Um observatório da imprensa para a cidade de Bom Despacho e os arquivos do blog Penetrália
sábado, 11 de julho de 2009
Zizek: Lênin e Beckett
Estão perdidos os comunistas que imaginam ser possível levar a cabo uma tarefa tão memorável quanto a construção das fundações da economia socialista (especialmente num país de pequenos camponeses) sem cometer erros, sem recuos, sem numerosas alterações do que ficou incompleto ou foi feito de maneira errada. Os comunistas que não têm ilusões, que não entregam ao desânimo e preservam sua força e flexibilidade para "começar do começo" repetidas vezes, para dar conta de uma tarefa extremamente difícil, não estão perdidos (e muito provavelmente não haverão de perecer).
Eis Lênin no que melhor tem de beckettiano, prefigurando a frase de Worstward Ho (Rumo a Pior): "Tente de novo. Fracasse de novo. Fracasse melhor."
quinta-feira, 28 de maio de 2009
Caetano Veloso: crítica do disco Zi & Zek
Acompanhei atentamente o blog de Caetano Veloso por ocasião do lançamento de seu novo disco e gostei muito. Há anos acompanho seu trabalho. Ao contrário de Glauber, Caetano envelhece como um patriarca. Por isso, talvez, ele se cercou de uma banda de jovens músicos cuja identidade é mais rock. A proposta é o ambivalente transamba: base rítmica de samba e acompanhamento de rock com baixo, guitarra e bateria. E guitarra, principalmente. São comuns no disco as trips hendrixianas, assim como há algo das suítes do rock progressivo no trabalho de Pedro Sá. A cozinha de Marcelo Callado e a produção de Moreno também são seguras e competentes.
O que faz a dor e a delícia do disco é a ambivalência de Caetano, esse ser semovente. A capa é sombria, ao contrário das canções e da própria personalidade que Caetano mostrou no blog Obra em Progresso: solar. E é como homem solar e não lunar que Caetano tem melhor desempenho. Por isso, seria melhor algum outro título que não o hermético e auto-indulgente título escolhido. Talvez fosse melhor mesmo dar ao disco o nome Zi & Zek, em homenagem ao filósofo esloveno que tantas discussões motivou no blog. Caetano investe em perder-se de si mesmo para se reconquistar, no outono do patriarca. Será que consegue, conseguiu, conseguirá?
Em relação ao disco Cê, a sonoridade de Caetano ficou mais doce, mais Dorival Caymmi; amenizou-se a guinada em direção a uma sonoridade de rock, com letras cruas. Nesse disco, quando Caetano faz canções mais longas, como “Perdeu” e “Incompatibilidade de Gênios”, ele mostra uma certa lassidão à la Dorival Caymmi, embora sua voz continue chique e bela como sempre, lassidão essa que conflita um pouco com o impulso roqueiro de sua banda. Em Zi & Zek, as canções das quais mais gostei foram “Base de Guantánamo” e “Lobão tem Razão”, curiosamente já divulgadas por Caetano no blog Obra em Progresso.
As novas canções de Caetano possuem letras afiadas, com uma musicalidade minimalista e criativa, com a voz de Caetano dialogando bem com a tríade composta por baixo/guitarra/bateria, mesmo em seus tremolos mais característicos ao final da canção “Lobão tem razão”, que parece ser uma resposta à canção de Lobão “Mano Caetano”, mas vai bem além. Ela fala do “sêmen derramado”. Ora, não pode estar tratando da relação Caetano/Lobão! No fundo, Lobão tem razão é uma canção de amor. No entanto, acho que nunca se deve dar razão a Lobão, por uma questão estrutural mesmo. Lobão e a razão não possuem nada em comum: Lobão é movido pela explosão dos sentidos irracional do rock, das paixões, do sexo, da polêmica e, no passado, da droga. Dar razão a ele é tomar dele o Viagra das metáforas e deixá-lo com os oxímoros da impotência da razão. Caetas, deixe a razão para o Antônio Cícero fazer poemas logocêntricos e odes à Harold Bloom ou elegias a Hugo Chávez!
Já canções como “Tarado ni Você” parecem ser criadas para testar o fraseado da guitarra de Pedro Só e provocar a correção dos Pasquales da vida, que precisarão dizer em suas colunas gramaticais e normativas que a forma correta é “Tarado por Você”. Talvez Caetano, que tem algo de professoral, proponha canções-avaliação para ver se a banda Cê está “passando na prova” tal como a bossa nova. Caetano, gramático e dramático, possui uma fixação por Portugal que fica clara em “Menina da Ria”. Se Menino do Rio marcou a época da distensão e da abertura, por sua letra com alusões pansexuais, Menina da Ria é, quem sabe inconscientemente, um flerte com a teoria de Plínio Salgado sobre Portugal, país com a qual o Brasil teria uma relação incestuosa e normativa de mãe e filho. Caetano, matriarca/fratriarca da new left brazuca, por vezes ainda é bem patricarcalista-gramático-messiânico. Será que com Lula estamos voltando ao mar, estamos voltando ao útero ameraba-português, voltando a ser colônia? Nessa canção Caetano está sóbrio, heterossexual bem sucedido ao conquistar belas portuguesas sem bigode, maduro, glabro. Talvez por isso tenha conflitado recentemente com Fidel: dois bicudos não se beijam nem balançam ao som de Guantánamo nem de Guantanamera. O Brasil foi Portugal que pariu? Fica a sugestão de inclusão de Plínio Salgado e dessa frase numa futura letra de Caetano. Quero ver Caetano lançar.
A lassidão de Caetano em Zi & Zek é superada em canções como A Cor Amarela, mas essa é claramente uma música de trabalho, uma Garota de Ipanema turbinada com pagode baiano, liberada sexualmente pela pílula ou pela injeção de Perlutan. Caetano não se contém e exclama: “Que bunda! Que bunda!” em meio a uma levada dançante para tocar no rádio, no rádio do seu coração. Já “Lapa” tem uma relação com o samba meio fria, meio “uma noite no museu”. Depois de fazer carreira ao esfriar sambas e boleros com a bossa nova ou mesmo canções bregas de Peninha com seu toque de violão e voz sedutores, mostrando à la João Gilberto a geometria dessas canções, Caets se arriscando a fazer rock é como o artista plástico que, logo depois de ter desenhado um carneirinho, quer logo partir para a abstração e a action paiting à la Jackson Pollock. O resultado às vezes é genial e, por vezes...já viram japonês tocando samba?
No fim das contas, nesse disco Caetano ainda não se reencontra, reencontrou, reencontrará com sua base estética, a bossa nova, mas já se aproximou do samba: é meio caminho andado. Ele sinaliza que no futuro pode se desvincular da banda Cê e voltar a uma fase orquestral como foi com Jacques Morelenbaum e Júlio Medaglia. Quem viver, caetaneará.
terça-feira, 3 de fevereiro de 2009
Zizek, Caetano, Gatão de Meia Idade, etc
A Revista Piauí, há algum tempo, trouxe uma matéria com Zizek no Rio e registrou que seu discurso oscila e com frequência ele dá uma volta em torno de si mesmo, o que foi criticado, aí pela web, no meu amigo e excelente jornalista Laerte Braga. E que, normalmente, jamais faz isso: os textos dele são diretos como o punho de Cohn em The Sun Also Rises.
Zizek é lacaniano e marxista e um apaixonado intelectual e por isso ele passa paixão. Isso é importante: os alunos, ao nos verem entusiasmados ou apaixonados, correm o risco de se apaixonar, ainda que, muitas vezes, seja um risco remoto.
Estar apaixonado para mim é diferente das certezas revolucionárias vibratórias com as quais se deleitou, nos anos rebeldes, o Ferreira Gullar, por exemplo. Esquerda, volver, Gullar! Tem de ter cuidado, pois discurso conservador assim o Jorge Bornhausen também faz. E os integralistas brasileiros, que agora não usam mais a sigma verde e sim um cruzeiro do sul azul e branco. Tudo muda, até o integralismo!
O filósofo esloveno vê tudo quanto é filme, desde o Clã das Adagas Voadoras até Clube da Luta. Ele diz que, se a pessoa falar que Clube é fascista, ele é um liberal. O filme é um bom teste, segundo Zizek. E ele acha que nossas telenovelas tais como Escrava Isaura e os filmes chineses de luta mostram que "outra indústria cultural" é possível. Eu morri de rir em outra passagem, quando ele diz que, se seu pai te proibir de namorar, isso não é problema. Mas se ele te disser: que tipo de homem vc é, não pegou mulheres? Isso é meio caminho andado para vc virar impotente. Ele comenta a cena de Clube da Luta onde o protagonista se martiriza: gozar implica em algum prejuízo. Devemos lutar contra o imperativo do inconsciente de gozar, gozar sempre, pois para o Zizek a ideologia está é aí. Acho que aí é um bom ponto de vista para se analisar a indústria cultural brasileira, a Axé Music, por exemplo. Ela sempre proclama: GOZA BRASIL!
O poder é afrodisíaco. Sem tesão, como dizia Roberto Freire, não há solução.
Outro ponto que me chamou a atenção foi a posição dele em relação a Stálin: ele relativiza esse comunista, que virou unanimidade entre liberais, direita, esquerda e extrema-direita: um "canalha" a quem sempre alguém se refere. No entanto, Zizek defendeu Stálin do conceito de totalitarismo de Hannah Arendt, onde cabe tudo: nazismo, comunismo, imperialismo. Edward Said, por exemplo, julga Arendt teórica do imperialismo. Francis gostava de Arendt. Há ruído aqui....Sinceramente, já escrevi um artigo para mostrar que esse conceito foi retirado do vocabulário do marxismo, para significar as filosofias da totalidade e virou algo grotesco, monstruoso: totalitarismo.
Zizek exemplifica que os prisioneiros do Gulag escreviam, obrigatoriamente, um telegrama de felicitações no aniversário de Stálin. Alguém já imaginou judeus em Auschwitz enviando um telegrama a Hitler? Dá para sentir a diferença?
E Zizek parecia estar se dirigindo a Caetano e à sua defesa da Axé Music quando falou: "detestou carnaval. O Gulag foi um grande carnaval, uma inversão da ordem. Um dia você é ministro, outro é espião, um dia você é banqueiro, outro prisioneiro mendigando comida. Eu quero ordem". Maria Rita Kehl, Vladimir Safatle e outros são brilhantes mas, a meu ver, foram ofuscados por esse intelectual brilhante que é o Zizek.
Pior do que o balaio de gatos insuportável do totalitarismo, é mania dos filósofos de chamar quem eles não concordam de irracionalista, tal como Afonso Romano de Sant´Anna a respeito dos que defendem Battisti. Ah, sim o Enigma Vazio...vou ler a resenha de Marcelo Coelho. Mas o título me parece "Elvira, a Morta Virgem". A gente já sabe quem morre no final. A arte contemporânea é um enigma, ou seja, algo que pede decifração; mas, para Afonso, não é preciso, é fátuo, decifrar essa arte. A arte contemporânea, poderia dizer ele num paradoxo wildeano, é uma esfinge sem segredo. Para fazer o que ele quer fazer, acho que o crítico deveria dizer: não gosto de Duchamp, mas gosto de Maria Martins, e a partir de agora vou lutar pela consagração e canonização de Santa Maria Martins, a escultora e mulher de um diplomata que amou Duchamp em todos os sentidos.
Caetano voltou a discutir o debate na Folha Ilustrada. Contrera falou sobre isso em seu blog: para ele, foi como ver o caderno Mais! ao vivo. Mas era a Ilustrada, Contrera! Há muito não vejo o triunvirato Cacá/Gullar/Caetano no Mais! Contrera é muito cansado e entediado para debater esse grupo de nordestinos enérgicos de maneira pertinente. Que o deixassem subir ao palco. Aí veríamos. O poder não corrompe: com ele, as pessoas se revelam...show man por show man, Ferreira Gullar é bom mas acho que prefiro Gerald Thomas. O Thomas é desvinculados da baixa política escrota do Brasil, como mostrou em sua última postagem no blog e jamais cogitaria apoiar Roseana Sarney para presidente. O encontro dos cinquenta anos de Ilustrada era mais uma celebração de quem venceu e por isso não cabia muito a crítica e a teoria de uma Maria Rita Kehl, por exemplo.
Uma crítica cultural séria no Brasil começará de onde Gilberto Vasconcellos a deixar. O insight dele de que o cinema de Glauber é uma resposta ao Adorno e suas críticas ao cinema é GENIAL. Realmente, os adornianos precisam ver e analisar Glauber: alô alô Rodrigo Duarte & Douglas Garcia!
Vi um filme de madrugada esses dias e era assim: Gatão de Meia-Idade. Há uma referência no filme ao teatro do Gerald: o cara de meia idade chama uma moça mais nova para ver um pornô, mas ela quer ir ver a peça do GT. Um diálogo memorável do filme. quando o gatão transou uma super-executiva. Transcrio livremente. Minutos antes, ele perguntara pelo "size" do pênis:
--Eu tenho que ir.
--Outro homem.
--Rodrigo. Reinaldo. José. Fábio.
--Quatro?
--Marido e três filhos.
--Você não me disse que era casada.
--Muda algo?
--Eu faria fantasias com a dissolução da família brasileira.
--Só porque sou casada, não posso trepar com qualquer um?
--Eu sou qualquer um?
Isto posto, transcrevo algumas frases que me chamaram a atenção essa semana:
"Seja a diferença que você quer ver no mundo".
"O futuro é uma velha desdentada tomando milk-shake".
sexta-feira, 20 de junho de 2008
Entrevista de Zizek
Excertos da entrevista feita a Slavoj Žižek, por Enric González, publicada no “El Pais” de 25/3/2006.
Slavoj Žižek (Liubliana, 1949) grita, ri, aplaude. Os movimentos dos seus braços tornam-se convulsivos, mas do personagem emana uma grande cordialidade. É um filósofo pluridisciplinar que se deu a conhecer nos círculos psicanalíticos e, em pouco tempo, se converteu numa estrela do pensamento contemporâneo. Colabora no The New York Times, é professor convidado nas universidades de Paris (onde estudou), Columbia, Princeton e Georgetown e preside à Sociedade para a Psicnálise Teórica da Eslovénia. A partir de Karl Marx, Lenine e de Jacques Lacan efectua uma crítica sistemática da pós-modernidade e exige a reinvenção de uma ética de esquerda capaz de enfrentar a revolução tecnológica e a biomedicina. Vive num pequeno apartamento de Liubliana, na capital eslovena. O mobiliário é barato e a roupa está guardada nos móveis da cozinha.
- Como decidiu ser filósofo?
- Penso que para se bom em qualquer coisa faz falta uma vocação alternativa. Como é o caso de Levi Strauss que queria ser músico e se tornou antropólogo. Eu, desde a adolescência, sonhava em ser realizador de cinema, mas aos 18 anos comecei a estudar filosofia. Foi como a descoberta de São Paulo a caminho de Damasco. Nunca tive dúvidas. Comecei a estudar a escola de Frankfurt e de outros marxismos dissidentes, e ao chegar à universidade fiz-me heideggeriano, que na Eslovénia era o máximo da dissidência.
- Por que Heidegger era considerado dissidente?
- Cada uma das repúblicas da Jugoslávia tinha adoptado uma filosofia diferente, mais próxima de cada um dos grupos no poder. Na Eslovénia imperava a Escola de Frankfurt. Na Croácia preferiam os marxistas da Praxis e Heidegger: para ascender no partido comunista croata convinha dominar a femenologia. O da Sérvia era muito diferente, filosofia analítica. Então, quando surgiu o estruturalismo, Lacan, Foucault, Althusser e demais, aconteceu que as escolas rivais da Eslovénia, a de Frankfurt e a de Heidegger, esqueceram as suas diferenças para enfrentar-se de uma forma feroz, paranóica, contra os estruturalistas. Isso intrigou-me. Eu tinha 21 anos. Passei os seis ou sete anos seguintes a ler, de uma forma confusa, a teoria francesa, um pouco de Foucault, um pouco de Derrida, até que descobri a minha própria seita: sou um estalinista ortodoxo lacaniano, dogmático e nada dialogante.
- Como pode recusar o diálogo?
- O meu lema é: nenhuma liberdade para os inimigos da liberdade. Não, seriamente, a filosofia é necessariamente dogmática. Conhece algum diálogo filosófico que tenha funcionado? Os de Platão? Nada sai dai, sobretudo nos diálogos dos sofistas da última época em que há um tipo que fala todo o tempo, enquanto o interlocutor se limita a dizer “ó sim, por Zeus, quanta razão tens”. Heidegger tinha razão quando dizia que cada filósofo tem uma percepção fundamental e limita-se a repeti-la ao longo da sua obra.
- Qual é a sua percepção fundamental?
- O meu problema é o seguinte: nós, da esquerda, ainda não dispomos de uma boa teoria sobre o que foi o estalinismo. A Escola de Frankfurt, Jurgen Habermas, todos estavam obcecados com o marxismo e o anti-semitismo, mas não disseram nada sobre o estalinismo. Existe um livro de Herbert Marcuse, mas não é mais do que um interpretação dos textos dos congressos do PCUS. Quando se lê Habermas nunca se poderá adivinhar que, enquanto o filósofo escrevia, existiam duas Alemanhas.
Um amigo da Escola de Frankfurt explicou-me que não analisaram os estalinismo para não parecerem anti-comunistas. Como? Mas se eram abertamente anti-comunistas! Alguns apoiaram a intervenção dos Estados Unidos no Vietname!
Qual é a percepção fundamental da Escola de Frankfurt? O que chamam a dialéctica do iluminismo, significa que existe um potencial opressivo e totalitário no iluminismo moderno europeu. Há melhor exemplo que o Estalinismo? Enquanto o fascismo estava abertamente contra o iluminismo, o estalinismo constituía-se como um iluminismo radical. Não digo que o estalinismo tenha sido melhor que o nazismo, afirmo que há nele algo de enigmático e de desconhecido.
Um detalhe revelador: os presos do Gulag tinham a obrigação de enviar a Estaline telegramas de felicitações pelo seu aniversário. Alguém imagina os judeus de Auschwitz a felicitar Hitler? Pela mesma razão, o nazis não organizaram processos para que os judeus confessassem que participavam numa conspiração mundial contra a Alemanha.
Os estalinistas, pelo contrário, necessitavam de confissões de arrependimento, porque consideravam que um traidor, inclusive, integrava a razão universal e podia ver a sua própria mentira.
-O nazismo e o estalinismo desembocam igualmente num anti-semitismo brutal.
- É a modernidade. Até à Revolução Francesa, o objectivo consistia em baptizar e cristianizar os judeus. Acreditava-se na emancipação. Depois dizia-se que o problema radicava na sua natureza e portanto só restava matá-los. É curioso, os modernos crêem ser mais “liberais” que os pré-modernos e isso não é assim.
-Auschwitz é a grande tragédia da nossa época.
- Sim. Mas aquilo não pode ser representado como uma tragédia. Já reparou que os melhores filmes sobre o Holocausto são comédias. Filmes como “A Vida é Bela” ou outros italianos, “Sete Belezas”…
Quando as coisas são demasiado horríveis há que explicá-las no campo da comédia, porque a tragédia requer dignidade. E não houve dignidade em Auschwitz, nem nos juízos do estalinismo.
Na Eslovénia, depois da guerra, tivemos um processo atroz, o chamado caso Dachau. Os sobreviventes do campo de Dachau foram detidos e acusados de cooperar com os nazis, porque se tivessem sido bons comunistas teriam sido mortos. Foram culpados de sobreviver.
-Há dignidade na guerra do Iraque?
- Escrevi sobre isso, utilizando uma velha parábola iraquiana: um tipo queixa-se a um outro, dizendo que lhe devolveu um cantil furado que lhe emprestou. O outro responde que nunca lhe pediu emprestado um cantil. Logo, conclui que o devolveu intacto. E acrescenta que já estava furado quando o levou emprestado.
As justificações de Washington para a guerra do Iraque são igualmente incongruentes. George Bush garantiu que o Iraque possuía armas de destruição maciça. Mais tarde, que ainda que não tivesse essas armas, cooperava com a Al Qaeda e constituía uma ameaça para o mundo. No final, argumentou que Saddam Hussein era um ditador terrível e que isso era razão suficiente para derrubá-lo. Na realidade, as razões eram a extensão da democracia, a demonstração da hegemonia mundial dos Estados Unidos e o controlo do petróleo, argumentos incongruentes entre si que condenavam ao fracasso da invasão.
-Os Estados Unidos utilizam a tortura na sua “guerra contra o terror”.
- Estou contra a tortura, mas posso compreender certas situações. Imaginemos um velho exemplo, tenho ante de mim um tipo que sabe onde está sequestrado o meu filho: não posso prometer que não o torturaria pessoalmente até me dar essa informação. O importante é manter a distinção entre um caso desesperado e a legalização da tortura. Todos sabemos que a CIA é especialista em interrogatórios violentos e brutais, mas não devemos aceitar que se fale da tortura como algo normal.
Alguma coisa está a mudar na moralidade pública nos Estados Unidos. No outro dia, na televisão, um congressista conservador fez o seguinte raciocínio: os nossos prisioneiros eram desde o início “objectivos legítimos” de guerra mas como sobreviveram aos bombardeamentos podemos fazer com eles o que queiramos, já que desde o princípio tínhamos o direito de os matar.
Pôs-se em marcha uma “revolução silenciosa”, as regras fundamentais da ética estão a mudar e nós não queremos sequer estar a par disso. Sobre isso estou de acordo com Habermas.
-Habermas está bastante de acordo com o Papa Benedicto XVI. Escreveram um livro a meias.
- Estou de acordo com o diagnóstico de Habermas, mas não com as soluções que propõe. A sua atitude é puramente defensiva: não façamos isto, não façamos aquilo.
Não podemos dizer, como Habermas, que há um limite na eugenésia e não devemos ultrapassá-lo. Temos que reinventar a ética. Hoje é possível implantar um chip num rato e teledirigi-lo. Obviamente, será possível fazer o mesmo com o ser humano.
-Isso é criar um Golem
-Coloca-se uma questão filosófica: como sentirá o ser humano esse controlo remoto? Terá consciência que o controla uma força exterior? Acreditará que é ele mesmo o emissor das ordens? Inclino-me para a segunda hipótese: o ser humano teledirigido não se aperceberá de nada, sentir-se-á livre.
-Jurgen Habermas propões uma drástica auto-limitação da investigação científica para não destruir a essência do ser humano.
- E isso como se faz? É impossível. Se podem-se manipular os genes, vão ser manipulados. Os chineses já estão a experimentar o controlo remoto do cérebro. Isso espanta muito as pessoas religiosas. No outro dia participei, em Viena, numa mesa redonda em que se encontravam dois Bispos. Perguntei-lhes porque estavam contra experiências com o cérebro. “Porque o homem é uma criatura divina, com uma alma divina, etc”, responderam-me. Mas, se não somos simples mecanismos biológicos, se temos uma alma imortal, podem-nos fazer o que seja ao cérebro. Sobra-nos a alma, não é?
Não, os Bispos são secretamente materialistas e temem que, na realidade, só sejamos o nosso cérebro. Um Bispo bastante esperto observou que o cérebro era um televisor e a alma um descodificador, necessários um ao outro.
Esse foi um argumento inteligente, mas falso. Se um remédio pode fazer-me mais valente, mais lúcido, mais generoso, onde é que fica a ética? Significa que somos só química. Somos então livres? Eu acredito que sim. Mas se bloquearmos a experimentação científica só estaremos a manter uma ficção de liberdade.
- Cita com frequência Lenine e escreveu um livro sobre ele.
- Muita gente discute sobre a escassa participação das mulheres na política e sobre se convém estabelecer quotas. Zapatero não se entreteve com debates e impôs as quotas. Isso é leninismo: deixemos de esperar pelas condições objectivas, façamos e vejamos se funciona.
Sobre a minha posição política existe uma certa confusão. Escrevi um livro sobre a actualidade do pensamento leninista, mas o que proponho é “repetir” o leninismo no sentido que Walter Benjamin dava à palavra “repetir”. Isso pressupõe reconhecer que Lenine está morto. Não tenho soluções, declaro-me mais pessimista que os partidários das “terceiras vias”. Para mim, Tony Blair é um grande traidor. A esquerda deve ser reinventada.
-Pode-se pensar numa esquerda à margem do capitalismo?
- Há quem considere o meu leninismo como uma provocação. Também há que se ria do “fim da história” anunciado por Francis Fukuyama, mas todos actuamos como se Fukuyama tivesse razão, como se o capitalismo liberal fosse a culminação do progresso. Não estou louco nem preconizo a fundação de um novo partido revolucionário. Só proponho que mantenhamos a mente aberta e não acreditemos que a tolerância, o Estado do bem-estar e as “terceiras vias” constituam valores supremos.
-A respeito do capitalismo ele tem demonstrado uma capacidade enorme de vencer que o pretende contradizer
- Verdade. Vivemos várias vezes a “crise final” do capitalismo. Para Marx foi o imperialismo, para Estaline foi o fascismo…o capitalismo está sempre em crise e está cada vez mais forte. Agora há bastante gente que acredita secretamente que uma grande catástrofe ecológica acabe com o capitalismo. Pelo contrário, imaginem-se as oportunidades de negócio que se abririam com uma grande catástrofe?
Publicado em cinco dias |