Penetralia,
Não sou eu, mas você que confunde o “projeto de poder do Ocidente” com a razão. Eu, ao contrário, diferencio a razão de qualquer projeto de poder. A razão não pode se confundir com coisa nenhuma, porque ela é, em primeiro lugar, crítica, e “crítica” quer dizer “separação”. A razão – e só a razão – é o que nos permite criticar todos os projetos de poder.
É claro que as potências imperialistas gostariam de confundir os seus projetos com a razão. Mas é impossível. Tanto que a crítica mesma a esses projetos – a crítica ao imperialismo – foi feita pela razão: e só pode ser feita por ela.
Toda tentativa de reduzir a razão a uma cultura particular acaba levando a autocontradições. Foi o que aconteceu com Foucault e alguns outros filósofos contemporâneos, como demonstrei no artigo a que alude.
“Mulheres vestidas de um lindo azul”? Isso me lembra Marx, que falava de arrancar as flores que enfeitam as cadeias dos oprimidos. “Livres pela burca de serem mulheres-objetos”? Mais objeto – embrulhado – do que essas mulheres, é impossível. Logo você estará propondo introduzir a burca no Ocidente, obrigando as mulheres, para deixarem de ser mulheres-objetos, a se cobrirem da cabeça aos pés; ou, quem sabe, obrigando-as a usar máscaras?
Racista, Penetralia, é confundir as superstições e os costumes retrógrados de uma corrente religiosa qualquer com a “raça” das pessoas que são oprimidas por esses costumes, crenças e superstições: dizer, por exemplo, “Fulana é árabe, logo é certo que ela apanhe do marido”. Ou: “Fulano é árabe, logo a razão – que é ocidental – não lhe diz respeito”. Nada é mais etnocêntrico e pró-imperialista do que pensar que a razão é ocidental.
Hirsi Ali, uma mulher somali que conseguiu se libertar das superstições e dos costumes retrógrados que imperavam em sua tribo, explica que o fez porque a razão lhe mostrou que:
É errado subordinar as mulheres aos homens;
É errado executar pessoas por serem homossexuais;
É errado matar apóstatas;
É errado chicotear e apedrejar as mulheres até a morte;
É errado amputar as mãos dos ladrões;
É errado dizer que quem morre lutando pela sua religião terá o paraíso;
etc.
Concordo com ela. A Idade Média ocidental também foi terrível. Tolice é pensar que ela era menos opressiva do que a modernidade.
Não posso pôr a minha antipatia por Sarkozy ou considerações táticas à frente dos meus princípios. Esse tipo de coisa, aliás, sempre foi o erro de grande parte da esquerda.
Pense bem.
O debate todo tá no antoniocicero.blogspot.com
Um observatório da imprensa para a cidade de Bom Despacho e os arquivos do blog Penetrália
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terça-feira, 30 de junho de 2009
domingo, 28 de junho de 2009
Em defesa da Burca!
O artigo do Antonio Cicero abaixo me obriga a defender a burca!
Claro que ela é um símbolo religioso. Sarkozy, o semiólogo gaullista-bushista quer dar a ela um significado de opressão, de subserviência e quer libertar as mulheres proibindo-as de usar uma roupa.
Vou fazer a semiologia do nariz do Sarkozy, se for assim. Nariz de Pinocchio.
Proibir para permitir. Libertar através do banimento. O que acontecerá com quem insistir em usar? Será preso? Expulso da França? Guilhotinado?
Sou contra a extração do clitóris, sim. Mas essa proibição do véu e da burca, ao meu ver, são parte do projeto de poder do Ocidente que é vendida como império da razão, da liberdade, da laicidade. Foucault, ao contrário do que escrevem Calligaris e Antonio Cícero, foi coerente ao ver mudanças no Irã.
Se o Estado desestimulasse, fazendo uma campanha contra a pirataria, por exemplo, ainda vai. Mas a proibição que Sarkozy impôs à troca de músicas na web, por exemplo, é a volta da postura autoritária do Estado na vida privada. É isso que representa Sarkozy. Fora o lobby Carla Bruni, claro.
Claro que ela é um símbolo religioso. Sarkozy, o semiólogo gaullista-bushista quer dar a ela um significado de opressão, de subserviência e quer libertar as mulheres proibindo-as de usar uma roupa.
Vou fazer a semiologia do nariz do Sarkozy, se for assim. Nariz de Pinocchio.
Proibir para permitir. Libertar através do banimento. O que acontecerá com quem insistir em usar? Será preso? Expulso da França? Guilhotinado?
Sou contra a extração do clitóris, sim. Mas essa proibição do véu e da burca, ao meu ver, são parte do projeto de poder do Ocidente que é vendida como império da razão, da liberdade, da laicidade. Foucault, ao contrário do que escrevem Calligaris e Antonio Cícero, foi coerente ao ver mudanças no Irã.
Se o Estado desestimulasse, fazendo uma campanha contra a pirataria, por exemplo, ainda vai. Mas a proibição que Sarkozy impôs à troca de músicas na web, por exemplo, é a volta da postura autoritária do Estado na vida privada. É isso que representa Sarkozy. Fora o lobby Carla Bruni, claro.
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Eu, Antonio Cicero e a Burca
5.6.09
Sarkozy e a burca
Antonio Cicero
Ontem alguém que assina “Penetralia” deixou um comentário sobre meu artigo “O clássico e o contemporâneo”, dizendo que estava tudo bem com as minhas posições, desde que eu não defendesse a “proibição imbecil do Sarkozy da burca em nome da laicidade e da razão”. Respondi que não via relação entre o artigo citado e a questão da burca. Hoje Marcelo Pereira, confundindo a burca com o chador, que é um lenço no cabelo, e que já havia sido proibido nas escolas francesas antes do governo Sarkozy, defendeu essa proibição.
A burca, porém, é algo muito mais grave do que o chador. Como se pode ver pela foto acima, ela cobre toda a cabeça, inclusive o rosto de quem a usa. Anteontem o Sarkozy falou em proibir a burca. Essa proibição não se basearia simplesmente na defesa da laicidade e da razão, como afirma Penetralia, mas na convicção de que se trata de algo opressivo à mulher. “Em nosso país”, disse Sarkozy, “não podemos aceitar que mulheres sejam prisioneiras atrás de uma tela, privadas de toda vida social, desprovidas de toda identidade”. Sarkozy observou também que “a burca não é um sinal religioso, é um sinal de subserviência, de rebaixamento”.
Mesmo embora eu não simpatize muito com o Sarkozy, acho que ele está certo, sim. Entre as correntes mais conservadoras do Islã, as mulheres – jamais os homens – são obrigadas a usar a burca. Haverá sem dúvida mulheres que gostam de usar a burca, pois, como diz Sartre, há quem prefira ser coisa do que ser gente, mas penso que a proibição é o único caminho para permitir que as muitas mulheres que se sintam humilhadas por essa vestimenta-prisão livrem-se dela. Sem a proibição, é certo que muitas mulheres que não gostam da burca sejam obrigadas a usá-la pelos maridos que, no Islã, têm o direito de bater nas esposas.
Postado por Antonio Cicero às 10:44
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Sarkozy e a burca
Antonio Cicero
Ontem alguém que assina “Penetralia” deixou um comentário sobre meu artigo “O clássico e o contemporâneo”, dizendo que estava tudo bem com as minhas posições, desde que eu não defendesse a “proibição imbecil do Sarkozy da burca em nome da laicidade e da razão”. Respondi que não via relação entre o artigo citado e a questão da burca. Hoje Marcelo Pereira, confundindo a burca com o chador, que é um lenço no cabelo, e que já havia sido proibido nas escolas francesas antes do governo Sarkozy, defendeu essa proibição.
A burca, porém, é algo muito mais grave do que o chador. Como se pode ver pela foto acima, ela cobre toda a cabeça, inclusive o rosto de quem a usa. Anteontem o Sarkozy falou em proibir a burca. Essa proibição não se basearia simplesmente na defesa da laicidade e da razão, como afirma Penetralia, mas na convicção de que se trata de algo opressivo à mulher. “Em nosso país”, disse Sarkozy, “não podemos aceitar que mulheres sejam prisioneiras atrás de uma tela, privadas de toda vida social, desprovidas de toda identidade”. Sarkozy observou também que “a burca não é um sinal religioso, é um sinal de subserviência, de rebaixamento”.
Mesmo embora eu não simpatize muito com o Sarkozy, acho que ele está certo, sim. Entre as correntes mais conservadoras do Islã, as mulheres – jamais os homens – são obrigadas a usar a burca. Haverá sem dúvida mulheres que gostam de usar a burca, pois, como diz Sartre, há quem prefira ser coisa do que ser gente, mas penso que a proibição é o único caminho para permitir que as muitas mulheres que se sintam humilhadas por essa vestimenta-prisão livrem-se dela. Sem a proibição, é certo que muitas mulheres que não gostam da burca sejam obrigadas a usá-la pelos maridos que, no Islã, têm o direito de bater nas esposas.
Postado por Antonio Cicero às 10:44
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quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009
Obama, Caetano, Cânone, etc
Caetano abriu novo debate com os linguistas em seu blog Obra em Progresso. Penso que ele não vai ganhar doutorado honoris causa em linguística, se a coisa continuar assim: ele lê, lê, mas discorda cordialmente de quase tudo. Caetas não gosta de linguista. E de linguística. Prefere gramática. Ponto. Não seria melhor assim? Quando ele falou sobre o "r" retroflexo em Verdade Tropical, chamando-o de "aleijão" ele mostrou ter preconceito linguístico.
Em dado momento, ele atribui a Bagno uma adesão a uma falta de auto-estima brasileira e às críticas de Marilena Chauí ao descobrimento no ano 2000. Pelo que me lembro naquele ano, o que aconteceu foi que os movimentos sociais concluíram que nada havia para comemorar e o momento deveria ser de protesto e assim foi. E, no discurso de Caetano, os PCNs, com os quais o discurso de Bagno está em sintonia, criticados como demagógicos e em outro momento, mostrados como realização do governo Fernando Henrique Cardoso ou mostra de que ele não foi horrendo. Esse governo teve muito de horrendo, com certeza. Mas piores foram as tais comemorações em Porto Seguro que Caetas defendeu: até Gabeira se espantou com o ridículo dos galeões portugueses que não navegaram. E Gabeira tem pouco a ver com os movimentos sociais, é liberal moderno, de uma nova direita, mas não sei se ele entende assim.
E cita esse artigo de Antonio Cícero, filósofo poeta e letrista de Marina Lima, parece que acredita quase religiosamente nas luzes da razão ocidental como panacéia universal, "pomadinha japonesa" que serve para tudo ou quase tudo: ao falar de um poema, o coloca em forma de premissas lógicas e diz que sabe que será acusado de logocentrismo. Critica Terry Eagleton e os estudos culturais quando eles dizem que o cânone muda e é relativo. Para Cicero, a prova de que os textos canônicos possuem valor reside no fato de terem sobrevivido secularmente a tantas críticas e revisões.
O texto que ele ataca de Eagleton parece realmente ser frágil. Eagleton defende que a arte grega poderia sair do cânone se ocorresse uma importante descoberta arqueológica, diz Antonio Cicero sobre o Eagleton citando a famosa frase de Marx que também está debatida por Lukács: o mito é a infância da humanidade e a arte grega pode ser apreciada embora as estruturas econômicas que a geraram fossem pobres, toscas e já desapareceram. Como não vi o artigo de Eagleton, não é possível defendê-lo nesse ponto.
Mas já Harold Bloom é um prato cheio para os multiculturalistas criticarem. E diria o seguinte: o cânone, do jeito que certos tradicionalistas querem, não é desejável. Mas Cicero e Caetano querem colocar o cânone como se fosse um enorme traseiro de mármore diante de nós. Estou com Oswald de Andrade: precisamos retornar ao que está vivo na tradição, não ao passado.
Talvez ele tema que eles não sobrevivam tão bem à sanha dos estudos culturais...Mas tudo bem. Caetano compara a defesa do cânone do Cicero com a defesa que ele faz da gramática e das normas, tomadas como nascidas do povo e altamente desejáveis. Ele deseja uma gramática do desejo? Acho que ele deseja que desejemos a gramática. Ele poderia fazer uma canção de amor a crase e nos ajudar. Caets não acha a crase difícil. Sou mais Gerald Thomas, que escreve em pc estrangeiro mesmo e não usa acentos. Sou a favor de uma reforma da língua portuguesa escrita que acabe com todos os acentos, para que ela fique mais competitiva em relação à língua inglesa.
Caetano e Cícero lutam muito contra a idéia de que grupos cultos e letrados possam ter selecionado esses textos canônicos por razões particulares. Quanto ao cânone isso me parece claro, mas para eles não é, por alguma razão obscura (ou não!): um bom autor como Octavio de Faria ficou fora do cânone. Gostei bastante de seu romance Mundos Mortos, achei-o de primeira linha, sem retórica exagerada, conciso, abordando um tema espinhoso (a adolescência) e a identidade sexual. No entanto, ele possui fortes concorrentes em seu tempo: Graciliano Ramos, Jorge Amado, entre outros. Ele entra agora no cânone de um interessado em temas gays em literatura como João Silvério Trevisan, por exemplo. Pode ser que, mais adiante, desbanque alguém do cânone. E ele estaria no cânone se o cânone fosse exclusivamente, perdidamente católico, por exemplo.
Gosto de ver Shakespeare como o vi no TU: Próspero era o colonialista decadente, vestindo roupas rotas e os nativos da ilha, Caliban inclusive, estavam nus ou seminus e eram fortes e vigorosos.
Em suma: para quê negar que são grupos cultos ou elites que selecionam o que temos como literatura canônica e a gramática? E que esses critérios que fizeram o cânone tem muito pouco rigor científico e bastante de arbitrário? Que o que chamamos de norma culta era o dialeto dos cultos e letrados do passado? Será que esses donos da razão vão ir mais longe e chamar todos os que questionam isso de irracionalistas?
Obama discursou e o discurso parecia uma cena de cinema. A anunciação foi magnífica. É preciso analisar a gestuália de Obama. Regina Casé analisou a de Fidel em Cinema Falado e observou que tudo, em Fidel, vinha da região genital, suas mãos sempre evoluindo a partir do ventre. Obama discursou bonito, mas o mercado, como acabo de saber, não melhorou. O mercado é irracional.
O Brasil industrializou-se, historicamente, nos períodos de crises motivadas por guerras dos países centrais (1914-18) e 1939-45, segundo Nelson Werneck Sodré. Vejamos o que vai acontecer agora.
Minhas críticas ao governo Lula são políticas e não culturais. Lula sabe também sabe fazer discurso conforme a platéia, matizando as idéias para jamais ser "contra" aquela platéia. Suas proezas de anão evocam Getúlio Vargas no inconsciente do povo brasileiro, mas Vargas foi mais longe em suas realizações. Vejamos do que, pressionado, Lula é capaz. Somos moldados pelo meio e pelo contexto. Num desses carnavais mundo afora, não sei se no Mardi Gras de New Orleans ou em Rijeka na Croácia, fizeram um boneco de Chávez com Bush no colo. Bush, radicalizando com um golpe à moda antiga contra Chávez, ignorou o contexto político da Venezuela e fez nascer o Chávez de esquerda, o aliado de Fidel. Antes ele se manteve dentro dos parâmetros do neoliberalismo. Depois do golpe falhado, pode finalmente colocar em prática uma agenda progressista mais ampla. Chávez não é dúbio, Lula é.
Mas ainda quero --mas acho que não vou ver -- Obama ter culhões para um dia entrar no Congresso e dizer:
--My fellow citizens, we lost in Iraq. Sadly, also in Apheganistan.
Mas o racismo continua. O Washington Post publicou uma charge de um chimpanzé morto e abaixo a legenda: "vamos ter que encontrar alguém para inventar um plano de estímulo..." Um amigo me diz que a direita está satisfeita com Obama. Outro, que é um sargento democrata do Texas, diz que existe uma grande insatisfação com os impostos que devoram trinta por cento dos salários dos trabalhadores americanos. E existe a suspeita de que Obama não vai cumprir suas promessas de campanha. Demétrio Magnolli comentou, em programa de TV, que Chávez é autocrático e tem tudo a perder com a crise. Essa gente pensa que basta fechar as torneiras do petróleo e ele cai. Já vi raciocínios assim na Globo, na Piauí, num artigo de um tal Jim Holt. Só que Chávez possui realizações e não só programas assistencialistas. E ele perde nas províncias mais ricas que produzem petróleo: claro, ele obrigou-as a se democratizarem, atacou as oligarquias podres e a burocracia das empresas, em especial da PDVSA.
Magnolli diz que existe um ódio popular contra Wall Street e que Obama joga com a seguinte chantagem com os ricos: se vocês não fizerem o que eu mandar, virá alguém mais anti-Wall Street que eu, aquela velha frase que os professores dizem: "atrás de mim virá uma pessoa que boa me fará"...
Em dado momento, ele atribui a Bagno uma adesão a uma falta de auto-estima brasileira e às críticas de Marilena Chauí ao descobrimento no ano 2000. Pelo que me lembro naquele ano, o que aconteceu foi que os movimentos sociais concluíram que nada havia para comemorar e o momento deveria ser de protesto e assim foi. E, no discurso de Caetano, os PCNs, com os quais o discurso de Bagno está em sintonia, criticados como demagógicos e em outro momento, mostrados como realização do governo Fernando Henrique Cardoso ou mostra de que ele não foi horrendo. Esse governo teve muito de horrendo, com certeza. Mas piores foram as tais comemorações em Porto Seguro que Caetas defendeu: até Gabeira se espantou com o ridículo dos galeões portugueses que não navegaram. E Gabeira tem pouco a ver com os movimentos sociais, é liberal moderno, de uma nova direita, mas não sei se ele entende assim.
E cita esse artigo de Antonio Cícero, filósofo poeta e letrista de Marina Lima, parece que acredita quase religiosamente nas luzes da razão ocidental como panacéia universal, "pomadinha japonesa" que serve para tudo ou quase tudo: ao falar de um poema, o coloca em forma de premissas lógicas e diz que sabe que será acusado de logocentrismo. Critica Terry Eagleton e os estudos culturais quando eles dizem que o cânone muda e é relativo. Para Cicero, a prova de que os textos canônicos possuem valor reside no fato de terem sobrevivido secularmente a tantas críticas e revisões.
O texto que ele ataca de Eagleton parece realmente ser frágil. Eagleton defende que a arte grega poderia sair do cânone se ocorresse uma importante descoberta arqueológica, diz Antonio Cicero sobre o Eagleton citando a famosa frase de Marx que também está debatida por Lukács: o mito é a infância da humanidade e a arte grega pode ser apreciada embora as estruturas econômicas que a geraram fossem pobres, toscas e já desapareceram. Como não vi o artigo de Eagleton, não é possível defendê-lo nesse ponto.
Mas já Harold Bloom é um prato cheio para os multiculturalistas criticarem. E diria o seguinte: o cânone, do jeito que certos tradicionalistas querem, não é desejável. Mas Cicero e Caetano querem colocar o cânone como se fosse um enorme traseiro de mármore diante de nós. Estou com Oswald de Andrade: precisamos retornar ao que está vivo na tradição, não ao passado.
Talvez ele tema que eles não sobrevivam tão bem à sanha dos estudos culturais...Mas tudo bem. Caetano compara a defesa do cânone do Cicero com a defesa que ele faz da gramática e das normas, tomadas como nascidas do povo e altamente desejáveis. Ele deseja uma gramática do desejo? Acho que ele deseja que desejemos a gramática. Ele poderia fazer uma canção de amor a crase e nos ajudar. Caets não acha a crase difícil. Sou mais Gerald Thomas, que escreve em pc estrangeiro mesmo e não usa acentos. Sou a favor de uma reforma da língua portuguesa escrita que acabe com todos os acentos, para que ela fique mais competitiva em relação à língua inglesa.
Caetano e Cícero lutam muito contra a idéia de que grupos cultos e letrados possam ter selecionado esses textos canônicos por razões particulares. Quanto ao cânone isso me parece claro, mas para eles não é, por alguma razão obscura (ou não!): um bom autor como Octavio de Faria ficou fora do cânone. Gostei bastante de seu romance Mundos Mortos, achei-o de primeira linha, sem retórica exagerada, conciso, abordando um tema espinhoso (a adolescência) e a identidade sexual. No entanto, ele possui fortes concorrentes em seu tempo: Graciliano Ramos, Jorge Amado, entre outros. Ele entra agora no cânone de um interessado em temas gays em literatura como João Silvério Trevisan, por exemplo. Pode ser que, mais adiante, desbanque alguém do cânone. E ele estaria no cânone se o cânone fosse exclusivamente, perdidamente católico, por exemplo.
Gosto de ver Shakespeare como o vi no TU: Próspero era o colonialista decadente, vestindo roupas rotas e os nativos da ilha, Caliban inclusive, estavam nus ou seminus e eram fortes e vigorosos.
Em suma: para quê negar que são grupos cultos ou elites que selecionam o que temos como literatura canônica e a gramática? E que esses critérios que fizeram o cânone tem muito pouco rigor científico e bastante de arbitrário? Que o que chamamos de norma culta era o dialeto dos cultos e letrados do passado? Será que esses donos da razão vão ir mais longe e chamar todos os que questionam isso de irracionalistas?
Obama discursou e o discurso parecia uma cena de cinema. A anunciação foi magnífica. É preciso analisar a gestuália de Obama. Regina Casé analisou a de Fidel em Cinema Falado e observou que tudo, em Fidel, vinha da região genital, suas mãos sempre evoluindo a partir do ventre. Obama discursou bonito, mas o mercado, como acabo de saber, não melhorou. O mercado é irracional.
O Brasil industrializou-se, historicamente, nos períodos de crises motivadas por guerras dos países centrais (1914-18) e 1939-45, segundo Nelson Werneck Sodré. Vejamos o que vai acontecer agora.
Minhas críticas ao governo Lula são políticas e não culturais. Lula sabe também sabe fazer discurso conforme a platéia, matizando as idéias para jamais ser "contra" aquela platéia. Suas proezas de anão evocam Getúlio Vargas no inconsciente do povo brasileiro, mas Vargas foi mais longe em suas realizações. Vejamos do que, pressionado, Lula é capaz. Somos moldados pelo meio e pelo contexto. Num desses carnavais mundo afora, não sei se no Mardi Gras de New Orleans ou em Rijeka na Croácia, fizeram um boneco de Chávez com Bush no colo. Bush, radicalizando com um golpe à moda antiga contra Chávez, ignorou o contexto político da Venezuela e fez nascer o Chávez de esquerda, o aliado de Fidel. Antes ele se manteve dentro dos parâmetros do neoliberalismo. Depois do golpe falhado, pode finalmente colocar em prática uma agenda progressista mais ampla. Chávez não é dúbio, Lula é.
Mas ainda quero --mas acho que não vou ver -- Obama ter culhões para um dia entrar no Congresso e dizer:
--My fellow citizens, we lost in Iraq. Sadly, also in Apheganistan.
Mas o racismo continua. O Washington Post publicou uma charge de um chimpanzé morto e abaixo a legenda: "vamos ter que encontrar alguém para inventar um plano de estímulo..." Um amigo me diz que a direita está satisfeita com Obama. Outro, que é um sargento democrata do Texas, diz que existe uma grande insatisfação com os impostos que devoram trinta por cento dos salários dos trabalhadores americanos. E existe a suspeita de que Obama não vai cumprir suas promessas de campanha. Demétrio Magnolli comentou, em programa de TV, que Chávez é autocrático e tem tudo a perder com a crise. Essa gente pensa que basta fechar as torneiras do petróleo e ele cai. Já vi raciocínios assim na Globo, na Piauí, num artigo de um tal Jim Holt. Só que Chávez possui realizações e não só programas assistencialistas. E ele perde nas províncias mais ricas que produzem petróleo: claro, ele obrigou-as a se democratizarem, atacou as oligarquias podres e a burocracia das empresas, em especial da PDVSA.
Magnolli diz que existe um ódio popular contra Wall Street e que Obama joga com a seguinte chantagem com os ricos: se vocês não fizerem o que eu mandar, virá alguém mais anti-Wall Street que eu, aquela velha frase que os professores dizem: "atrás de mim virá uma pessoa que boa me fará"...
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Os estudos literários e o cânone
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8.2.09
Os estudos literários e o cânone
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 7 de fevereiro.
Os estudos literários e o cânone
COMO MUITOS outros críticos literários contemporâneos, Terry Eagleton pensa que "o chamado 'cânone literário', a 'grande tradição' inquestionada da 'literatura canônica', precisa ser reconhecido como um constructo, modelado por pessoas particulares, por razões particulares, em determinado momento".
Apesar de presunçosa, é na verdade ingênua a afirmação de Eagleton. A ironia da referência entre aspas à "grande tradição" é impotente: queira-se ou não, o cânone literário é uma grande tradição. Deve-se dizer, porém, que ela está longe de ser inquestionada ou inquestionável. Ao contrário, essa tradição se construiu e se mantém hoje, entre outras coisas, através do questionamento e por causa dele.
Trata-se de um constructo, sem dúvida, desde que se retire dessa palavra qualquer conotação de arbitrariedade, uma vez que não pode ser considerado arbitrário aquilo que, tendo se submetido à crítica incessante e implacável, sobrevive. O cânone nada tem a ver com as coisas que são "modeladas por pessoas particulares, por razões particulares, em determinado momento". Essas, produzidas por sociedades fechadas, são impostas à força. Só por cegueira ideológica pode alguém pretender que seja assim a sociedade moderna.
Eagleton se considera marxista. A certa altura, ele comenta que "Karl Marx se preocupara com a questão de saber por que a arte grega conservava um "encanto eterno", embora as condições sociais que a haviam produzido já tivessem passado há muito tempo".
Normalmente, o texto em que Marx assim fala é tomado como uma prova da grandeza do autor de "O Capital", que teria preferido reconhecer uma dificuldade da sua teoria a tentar encaixar toda a arte do mundo no leito de Procusto da ideologia ou da "superestrutura". Desse modo, Marx teria preservado o seu -o nosso- direito de amar a beleza da arte do passado.
Não é o que pensa Eagleton. Mais marxista que Marx, ele vê nisso uma fraqueza, e pergunta: "Como podemos saber que [a arte grega] permanecerá "eternamente" encantadora, se a história ainda não terminou?" Segundo ele, se, por exemplo, uma descoberta arqueológica nos obrigasse a reconhecer que as preocupações das audiências originais da tragédia grega eram inteiramente alheias às nossas, poderíamos deixar de apreciá-las.
Ora, quem verdadeiramente ama um poema – como Marx, por exemplo, ama os poemas de Homero – ama-o porque considera que ele lhe pertence e lhe diz respeito de um modo extremamente íntimo: porque intimamente conhece e, em reciprocidade, sabe ser conhecido pelo poema que ama. Conhecer desse modo um poema e amá-lo é tê-lo pela expressão acabada de alguma dimensão fundamental do próprio ser.
Pergunto-me: como é possível que Eagleton suponha que, seja qual for a novidade de uma revelação arqueológica, ela possa ser maior e mais importante que a revelação oferecida pelos próprios textos das tragédias? Pensemos em "Édipo Rei", por exemplo. Como ele é capaz de imaginar que "Édipo Rei", ou "Prometeu Acorrentado", ou "As Bacantes", ou qualquer uma das grandes tragédias possa ser ofuscada ou anulada por uma descoberta arqueológica?
A resposta é clara: ele pensa assim porque não tem uma relação vital com a poesia; porque, para ele, a poesia não vale por si. É evidente que tal modo de se relacionar com a poesia não pode resultar de uma decisão intelectual. Ao contrário: a decisão intelectual sobre o valor (ou a ausência de valor) da poesia é que é resultado da relação real que o leitor estabelece com ela. Não é porque decide que a poesia não tem valor que ele deixa de ter uma relação vital com ela: é antes porque não tem uma relação vital com a poesia que ela não tem valor para ele.
Na verdade, estou sem dúvida exagerando no que diz respeito a Eagleton. Com certeza a poesia tem algum valor para ele. Está longe, evidentemente, de ser um valor imanente e vital, como para Marx. Creio que para Eagleton, como para muitos, um poema ou uma tragédia têm o valor de um documento histórico como qualquer outro. Ora, basicamente o que interessa saber sobre um documento histórico são duas coisas: se ele é autêntico e o que representou para as pessoas que o produziram ou dele se serviram. Ele se reduz a um índice ou sintoma de uma relação social. Daí a importância atribuída à arqueologia.
Infelizmente, é essa a relação com a literatura que parece determinar a atitude ante o cânone que hoje predomina no campo dos estudos literários acadêmicos "posmodernos" e/ou marxistas.
Postado por Antonio Cicero às 00:12 13 comentários
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8.2.09
Os estudos literários e o cânone
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 7 de fevereiro.
Os estudos literários e o cânone
COMO MUITOS outros críticos literários contemporâneos, Terry Eagleton pensa que "o chamado 'cânone literário', a 'grande tradição' inquestionada da 'literatura canônica', precisa ser reconhecido como um constructo, modelado por pessoas particulares, por razões particulares, em determinado momento".
Apesar de presunçosa, é na verdade ingênua a afirmação de Eagleton. A ironia da referência entre aspas à "grande tradição" é impotente: queira-se ou não, o cânone literário é uma grande tradição. Deve-se dizer, porém, que ela está longe de ser inquestionada ou inquestionável. Ao contrário, essa tradição se construiu e se mantém hoje, entre outras coisas, através do questionamento e por causa dele.
Trata-se de um constructo, sem dúvida, desde que se retire dessa palavra qualquer conotação de arbitrariedade, uma vez que não pode ser considerado arbitrário aquilo que, tendo se submetido à crítica incessante e implacável, sobrevive. O cânone nada tem a ver com as coisas que são "modeladas por pessoas particulares, por razões particulares, em determinado momento". Essas, produzidas por sociedades fechadas, são impostas à força. Só por cegueira ideológica pode alguém pretender que seja assim a sociedade moderna.
Eagleton se considera marxista. A certa altura, ele comenta que "Karl Marx se preocupara com a questão de saber por que a arte grega conservava um "encanto eterno", embora as condições sociais que a haviam produzido já tivessem passado há muito tempo".
Normalmente, o texto em que Marx assim fala é tomado como uma prova da grandeza do autor de "O Capital", que teria preferido reconhecer uma dificuldade da sua teoria a tentar encaixar toda a arte do mundo no leito de Procusto da ideologia ou da "superestrutura". Desse modo, Marx teria preservado o seu -o nosso- direito de amar a beleza da arte do passado.
Não é o que pensa Eagleton. Mais marxista que Marx, ele vê nisso uma fraqueza, e pergunta: "Como podemos saber que [a arte grega] permanecerá "eternamente" encantadora, se a história ainda não terminou?" Segundo ele, se, por exemplo, uma descoberta arqueológica nos obrigasse a reconhecer que as preocupações das audiências originais da tragédia grega eram inteiramente alheias às nossas, poderíamos deixar de apreciá-las.
Ora, quem verdadeiramente ama um poema – como Marx, por exemplo, ama os poemas de Homero – ama-o porque considera que ele lhe pertence e lhe diz respeito de um modo extremamente íntimo: porque intimamente conhece e, em reciprocidade, sabe ser conhecido pelo poema que ama. Conhecer desse modo um poema e amá-lo é tê-lo pela expressão acabada de alguma dimensão fundamental do próprio ser.
Pergunto-me: como é possível que Eagleton suponha que, seja qual for a novidade de uma revelação arqueológica, ela possa ser maior e mais importante que a revelação oferecida pelos próprios textos das tragédias? Pensemos em "Édipo Rei", por exemplo. Como ele é capaz de imaginar que "Édipo Rei", ou "Prometeu Acorrentado", ou "As Bacantes", ou qualquer uma das grandes tragédias possa ser ofuscada ou anulada por uma descoberta arqueológica?
A resposta é clara: ele pensa assim porque não tem uma relação vital com a poesia; porque, para ele, a poesia não vale por si. É evidente que tal modo de se relacionar com a poesia não pode resultar de uma decisão intelectual. Ao contrário: a decisão intelectual sobre o valor (ou a ausência de valor) da poesia é que é resultado da relação real que o leitor estabelece com ela. Não é porque decide que a poesia não tem valor que ele deixa de ter uma relação vital com ela: é antes porque não tem uma relação vital com a poesia que ela não tem valor para ele.
Na verdade, estou sem dúvida exagerando no que diz respeito a Eagleton. Com certeza a poesia tem algum valor para ele. Está longe, evidentemente, de ser um valor imanente e vital, como para Marx. Creio que para Eagleton, como para muitos, um poema ou uma tragédia têm o valor de um documento histórico como qualquer outro. Ora, basicamente o que interessa saber sobre um documento histórico são duas coisas: se ele é autêntico e o que representou para as pessoas que o produziram ou dele se serviram. Ele se reduz a um índice ou sintoma de uma relação social. Daí a importância atribuída à arqueologia.
Infelizmente, é essa a relação com a literatura que parece determinar a atitude ante o cânone que hoje predomina no campo dos estudos literários acadêmicos "posmodernos" e/ou marxistas.
Postado por Antonio Cicero às 00:12 13 comentários
Marcadores: Crítica literária, Cânone, Karl Marx, Literatura, Poesia, Terry Eagleton
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