segunda-feira, 23 de março de 2020

Psicanálise e Vida Cotidiana



Eduardo Lucas, Victor Cruz e Paulo Ceccarelli (org.)

            Psicanálise e Vida Cotidiana, obra que tem inúmeros autores, organizada por Eduardo Lucas Andrade, Victor Cruz de Freitas e Paulo Roberto Ceccarelli, é um livro que vai bem além do tema proposto. Os dois primeiros textos, o de Alexandra Martins e o de Alexandre S. Barbosa tocam em temas interessantes, tais como a relação entre o biológico e a mente, entre o pensamento e o corpo orgânico, mas seu vocabulário é mais técnico, afastado de temas da vida cotidiana.
O texto de Eduardo sobre o suicídio aborda esse interessante assunto. O senso comum acredita que, quando alguém está estudando o suicídio, essa pessoa quer suicidar-se, por isso esse tema seria “deprimente”. No entanto, refletir sobre nossa morte é valorizar nossas vidas, bem como saber como lidar com algo tão doloroso que parece não caber na vida.
            O texto mais bem humorado é de Victor Cruz, texto que aborda a operação bariátrica que trata da obesidade, pois desmistifica o “balão mágico” que faz emagrecer. A obesidade demanda um tratamento psicanalítico sério, bem mais além da mera intervenção cirúrgica.
            Victor Cruz realizou, em conjunto com Ceccarelli, o texto sobre o xamanismo, assunto fascinante devido ao fato de que esse tipo de ritual está presente entre os índios brasileiros. É bastante inovador aliar psicanálise e xamanismo em experiências teóricas e práticas com as chamadas “plantas de poder” sendo utilizadas para poder investigar conteúdos do inconsciente.
            Outro texto mais que pertinente, esse sim o mais próximo da nossa vida cotidiana, refere-se à agressividade no mundo virtual. Ela desvenda essa crescente agressividade a partir do escândalo que é a transmissão de dados dos usuários para as empresas, o que fez com que essa agressividade fosse potencializada com finalidades eleitorais.
            Um texto saboroso e significativo, a meu ver, é o que trata da erotomonia. A pessoa apaixonada tende a perder parte de seu senso crítico e sua capacidade de avaliar verdadeiramente a realidade. Isso é comparado e definido pelos autores com rara sagacidade:

O sujeito vive uma relação amorosa com seu objeto de amor assim como um toxicômano pela sua droga de preferência. O amor patológico em si, se caracteriza pelo comportamento de prestar cuidados e atenção, de maneira repetitiva e sem controle, ao objeto de amor (parceiro) com a intenção (nem sempre revelada) de receber o seu afeto e evitar sentimentos pessoais de menos valia (SILVA, MONTEIRO, 2019).

            Pode-se, então, considerar que a situação acima leva ao chamado amor patológico, pois a pessoa passa a pensar seguidamente na pessoa amada, o que faz sofrer muito, pois focaliza nos obstáculos a esse amor.
            O texto de Dircilene sobre a mulher e sexualidade tem também duas passagens que considerei muito significativas: a de que, para a mulher, o desejo de um homem é o desejo de um bebê, pois só através do homem ela pode ter o bebê. Outro é que a agressividade da mulher, por razões sociais e históricas, é voltada contra si mesma e, por isso, no homem o masoquismo é um traço feminino.
Esse texto liga-se a outros textos do volume: aquele sobre feminicídio: o homem teria mais tendência ao sadismo, daí sua opressão do feminino na mulher e no homossexual. A agressividade do homem estaria voltando-se à mulher, em traços sádicos e perversos, ou seja, do sofrimento do outro ele tira prazer. E também aquele que trata do prazer de ser mãe enquanto construção histórico e cultural, discussão presente no texto de Mireli Barbosa Martins, texto que debate e desconstrói o mito do amor materno. A mulher, por vezes, deixa-se levar por pressões sociais e nota, depois de ter o filho, que não tem essa realização prometida de forma automática pela cultura na maternidade. Muito pelo contrário.
            No texto de Lavarini sobre a formação dos analistas, texto com um tema que a meu ver é original, creio que é brilhante que tenha lembrado da distinção entre a escuta do analista e a escuta do padre, esclarecida nos seguintes termos por Freud: “Há uma grande diferença, por que o que desejamos ouvir de nosso paciente não é apenas o eu ele sabe e esconde de outras pessoas: ele deve dizer-nos também o que ele não sabe” (LAVARINI, 2019, P. 221).
            A análise do conto de Caio Fernando Abreu (“Não se deve decretar a morte de um girassol antes do tempo) através da psicanálise encanta pela riqueza de sentidos que foi possível encontrar nesse conto. Por fim, o texto sobre feminicídio de Thaís e Luciano debate o horror ao feminino, mas também deveria debater o sadismo do homem, o masoquismo como traço feminino e o desejo do homem como um veículo para ter um bebê, o que em si é problemático, pois o homem não é visto como um fim em si mesmo e sim como meio para um fim. Isso gera conflito e precisa ser abordado.