.
Gerald Thomas: É exatamente, é exatamente o que é lido pelo público. É inegável que a pessoa que está lá sou eu. Eu não preciso me transfigurar para estar lá como uma outra coisa, você entende? Eu não preciso me dublar. A minha presença é reconhecida por, pelo menos, oitenta pessoas que estão lá. Isso não precisa de nenhum adorno, não precisa de nenhuma artificialidade. Eu não precisaria entrar caracterizado de nada além do que eu já sou, que sou eu mesmo. Já que eu sou o autor, e diretor, e iluminador daquilo, não tem porquê eu entrar caracterizado de coisa alguma. Então, se eu estou de jeans eu entro de jeans, se eu estou de calça preta eu vou de calça preta. Quer dizer, é um comentário anti-naturalista, por mais anti-naturalista que esse comentário anti-naturalista possa parecer para você.
Ilka Marinho Zanotto: E por que você me disse antes, que você só está lá enquanto você não gostar do espetáculo. No momento em que você passar a gostar do espetáculo, você sai de lá.
Gerald Thomas: Eu falei isso para você?
Ilka Marinho Zanotto: Falou, claro.
Gerald Thomas: Não
[...]: Falou, sou testemunha.
[Risos]
Gerald Thomas: Eu acho Metamorfose um espetáculo que ainda está muito incompleto. Eu tenho três espetáculos. Um entra em cartaz agora, mas tem dois em cartaz já em pé, e um está ensaiando. Eu já considero como tudo em cartaz, mas enfim. Tem Um processo, que é o espetáculo mais maduro que eu já fiz até hoje, com resoluções cênicas das mais complicadas. Na medida em que um palco vazio, inteiramente vazio, é uma das coisas mais complicadas que um diretor tem que lidar. Ele é o espetáculo mais complexo no sentido de interpretação, de desdobramento de interpretação, de resolução verbal para esse desdobramento de interpretação, de iluminação, de trilha, e da importância da trilha, na medida em que, por exemplo... Um processo lida com a invasão. Coloco no início uma sinfonia belíssima de César Franck [(1822-1890) compositor], ninguém sabe disso, mas a sinfonia foi composta pelo César Franck como a possível invasão da Bélgica pela França - ele era Belga. Isso só quer dizer que existe uma verdade cronológica em algum canto do universo, ninguém precisa saber disso. E Um processo tem muito [da ópera] Parsifal do Wagner, o que é a trajetória do Parsifal senão a tomada de consciência através dos obstáculos que ele encontra, por uma invasão de consciência, não é?
ILka Marinho Zanotto: Certo.
Gerald Thomas: Quer dizer, são essas brincadeiras auto-incestuosas e incestuosas para o público em geral, que solidificam um espetáculo para mim. Complicam muito durante o processo de ensaio e, depois, como eu ensaio, bem ou mal, é uma questão minha. Eu acho que Um processo está extremamente maduro. É um espetáculo que foi visto na estréia por pessoas que vieram de Nova Iorque e disseram: "que loucura!" É um espetáculo que pode ser levado para qualquer lugar do mundo, e pode ser entendido musicalmente, porque é uma ópera e têm muitos elementos operísticos dentro dela. Metamorfose ainda não está pronta. Quer dizer, é essa peculiaridade de teatro que estréia. Tem que estrear. Tem que estrear, tem que ser nove e quinze da noite, e a gente vai consertando com o tempo. Quer dizer, quem vê o espetáculo daqui a um mês não vai ver o mesmo espetáculo. O mesmo ocorre com Praga. Praga tem quarenta e poucos minutos, quando, na verdade, teria que ter sessenta, porque simplesmente não há tempo. E o perfeccionismo e a minuciosidade é uma obsessão tão característica que, enquanto aquela unha não estiver no lugar certo, em relação ao tapete, eu não consigo ultrapassar aquela cena e vai ficar sendo repetida até conseguir entrar.
Antônio Carlos Ferreira: Gerald. Eu gostaria de interromper um pouquinho o debate sobre a sua peça atual, sobre a Trilogia Kafka e colocar uma questão anterior, ainda com relação à crítica. Talvez até seja meio folclórica, mas é inevitável em um debate como esse, [remeter] àquela grande polêmica que você teve com o Mário Henrique Simonsen [(1935-1997) ministro da Fazenda no governo de Ernesto Geisel entre 1974 e 1979], o ex-ministro e eventual crítico de ópera, com relação à montagem que você fez do Navio fantasma. Eu queria saber o que você acha dele como crítico, quem sabe, até como economista. Porque acho que agora você também está liberado para criticá-lo como economista, não é?
Gerald Thomas: Olha, o que aconteceu é o seguinte. A crítica literal me irrita de uma maneira profunda. Em primeiro lugar, eu acho que eles não deveriam ver os meus espetáculos. Porque o Navio fantasma, que lida com navios e lida com o mar, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, que tem trinta e sete quilômetros de orla marítima, entrar no palco e querer ver água é o "fim da picada". Não aceitar metáforas é o último ultraje sim, no caso. Em segundo lugar, não tenho dúvidas de que ele já deve ter passado muitas luas-de-mel com um badejo [risos]. A frase é dele, gente! Não é minha! Eu não tenho dúvidas. Deu no que deu e vocês julguem o resto. Agora, a briga começou por um erro meu, um erro infantil, bestial meu, que quando a [TV] Cultura estava lá, gravando o programa ao vivo, foram me entrevistar entre um ato e outro. Primeiro me perguntaram sobre a crítica [dele] e eu o chamei de ladrão e não devia ter feito isso, porque... não que eu não esteja chamando ele de ladrão agora, [mas] eu teria que chamar todos os ministros, todos os deputados e todas as pessoas públicas de ladrão também. Pode ser que nesse programa ainda, chame todos eles de ladrão. Mas até agora não chamei. Então, isolar, transformar o Simonsen em um caso isolado é o fim da picada, enfim. Nunca me retratei publicamente em relação a isso. Agora, ele como crítico, ele é um entendedor, ele é um apreciador conservador de ópera. Isso não quer dizer que... Não existem entendedores, você entende? Existem criadores e existem pessoas que querem transformar e reinterpretar aquilo para uma outra mídia que é o jornal, que é a crítica. Eu só acredito em crítica como um acessório sensorial em relação ao que está acontecendo. Em relação a isso, ele não se contradisse, ele fez o que sentiu. Ele não gostou. O não gostar dele [...] não gosto desse não gostar dele. Mas cada um tem o direito de se expressar como pode, e é isso. Quer dizer, o que é que eu acho como economista? Eu não sei, mas pergunte ao Brasil de hoje se você acha que isso que está acontecendo... Se o Brasil de hoje está no que está por causa do governo de hoje? Acho que não, não é?
Antônio Carlos Ferreira: Por falar nos governos anteriores, você falou também do The Living Theater e, evidentemente, a gente se lembra do que eles passaram quando estiveram aqui. Foram presos, teve mil problemas, tudo. E, ao mesmo tempo, eu me lembro de uma outra face da sua biografia, que eu não coloquei aqui, mas foi na primeira vez que, inclusive, eu o conheci. Eu conheci você a cerca de onze anos atrás, eu era diretor de um jornal e você surgiu lá como representante da Anistia Internacional [organização não governamental que atua na área de direitos humanos]. Você veio aqui, inclusive, fazer levantamentos sobre torturas e etc. Como é esse seu passado? Esse seu passado como membro da Anistia Internacional aqui no Brasil, em um país que, na época, tinha tortura, censura à imprensa, no nosso caso, no semanário que eu dirigia, era censura à imprensa.
Gerald Thomas: Bom, na época, eu trabalhava na Anistia, mas na sede que é chamada de Secretariado Internacional, que é em Londres, não é? Eu estava um pouco livre da tortura. Vim aqui algumas vezes levantar dados, mas acho que até meio incógnito, na época. Eu não sei, por uma...
Antônio Carlos Ferreira: É, tudo naquela época era meio incógnito.
Gerald Thomas: Meio incógnito, é. Passava pelos Lusíadas, não é? Ou pelas receitas culinárias [refere-se às notícias de jornais durante o regime militar que, quando censuradas, davam lugar a receitas e trechos de obras como Os Lusíadas, por exemplo, com forma de protesto]. Eu me sentia dentro de um vatapá, às vezes. Era uma coisa engraçada. Eu estava fazendo teatro lá e estava pintando, e, um dia eu abro o jornal que eu lia, que era The Guardian, que é um jornal meio liberal na Inglaterra e vejo uma enorme reportagem sobre desaparecidos no Brasil. Eu já não estava em contato com o Brasil há muitos anos nessa época. E fiquei absolutamente assustado com aquilo, porque eu achava... Eu tinha noção de que estava acontecendo isso, mas o Chile era a grande coisa na época, não é? Setenta e cinco mil executados em um estádio de futebol. Pinochet, aquela ditadura horrível. Esse era o parâmetro que se tinha no mundo. Então, a América Latina estava mais ou menos coberta pelo... Pela preocupação da Europa e dos Estados Unidos em relação a essa vítima chamada Chile. Resolvi ligar para a Anistia Internacional e perguntar se o departamento que lidava com o Brasil estava munido das pessoas necessárias e disse, já no telefone, que falava perfeitamente bem o português, que era um pouco brasileiro e que podia colaborar. No dia seguinte, eu estava no telex e não saí de lá. Fiquei quatro anos dentro da Anistia Internacional. Foi um dos piores governos aqui, era um... Desaparecimento... diariamente [...] Convergência Socialista [grupo de esquerda da época que, mais tarde, militou dentro do PT e, posteriormente, originou o Partido Socialista dos Trabalhadores Unidos (PSTU)], pessoas que [...] enfim, grupos inteiros desapareciam e reapareciam. A sede do PCdoB [Partido Comunista do Brasil] foi invadida e pessoas como Pedro Pomar [(1913-1976) fundador do PCdoB e redator-chefe do jornal A Classe Operária. Foi executado pela repressão no dia 16 de dezembro de 1976], foram assassinadas. Elza Pomerati ou Monserati, eu não me lembro...
Antônio Carlos Ferreira: Monnerat.
Gerald Thomas: Monnerat [militante comunista e guerrilheira no Araguai]. Rholine Sonde Cavalcante em Itamaracá e Carlos Alberto... Olha, os nomes voltam de repente. E eu, eu senti...
Antônio Carlos Ferreira: E você fazendo os relatórios.
Gerald Thomas: É, entrando em contato com o Superior Tribunal Militar, almirante Hélio Leite, na época. Escrevendo por telex direto para ele e com todas as oitenta. Na época, eram oitenta e nove centrais da Anistia no mundo mobilizando pessoas para que mandassem telegramas pedindo a soltura urgente dessa pessoa. Uma coisa que se chamava Campaign for the Abolition of Torture (CAT) - Campanha pela Abolição da Tortura - que tinha que ser relâmpago. Você acaba não saindo da Anistia, vinte e quatro horas do seu dia são dedicadas àquilo. Eu percebi que era a única pessoa, então, que estava lidando com o Brasil efetivamente. E descobri que, como essa época era muito repressiva, existiam muito poucas... Existia muito pouca noção, por exemplo, de pessoas aqui em São Paulo, em relação ao que estava acontecendo em Ponta Porã, Mato Grosso e Ceará. E eu comecei a centralizar informações que, mais tarde, de uma forma muito legal, virou o Comitê Brasileiro da Anistia (CBA) - Ira Maia e Eli [Borges], Raimundo Moreira no Rio. E enfim... São Paulo também, com o Cardeal [Paulo Evaristo] Arns. Aqui em São Paulo, o jornal Movimento, enfim, tudo isso levou a um congresso de exilados e banidos brasileiros em Roma em 1979, o que, por acaso, casualmente, foi coincidir com a promulgação da [Lei da] Anistia em 1979. E meu trabalho acabou e eu voltei para o teatro.
Antônio Carlos Ferreira: Nesse tempo todo, você ficou fora do teatro.
Gerald Thomas: Não. Eu, na medida do possível, eu fazia teatro também. Mas, às vezes, eu ficava, literalmente, vinte e quatro horas dentro da Anistia Internacional porque, na medida em que ia saindo um telex, eu pelo rádio amador, recebia a notícia de que uma outra pessoa tinha sido presa ou espancada. Vladimir Herzog que morria, Manoel Fiel Filho [metalúrgico] que morria também. E...
Mario Prata: Gerald. Eu queria te fazer uma pergunta sobre um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete brasileiros. Você quer os sete de uma vez, ou...
Gerald Thomas: ...aquela chamada metralhadora!
Antônio Carlos Ferreira: Um a um, bem curtinho.
Mario Prata: Não. Bem curtinho. Chacrinha [(1916-1988) apresentador de programas de auditório para a televisão, criador de um estilo único e inconfundível]?
Gerald Thomas: Eu desconheço.Sei da fama que ele tem, vi um programa de televisão, mas não convivi os anos em que o Chacrinha foi extremamente importante. Eu só sei disso através de textos do Caetano, do Jorge Mautner, do Gilberto Gil, do Hélio Oiticica.
Mario Prata: Está legal. Está. Essa aqui vai ser difícil você falar pouco, mas, em todo o caso. José Celso [(1937-), ator e dramaturgo, criador do Teatro Oficina de São Paulo]?
Gerald Thomas: Eu acho o José Celso, uma pessoa que cabe perfeitamente dentro deste país, e infelizmente, cobram dele a realização teatral. Acho que cabe neste país uma pessoa que só fala desembestadamente e revoltadamente contra coisas e a favor de outras. Como o Glauber nos últimos anos da vida dele. Eu acho que cabe perfeitamente isso.
Mario Prata: Xuxa [apresentadora de programa infantil].
Gerald Thomas: silêncio...
Mario Prata: Nunca viu?
Gerald Thomas: Até já passei os olhos, mas, te confesso que não acho nada. Acho que... sempre brinco assim: se a cultura brasileira desaparecer, não adianta nada continuar a Xuxa, não é?
Mario Prata: Nelson Rodrigues [(1912-1980) importante e polêmico dramaturgo, jornalista e escritor. Dentre suas obras, pode-se destacar Vestido de noiva, Engraçadinha, Perdoa-me por me traíres, encenadas por diversas gerações de atores brasileiros].
Gerald Thomas: É um dos maiores gênios da dramaturgia do mundo e, por isso, vou montar os textos dele em Nova Iorque, é um dos...
Mario Prata: Vai montar o quê, Gerald?
Gerald Thomas: Eu vou montar Dorotéia, Anjo negro, Senhora dos afogados e Álbum de família; que são as quatro peças definidas pelo Sábato Magaldi [crítico teatral] como místicas.
Mario Prata: Caetano Veloso [compositor e cantor. Precursor do movimento Tropicalista]
Gerald Thomas: Um absoluto gênio.
Mario Prata: Sarney [presidente do Brasil entre 1985 e 1989].
Gerald Thomas: O oposto do Caetano Veloso.
Mario Prata: Obrigado.
Antônio Carlos Ferreira: Então, mais um: Philip Glass, com quem você está trabalhando...
Gerald Thomas: É, eu trabalho...
Antônio Carlos Ferreira: ...que fez a música da trilogia.
Gerald Thomas: É, eu trabalho com o Philip. Eu tenho uma relação muito de perto com o Philip. É muito difícil eu vê-lo como figura, é uma questão de dividir apartamento, casa e trabalho em conjunto, mas se eu estivesse um pouco do lado de fora disso, na terceira pessoa, o Philip é o maior revolucionário da música moderna, na medida em que Stockhausen [(1928-2007) compositor e um dos fundadores da música eletrônica] e John Cage [(1912-1992) compositor de percussão. Buscava sempre experiências sonoras diversas. Inventou, por exemplo, o piano preprado onde se introduz objetos entre as cordas do instrumento, como pedaços de papel, madeira, metal etc para que produzissem efeitos sonoros diversos. É considerado o criador do happening. Uma de suas peças mais conhecidas é 4'33' (1952), com quatro minutos e 33 segundos de silêncio] não existem, nem nunca existiram de verdade. São músicas que ninguém consegue ouvir. São conceitualmente, importantíssimos. Colocar um microfone ligado dentro da água, ou três cachorros passeando em cima do piano, fazem um comentário vivo e importante, crítico. Aliás, é o que eu tento fazer em teatro, entende? Essas pessoas, um comentário auto-incestuado, autofágico com a música em si. O Philip conseguiu o melhor dos dois mundos, conseguiu ser absolutamente emotivo e criar a revolução estética da música ao mesmo tempo.
Kleber de Almeida: Gerald, o seu trabalho como ilustrador em jornal, tem alguma importância em sua vida?
Gerald Thomas: É o que me sustentava durante muitos anos.
Kleber de Almeida: Só para sustentar, não é?
Gerald Thomas: É, porque jornal é uma coisa que está enrolando peixe no dia seguinte. Eu vi os meus desenhos, várias vezes, enrolando peixes no dia seguinte.
Antônio Carlos Ferreira: Não diga isso, porque todos nós aqui sobrevivemos graças a esse papel, que embrulha peixe no dia seguinte.
Kleber de Almeida: O jornal também que é interessante...
Gerald Thomas: É o New York Times
Kleber de Almeida: Também não estaria embrulhando peixe com um jornal qualquer.
[risos]
Gerald Thomas: A melhor experiência, a melhor coisa de ter trabalhado para um jornal foi participar do news room [redação] , diariamente e ver como é que funciona aquela loucura toda. Um jornal real, quer dizer, que tem correspondentes no meio de Singapura ou no meio de Jacarta, ligando direto, relatando os fatos; não transmitindo Reuters, UPI [United Press Internacional], Agence France Press essas coisas todas. É o "caoticismo" das oito horas da noite, chamado deadline do hold press [segurem as prensas], do stop press [parem as prensas], você saber que uma primeira página é feita em cinco minutos e ela pode mudar se o Reagan morrer [presidente dos Estados Unidos no ano desta entrevista, 1988] ou o Gorbatchev morrer [substituiu Andrei Gromyko na presidência da União Soviética em 1988]. É uma coisa fascinante e eu tentava, dentro disso tudo, fazer com que uma sombrinha saísse bonitinha e que fosse retícula e não fosse traço e brigava na sala de velox [sala de montagem da ilustração para o jornal; e o velox, possivelmente, se tratava de um tipo de papel fotográfico]. Mas foi fascinante nesse sentido, só que depois de cinco anos cansa, cansa profundamente.
Vivien Lando: Gerald...
Antônio Carlos Ferreira: Queria o que Vivien?
Vivien Lando: Eu queria te acoplar três perguntas aqui. A primeira é a seguinte: você quer ser célebre?
Gerald Thomas: Eu já sou célebre.
Vivien Lando: Você é célebre?
Gerald Thomas: Ora! Para quem essas pessoas todas estão olhando?
Vivien Lando: Vai ver que é...
Gerald Thomas: São para o... Agora, lhe digo mais, devem ser para contradição de cor que estão olhando.
[mostra o isqueiro amarelo]
Vivien Lando: É para o amarelo.
Antônio Carlos Ferreira: Esses são os quinze minutos amarelos na obra dele. Quinze segundos
Gerald Thomas: Pronto. Já acabou. Já acabou.
[interrompido]
Gerald Thomas: ...o engraçado é que... Aí falam de modéstia. Você não é modesto, você é narcisístico, você é megalomaníaco. Eu sou realista “pô”. Quer dizer, que absurdo, não é? E, se isso aqui não é celebridade, o que é?
Vivien Lando: Acho que é fama.
Gerald Thomas: É só o reconhecimento de um fato. Se eu gosto disso? Não, eu não participo. Você nunca vai me ver em restaurantes públicos. Você nunca vai me ver sendo bajulado por ninguém. Tenho uma vida profundamente exclusivista e detesto carinho, nesse sentido.
Vivien Lando: É. Não. É que o Caetano falou outro dia no programa, que ele sabia que ia ser famoso, mas que ele queria ser célebre. Quer dizer, tem uma diferença estabelecida aí.
Gerald Thomas: Semiológica, disso aí... O que Foucault diria de célebre? [o filósofo Michel Foucault (1926-1985) foi autor de várias obras: Vigiar e Punir (1975), História da loucura (1978), História da sexualidade (1985), Arqueologia do Saber (1985). Em As palavras e as coisas - uma arqueologia das ciências humanas (1966), livro que o tornou conhecido em todo mundo, explora os atravessamentos entre linguagem, história e cultura]. Bom, ele diria, em primeiro lugar, que a palavra lembra cérebro, que quer dizer inteligência, o que eu também sou profundamente. Não sei... Tudo isso é a posteriori, não é? Eu não vou ter a menor importância daqui a vinte anos.
Vivien Lando: Você tem certeza disso?
Gerald Thomas: Eu tenho absoluta certeza disso.
Aimar Labaki: Dentro dessa pergunta. Quando você respondeu para o Kleber, você citou Beckett e citou Duchamp. E no Processo, você entra e ilumina a sua paródia de Brecht. Você acha que a tua obra possa vir a ter a mesma importância? Você se leva tão a sério assim?
Gerald Thomas: Não. Eu não... Eu tenho perfeita noção da mediocridade da minha obra perante a obra dessas pessoas. Total, quer dizer, não adianta mentir sobre isso...
Antônio Carlos Ferreira: Aliás, Gerald, tem uma pessoa aqui na platéia que me passou uma pergunta, por escrito, dizendo assim: Olha, você criticou a condição de famosos brasileiros da General Motors, da Volkswagen, você fuma Gitane, você acha tudo ruim? Então, ele pergunta se quando você olha para o espelho, você acha algum defeito em você mesmo.
Gerald Thomas: Todos. Eu me acho feíssimo, por exemplo, mas me acho profundamente interessante, ao mesmo tempo. Nada é monolítico, certo? Eu só fumo Gitane, porque, não é por causa da marca, mas é porque o fumo é um fumo negro. Inadulterado. Aí eu vou te dar uma lição, dizendo assim, as companhias como a British American Tobaco (BAT), Souza Cruz, essas coisas, fabricam cigarros que são banhados em mil e trezentos produtos químicos e eu, realmente, não quero me sujeitar a esse tipo de absurdo. E esse cigarro vem do Nordeste [mostra a caixa]. O fumo vem do Nordeste do Brasil; Bahia, Pernambuco, mas é industrializado na França, e quando eu viajo, eu trago. Só isso.
Vivien Lando: Deixa-me acoplar as outras duas, aí. A maior crítica que eu ouvi de todos os seus espetáculos e que tenho como crítica também, é que falta uma coisa chamada emoção, que pode ou não ser dada por um recurso estético, está certo? Às vezes funciona, às vezes não. Na maioria das vezes, as peças que eu vi - foram quatro - eu não senti a emoção. Eu queria saber como você vê isso? Se você inclui nisso aquela coisa do ator, que você falou, “stanislawisquiana”, etc e tal...
Gerald Thomas: Se você quiser ter emoção, mate um membro da sua família. É a melhor maneira de você ter emoção. Ou atropele um desconhecido qualquer. Quando você saltar do carro, a tua perna vai estar tremendo de emoção. Ou, então, vai ver Rambo, é emocionante, isso é inegável. Vai ver filmes que primam por isso. Eu lido com uma emoção...
Vivien Lando: Só que quando você monta Nelson Rodrigues... você está montando o dramaturgo mais emocionante brasileiro, pelo menos.
Gerald Thomas: Emocionante. A palavra emoção passa pelo lado mais subjetivo, mais descaracterizado da nossa personalidade como condicionador de julgamentos e de propósitos. Como você pode classificar emoção? Uma pessoa pode delirar com uma linha reta que encontra uma curva lá em cima. Eu, por exemplo, deliro com isso.
Vivien Lando: Você se emociona com seus espetáculos?
Gerald Thomas: Eu? Não. Porque eu nunca vejo os meus espetáculos. Eu os comando da coxia. Então, não tenho a menor idéia do que está acontecendo, de frente, não é? Depois do ensaio geral eu fico lá atrás e fico até o último dia lá atrás.
Vivien Lando: E você pretende que eles emocionem?
Gerald Thomas: Volta aquela... Essa pergunta é acoplada às perguntas que iniciaram esse debate. Não quero nem saber. Se emocionam, maravilha. Se não emocionam, mais maravilha ainda. Existe uma emoção...
Vivien Lando: Gerald. E agora...
Gerald Thomas: Existe uma emoção, existe um ponto onde a razão encontra com a emoção. Essa talvez seja a mais brilhante e inteligente forma de se sentir uma emoção. Chorar porque alguém morreu...
Vivien Lando: Não é dessa que eu estou falando.
Gerald Thomas: Esse tipo de emoção não me fala aos testículos.
Vivien Lando: Agora, só para encerrar aqui. O que é que você acha que o bom diretor, principalmente no Brasil, precisa ter como características pessoais.
Gerald Thomas: Eu já não acredito em diretor. Eu acredito como uma pessoa que faz uma obra. Eu acredito em um pintor, criador, obcecado, visionário. Dirigir uma peça e não fazer nada, para mim, e ser parasita, são a mesma coisa. Contratar um figurinista, contratar um cenógrafo, contratar um iluminador e mandar os atores irem para lá e para cá, pegar um queijo e uma outra pessoa, para mim não quer dizer absolutamente nada, é tão válido quanto um diretor de trânsito, ou menos ainda, porque um diretor de trânsito lida com coisas reais.
Antônio Carlos Ferreira: Gerald, eu queria que você respondesse a última pergunta do programa, da Maria Amélia, por favor.
Maria Amélia Rocha Lopes: Rapidinho. Você é filho de mãe inglesa, pai alemão e é carioca. Eu queria saber se você vai à praia, já viu desfile de escola de samba e foi ao futebol no Maracanã?
Gerald Thomas: Não vou à praia, porque estou morando em São Paulo.
Maria Amélia Rocha Lopes: Não ri. Você está no Rio.
Gerald Thomas: Se você me indicar uma praia em São Paulo, eu irei nela. Quando eu estou no Rio, eu vou à praia. Eu acho que o desfile, o samba enredo e a proposta visual da Vila Isabel [escola de samba carioca] esse ano foi uma das coisas mais... Qual era a palavra?
Maria Amélia Rocha Lopes: Emocionantes.
Gerald Thomas: Emocionantes. Pela inteligência...
Maria Amélia Rocha Lopes: A emoção cabe na escola de samba, mas não no teatro.
Gerald Thomas: Pela inteligência da opção das pessoas que fizeram esse desfile, pela inteligência. Veja, onde a emoção encontra com a razão? Não era aquela coisa, seios de fora só por ter com brilhantina, aquela bobagem absoluta. A Vila Isabel foi uma coisa emocionante. Se você pegar um fiapo de couro comum, ele não é emocionante, não é? Contextualizado ou descontextualizado, como a Vila Isabel estava, foi absolutamente emocionante. É... Acho o futebol uma das coisas mais fantásticas do mundo. Só não participo da febre dele porque não torço por ninguém. Acho umas jogadas absolutamente sensuais e musicais. Acho uma verdadeira ópera, para dizer a verdade.
Antônio Carlos Ferreira: Eu queria agradecer a presença de Gerald Thomas aqui no Roda Viva. Queria agradecer também a presença dos críticos e jornalistas que estiveram aqui fazendo perguntas e ao público presente. E o programa Roda Viva volta na próxima segunda-feira, as nove e vinte e cinco da noite. Uma boa noite a todos.
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quarta-feira, 18 de junho de 2008
Entrevista com Bioy Casares no Roda Viva
Adolfo Bioy Casares
28/8/1995
Fragmentos da vida e obra de um dos ícones da literatura argentina, morto em 1999, registrados em respostas objetivas, com críticas aos escritores vaidosos e enaltecimento da boa literatura
Matinas Suzuki Jr.: Boa noite. Ele é o mais importante escritor argentino em atividade e foi companheiro de geração de Jorge Luis Borges. Sobre ele, que está com 80 anos, outro grande escritor argentino, Júlio Cortázar escreveu: “Queria ser ele, sempre o admirei como escritor e o estimei como pessoa”. No centro do Roda Viva está Adolfo Bioy Casares, autor, entre outros, do importante livro A invenção de Morel. Para entrevistar o escritor Adolfo Bioy Casares convidamos Jorge Schwartz, que é professor de literatura na Universidade de São Paulo; José Geraldo Couto, que é repórter da Folha de S. Paulo; Augusto Massi, que é professor de literatura na Universidade de São Paulo; Luciana Villas-Boas, diretora editorial da editora Record; Maria Cristina Poli, do programa Vitrine, da Rede Cultura; Rinaldo Gama, sub-editor da revista Veja e Janer Cristaldo, jornalista, escritor e tradutor de Bioy Casares. O Roda Viva é transmitido em outras 30 emissoras para 13 estados. Como este programa foi gravado não estamos recebendo as perguntas por telefone ou por fax. Nós lembramos que o escritor Bioy Casares está no Brasil a convite do Instituto Cultural Brasil-Argentina de São Paulo. Boa noite, Bioy Casares.
Bioy Casares: Boa noite.
Matinas Suzuki Jr.: Desde 1960 o senhor não vinha para o Brasil. O que mudou no Brasil, o que o senhor viu de diferente, está gostando de estar aqui
Bioy Casares: Tenho a impressão de que o progresso do Brasil é irrefreável e que, antes, São Paulo já me parecia uma cidade imensa e, agora, é infinitamente maior que antes. Mas o que sempre me importou no Brasil, mais que cidades ou territórios, são as pessoas, que são muito amigas. Tanto é que hoje estava conversando que nos invernos gostaria de passar 2 meses
Matinas Suzuki Jr.: Um inverno quente como esse?
Bioy Casares: Tão agradável quanto esse. Não diria quente, mas muito agradável. Uma temperatura perfeita. Porém eu não viria pela temperatura, e sim pelas pessoas que encontro aqui.
Matinas Suzuki Jr.: Senhor Bioy Casares, Brasil e Argentina sempre foram próximos-distantes. Ultimamente, tem havido uma aproximação, uma tentativa de aproximação política e econômica através do Mercosul [Mercado Comum do Sul, acordo internacional de livre comércio entre Brasil, Argentina, Venezuela, Paraguai e Uruguai]. Nesses anos todos o senhor tem sentido a imagem do Brasil mudar na Argentina? Como o senhor tem visto a imagem do Brasil na Argentina em todos esses anos?
Bioy Casares: Creio que a rivalidade ocorria de modo inevitável, porque Brasil e Argentina são os maiores países da América do Sul. De qualquer modo, parece que as pessoas na Argentina admiram agora o Brasil. Por minha experiência pessoal, todas as pessoas me diziam que invejavam a minha sorte de vir para cá, pois eu viria para um grande país e que me receberiam bem. E assim foi.
Matinas Suzuki Jr.: O senhor escreveu um livro bastante interessante, chamado O dicionário do argentino esquisito. Esse livro, se não me engano, é dos anos 70, e nele há um verbete que diz o seguinte: “Brasileño – o argentino que sempre havia dito brasileiro e que de um dia para o outro disse brasileño. Esse dia não faz muito tempo. Na minha juventude, costumávamos dizer brasileiro sem deixar nos convencer do café à brasileña, que abundavam em nossa cidade. Digo aparentemente, porque em definitivo a cafeteria purista saiu e o argentino passou a adotar o brasileño?" Que diferença o senhor vê entre o brasileiro do seu tempo e o brasileño de agora?
Bioy Casares: É muito mais simpática a palavra brasileiro, como sempre foi, e me impressionou como, de um dia para outro, todos – como se fossem uma só pessoa–, passaram a dizer brasileños. Me impressionou que todos os argentinos, unanimemente, não só uma pessoa, já não diziam brasileiros, mas sim brasileños. Isso me pareceu uma coisa um pouco ridícula e absurda.
Jorge Schwartz: Parece que o Brasil aparece um pouco na narrativa do romance O sueño de los hérois [1954], que tem o café “Os meninos”.
Bioy Casares: Ah, sim. Não me recordava disso.
Jorge Schwartz: Está escrito em português, não é Los meninos. Você escreveu um diário sobre o Brasil, que foi um texto meio clandestino, parece, não teve uma edição comercial?
Bioy Casares: Era uma edição particular de 300 exemplares. Fui dando aos meus amigos e não tenho mais. Farei uma nova edição quando voltar a Buenos Aires e darei a um editor.
Matinas Suzuki Jr.: Nesse livro em que o senhor relata sua viagem ao Brasil, o senhor fala de uma Ofélia, que teria desaparecido. Como que foi o encontro com essa Ofélia?
Bioy Casares: Sim. Eu estava num navio que parou no Rio e, pela escada, vi uma moça muito linda. Depois eu soube que se chamava Ofélia. Vi também umas índias que foram amigas minhas e pelas quais também me enamorei. No navio, um dia, Ofélia passou ao meu lado e caiu desmaiada. Foi socorrida e, depois, me disseram que ela desmaiara de amor por mim [risos]. Em Paris, saímos com ela um pouco e nos sentíamos bem juntos. Depois, vim ao Rio, eu a procurei, porém, não encontrei. Parecia que era mas, quando via o rosto, não era a Ofélia. Quando cheguei a Buenos Aires, recebi uma carta dela que dizia: “Velho atrevido, você nunca me verá de novo.” Bem, ela me castigou.
Maria Cristina Poli: O senhor ainda pensa nela?
Bioy Casares: Sim, claro, mas faz muitos anos e esqueci como ela era. Mas era encantadora.
Maria Cristina Poli: Nesse livro que o senhor escreveu, pelo que consta, o senhor fez algumas anotações e mais tarde decidiu escrever o livro. Como que é o seu processo de armazenar idéias para depois desenvolvê-las?
Bioy Casares: Eu acho que é o processo de todos os escritores. Agora, por prudência, escrevo dia-a-dia o que vivo aqui. Mas daquela vez não. Quando cheguei a Buenos Aires, a minha experiência no Rio, em Brasília, estava começando a existir. Então,
Janer Cristaldo: Senhor Bioy Casares, eu tive a honra de traduzir o Crônicas de Bustos Domecq [escrito em parceria com Borges, em 1967]. Inclusive, tive que viajar para a Argentina para descobrir o significado de uma palavra: blicanceperos.
Bioy Casares: É o nome que se dava a um móvel que servia de sofá de dia e de cama à noite. Quando você disse, por um momento, não me lembrava, não sabia do que se tratava, se era um animal ou o quê.
Janer Cristaldo: Certo. Tinha o nome dos vários fabricantes das primeiras sílabas: bli-can-ce-pe-ros. Eu viajei à Argentina por uma palavra.
Bioy Casares: Me parece que fez muito bem.
Janer Cristaldo: Eu gostaria de fazer duas perguntas sobre a sua visão da literatura argentina. Eu vi, na entrevista com o José Geraldo Couto, uma opinião sua sobre a obra do Roberto Arlt [ (1900-1942), novelista, contista, dramaturgo e jornalista argentino], que teve traduzido no Brasil Os sete loucos [Los siete locos]. Eu tenho um especial apreço por esse livro, porque eu acho ele muito premonitório. Nós tivemos o personagem, o astrólogo, que depois talvez tenha se realizado na história argentina como El brujo, [José] López Rega, me parece, e tem uma história… Esse livro foi escrito em 1929, sobre um terrorista que pretende conquistar o poder através de um gás, o gás hidrogênio, e tivemos isso agora no Japão. E o senhor, no entanto, disse que gosta de Aguas fuertes porteñas [seção de contos publicadas por Arlt no periódico argentino El Mundo, em 1928], gosta de El juguete rabioso [novela publicada em 1925], mas não gosta do Os sete loucos. Gostaria de ver como o senhor situa Os sete loucos.
Bioy Casares: Não posso falar muito de Os sete loucos, pois o li faz tempo. Os últimos livros dele, que são uma literatura fantástica, me interessam menos. Você dirá: “Que raro, ele não gosta de literatura fantástica.” Sim, não gosto muito. A minha imaginação funciona assim. Meu ideal seria escrever um romance sem nada fantástico, mas, até agora, não consegui.
Maria Cristina Poli: Como é que o senhor define literatura fantástica, narrativa fantástica?
Bioy Casares: Uma narrativa em que o fato se produz magicamente.
Rinaldo Gama: Eu quero aproveitar a história da Ofélia, pessoa brasileira que o senhor conheceu e teve esse envolvimento. Vou fazer uma pergunta em relação ao amor na sua obra. O senhor disse que aprendeu com o Borges a evitar ou a procurar evitar uma literatura subjetiva, sentimental, ou seja, não racional ou não rigorosa, não vigorosa. Borges tinha uma certa indisposição para com o subjetivismo de qualquer natureza. Fazia algo mais racional e isso, de certa maneira, ele transmitiu ao senhor. O senhor continuou produzindo uma obra pautada pelo vigor e pela racionalidade, porém, o amor, como a gente sabe, tem muito de racional, tem muito de instintivo e assim por diante. Eu queria perguntar como fica essa sua predisposição para uma obra mais cerebral, ao mesmo tempo que há uma importância sobre o amor na sua literatura? O senhor disse que chega a ser até mais importante do que a própria dimensão fantástica. O senhor passou a vida, a carreira literária, se esforçando para cerebralizar o sentimento que seria o amor? É isso? A gente poderia entender a sua literatura um pouco sob esse viés, como uma tentativa de segurar, vamos dizer, o que seria incontrolável, que seria irracional, não cerebral? No caso, o amor, que é tão importante na sua literatura, como é que o senhor conseguiu controlar isso, o sentimento amor e a preocupação em ser cerebral?
Bioy Casares: Bem, acho que não se pode confundir a vida com a literatura. Parece-me que, ao se falar demais de amor na literatura, se chega ao sentimentalismo, o que seria um defeito
Luciana Villas-Boas: O senhor é de 1914, ano em que, para muitos, começou o século 20. Agora, perto do final desse século, como é que o senhor analisa o percurso da literatura? Em particular, eu queria saber como é que o senhor vê e vivencia a crise literária diante do advento e da força das novas tecnologias visuais?
Bioy Casares: São perguntas para ser feitas a um sociólogo, não a um simples escritor de romances e contos [risos].
Luciana Villas-Boas: O senhor escreve à mão em uma época em que quase todas as pessoas escrevem no computador.
Bioy Casares: Não faço por rebeldia [risos], mas porque é mais cômodo escrever à mão. Continuo escrevendo à mão e vivo tendo lumbagos [dores reumáticas na região lombar]. Hoje, por sorte, não tenho. E escrever à maquina me dava dor na cintura. A minha máquina é uma Pelican de tinta e assim vou escrever sempre, em cadernos de folhas presas, para obrigar-me a escrever o melhor possível desde o começo, pois, arrancando-as, pode-se escrever de qualquer modo. Assim escrevo de um modo e depois corrijo tudo. Escrevo muitíssimas vezes.
Luciana Villas-Boas: O senhor não sente a literatura ameaçada?
Bioy Casares: Creio que sempre esteve ameaçada. O livro sempre esteve ameaçado, mas o livro sobreviveu até agora e continuará vivendo. Veja que o livro é algo que nos obriga a algo incômodo: temos que deixar de falar com os amigos e nos afastamos para ler. No entanto, se faz isso com toda a naturalidade e espero que se continue fazendo.
Matinas Suzuki Jr.: Vamos dar um minuto para o Bioy poder beber a sua aguinha, tranqüilamente, está bom?
Bioy Casares: Não. Não estou cansado. Quero que me façam perguntas.
Jorge Schwartz: Bioy, retomando a última pergunta, parece que você é avesso à tecnologia, em Memórias [1994], você se declara contra o fax e contra o computador. Agora, surpreendentemente, seu romance magistral A invenção de Morel [1940] é um precursor da holografia, de técnicas revolucionárias que apareceriam muito mais tarde do que a realidade virtual, quando ninguém falava nisso, no fim dos anos 30. Então, como o senhor explica que uma imaginação tão extraordinária, tecnológica, que vai pela ficção científica, seja tão avessa à tecnologia?
Bioy Casares: Eu não tenho tanto medo da tecnologia. Meu agente literário me presenteou com um fax e eu o uso com freqüência. Mas creio que, se pusesse tecnologia em minha literatura, ela seria muito desagradável. Uma senhora americana me escreveu uma carta, falando muito de realidade virtual. Não entendo nada disso. Espero, com o tempo, entender, mas, até agora, escrevi meus livros sem entender nada disso.
Augusto Massi: O senhor sempre se refere a uma cena iniciática, emblemática, da sua descoberta, vamos dizer assim, do mundo imaginário. É a cena que o senhor entra no quarto da sua mãe e encontra o espelho de 3 faces. Eu gostaria que o senhor falasse um pouco sobre essa cena, como ela ocorreu e o impacto que ela teve para a sua literatura.
Bioy Casares: Bem, é um espelho de 3 faces e, nesse espelho, se via a realidade do quarto e eu mesmo em uma perspectiva infinita, repetida milhares de vezes. Foi o primeiro fato fantástico que aconteceu em minha vida e que, seguramente, me incitou a escrever sobre as coisas que se parecessem com esse reflexo tão maravilhoso. Borges disse que tenho horror a espelhos. Nada mais falso que isso. Sempre me senti atraído por eles, gosto até daquele verde em volta deles. Parecem-me lindíssimos.
Matinas Suzuki Jr.: José Geraldo, por favor.
José Geraldo Couto: Voltando um pouco ao tema do fantástico, me parece que o senhor tem uma relação ao mesmo tempo de fascínio e de horror com relação à tecnologia. Nos seus contos, nos seus relatos, geralmente os experimentos científicos acabam tendo resultados desastrosos e até monstruosos. Na própria Invenção de Morel, em Plan de evasión [1945] e em vários contos do livro Historias desaforadas [1986]. O que eu queria perguntar para o senhor é o seguinte: hoje, a tecnologia nos apresenta novos prodígios e novas promessas de felicidade, como são as que aparecem nos seus contos. Eu gostaria de saber como o senhor se sente diante dessas novas promessas, desses novos prodígios tecnológicos e se o senhor se sente esperançoso, cético, assombrado ou indiferente? É isso.
Bioy Casares: Creio bastante no progresso e espero que essas promessas se cumpram. Ao menos, essas promessas nos animam. Depois, me desculpem, não há que confundir a vida com a literatura. Parece-me que, quando encontro um final triste em um romance para o qual eu não encontrava final, fico contentíssimo e, nesse dia, como com mais fome que nunca. Ainda que o final seja triste, porque é o final que convém ao meu livro.
Maria Cristina Poli: Apesar da tecnologia, o senhor gostaria de viver 100 anos mais?
Bioy Casares: Claro. Gostaria de viver. Parece-me pouco 100 anos a mais.
Maria Cristina Poli: O senhor faria o quê? Gostaria de fazer o quê?
Bioy Casares: Não creio que, para os outros, seria muito útil que eu vivesse 100 anos mais. Mas, para mim, sim, continuaria vivendo, vendo a luz do novo dia todos os dias. A tristeza da morte é que, no dia seguinte, não se verá a luz do dia. Aconteceria tudo de novo: vocês me fazendo perguntas e…
Janer Cristaldo: Bom, Bioy Casares, o senhor deve estar lembrado, no livro Crônicas de Bustos Domecq, do encontro chamado "Ser e perceber", em que o senhor manifesta um grande ceticismo em relação a duas realidades muito próximas à nossa: televisão e futebol. Não sei se o senhor sabe, mas quem está coordenando aqui é um homem que acredita no futebol, é analista de futebol, o Matinas Suzuki. Bom, então, nesse conto aqui os personagens dizem que o futebol é uma realidade que não existe mais. Existe puramente a realidade televisiva do futebol. Então, diz um personagem: “Não há escore e nem times e nem partidas. Os estádios são ruínas caídas
Bioy Casares: Se eu escrevesse um conto dizendo que não era uma realidade televisiva, o conto seria tonto, não teríamos um tema. Inventamos isso por ser absurdo. O que havia de graça nisso é que estavam fazendo algo que ainda não se havia imaginado.
Matinas Suzuki Jr.: Mas o senhor foi um esportista na juventude?
Bioy Casares: Eu jogava rugbi e joguei tênis até, relativamente, há poucos anos, todos os dias, afora as segundas, porque o clube fechava. Não joguei pólo, como tantos argentinos. Lutei boxe também. Tenho uma boa esquerda.
Matinas Suzuki Jr: E o senhor não acompanha mais, nem o futebol, nem o boxe, não assiste mais aos espetáculos esportivos?
Bioy Casares: O esporte como espetáculo nunca me interessou muito. Vi partidas de tênis porque me importava muito o tênis, mas o futebol, que me incendiava quando criança, não me interessa muito. Porém, não me parece uma calamidade que deva ser suprimida.
Augusto Massi: O senhor, recentemente, deu uma declaração de que estaria escrevendo uma obra sobre a sua amizade com o Jorge Luis Borges. O senhor realmente está escrevendo?
Bioy Casares: Quisera escrever isso. Quem me dera. Escrevi num livro meu que se chama La otra aventura [1968], um texto que se chama “Livros e amizades”, em que falo de minha amizade com Borges. É tudo que escrevi até agora. Não sei se um dia poderei escrever o que sinto. É uma dívida que tenho com ele. Gostaria de fazê-lo.
Matinas Suzuki Jr.: O senhor já deve ter falado isso algumas centenas ou milhares de vezes, mas eu gostaria que o senhor repetisse para o telespectador brasileiro. Como foi o encontro do senhor com o Jorge Luis Borges e como foi a amizade?
Bioy Casares: Bem, Victoria Ocampo [(1890-1979), escritora argentina], minha cunhada, costumava receber personalidades estrangeiras, escritores estrangeiros. Como estou de visita aqui, franceses, ingleses, italianos sempre estavam de visita lá. Os estrangeiros eram convidados. Ele era uma pessoa muito autoritária e exigia que seus amigos, que eram um pouco seus súditos, fossem às reuniões que promovia. Fui convidado. Eu não tinha vontade, mas sabia que, se não fosse, passaria por uma situação desagradável. Estava ali um escritor estrangeiro, estava o Borges, e Borges ficou falando comigo. Victoria ficou brava. Desculpem-me por dizer isso pela televisão brasileira, mas ela disse: “Não sejam uns merdas, falem com os estrangeiros." Borges ficou muito bravo. E daí, ao se sentar, derrubou um vaso e foi uma situação incômoda de levantar coisas do chão. Depois, voltamos a Buenos Aires juntos e continuamos a conversa. E, desde então, até que ele morreu, fomos grande amigos.
Matinas Suzuki Jr.: Qual era o aspecto da personalidade do Borges que mais cativava o senhor?
Bioy Casares: A inteligência de Borges era irreprimível. Ele estava sempre inventando coisas e sempre estava me propondo histórias. Ele gostava de falar de literatura como eu gosto. E nos sentíamos muito amigos.
Luciana Villas-Boas: Eu queria fazer uma pergunta sobre um aspecto particular dessa amizade, dessa colaboração. Eu acho muito difícil escrever com alguém. E eu queria saber como é que dois imensos talentos da literatura faziam quando se dispunham a escrever juntos? O senhor tem uma obra importante com ele.
Bioy Casares: Acho que esse "temos de escrever com outra pessoa" ocorre porque não se tentou escrever com outra pessoa. Quando duas pessoas escrevem juntas e não são vaidosas, escrevem muito mais fácil do que separadas. Todos sabemos, ao escrever, que, às vezes, paramos porque não sabemos como resolver uma frase, como começar a frase seguinte. E quando há duas pessoas, uma delas sempre sabe. Borges dizia que o lamentável de escrever textos juntos é que quando se escreve sozinho é mais difícil. Justo o que acontecia comigo.
Jorge Schwartz: Bioy, a relação Bioy e Borges foi cristalizada pelo crítico Rodriguez Manegal com aquilo que ele denominou "Biorges”. Evidentemente, Borges tinha 15 anos a mais do que você, foi uma espécie de companheiro amadurecido. Eu gostaria de saber, não como ele influenciou você, mas como você o influenciou? No Ensaio autobiográfico [1970], Borges fala em num dado momento: “Bioy levou-me gradualmente ao classicismo”. O que é que Borges quis dizer com isso e qual você acha que foi a sua influência?
Bioy Casares: Sempre há que pensar que, quando se escreve sobre outro, você o enaltece. Borges exagerou, talvez, sobre os meus méritos. Mas, quando ele diz que eu o aproximei do classicismo, pode querer dizer também que o afastei do romantismo. Classicismo, nessa frase, pelo menos, significa as normas, escrever de um modo cuidadoso, simples, em que cada frase soe como necessária e cômoda, como uma conversa. Essa facilidade é realmente muito difícil de alcançar. E lhe recomendei que a buscasse, provavelmente, sem deliberação, mas por minha preferência por certas coisas. Contudo, também é certo que, da primeira vez em que fomos ao campo, Borges e eu, eu tentei defender o ultrismo, todos os ismos. Para Borges, eles eram todos ridículos. E, nessa noite, tive a impressão de ter vencido a polêmica. Mas, no dia seguinte, eu havia passado para o bando de Borges e dos classicistas.
Matinas Suzuki Jr.: A colaboração do senhor com Borges começou com um texto publicitário sobre as virtudes do iogurte. Como foi isso?
Bioy Casares: Bem. Aconteceu nessa mesma ocasião. Fomos à fazenda do meu pai, no sul da província de Buenos Aires. A casa é muito velha, de 1830, e estava quase destruída. Fazia muito frio. Estávamos na sala de jantar escrevendo sempre perto do fogo e tínhamos que escrever a história ou as virtudes do iogurte, um texto pseudocientífico de valor comercial. Estávamos muito aborrecidos com esse texto e sonhávamos escrever um dia contos, romances, sonetos e poesia. Pelo menos, escrevemos os contos que desejávamos tanto escrever.
Rinaldo Gama: Bioy, essa colaboração com o Borges ficou marcada por um personagem escritor, que é Bustos Domecq, já citado aqui. Eu queria saber se o senhor considera o Bustos Domecq [Honório Bustos Domecq, pseudônimo que Casares e Borges usavam para assinar suas obras conjuntas] na mesma estatura de um heterônimo, como os do Fernando Pessoa [(1888-1935), poeta e escritor português, utilizou heterônimos como Alberto Caeiros, Álvaro de Campos e Ricardo Reis] e se o senhor e Borges falavam sobre isso, liam Fernando Pessoa, esse tipo de coisa? Bustos Domecq é um heterônimo na mesma estatura
Bioy Casares: Não. Nossa admiração por Pessoa nunca nos deixaria dizer isso. Acho que Domecq foi muito bom em Seis problemas [Seis problemas para don Isidro Parodi, publicado em 1943] e nas crônicas. Os outros livros dele, como Dos fantasías memorables [Duas fantasias memoráveis, de 1946] e outros, é melhor esquecer. Pusemo-nos a escrever, mas cada frase era uma brincadeira e, assim, quase destruímos os textos.
Augusto Massi: O senhor escolheu alguns gêneros que, dentro da literatura argentina, não eram gêneros muito comuns, como a ficção científica e certas regras do romance policial. De onde veio essa influência, essa opção?
Bioy Casares: Com certeza de leituras. Não sabemos como chegamos a isso, mas foi a opção que fiz e que voltaria a fazer.
Augusto Massi: Mas o Borges, por exemplo, dentro dessa eleição, ele enumerava alguns autores como Júlio Verne [nome aportuguesado de Jules Verne (1828-1905), escritor francês de ficção científica que antecipou, entre outros feitos, a viagem do homem à Lua e o submarino)], Wells [Herber George Wells (1866-1946), escritor britânico de ficção científica cuja obra inclui A máquina do tempo, A guerra dos mundos e O homem invisível] e chegava mesmo a Francis Bacon [(1561-1626), filósofo, político e ensaísta britânico. Entre seus livros figura a obra inconclusa A nova Atlântida, que narra a vida dos habitantes da ilha utópica de Bensalem, governada por sábios-cientistas da Casa de Salomão], como quem, vamos dizer, teria dado a origem ao gênero da ficção científica. O senhor, quando adolescente, menino, que livros o senhor leu que o marcaram e o levaram a essa opção? Ou foi uma opção madura, já da idade adulta?
Bioy Casares: Os livros que li, sobretudo a história de Pinocchio [As aventuras de Pinóquio, clássico infantil de Carli Collodi, pseudônimo do escritor italiano Carlo Lorenzine (1826-1890)], o boneco que falava e se comportava como um homem. Possivelmente, isso me encaminhou em direção às invenções fantásticas.
José Geraldo Couto: O escritor argentino Ricardo Piglia tem uma tese sobre o conto. Ele diz: “Todo bom conto narra duas histórias, na verdade: uma história explícita, que transparece pela leitura, e uma história secreta, que está por trás da história explícita, que se revela aos poucos ao leitor.” Me parece que os seus contos são exemplares desse tipo de idéia. Eu gostaria de saber o que o senhor acha dessa tese e se, quando o senhor escreve, pensa em ocultar uma história por trás daquela que está sendo narrada?
Bioy Casares: Meu querido amigo, não. Como falamos de literatura fantástica, essa me parece uma tese um pouco fantástica. E, se meus contos são assim, nunca foi proposital, saíram assim.
Maria Cristina Poli: O senhor e o Borges, como amigos e cúmplices, deixaram para trás alguns projetos comuns que não foram realizados, que não deu tempo de serem escritos, enfim?
Bioy Casares: Não, porque o que queríamos escrever eram contos e ter projetos de contos futuros. Quando se tem projetos de contos se escreve. Se Borges estivesse vivo, provavelmente, teríamos escrito outro livro, mas, isso é imprevisível agora.
Matinas Suzuki Jr.: Bem, nós faremos agora uma breve pausa e voltamos daqui a pouco com o Roda Vida, que esta noite entrevista o escritor argentino Bioy Casares. Até daqui a pouco.
[intervalo]
Matinas Suzuki Jr.: Bem, nós voltamos com o Roda Viva que esta noite entrevista o escritor argentino Adolfo Bioy Casares. Nós lembramos que, como este programa foi gravado, não é possível a participação do telespectador através das perguntas por fax ou telefone. Senhor Bioy Casares, voltando ao seu Dicionário do argentino esquisito [1971], o senhor recolheu a palavra "dolarizado", que é uma palavra que está na moda no mundo da economia. É uma palavra bastante utilizada nos planos econômicos do Brasil e da Argentina. Me parece que ela é tirada de uma canção ou de um poema. São os seguintes versos: “Mendigo mísero, dolarizado, deixaste a mais de um mal amparado”. De onde o senhor recolheu esses versos?
Bioy Casares: De minha colheita pessoal.
Matinas Suzuki Jr.: O senhor que inventou [risos]? Quer dizer que não existe esse "louvalvo com dispêndio
Bioy Casares: Não, não existe.
Matinas Suzuki Jr.: Isso é uma invenção?
Bioy Casares: Uma brincadeira, exatamente.
Matinas Suzuki Jr.: O senhor também faz referências nas suas entrevistas e nas suas memórias ao universo do tango. O senhor disse que tanto se interessou pela literatura como pelo tango, que foi uma das manifestações da cultura argentina que mais lhe interessaram. Que tango que o senhor gosta mais, qual é o cantor de tango preferido pelo senhor, qual é o autor de tango preferido?
Bioy Casares: Minha cantora de tangos preferida se chamava Sofia Bozán [(1904-1958)]. Ela cantava muito bem. E os tangos que prefiro são os antigos, como "Entrada prohibida" [de Enrique Domingo Cadícamo (1900-1999), escritor, poeta e letrista argentino], "Hotel Victoria" ["Gran hotel Victória", de Carlos Pesce], "La cumparsita" [clássico do uruguaio Gerardo Matos Rodríguez (1897-1948)], eu gostava muito, se bem que um pouco menos. "La morocha argentina", "El apache argentino" [de Carlos Waiss] são tangos todos anteriores ou de cerca de 1900. Havia letras de que eu gostava muito. E eu, quando era criança, lia em uma revista que se chamava El ama que canta, que era só de letras de tango. Eu gostava muito dessas letras, mas, quando eu cantava tango, as pessoas se queixavam, porque parece que não sou nada afinado. Que fazer?
Jorge Schwartz: Ainda com relação ao tango, o senhor já disse que gosta dos tangos mais antigos, mas eu gostaria de saber o que o senhor pensa do tango moderno, como do Ástor Piazzolla [(1921-1992), compositor e bandoneonista argentino. Estudante de harmonia e música erudita, amante do jazz, Piazzolla introduziu diversas inovações no tango, que concebia como "música contemporânea de Buenos Aires"]?
Bioy Casares: De Ástor Piazzola, às vezes, parece que gosto, mas, em geral, não gosto muito.
Matinas Suzuki Jr.: A diferença da música brasileira com o tango é que o tango, para nós brasileiros, parece muito dramático, tem uma concepção mais trágica das relações humanas. O tango é o espírito dos argentinos? O senhor reconhece no tango uma manifestação da alma do argentino, característica da alma argentina?
Bioy Casares: Pode ser, mas me atrevo a dizer que, se ouvisse os tangos velhos, você veria que são animados. Não são como os tangos sentimentais dos anos 30, 40 e 50. Esse tangos são, na realidade, "tangos-milongas". Então, quando você os ouve tem vontade quase de brigar. O que não se sente com os tangos tristonhos, que vieram depois.
Matinas Suzuki Jr.: O senhor tem conhecimento que o vocabulário do fado [estilo musical tradicional português] influenciou a música brasileira e que expressões como malandro, otário e bacana são correntes na música brasileira através da influência da música argentina?
Bioy Casares: Não sabia disso. Mas sabia que há palavras comuns. Tango, por exemplo, é uma palavra brasileira. E existem muitas outras por lá.
Luciana Villas-Boas: Voltando à literatura, o senhor concorda com a idéia de que a prosa argentina é muito superior à brasileira, mas que a poesia brasileira é muito mais rica do que a argentina?
Bioy Casares: Não posso opinar sobre nenhuma das duas coisas. Conheço prosa brasileira de que gosto muito, mas não conheço muitos livros.
Matinas Suzuki Jr.: Quais são os autores brasileiros que o senhor gosta?
Bioy Casares: Bem, sempre volto a Jorge Amado [(1919-2001)], de quem gosto muito. É que, quando gosto muito de um escritor, e ele está vivo, em geral, sou amigo dele.
Matinas Suzuki Jr.: Da língua portuguesa nas suas Memórias, que é este livro, o senhor menciona o Eça de Queiroz [(1845-1900), romancista, contista, cronista, crítico literário e epistológrafo. É considerado o principal expoente português do realismo. Dentre seus romances mais importantes estão Os Maias, O crime do padre Amaro e O primo Basílio]. Algum outro autor, em língua portuguesa, lhe interessou?
Bioy Casares: Não sei. Me interessou muito Eça de Queiroz. Li e reli
Matinas Suzuki Jr.: Bom, esses são os escritores…
Bioy Casares: São minhas preferências e meus conhecimentos também.
Matinas Suzuki Jr.: O senhor se interessou bastante pela cultura italiana, principalmente pela cultura italiana contemporânea.
Bioy Casares: Sim, conheço muito. Como não?
Matinas Suzuki Jr.: Quem são os autores da literatura italiana que o senhor gosta?
Bioy Casares: Diria que Sciascia [Leonardo Sciascia (1921-1989), escritor, ensaísta e político italiano] é um dos meus autores favoritos. Calvino [Italo Calvino (1923-1985), um dos mais importantes escritores em língua italiana do século XX. Nasceu em Cuba, onde seus pais estavam de passagem. Ficou internacionalmente conhecido a partir da trilogia Os nossos antepassados, formada pelos livros O visconde partido ao meio, O barão nas árvores e O cavaleiro inexistente. Mesmo quando escrevia fábulas, Calvino não deixava de tratar da realidade de seu país e do mundo, bem como das questões políticas de seu tempo] também. Eu o aprecio muitíssimo. Não sei se há muito mais.
Rinaldo Gama: Alguma influência desses escritores em sua obra? Calvino, por exemplo?
Bioy Casares: Me disseram que certas coisas de Sciascia e de Calvino se parecem com as minhas, mas não sei, não opino sobre isso.
Jorge Schwartz: Bioy, você passou a vida inteira casado com uma grande, extraordinária escritora argentina, acho que pouco conhecida no Brasil, Silvina Ocampo [1903-1994]. Eu gostaria de perguntar o que significa para um grande escritor conviver com uma grande escritora. E também pela obra dela, não só literária, como pintora. Vocês escreveram juntos textos?
Bioy Casares: Silvina era uma pintora extraordinária. Talvez, não sei, porque nos enamoramos, eu a converti
Jorge Schwartz: E a irmã dela, Victoria Ocampo, que você já falou brevemente dela, mas a Victoria Ocampo e o grupo Sur [grupo de artistas e escritores que colaboravam para a revista Sur, editada por Victoria Ocampo. A publicação se identificava com uma cultura conservadora e elitista, dando espaço para autores estrangeiros] de alguma forma modificaram o gosto literário argentino, introduziram uma tendência. Você poderia falar sobre esse famoso grupo e sobre essa época?
Bioy Casares: Você acha que o grupo Sur mudou as coisas?
Jorge Schwartz: Bom, introduziu uma série de autores.
Bioy Casares: Porém não eram os que eu gostava.
Jorge Schwartz: Você não quer falar das suas intenções?
Bioy Casares: Por exemplo, quando se fez o livro sobre literatura inglesa, eu propus que incluíssem George Moore [(1852-1933)], Kipling [Joseph Rudyard, (1865-1936)], Wells [Herbert George Wells (1866-1946)], e Conrad [Joseph Conrad (1857-1924), escritor britânico de origem polonesa que teve como tema principal de sua obra o mar e os marinheiros. É autor de Linha de sombra, em que um inexperiente capitão se vê duplamente desafiado, por uma epidemia e por uma calmaria que o impede de atingir seu destino, e de O coração das trevas, provavelmente derivado da experiência de Conrad na Cracóvia (Polônia) sob a ocupação russa, livro
Janer Cristaldo: Bioy Casares, a sua geração viveu uma grande discussão
Bioy Casares: Isso é invenção literária.
Janer Cristaldo: Não houve nada?
Bioy Casares: Éramos todos amigos. Creio que era para dar um pouco… para que a literatura fosse um pouco mais dramática.
Janer Cristaldo: Sim, mas, grosso modo, o que seriam los de Boedo e los de Florida?
Bioy Casares: Sem que seja verdade, eu diria que os meninos bons estavam em Florida e os maus estavam em…
Maria Cristina Poli: Eu gostaria que o senhor falasse mais sobre a parceria do senhor com a Silvina Ocampo. E que o senhor começasse por contar um pouco sobre o título desse livro, que vocês escreveram juntos, que é Os que amam odeiam [Los que aman, odian, de 1946] .
Bioy Casares: Sobre o título, não estávamos nada de acordo. Me parece um ótimo título, porém, não corresponde a minhas crenças. Não creio que os que amem odeiem. Parece que, se odeiam, não amam muito bem. Mas Silvina dizia que o título era bom e, então, o pusemos.
Maria Cristina Poli: Vocês ficaram 50 anos casados, é isso? O senhor era um homem fiel no seu casamento?
Bioy Casares: Não creio que fui fiel e isso me dói muito, porque a amava muito. Mas é tão difícil dirigir a própria vida, e a gente vive como pode.
Maria Cristina Poli: O senhor acha que o casamento é uma boa fórmula para duas pessoas viverem juntas?
Bioy Casares: Não. Creio que é espantoso. Mas, apesar do casamento, eu e ela sempre nos quisemos. Creio que tudo o que o obriga a algo, você, espontaneamente, rejeita. E o casamento é uma promessa de amar-se. Acho que nos amamos, apesar do casamento.
Matinas Suzuki Jr.: O senhor está escrevendo ou terminou de escrever um conto chamado "Ir-se", que seria baseado na sua experiência com as mulheres ou dedicado às mulheres. É verdade isso?
Bioy Casares: É a primeira vez que ouço isso. Não sabia que o havia dedicado a mulheres. Não. É um conto como qualquer outro. O livro iria se chamar Ir-se. Me parecia bem, até que alguém disse que se eu pusesse Ir-se, era porque sentia que iria morrer. Então, já não gostei tanto do título.
Matinas Suzuki Jr.: E qual é o nome?
Bioy Casares: O nome do livro? Ainda não sei.
Luciana Villas-Boas: As relações entre autores e editores muitas vezes são conflituosas.
Bioy Casares: São péssimas na verdade [risos].
Luciana Villas-Boas: O senhor foi editor também. Dirigiu uma coleção para a MC, uma editora importante da Argentina. Eu queria saber como é que foi esta experiência de editor?
Bioy Casares: Fui diretor de edições da MC durante muito tempo.
Luciana Villas-Boas: Como foi essa experiência e como que são as suas relações hoje com as suas editoras?
Bioy Casares: Em geral, minhas relações são boas com os editores, porque não exijo nada deles. Se exigisse algo, seriam péssimas. Durante 50 anos, meus livros foram publicados pela MC com muitas erratas. Nenhum livro tem tantas erratas como o meu e, no entanto, tolerei. Se eu tivesse um pouco mais de caráter, teria procurado outro editor. Não o fiz, talvez, por achar que seria tão ruim quanto esse.
Luciana Villas-Boas: E como era o senhor como editor?
Bioy Casares: Não sei se fui editor. Fui diretor de coleções. Nós propusemos à MC uma coleção de livros que se chamaria “Sumas” e que teria as melhores obras dos melhores autores. Como essa coleção era postergada e eu, um dia, estava gripado, pensei que os conhecimentos meus e de Borges de novelas policiais poderiam permitir que fizéssemos uma coleção. Propus isso a Borges, que achou ótima a idéia. Propus, depois, à MC e ela disse que os publicaria com o nosso nome e não com o nome da MC, porque parecia indigno da MC uma coleção de romances policiais. Depois, foi essa coleção que evitou a ruína da MC, porque vendia muito. Afora isso, fizemos outras coleções, já esquecidas, mas creio que tinham bons romances.
Matinas Suzuki Jr.: Por que o senhor começou pela literatura policial? É o fascínio pelo mistério?
Bioy Casares: Eu sempre apreciei a construção dos romances policiais. Um romance policial não é bom se não tem um início promissor, um meio que provoque ansiedade e um final que corresponda à frase latina Finis coronat opus – o fim que coroa a obra. Acho que a literatura policial ensina a escrever livros e seria bom que os que não escrevem literatura policial levassem um pouco em conta a construção de histórias policiais ou fantásticas para escrever seus livros.
Maria Cristina Poli: Houve alguma influência do cinema sobre a sua literatura?
Bioy Casares: Não sei. Sei que gosto muito de cinema e que, durante muitos anos, eu ia todas as tardes nas primeiras sessões de cinema, às 3 da tarde, quando os cinemas estavam vazios. Já disse uma vez que gostaria que o fim do mundo me colhesse numa sala de cinema. De modo que gosto muito de cinema, mas não sei se existe essa influência.
Maria Cristina Poli: O senhor tentou escrever para o cinema. Por que é que não deu certo?
Bioy Casares: Bom, em parte porque, quando pediram a Borges e a mim que escrevêssemos roteiros, não sabíamos fazê-lo. Realmente não eram bons e não os aceitaram.
Jorge Schwartz: Bioy, no livro Memórias você diz, justamente, que “a sala do cinema é um lugar que eu escolheria para esperar o fim do mundo”. Mas qual é o filme que você gostaria de estar assistindo enquanto acontece o fim do mundo?
Bioy Casares: Que linda pergunta! Não sei. Gostei de tantos.
Jorge Schwartz: Mas seria um filme novo ou você gostaria de rever algum filme?
Bioy Casares: Bem, que seja um filme novo, para que seja uma surpresa.
Matinas Suzuki Jr.: O que o senhor está lendo atualmente? O que interessa ao senhor literariamente atualmente?
Bioy Casares: Já lhes contei. Estou lendo El alcalde de Furnes, de Simenon [Georges Joseph Christian Simenon (1903-1989), escritor belga de língua francesa que figura na lista dos mais traduzidos no mundo. Sua obra se conta em centenas de romances, dezenas de novelas, contos, artigos e reportagens, muitos publicados sob pseudônimos]; O homem que via passar os comboios, de Simenon; A neve suja, de Simenon; O contexto, de [Leonardo] Sciascia, outros livros de Sciascia que no momento não me lembro.
Matinas Suzuki Jr.: E há algum escritor argentino jovem que o senhor tenha… Há alguma revelação que o senhor tenha para nos contar e que seria interessante o público brasileiro descobrir?
Bioy Casares: Acho que Daniel Martino vai ser um ensaísta muito bom. Não conheço muitos.
Luciana Villas-Boas: E latino-americano, em geral, o senhor acompanhou a produção pós-mundo do realismo mágico?
Bioy Casares: Não, realmente, não. Mas gosto muito de [Gabriel] García Marquez, de Vargas Llosa eu gosto muito, de Guillermo Cabrera Infante [(1929-2005), escritor cubano, autor de Três tigres tristes, livro que trata da cultura, da música e da vida noturna de Havana antes da revolução. Tido como um dos principais expoentes da literatura cubana, foi adido cultural de seu país em Bruxelas, mas em 1965 assumiu-se como crítico do regime e se exilou na Inglaterra. Em 1997, recebeu o Prêmio Cervantes] gosto muito.
Janer Cristaldo: Bioy Casares, onde o senhor situaria a literatura de Ernesto Sábato [(1911-), controverso escritor, ensaísta e artista plástico argentino. Doutor em física, fez pesquisas no Laboratório Curie, em Paris, e no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), depois se tornou professor da Universidade de Buenos Aires até 1943, quando uma crise existencial o levou a abandonar a ciência para se dedicar à arte]? E eu gostaria de saber se o senhor considera um romance representativo na história da constituição da Argentina, Sobre heróis e tumbas [1961]?
Bioy Casares: É um livro que não me parece mau, nem bom.
Janer Cristaldo: Uma outra pergunta. Há um poema conhecido no mundo inteiro que é totalmente desconhecido aqui e me parece ser o substrato da literatura argentina: Martín Fierro [poema épico de José Hernandez (1834-1886), foi publicado em duas partes: a primeira, com o título El gaúcho Martín Fierro, em
Bioy Casares: Com temor de ser supersticioso e de ser patriota sem querer, Martín Fierro me parece muito bom. Fiz uma lista dos melhores livros que havia e nela estava Eça de Queiroz e está também Martín Fierro.
Janer Cristaldo: E o Facundo [obra do argentino Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888) publicada em 1845] aonde o senhor colocaria?
Bioy Casares: Muito bom. Um livro extraordinário.
Rinaldo Gama: Eu gostaria de saber a influência que o seu pai [Adolfo Bioy] teve na sua formação, já que ele também era um literato e chegou a ser o seu primeiro editor, corrigir o seu primeiro livro.
Bioy Casares: Sim. Meu pai quis escrever e não escreveu. Era amigo de escritores, era amigo de Alfonso Reyes [(1889-1959), escritor, filósofo e diplomata mexicano. Considerado por Jorge Luis Borges o maior escritor de língua espanhola de todos os tempos, influenciou a geração seguinte não somente no México, como também na América Latina], era amigo de muitos escritores importantes que tivemos na Argentina. E, quando escrevi o primeiro livro, meu pai o corrigiu. Alguém descobriu essas correções e me disse que um escritor não devia permitir que ninguém o corrigisse. Eu discordo totalmente. O escritor deve pôr, acima do interesse pessoal, o interesse pelo texto. Se uma correção alheia é boa, deve aceitá-la imediatamente. Meu pai me fez crer que Torrendel, um editor argentino, havia comprado um livro meu e que estava disposto a publicá-lo. Sem dúvida, meu pai o havia pago, mas eu levei toda a vida para descobrir isso.
Luciana Villas-Boas: O senhor repudiou toda a sua obra antes dos 26 anos, apesar de ter começado a escrever muito menino e ter publicado adolescente. Eu queria saber se os motivos pelos quais o senhor escrevia também se modificaram muito. Se o impulso do ato de escrever, do menino, do jovem, é diferente do homem maduro, já mais velho. É o mesmo ou radicalmente diferente?
Rinaldo Gama: E se a precocidade, aproveitando isso, é um mal?
Bioy Casares: Não acho que seja um mal. Acho que estas tentativas frustradas de escrever me ensinaram a escrever todos os fracassos. Me parece também que tenho uma dívida com o público, por haver lhe oferecido esses livros que eram péssimos, como se eles merecessem ser lidos. Não é por superstição que o digo, ou por originalidade, mas, realmente, qualquer um de vocês vai concordar comigo que esses livros eram muito ruins.
Jorge Schwartz: Você reescreveu muito A invenção de Morel ou foi de uma tacada só?
Bioy Casares: Eu o reescrevi muitas vezes. Levei 3 anos escrevendo-o. Eu, geralmente levo 3 anos para publicar um livro.
Jorge Schwartz: E os manuscritos ainda estão com você ou você se desfaz?
Bioy Casares: Eu perdi muitos manuscritos. Tenho alguns. Alguns amigos meus me criticam por tê-los perdido, mas, realmente, nunca lhes dei importância. E seria uma vaidade absurda pensar que mereciam ser guardados. Se o público, depois, diz isso, tudo bem. Porém, não devemos ficar preocupados com tão pouco.
Maria Cristina Poli: No momento, o senhor está escrevendo alguma obra, tem alguma obra em andamento?
Bioy Casares: Estou concluindo um livro de contos. Vou publicar um livro sobre uma viagem por Le Touquet, uma região da França. Mas tenho de corrigir antes de publicá-lo. São os 2 livros que vão sair. Não. Antes sairá outro livro, que se chama Jardins ajenos [Jardins alheios], que existe graças a um costume que tive ao longo da vida. Quando lia um poema, ou uma prosa breve, de que gostava muito, eu punha num caderno. Esses cadernos já têm muitíssimas páginas e posso dizer que são de leitura muito agradável. Como não têm nenhuma linha minha, posso dizer, sem passar por ridículo, que são bons. Esse livro se lê, abrindo em qualquer página e encontrando algo divertido para ler.
Maria Cristina Poli: O senhor escreve onde? No seu quarto, na sala, onde o senhor prefere escrever?
Bioy Casares: Em qualquer lugar, mas, em geral, na escrivaninha que tenho em casa.
Maria Cristina Poli: O senhor passa mais tempo dando entrevista ou escrevendo?
Bioy Casares: Agora, muito mais tempo dando entrevistas que escrevendo. Penso que, realmente, a literatura que pratico agora é a reportagem.
José Geraldo Couto: O senhor condena a vaidade como um dos defeitos principais do artista, do escritor. No seu livro Memórias o senhor fala muito contra a vaidade. Agora, o senhor ganhou todos os prêmios mais importantes da língua espanhola até agora, prêmios importantes internacionais, eu acho que só falta o Prêmio Nobel mesmo. Eu gostaria de saber qual é a sua expectativa ou sua posição com relação a essa possibilidade de ganhar o Prêmio Nobel?
Bioy Casares: Isso eu perguntaria aos jurados do Prêmio Nobel. Espero que levem a sério este candidato e o premiem um dia.
Matinas Suzuki Jr.: É por ter essa aversão à vaidade, por exemplo, que o senhor escreveu um livro de memórias tão sucinto? Mesmo tendo uma vivência literária e de convivência com escritores tão grande como o que o senhor teve, ao longo de um século praticamente inteirinho? Quando, hoje, as memórias e as biografias têm 1000 páginas e o senhor escreveu um livro de memórias com apenas 200 páginas.
Bioy Casares: Pareceu-me que eu disse tudo o que tinha a dizer nessas duzentas páginas. Pode ser que escreva mais, mas escrevi esse com muito prazer.
Rinaldo Gama: O senhor abandonou a universidade, até aconselhado pelo Borges e por sua esposa, para se dedicar à literatura.
Bioy Casares: Não foi assim. Oxalá fosse assim!
Rinaldo Gama: Eu quero perguntar, é como o senhor vê hoje esse divórcio, essa renúncia? Essas coisas são tão excludentes assim? A dedicação à literatura e a dedicação a preparação literária, o estudo acadêmico, esse tipo de coisa.
Bioy Casares: Não sei muito bem o que é uma vida acadêmica. Mas creio que o escritor não deve ser outra coisa senão escritor. Eu deixei a faculdade de direito porque me custava um esforço muito grande estudar, e pensei que isso nunca me serviria na vida, pois o que eu queria era escrever. Para que meus pais não pensassem que o que eu queria o ócio, fui para faculdade de filosofia e letras, onde me senti mais distante da literatura do que quando fazia direito. Então, deixei as duas, e, por sorte, Borges e Silvina me disseram que fiz bem.
Matinas Suzuki Jr.: O senho lê a crítica literária?
Bioy Casares: Sim, como não? Há críticas de que gosto muito, mas, em princípio, a crítica foi muito dura comigo. Contudo, continuei escrevendo e hoje estou de acordo com os críticos que diziam que esses meus livros eram maus, porque acho que eram péssimos.
Matinas Suzuki Jr.: Agora, me perdoe se eu estou errado, parece que o senhor parece que tem uma aversão ao universo da política ou aparece muito pouco o tema explicitamente político nos seus livros, nas suas memórias ou nas entrevistas. Uma boa parte dos artistas latino-americanos não se dedicaram à militância política por achar que esse é um continente subdesenvolvido e precisaria de mudanças muito grandes. Como o senhor encara o problema da política?
Bioy Casares: Provavelmente, creio que todos devíamos nos dedicar à política, mas, em minha vida, quando fui partidário de alguém em política, me senti fraudado depois. Quando achava que alguém era mau em política não me enganava, mas me equivocava sempre que confiava neles e não me equivocava nunca quando não confiava. Essa minha incapacidade de saber que alguns eram maus quando achavam que eram bons me fez pensar que eu não servia para isso. Algo assim como “Sapateiro, a seus sapatos”. Então, me dediquei ao que sabia, ou acreditava saber, que é literatura.
Luciana Villas-Boas: Mas as suas concepções políticas mudaram com os acontecimentos desse fim de século? Ou não?
Bioy Casares: Não. Minhas concepções políticas são sempre as mesmas. Sou partidário de uma política liberal e de entendimento entre as pessoas. Entediam-me as ditaduras.
Matinas Suzuki Jr.: O senhor tem a expectativa de desenvolver algum trabalho no Brasil, de ser mais conhecido no Brasil, de participar mais ativamente da literatura, da vida literária ou da vida cultural do Brasil?
Bioy Casares: Não tenho planos sobre isso. Mas tenho planos de vir ao Brasil, vir a São Paulo, durante os invernos
Matinas Suzuki Jr.: Senhor Bioy Casares, da leitura das memórias do senhor e dos relatos que o senhor faz da amizade com o Borges, deu a impressão que vocês eram muito mais leitores do que escritores. Faz sentido uma afirmação desse tipo?
Bioy Casares: Creio que tem sentido e que o senhor tem razão. Nunca havia pensado que fosse mais leitor que escritor. Mas sou mais leitor que escritor por sorte, pois há uma literatura universal maravilhosa, da qual não me canso.
Augusto Massi: O senhor pensa em publicar outro livro de memórias, de ter alguma continuação do livro de memórias?
Bioy Casares: Pensava, quando escrevi esse. Alguns me fizeram pensar nisso, dizendo que esperam outro livro meu. Só posso dizer que estou escrevendo contos, que estou tratando mais ou menos de conceber um romance, e, se viver muito, escreverei outro livro de memórias.
Augusto Massi: Eu queria só complementar com uma pergunta. Eu queria que o senhor contasse o caso dos contos que o senhor e o Cortázar escreveram. São contos bastante similares e é uma história bastante fantástica para ter acontecido com 2 escritores como o senhor e o Cortázar. É surpreendente um acaso desses, brilhante. O senhor podia relatar? [referindo-se aos contos El mago inmortal, de Casares, e La puerta condenada, de Cortázar]
Bioy Casares: Como aconteceu só Deus pode saber. Mas o incrível é que escrevemos um conto que se passava em Montevidéu, no hotel Cervantes, com um monte de coisas idênticas. Tanto Cortázar quanto eu ficamos muito felizes com isso, pois nos pareceu que corroborava com o sentimento de amizade e afinidade que havia entre nós. Nenhum dos 2 se envergonhou ou lamentou o sentido de originalidade: "que pena que o outro fez”. Não, nós 2 gostamos muito. [os 2 contos relatam as experiências dos autores ao dormirem no hotel Cervantes, fazendo menção ao incômodo pelo barulho nos quartos vizinhos].
Jorge Schwartz: Só que no final da vida, o Cortázar, talvez.. Em um dos seus últimos contos, no livro Das horas, em que ele começa o texto sem saber como começar, ele diz: “Quando eu não sei começar um conto, eu justamente gostaria de ser o Adolfo Bioy Casares”. Gostaria que você comentasse.
Bioy Casares: Não quer dizer nada. Ouça-me: isso só quer dizer que Cortázar era generosíssimo e que nos estimávamos muito. Creio que, sem mim, Cortázar sabia muito bem escrever contos.
Jorge Schwartz: Bioy, mais uma pergunta. Eu acho que existe um Bioy Casares desconhecido para o público que é o Bioy Casares fotógrafo. Você poderia falar um pouco disso?
Bioy Casares: Sim, sempre gostei de fotografia. Quando comecei a fotografar a fotografia me absorveu. Durante 10 anos, fotografava o dia todo muitas vezes. De noite, já não pensava mais no conto e, sim, na fotografia que iria tirar amanhã.
Jorge Schwartz: Em que época foi isso?
Bioy Casares: Eu creio que foi entre os anos 50 e 60. Meu passado é bastante confuso, não poderia delimitá-lo de modo claro, mas acho que fotografei bastante bem. Lamento não continuar fotografando, mas, não se pode fazer duas ou três coisas ao mesmo tempo.
Luciana Villas-Boas: Eu queria voltar um pouquinho na literatura argentina. Parece-me que ela é muito mais influenciada pelo cinema do que a literatura brasileira. E outra coisa que eu queria perguntar a partir de uma entrevista muito bonita que você deu para o José Geraldo Couto, no caderno “Mais”. O senhor disse que no cinema prefere os grandes filmes americanos, que são narrativas muito mais convencionais comparativamente à literatura que o senhor faz, que é mais inventiva, de ruptura e fantástica. Eu gostaria que o senhor falasse um pouco sobre isso, sobre essa relação da literatura argentina com o cinema.
Bioy Casares: Não sei. Me espanta que haja muita relação entre a literatura argentina e o cinema. Em geral, não gosto muito do cinema argentino. Por outro lado, é verdade que gosto muito dos grandes filmes americanos. Mas, não diria que mais que dos grandes filmes italianos, dos grandes filmes ingleses e de muitos filmes, como Macumba [Sexual, de 1981], que são tão bons quanto os filmes americanos. Não gosto é do cinema de vanguarda, do cinema de cinemateca. Gostaria que de algum texto meu fizessem um filme, que as pessoas fossem ver nos sábados e domingos com a família e que se divertissem muito. Mas, os filmes que não divertem ninguém são construção de pessoas muito egoístas, que só pensam em si, como são os filmes de cinemateca, que não me interessam nada.
Jorge Schwartz: Bioy, você fala com certa resistência sobre vanguarda.
Bioy Casares: Sem nenhuma. Falo abertamente contra a vanguarda. Acho que foi uma catástrofe na história da cultura, da qual estamos nos recuperando um pouco. Essa modernidade é o que de mais antigo pode haver, mas antigo em um sentido péssimo. É algo que temos que superar.
Jorge Schwartz: Agora, veja, na sua extraordinária Antologia da literatura fantástica, que você fez com a Silvina e com o Borges, você coloca 2 textos do James Joyce, 2 fragmentos de Ulisses [de James Joyce, obra de 1922], 2 textos do Ramon Lacerna, um grande vanguardista, e do Macedónio Fernandez [(1874-1852)]. Quer dizer, a vanguarda está representada.
Bioy Casares: Creio que Joyce é um dos maiores escritores que existiram. Mas Ulisses é uma catástrofe na história da literatura [risos].
Rinaldo Gama: Em que sentido é uma catástrofe?
Bioy Casares: Porque acho que as pessoas começaram a escrever livros confusos e achavam que a obscuridade de Ulisses era um mérito, quando era um defeito. Eu diria que o gênio de Joyce se revela em frases, momentos, em cenas graciosas, maravilhosamente realizadas, e que ninguém mais poderia realizar. Mas, escrever um livro assim é dar um mau exemplo. E esse exemplo foi seguido por muita gente.
Luciana Villas-Boas: E O homem sem qualidades do Musil [Robert Musil]? O que o senhor acha?
Bioy Casares: Conheço pouco o nosso amigo Musil.
Maria Cristina Poli: Existe um escritor brasileiro, também muito experiente, o nome dele é Darcy Ribeiro, e ele tem pregado muito aos jovens que eles “deveriam ler menos e viver mais”.
Bioy Casares: Não me parece. Lamento muito, estou em desacordo com ele. Acho que seria uma felicidade poder ler todos os bons livros que existem. É doloroso saber que não leremos todos eles.
José Geraldo Couto: Me parece que o senhor é a prova que essas duas coisas não são incompatíveis, porque o senhor leu muito, lê muito e vive bastante.
Bioy Casares: Agradeço muito por isso. Não me atreveria a me mostrar como exemplo.
Maria Cristina Poli: O senhor viveu intensamente?
Bioy Casares: Acho que sim. Acho que sim.
Rinaldo Gama: Mas o senhor falou várias vezes aqui no programa que não se pode confundir literatura com vida. Eu queria que o senhor explicasse porque a literatura não tem nada a ver com a vida?
Bioy Casares: Não. Tem muitíssimo a ver. A literatura é uma parte da vida. Mas nem tudo que é bom para a vida é bom para a literatura.
Janer Cristaldo: E o que o senhor acha da afirmação de Borges de que a teologia é um gênero como a literatura fantástica?
Bioy Casares: Acho que estou de acordo.
José Geraldo Couto: E também a psicanálise? O senhor concorda que a psicanálise é um gênero da literatura?
Bioy Casares: Acho que é outra catástrofe.
Rinaldo Gama: O senhor é ateu. Não acredita em nenhuma forma de superioridade.
Bioy Casares: Sou ateu, graças a Deus.
Luciana Villas-Boas: Para um jornalista é muito bom uma pessoa que tem aversão à vaidade e se dispõe a dar entrevista de uma forma, assim, despretensiosa, como o senhor faz. O senhor gosta de dar entrevista? Porque é sempre um afago ao ego dar entrevista.
Bioy Casares: Fico aterrorizado antes de dar uma entrevista. Tenho muito medo. Medo de não lembrar nada, de ser um idiota. Mas, quando tenho a sorte de encontrar pessoas agradáveis, como encontrei hoje, sinto que é uma conversa entre amigos e que esse susto meu é um tanto exagerado.
Luciana Villas-Boas: O senhor lê as suas entrevistas, ou assiste, ou vai guardar o vídeo desta entrevista, por exemplo?
Bioy Casares: Confesso que não. Se lesse minhas entrevistas, talvez me entristecesse um pouco.
Matinas Suzuki Jr.: Qual a distinção para o senhor entre escrever um conto e escrever um romance?
Bioy Casares: Creio que não há explicação para isso. Quando se tem um relato, sabe-se que será um conto ou um romance. Por que se sabe? Ignoro. Talvez, quando se tem um relato sem muitos personagens e que se termina rápido, tem-se um conto. Quando se imaginam muitos episódios, teremos um romance.
Matinas Suzuki Jr.: Bem, senhor Bioy Casares, o nosso tempo está esgotado, eu gostaria muito de agradecer a sua presença aqui neste programa. E terminar o programa fazendo uma brincadeira, conforme sugestão do Augusto Massi, que está aqui do lado. O senhor, que a gente poderia imaginar