terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Resenha de Formação do Brasil Contemporâneo, Caio Prado Júnior

Resenha de Formação do Brasil Contemporâneo, Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contemporâneo (editora Companhia das Letras, 2017), obra clássica de Caio Prado, é um ensaio elegante, bem escrito. Mais que formação de Brasil, é formação do Brasil colônia. É considerado a aclimatação do marxismo para analisar a realidade do Brasil, mas nesse ponto deixa bem a desejar. Ele nem toca no debate dos restos feudais que fazia o seu partido. E é racista para nossa sensibilidade de 2023. Ser marxista não é pensar que “o mais importante é economia”, como parece pensar Caio. Marxismo é projeto revolucionário, projeto de emancipação. Daí que o estudo teria que enfocar como a colônia tornou-se independente, que estruturas e superestruturas agiram. Ele observou um plano gera de todo o período e abordou vários temas: sentido da colonização, povoamento, indústria, etc. O livro tem frases racistas para nossa sensibilidade do século XXI, muitas que se referem pejorativamente a índios e negros. Caio escreveu que “tudo isso lança muita luz sobre o espírito com que povos da Europa abordam a América. A ideia de povoar não ocorre inicialmente a nenhum. É comércio que os interessa e daí o relativo desprezo por esse território primitivo e vazio que é a América” (PRADO, 2011, p. 20). E ele insiste nesse tipo de assertiva equivocada o livro todo: a América estava vazia antes do colonizador chegar. A obra de Caio não registrou os esforços nativistas, nesse ponto esse livro foi muito fraco. Na página 28, Caio considera que o sentido da colonização foi “uma vasta empresa comercial (...) destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito de comércio europeu (PRADO, 2011, p. 20). Só que foi empreendimento estatal de um reino que era mercantilista e feudal. Chega ser irritante ler que mesmo depois da independência continuamos existindo enquanto “verdadeiros empresários, de parceria com a metrópole, da colonização do país” (PRADO, 2017, p. 132). Talvez atingido pelo vírus da indolência, Caio não conseguiu captar o horror dessa “parceria de empresários”. Ele mesmo registra como mal se podia chamar de agricultura o que se fazia aqui. A colonização aqui foi empresa de saque, inclusive predatória da natureza e ainda hoje vivemos sequelas. Caio, aliás, recorre o tempo todo a Saint-Hilaire, Koster, Martius e outros estrangeiros para falar do Brasil colônia. Até aí tudo bem, as fontes afinal, são essas. Mas ele comunga com o olhar preconceituoso desses europeus: “influxo de sangue indígena como fator de indolência” (PRADO, 2017, P. 370). Ele sempre insiste em chamar os negros e povos originários de semicivilizados e bárbaros. E não o regime escravista de bárbaro. O sul do Brasil teria sido colonizado por “brancos puros”. Ele insiste em “pureza de sangue” em oposição a mestiçagem. Caio Prado aparenta ter lido Casa Grande e Senzala, o livro foi citado, mas mesmo assim nega a contribuição civilizatória do negro e do nativo. Terá sido até ele mesmo tomado pelo vírus da preguiça que ele detectou aqui? Na mesma página, após mencionar que Gilberto Freyre afirmou ser preciso “distinguir entre o papel do escravo e do negro”, afirmou, numa passagem confusa, “mas não é impossível e, de uma forma geral, o que se conclui é que se o negro traz algo de positivo, isto se anulou na maior parte dos casos, deturpou-se em quase tudo mais” (PRADO, 2017, p. 365). Ou seja, Caio Prado simplesmente negou o que Freyre teorizou a respeito da contribuição do negro para a civilização brasileira. Falta de leitura atenta? Divergência? Indolência? Caio mesmo menciona a atitude da coroa em Diamantina, onde o funcionário responsável pela mineração dos diamantes respondia diretamente ao rei, sem passar por “empresários”. Minas tem muito destaque em fotografias, na viagem dele para cidades históricas, mas nem a Inconfidência é registrada como luta econômica – afinal, desde a guerra contra o Holanda os nacionais viram que, se tinham de organizar uma guerra com recursos próprios para libertar o país da Holanda, por que não organizar os recursos e expulsar também Portugal? Fora a questão da acumulação primitiva gerada pelo ouro de Minas, ouro esse que teve um enorme papel na revolução industrial inglesa. Embora Marx não cite nominalmente, ele fala nas riquezas chegando das colônias pelo porto de Liverpool em O Capital. Caio Prado Júnior nem debateu nesse livro a hipótese do feudalismo no Brasil, simplesmente descartou-a de forma preguiçosa. Hoje em dia sua explicação ficou tão hegemônica que a mera menção da hipótese do feudalismo passou a ser rechaçada tendo em vista a bibliografia “robusta” de Fernando Henrique Cardoso, Gorender, Maestri, Florestan e outros luminares nascidos desses indolentes “insights” de Caio Prado Júnior.

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Resenha de Escravidão Colonial, de Jacob Gorender

Resenha de Escravidão Colonial, de Jacob Gorender 1.Originais mesmo no sofrimento A tese principal dessa obra é que existiu no Brasil um modo de produção singular, uma “jabuticaba” nacional, no mau sentido sempre repetido pelos nossos economistas: o escravismo colonial, uma descoberta que, segundo Gorender, está de acordo com o materialismo histórico moderno: “ou inventamos ou erramos”, poderiam ter dito os portugueses ao colonizar o Brasil. Se somos originais até no sofrimento, imagine quando independentes. Se essa ideia de um modo de produção nacional em uma nação que não era nação já é sim audaciosa, o que se segue é mais ainda: “O modo de produção feudal, dominante no Portugal da época, não se transferiu ao país conquistado". A suposição de que a transferência deveria ocorrer não é nenhum absurdo do ponto de vista do materialismo histórico. Mas para Gorender isso é apenas o passado, o “stalinismo”. Essa negação do feudalismo é uma tomada de posição na historiografia. Toma-se partido de Caio Prado Júnior contra Nelson Werneck Sodré, embora de forma muito bem disfarçada. Gorender recusa a dicotomia entre capitalismo ou feudalismo e para resolver isso cria um novo modo de produção, o escravismo colonial. Esse escravismo, diferente daquele que fez com que Platão fosse capital-dinheiro em Siracusa (não sejamos dogmáticos e nem stalinistas, ora!), no entanto, não evoluiria para o feudalismo e sim para o capitalismo, ou seja, já teria em si o embrião desse novo modo de produção. Ele “descobre” um modo de produção original inventado pela portugalidade. Se havia escravidão até na Irlanda, resta saber se até lá havia escravismo colonial. Para ele, trata-se de uma “realidade histórica nacionalmente caracterizada” num país que não era nação, embora “síntese mais universal possível” no império português. Como parte dessa originalidade, ele reivindica o termo “plantagem”, pois essa forma de plantação (plantation) para exportar teria começado nas ilhas atlânticas portuguesas e sido copiada pelos franceses e ingleses. Gorender retomaria o fio de Ariadne dessa nossa civilização luso-tropi-capitalista. Para Gorender, o servo diferencia-se do escravo porque ele tem seus próprios meios de produção, seria quase livre se não fosse um cambão aqui e uma corveia acolá. Ele pensa talvez que quando o servo trabalha a terra do senhor feudal, a terra é dele, é uma pequena propriedade e que talvez tenha havido reforma agrária na Idade Média. No afã de, quem sabe, portugalizar e “mulatizar” o materialismo histórico, Gorender recusa o ensaio de I. Stuchevski e L.Vassíliev sobre modelos de desenvolvimento histórico. Afinal, segundo Gorender, os autores fariam confusão entre escravidão, servidão e o modo de produção asiático. Faltou combinar com os russos, que consideraram a diferença entre os três inessencial. Gorender vai para o lado oposto ao desses “stalinistas”: aproxima escravidão assalariada e escravidão no Brasil colônia. Chega a citar o termo de Marx “escravidão industrial”, utilizando habilmente os seus Rascunhos (Gundrisse). Se ao citar plantation nas citações de Marx, ele assim mesmo insiste em traduzir por plantagem, talvez devesse patrioticamente traduzir Gundrisse por Rascunhos. O esforço de Gorender é em distinguir completamente servo e “escravo colonial”. Ele admite, no entanto, que a plantation (sic) tem elementos semelhantes ao feudalismo: latifúndio, povoados isolados, vontade do senhor de engenho ou fazendeiro erigida em lei. Gorender comentou a associação da plantation com algodão, fumo e café em “condições econômicas vantajosas”. Nessa linha de raciocínio, numa quase invenção da agroecologia no Brasil colônia, Gorender chega a afirmar que a cachaça era de fácil acesso às populações locais. Igualmente, éramos avançados com o “estabelecimento de produção em grande escala, a plantagem já apresentava uma divisão do trabalho avançada, se nos ativermos à técnica europeia do século XVI, divisão do trabalho não só quantitativa, mas também qualitativa”. No Brasil colônia já tínhamos, quase, agroecologia e fordismo, num êxtase da portugalidade antifeudal. Português não erra, inventa. 2. Pulando uma pinguela histórica sem guerra Mais adiante, Gorender debate o seguinte problema: é praticamente um consenso dizer que Portugal ficou para trás em relação a Holanda e Inglaterra, preso em estruturas feudais. Mas toda a linha do raciocínio dele é no sentido de nos fazer, a nós brasileiros, pular a “pinguela histórica” do feudalismo, então é preciso fazer o raciocínio no sentido inverso. Ele resolve dizendo que o avanço do mercantilismo faz com que haja progresso no sentido do capitalismo (no nosso caso), mas pode fazer com que haja retrocesso no sentido de uma nova servidão (no caso da Europa centro-oriental estudada por Engels). Como a Europa oriental participou no mercantilismo nas Américas é uma incógnita. Mas não há como negar que a generosa originalidade da portugalidade nos fez um favor ao nos possibilitar a possibilidade de pular sem guerra civil o feudalismo, essa verdadeira “pinguela histórica”. Inicialmente, Gorender postulou que nada do feudalismo veio para cá. No entanto, aceitou a hipótese de que o feudalismo ficou forte porque Portugal conquistou o Brasil, mas não exportou essa “força estranha” para cá. Como é que poderia o feudalismo atrasar Portugal, depois ficar forte quando Portugal conquistou o Brasil, para logo a seguir não ser exportado em nada para cá? Mais uma incógnita que permaneceu sem emplasto. Verdade seja dita, Gorender encontrou uma passagem no Capital que fala que o servo tem propriedade própria, é autônomo. Gorender tem de se haver com a questão do escravismo ter sido exportado de Portugal e não o feudalismo e diz que existia escravismo no Portugal continental, cerca de dez por cento da população de Lisboa era de escravos negros. Ele vai por esse caminho, depois recua: não se pode deduzir o modo de produção escravista colonial da atuação colonizadora de Portugal no Brasil, tem a originalidade luso-tropi-capitalista. Até então, ele parecia querer fazer isso, falando na “plantagem” que teria surgido, não de sua cabeça, mas das ilhas atlânticas. Há quem negue o feudalismo até em Portugal. Herculano e Gama Barros negaram ao seu país uma época feudal. O termo feudalismo, segundo Gorender, teria sido criado pelos adversários do fato social dessa maneira por ele designado. Essa afirmação carece de lógica, uma vez que dá a entender que quem é contra a ideia de exportação do feudalismo é a favor do fato social. Por isso esses autores seriam contra aproximar mercantilismo e capitalismo. Ou seja: Gorender, Caio Prado Júnior seriam a favor do feudalismo. Não deixa de ser uma hipótese pitoresca, mas atraente. O feudalismo, segundo Gorender, seria uma superestrutura, não elemento da estrutura. Ele coloca uma posição: se você for marxista, feudo tem que ser organização jurídica e política. Não basta a organização econômica. Bom, ele mesmo admite que o direito feudal aportou aqui, logo algo do feudalismo foi exportado, apenas passou por metamorfoses sociais mirabolantes, não se sabe se por Gorender ou se por nossos bispos Sardinhas famintos de dízimos. Mesmo assim, não se exigiria o mesmo rigor de todos e um Caio Prado Júnior pode ser marxista e falar em burguesia rural, segundo Gorender. Esses termos não teriam mais o significado que tinham no passado. Para ele, só depois da abolição da escravidão os camponeses brasileiros teriam “descoberto” a meia e a terça. Com certeza adoraram a novidade. E tudo graças aos elementos originais e nada feudais do escravismo colonial. A possível tradução de corveia em cambão fica de fora dessa originalidade –mas foge ao nosso entendimento o motivo. 3.Originalidade luso-tropi-capitalista Gorender diz que a mais valia na sociedade escravista é diferente da mais valia da sociedade capitalista. Ele fala em escravo como capital-dinheiro e renda feudal. Há também renda escravista industrial e renda escravista da terra. Gorender, seguindo a senda criativa da portugalidade, descobre as leis do escravismo colonial. Elas saem originais, bem no estilo da portugalidade que criou o escravismo colonial, mas igualmente bastante aparentadas com aquelas apresentadas pelo Capital de Marx para analisar a economia inglesa. Embora existam essas semelhanças, “a renda da terra no Brasil teve um ponto de partida original e uma evolução também original”. Outra hipótese curiosa: Herculano e Gama Barros proporcionaram “à revelia de sua visão teórica, os elementos factuais conducentes à conclusão, sobre a existência da época feudal na história do remo lusitano”. Tem gente que defende que o feudalismo não existe e faz com que a tese oposta ganhe força. Gorender apoia-se num tal C. R. Boxer para falar em “forma portuguesa de feudalismo”. Além de inventar escravismo singular, os portugueses inventaram um feudalismo original. Igualmente originalíssima é a terminologia a seguir usada por Gorender: “considerando o localismo peculiar ao regime feudal e as diferenciações dentro da massa camponesa, no meio da qual já se sobressai uma camada aburguesada,” ou seja, tem burguesia feudal e camponês burguês. Sem dúvida, é relaxar mais do que o Urso do Cabelo Duro na hora de definir conceitos. Gorender acredita muito na originalidade da portugalidade, mas recua diante de seus impulsos e nega que a revolução de 1383-1385 fosse a primeira revolução burguesa ou revolução popular e burguesa. Gorender não aceitou a revolução burguesa de Avis. Seria ir longe demais ao pensar na portugalidade inventando o capitalismo antes dos ingleses? Os portugueses teriam: 1) inventado o escravismo colonial, modo de produção original; 2) inventado um feudalismo original; 3) inventado o capitalismo, modo de produção hegemônico no mundo inteiro. Felizmente, ao que parece, para Gorender, nos países ibéricos, a exploração colonialista não favoreceu, mas obstaculizou o desenvolvimento do modo de produção capitalista. A sanha da portugalidade foi aplacada em sua inventividade feroz. Mas voltando: se Portugal era assim atrasado em 1500, como não exportaria feudalismo? A seguir, ao menos, Gorender ao menos admite o feudalismo em Portugal: “é um vezo de historiadores brasileiros imaginar a formação social portuguesa, que colonizou o Brasil, como sociedade urbana capitalista. No entanto – demonstrou-o Magalhães Godinho –, no ápice de sua força imperial, durante o recenseamento de 1527-1531, a população urbana correspondia apenas a 12,7% da população total do reino lusitano40. E, do mesmo autor, igualmente se infere que a estrutura da sociedade portuguesa dos séculos XVI-XVIII, nas novas condições da expansão ultramarina, cristalizou-se rigidamente segundo as linhas preexistentes da ordem feudal”. Por outro lado, ele também afirma que existia trabalho escravo na sociedade portuguesa medieval, sua fonte eram os sarracenos aprisionados. Bom, isso talvez explique a preferência da exportação do modo escravista original ao invés do feudalismo. Ou a exportação só do direito feudal. Ou simplesmente não explique nada, afinal. Gorender prossegue: “do ponto de vista mais abstrato, não há diferença entre o escravo, o servo e o operário assalariado.” Nisso, nosso teórico vai além do stalinismo que dizia que quase não há diferença entre escravo e servo, agrupando também o operário assalariado. Daí que poderíamos inovar bastante falando em mais valia aristotélica ou Platão vendido como capital-dinheiro. Os conceitos se mostram elásticos. Como o escravismo prossegue, a periodização de Brasil colônia e Brasil império passa, para ele, a não ter relevância. Ora, com o país independente, abre-se o campo para a originalidade mais profunda. Sodré é um autor que é citado bastante negativamente nesse texto, ao contrário de Caio Prado Júnior e o então prestigiado “marxista” Fernando Henrique Cardoso. Esse sim, “marxista” de boa cepa! Sodré é citado no decorrer do texto, leva um pé na bunda em pés de página, mas não é citado na bibliografia final. Gorender comenta brevemente que nos Estados Unidos também houve o salto histórico do escravismo para o capitalismo com a guerra civil, pulando a “pinguela histórica” do feudalismo. Camarada Lênin divergia, achava que houve semifeudalismo no sul dos USA. Quando pensávamos que nada do feudalismo tinha vindo aqui, vem o Gorender falando que precisava pensar na “questão do processo jurídico de repartição do fundo agrário colonial por meio da doação de sesmarias. Vejamos como foi aplicado no Brasil esse instituto do direito feudal português”. Mas veio o direito feudal português e não veio feudalismo? Mas Gorender mesmo disse que se tiver a superestrutura feudal, o aparato jurídico e político, já é meio caminho andado para o feudalismo. Difícil solução, mas nosso Gorbachev dos trópicos resolve: esse direito sofreu uma “metamorfose” social ambulante. E prossegue o nosso Procusto: “Além desse episódio, houve algumas tentativas frustradas de transplantar procedimentos feudais ao âmbito colonial.” Felizmente, diríamos, não é? Um dos fracassos do feudalismo seria justamente o fracasso do nobre Brás Cubas! Felizmente, a doação de sesmaria a esse nobre que deu nome a um emplasto famoso teve “características que não prevaleceram no regime territorial brasileiro”. É ou não é piada pronta? Felizmente, diríamos, Portugal fracassou em exportar o feudalismo. Se exportasse poderia exportar, quem sabe, mais um modo de produção único, o feudalismo português. Santa originalidade. A seguir, ficaram ainda alguns emplastos para resolver: “Cumpre agora esclarecer o caráter e a função que tiveram no Brasil certos institutos também procedentes de Portugal: o dízimo eclesiástico, os foros enfitêuticos e os morgadios.” Ficamos aqui matutando: é o direito feudal que passa por uma metamorfose social e institucional, no ânimo antropofágico de nossos bispos Sardinhas, ou Gorender quem, “raulseixisticamente”, metamorfoseia o direito feudal em outra coisa para caber em sua tese, cujo materialismo é muito mais inspirado em Procusto do que Epicuro, ouso supor? Quando Gorender confronta Sodré consigo mesmo é ainda mais doloroso. Ele cobra a Sodré lógica, justapondo duas citações. Gostaríamos de não ser dogmáticos e nem stalinistas, mas Gorender nos obriga. Por exemplo: por que não poderia haver a dissociação de feudalismo e latifúndio? Não poderia existir feudalismo com pequena propriedade? Feudalismo agroindustrial? Feudalismo em Cuba socialista? Gorender nos traz o óbvio ululante: “a grande propriedade da terra em nenhum caso explica por si só o sistema econômico. O que é óbvio e trivial, mas infelizmente passa despercebido a quem tem por dogma a associação de latifúndio e feudalismo”. A grande propriedade da terra pode até não explicar todo o sistema econômico, mas na colônia, como disse Sodré acertadamente em citação colocada em pé de página do texto, o que fez a distinção entre classes no Brasil colônia foi a propriedade da terra. Caio Prado foi perdoado em todos os conceitos confusos, mas a Sodré foi cobrado rigor. A tomada de partido é bem clara, Gorender sofisticou e tornou aceitável o que em Caio Prado era uma barbaridade: o Brasil capitalista desde 1500, a confusão de relações mercantis com capitalismo, etc. Rigor esse que Gorender não esbanja, diga-se de passagem. Conclusão Então retomo para concluir: a meu ver, inequivocamente, se falamos em feudalismo aqui é porque efetivamente somos contra o latifúndio, somos contra o fato social. Esse ponto é o mais triste, evidentemente, nessa resenha, mas foi colocado pelo próprio Gorender, pois ele e Caio Prado, ao invisibilizar o feudalismo, acabam por tomar o partido dos latifundiários, ou seja, uma posição reacionária. Gorender, então: supôs um modo de produção original exportado e criado pelos portugueses. Esse modo seria a solução para o problema do país ser capitalista ou feudal em seu tempo de colônia. Parece engenhosa solução, mas é uma tomada de partido disfarçada a favor de Caio Prado Júnior. Ele sofistica e torna aceitáveis as posições de Caio Prado. A postura de Caio levou-nos a supor que existia capitalismo aqui no Brasil enquanto não havia na Europa. Felizmente, Gorender contornou a postura que poderia ocorrer de supor não só um escravismo colonial original, quanto também um feudalismo português ou até mesmo a invenção do capitalismo, pioneiramente, na terrinha. Ao mesmo tempo, Gorender afirmou que não foi exportado feudalismo, mas enredou-se em contradições ao falar em exportação e metamorfose do direito feudal por nossos “bispos sardinhas”. O escravismo colonial, ao contrário do antigo, metamorfoseia-se em capitalismo e não em feudalismo, ao carregar, portanto, os embriões desse modo de produção. Aproveitando essa brecha, Gorender adapta as leis de O Capital e cria as leis do escravismo colonial a partir daquelas: fala-se em renda feudal, escravo como capital-dinheiro, escravismo industrial e outros conceitos que, afinal, sobrenadam em boa companhia ao lado de conceitos de Caio Prado como burguesia feudal e camponês burguês. Isso nos fez divagar em Platão vendido como capital-dinheiro e em mais valia aristotélica, afinal, não somos stalinistas dogmáticos e sim abertos a inventividades luso-tropi-capitalistas. Finalmente, podemos concluir que materialismo histórico moderno de Gorender, para lá de original, enfim, é muito mais inspirado em Procusto do que em Epicuro. Bibliografia: GORENDER, Jacob. Escravismo Colonial. São Paulo: Expressão Popular, 2016.