Um observatório da imprensa para a cidade de Bom Despacho e os arquivos do blog Penetrália
quinta-feira, 9 de janeiro de 2025
Uma Carta para Elizabeth: Breve Romance de Sonho
Minha tia e madrinha Elizabeth Madeira Morais, para nós, da família, simplesmente Beth, fazia aniversário no natal. As belas luzes de natal em Bom Despacho esse ano me lembram dela e das luzes do filme De Olhos Bem Fechados, aliás baseado num romance chamado Breve Romance de Sonho, título que define bem a curta vida de minha tia Elizabeth. Beth era admiradora do cinema, com ela vi várias vezes o filme Sonhos, de Akira Kurosawa. Um tempo depois de seu falecimento, tive um sonho semelhante ao sonho do túnel apresentado no filme, onde eu e Beth nos encontrávamos e eu, de repente, tive de lhe explicar que não podíamos estar conversando, pois ela tinha morrido, o que a deixou assustada e constrangida.
Elizabeth foi professora de francês aqui na cidade e trabalhou, inclusive, na escola Wilson Lopes onde eu estou hoje, jornada que era uma longa caminhada para um bairro ermo. Muito tempo depois, meu tio Bil Morais investigou a origem de nossa família e encontrou, ligada a história do Major da Piraquara, uma suposta filha de Padre Belchior, nascida na França, Júlia, a francesa. Ela teria nascido de uma relação furtiva do padre e foi mencionada como uma figura importante da cidade de Bom Despacho em seus primórdios. Beth também era uma admiradora da cultura francesa. Ela deixou o magistério em francês para tornar-se bancária concursada na Minas Caixa, seguindo a carreira do pai, Mário Morais. Sendo assim, comprou apartamento em Belo Horizonte, mudou-se definitivamente para lá, num lugar bastante próximo da Praça da Liberdade. A decisão mostrou-se trágica devido aos desdobramentos: com o fim da Minas Caixa em 1990, saqueada por governantes inescrupulosos, o banco findou como quase todos os bancos estaduais (sobraram somente o Banestado e o Banrisul). E Beth foi transferida para uma repartição pública onde não se adaptou, fato que a angustiou e pode ter sido um gatilho para sua doença. Beth chegou a viajar para a França, deixando a respeito um diário, tema de uma crônica minha aqui. No diário da viagem da Europa, ela comenta que trouxe roupas da França para mim (eu tinha então dois anos). No texto ela devaneia se ainda voltaria mais vezes à França, mas nunca voltou, sua vida mostrou-se curta.
Beth faleceu já há trinta anos, aos quarenta e três anos; eu já vivi mais que ela. Sua vida foi cheia de tragédias, coincidências e de mistério. Na juventude, apaixonou-se por um amigo e o amigo morreu, logo em seguida, da mesma doença (câncer no cérebro) que anos depois a levaria. Beth acompanhou corajosamente todo o trágico processo. Foi um de seus únicos grandes amores; ela morreu solteira. Um de seus pedidos era que queimássemos seu diário íntimo (o da Europa felizmente ela permitiu que existisse) e assim foi feito, junto da amiga Madalena, naquela casa ali na Vigário Nicolau que, demolida, infelizmente deu lugar a um lote vago. Foi muito doloroso para nós da família, infelizmente: foi como ela se morresse ali de novo, naquele momento. Um dos discos que ela tinha acabado de comprar, em 1991, ano em que descobriu ter um câncer no cérebro, foi o álbum Burguesia, de Cazuza, que também é canto de cisne desse poeta e músico, também morto de uma doença incurável. Algumas canções, Cazuza gravou até na cama do hospital, para que vocês possam ter ideia. Ele cantou na canção Azul e Amarelo:
Senhores deuses me protejam, de tanta mágoa
Tô pronto para ir ao teu encontro
Mas não quero, não vou, eu não quero
Não quero, não vou, não quero
Existem também drogas pra dormir
E ver os perigos no meio do mar
O sono pesado, tudo meio drogado
Existem pessoas turvas, pessoas que gostam
E eu tô de azul e amarelo
azul e amarelo
Reencontrei, em um livro de poesia que ainda não editei (Violetas de Aleluia), um poema para Beth datado daquela época, com o mesmo nome que dei para essa coluna:
Uma Carta para Elizabeth
Então você caiu de cama,
Naquele dia em que o rei imaginário
Exibia seu pálido sorriso.
Vieram avalanches luminosas
Dominar a cidade...
Meu aniversário foi estranho,
Música e musgo na noite.
Mais cadáver do que nunca,
Não vejo novidade em viver nem em morrer,
O natal foi frio.
Você já esteve apaixonada em outros tempos,
Agora quando sente a leveza insustentável da pluma
Sabe que somos personagens da peça.
Tigres de papel sorrindo o tempo todo,
Todos estamos só ensaiando para quando cair o pano.
Mas por que só você não sai do palco e ri?
As lágrimas emudecem o sofá?
Sombras furtivas no eclipse
Procuram seu nome...
Minha tia Maria Lúcia Duarte Mateus definiu muito bem a Beth: “a Beth, ainda que tendo uma breve passagem por aqui, deixou marcante presença em muitas pessoas que passaram algum tempo com ela... Passava o ano inteiro escolhendo pequenos mimos pra distribuir na festa de Natal entre grandes e pequenos, idosos e crianças etc... Pessoa humilde e gigante em tudo que fazia.
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