sexta-feira, 17 de maio de 2019

Ao Mal, Vamos Dar Maldade: É um Tempo de Guerra

 Um diálogo com o artigo “A Política de sangue nos olhos só favorece o outro lado”
Por Bruno Carazza
Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 29/04/2019

Depois de mais de um ano na prisão, Lula veio a público com sangue nos olhos e rancor no coração. Em quase duas horas de entrevista à Folha e ao El País, o ex-presidente destilou toda a raiva curtida na solidão da cela. Em cada resposta está presente seu inconformismo com a Operação Lava Jato e com o processo que o condenou em três instâncias e o impossibilitou de disputar as últimas eleições. Também está lá uma visão de esquerda e de oposição ao governo Bolsonaro que em nada contribui para sairmos do estado em que nos encontramos.

Bruno: Eu sei que te incomoda ele não ser aquele Lulinha Paz e Amor, mas afinal, você há de convir que estão sacaneando com ele, transformando um malandro num Mandela. A visão de esquerda que contribui para que possamos sair do estado em que estado não foi explicitada por você. É porque talvez você não se lembre do que Bolsonaro disse na Paulista, na campanha e como deputado a respeito da esquerda. Vou refrescar sua memória. Ele falava em minorias que devem se rebaixar para minorias, uma nova guerra civil contra a esquerda, com extermínio físico de 30 000 pessoas ligadas à esquerda. Diante do sangue nos olhos de Bolsonaro, Lula na cadeia deveria chegar oferecendo flores, posando de Lulinha Paz e amor? Ressaltando o que há de bom na proposta da reforma da previdência? Bah!

Mais uma vez não houve autocrítica. Desde o Mensalão, passando pelas revelações da Lava Jato, do impeachment e da derrota nas eleições de 2018, nunca Lula ou o PT esboçaram qualquer intenção de reconhecer que a corrupção fez parte da sua estratégia de governo, degenerando o presidencialismo brasileiro, de coalizão para cooptação. Ao contrário, Lula tergiversou quando perguntado sobre o relacionamento com as empreiteiras, os empréstimos do BNDES, a Venezuela.

Não o vi tergiversando e sim respondendo que é favorável ao empréstimo de dinheiro para países que ainda estavam em processo de desenvolvimento.

Em vez de reconhecer os erros, Lula se concentrou em enaltecer o passado, valendo-se muitas vezes de fatos distorcidos e malabarismo estatístico. E bem ao estilo populista de esquerda, aponto para os inimigos de sempre: a Lava Jato (Moro e Dallagnol à frente), a Globo, os bancos e os Estados Unidos.

Você esperou que ele fizesse autocrítica, mas ele está ali diante de um processo político que o está destruindo. Nem sempre ele apontou esses como inimigos. José Dirceu chegou a dizer que não era preciso construir comunicação alternativa, pois poderiam utilizar a Globo. Lula foi ao funeral de Roberto Marinho e elogiou a Globo, assim como foi aliado de Obama. E outra: não é populismo de esquerda ele apontar que esses agora são de fato seus inimigos. Agora, no atual momento, é mera constatação. Ao longo de sua trajetória não foi verdade.

Sua receita para a grave situação fiscal em que o país se encontra é simplista: “Você quer diminuir a dívida pública no Brasil? Aumenta o crescimento econômico, o PIB, produz mais pão, mais feijão, mais carro, mais carne que você aumenta o PIB e cai a dívida pública”. Em relação à proposta de reforma da Previdência de Paulo Guedes, a ordem do chefe, óbvio, é resistir, orientando inclusive o uso das mesmas ferramentas e estratégias de Bolsonaro na guerra digital.

Bruno: É simplista, mas é mais realista do que implantar o arrocho e cortar trinta por cento dos orçamentos das federais, assim como cortar educação básica, pois assim Bolsonaro está destruindo o país. Você entendeu, de  verdade, que Lula está sugerindo a prática de fake news por parte do PT, assim como o uso de calúnias moralistas como inventar um kit gay que não existe? Não ouvi isso na entrevista.

Lula na sua primeira entrevista após a prisão. Foto: Ricardo Stuckert.
A insistência em negar as evidências do passado recente e a ausência de uma postura propositiva em relação ao futuro, presentes no discurso de Lula, já custaram ao PT a eleição de 2018 e pode significar um longo ciclo de decadência da esquerda brasileira.

Você acabou de dizer que a postura propositiva do PT é simplista, ou seja, você acaba de recusá-la. Creio que você espera algo ali de onde não pode sair. Não se está no lugar de um julgamento isento, de um debate aberto. Lula está falando graças a uma brecha judicial duramente conquistada. E note que a entrevista foi ignorada na rede Globo. Há que se debater se o PT não é ele mesmo fruto desse “longo ciclo de decadência da esquerda brasileira”. Ou se não ele é mesmo parte dessa decadência, pois seguiu a macroecononomia de FHC, que era de direita neoliberal. Ou estou equivocado?

Na votação da PEC da previdência na CCJ na semana passada foi exatamente isso o que se viu. Apesar do justo protesto contra a resistência do governo em apresentar os dados e as simulações que embasaram sua proposta, os principais partidos de oposição (PT, PSOL, PC do B, REDE, PSB, PDT e PROS) deixaram claro que cerrarão fileiras contra o projeto de Guedes e Bolsonaro.
Essa postura de “ser contra por ser do contra” é incoerente com os programas desses mesmos partidos durante a campanha eleitoral.

Igualmente, não sei se foi tocado o tema da reforma da previdência durante a campanha eleitoral de Bolsonaro. Mas se esses partidos são contra, há realmente boas razões para ser contra: é uma reforma que busca tirar direitos de trabalhadores e pobres, que basicamente nega que a previdência é superavitária, uma reforma que no fundo é voltada para banqueiros e não é “a salvação do Brasil” como você talvez acredite, com certeza só com bons sentimentos no coração. Há boas razões para ser contra. Quem está sendo contra, está sendo contra com bons motivos.

O PDT de Ciro Gomes e a REDE de Marina Silva apresentaram propostas de reforma da previdência que continham uma migração para um regime misto que combine elementos de repartição e capitalização, elevação da idade mínima para se aposentar e a eliminação dos privilégios dos servidores públicos – elementos centrais do projeto encaminhado pelo governo.
Guilherme Boulos, do PSOL, apesar de ser contrário à capitalização, defendeu a unificação dos regimes do setor público com o INSS e o estabelecimento de alíquotas progressivas de acordo com a renda do cidadão. Já Fernando Haddad (PT) prometeu “combater, na ponta dos gastos, privilégios previdenciários incompatíveis com a realidade da classe trabalhadora brasileira”.
Seria de se esperar, portanto, que os partidos de oposição, com o PT à frente, deveriam ser a favor de medidas presentes na proposta do governo que claramente são voltadas para a redução das desigualdades econômicas provocadas pelo regime previdenciário atual – como a elevação de alíquotas para a elite do funcionalismo público ou a extinção da aposentadoria por contribuição e o aumento da idade mínima, institutos que na prática beneficiam os estratos mais ricos da pirâmide social. Mas não é isto o que aconteceu na CCJ e nem tampouco o que veremos na comissão especial e no plenário.

Bruno: aí é que te pergunto: qual é a elite do funcionalismo público que será afetada por essas medidas? São os juízes? São os generais? O que vi e li até agora são propostas realmente perversas, como aumento da idade mínima para professores. Ou talvez você considere que professores são parte da elite do funcionalismo público.

Os líderes da esquerda brasileira deveriam estudar mais e refletir se essa estratégia é a melhro estratégia. A eleição de Donald Trump nos EUA tem levado a uma safra de estudos com boas autocríticas sobre os erros da esquerda progressista americana. Em “O Progressista de Ontem e o de Amanhã”, Mark Lilla, professor da Universidade Columbia, defende que a pior postura da oposição diante deste novo populismo de direita seria a resistência. Extrapolando sua visão para o caso brasileiro, contestar cada movimento de Bolsonaro, como seus adversários vêm fazendo, seria cair na sua armadilha, pois esses populistas alimentam-se do embate verbal (ou digital). A oposição precisa organizar-se institucionalmente para construir uma agenda propositiva para colocar os interesses dos cidadãos à frente da disputa política.

Bolsonaro era contra a reforma da previdência no passado, assim como demonstra má vontade com ela, dizendo que está nas mãos do congresso. Disso você não lembra, né.


Essa é a mesma visão de Yascha Mounk, professor alemão da Universidade Johns Hopkins, cujo “O Povo contra a Democracia” acaba de chegar nas livrarias. No prefácio escrito especialmente para a edição brasileira, Mounk argumenta que os oponentes dos populistas acabam se perdendo ao se concentrar nas falhas pessoais e políticas de governantes como Trump, Maduro ou Bolsonaro, em vez de construir um leque de propostas construtivas para a população. “Os defensores da democracia liberal precisam provar para seus concidadãos não só que Bolsonaro é ruim para a nação, como também que eles podem fazer um trabalho melhor”.

Mas Bruno, eles fizeram um trabalho melhor. O governo Lula foi melhor do que o governo FHC, manteve a macroeconomia neoliberal e aplicou alguns ajustes sociais. Ao mesmo tempo, Bolsonaro praticamente destruiu o programa Mais Médicos ao expulsar os médicos cubanos, sem conseguir substituí-los de forma eficaz. Bolsonaro está colocando décimo terceiro para o bolsa família. Mas a tônica do bolsonarismo foi dizer que bolsa família era coisa de vagabundo, etc.

Continuar bradando contra a reforma da Previdência não resolverá a grave situação em que nos encontramos, assim como não contribuirá para reduzir o fosso que separa ricos e miseráveis no país. Se ela é realmente a favor de um país menos desigual, a oposição precisa assumir a responsabilidade de apoiar as boas propostas e colocar na mesa alternativas para aprimorar o que não é bom, ao contrário de ser simplesmente do contra.
Ao contrário do que orienta Lula, a polarização joga a favor dos seus inimigos.

No entanto, Bruno, a reforma da previdência postar por Guedes e Bolsonaro efetivamente aumentará o fosso entre ricos e pobres. Se acha que não, deve voltar a estudar. O que ela possa ter de bom é suplantado em muito pelo que ela traz de ruim, de regressivo, de perverso, como a diminuição da aposentadoria rural, como o aumento da idade mínima para professores. Então, bradar contra ela é fazer algo pelos pobres e trabalhadores. Ao contrário do que aparenta, seu artigo não quer orientar Lula, nem ajudar ou a esquerda. Você se opõe sistematicamente aos dois. Você está numa posição à direita de Bolsonaro, pois nem ele acredita que ela é boa, tanto que ele afirmou que ela “está nas mãos do congresso”. Se fosse boa, com certeza diria: “está nas minhas mãos construir um Brasil melhor”.