Um observatório da imprensa para a cidade de Bom Despacho e os arquivos do blog Penetrália
sexta-feira, 9 de dezembro de 2011
Carta a um Juiz
Rio, 15 de agosto de 1974.
Quero antes de qualquer coisa, agradecer a V. Excia. pelo muito que me tem feito.
Sobretudo por me haverdes livrado da idéia infantil de que um Juiz não era exatamente um ser humano, mas qualquer coisa que se me escapava, algo acima de minha
compreensão, do meu alcance – e principalmente do meu afeto. Ao constatar vossa
humanidade, admiti também que, como ser humano eu vos podia amar. No sentido em
que os seres, verdadeiramente humanos, são amáveis. E V. Excia o sois, sei-o, e sinto-me muito feliz com isso porque assim não vos temo, quero-vos bem, muito bem – ainda vossa lembrança deixa-me comovida. Creio associá-lo ao “Grande Pai”, o Adam
Kadmon dos cabalistas, Aquêle que me pode dar minha própria e exata medida. Isto é
muito bonito. Sim, pois é ainda através de V. Excia. que novos caminhos se me abrem.
Descubro pessoas que me amam, têem-me como gente – e começo também a amá-las,
vendo-as e vendo-me, eu mesma, também assim. Isto é: gente. Ajudam-me a sair do meu
silencio e constatar o quanto estive perdida durante toda minha vida. Refiro-me
especialmente aos médicos da Biopsicologia, aos quais, recomendásteis-me [sic](...) Por mais paradoxal que vos possa parecer, tudo isto – quero dizer: o crime e suas
conseqüências – tornaram-me melhor. Aproximou-me de pessoas lindas (incluo quem
vos leva esta carta (...)), deu-me uma segurança que eu antes desconhecia. Não
imaginais V. Excia. o que significa para mim ouvir do Fernando: - Sua necessidade de
dar e receber foi e é tão grande, que você matou. Já que não podia conter durante mais tempo, dentro de você, tanto amor. Ele devia irromper-se de qualquer maneira. E o seu crime foi um gesto desesperado de amor, Maura. Então eu entendi. E admitindo a dor, parece também que comecei a admitir o amor. (...) Muito obrigada também por me haverdes apresentado o rosto de um Juiz que não saiu de um livro de Kafka. Obrigada porque sois gente. Tudo isso é deveras surpreendente. Eu esperava um Juiz terrível, um semi-deus, cruel em sua frieza. E vos associava a idéia de Deus que me foi imposta na infância. V. Excia. Aparecesteis-me. Julgáveis-me. Mas principalmente buscáveis entender-me. Eu que fui julgada cruel e injustamente durante toda minha vida, não sabia então como existir. As coisas sempre me vieram por caminhos imprevisíveis. Precisava dizer-vos tudo isto. Muito mais ainda. Não o faço para não cansar-vos. Falo-ei em meu livro. Peço-vos perdão por não conseguir manter-me reverente como geralmente se entende reverência. Perdoe-me dizer-vos o que sinto e ano pensais que vos adulo antes de fazer-vos um pedido. Não pode ser adulação porque é verdade. Sr. Juiz faça de conta que lhe escrevo outra carta. O tratamento Excelência limita-me, é-me insuportável, dispense-mo, lhe peço. Eu tentarei escrever como sei fazer porque assim sou mais eu. Há um curso de Tragédia e Comedia Gregas (envio-lhe o recorte). Eu amo a Grécia, sou apaixonada pelo teatro grego, tenho em casa as peças de Sófocles, Esquilo, Eurípedes e Aristófanes. Meus conhecimentos, adquiri-os sozinha, jamais tive alguém que me orientasse nesse sentido. Este curso me será útil em minha literatura e tudo mais. Ate
mesmo em minha vida cotidiana. O curso começa amanhã, sexta-feira, dia 16. É apenas
uma vez por semana, às sextas-feiras, de 14 às 16horas. Não creio que minha freqüência
a esse curso possa prejudicar o sistema disciplinar da casa, levando-se em conta que
algumas presas saem semanalmente e passam ate dois dias em casa. Uma delas tem seu
carro na porta da cadeia, dirige-o, inclusive viajando para outro Estado. É uma
infinidade de coisas verdadeiramente escandalosas – que prefiro não mencionar.
Segundo pedido: lá fora eu estudava línguas, interrompi ao ser presa. Queria continuar a estudar inglês e alemão (que me são demasiados necessários),os professores viriam aqui, duas vezes por semana. (...) Se o senhor não concordar com meus dois primeiros pedidos, atenda-me pelo menos um deles. (...)Escrever-lhe-ei outras cartas num livro. Já comecei, seu título é Cartas a um Juiz. Trata-se de um livro de contos, cada conto é uma carta dirigida a um Juiz. A propósito, tenho lutado para arranjar um local onde possa escrever aqui. Davam-me uma sela só para mim. Agora tiraram-ma. Meu filho está lutando para que ma dêem de novo. Mas isto é ainda secundário, não posso pedir-lhe mais. Não sou datilografa, escrevo às carreiras, a pessoa que deverá levar-lhe esta carta está esperando. Não posso passá-la a limpo, peço desculpas por estar bem escrita. Queira-me bem – é o meu pedido mais insistente. Maura Lopes Cançado (Processo
penal, fls. 157, 158 e 159).13
sábado, 6 de agosto de 2011
Hospício é Deus: homenagem a Maura Lopes Cançado
http://www.youtube.com/watch?v=QNIPhrK5zYY&NR=1
O vídeo transpõem em imagens fragmentos da obra e da vida de Maura Lopes Cançado, escritora importante pilotou avião aqui no bairro São Vicente (então um aeroporto) nos anos 40, Maura era parente da família Lopes Cançado da cidade e originária de São Gonçalo do Abaeté. Ela então morava em Bom Despacho e dividia sua paixão por aviação com Jair Praxedes, filho do famoso coronel Praxedes. Maura não conseguiu
tirar brevê (um tabu para as mulheres nos anos 40), mas fixou-se no Rio de Janeiro, onde trabalhou no jornal Correio da Manhã e fez carreira de escritora.
No Rio, conheceu artistas tais como Tonia Carrero. No entanto, Maura sofria de transtornos mentais e vivia entrando e saindo de internações. Em crise, dilapidava heranças, brigava com os amigos, perdia empregos. Bem mais depois da morte do que em vida, ela escreveu apenas dois livros agora fora de catálogo, Hospício é Deus e O Sofredor do Ver, mas em 1993, quando faleceu, foi comentada em artigos por Carlos Heitor Cony, Reinaldo Jardim, Nelson de Oliveira e Ferreira Gullar, entre outros. Já existem pelo menos duas dissertações de mestrado sobre sua obra.
Uma informação sobre ela na ABL (dentre os inúmeros sites que a citam):
http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=5587&sid=571&tpl=printerview
Olhem como são lindos os textos dela e que estão no Hospício é Deus (livro
que conheci ao ler um livro do letrista Torquato Neto, da tropicália):
“Hospício são flores frias que se colam em nossas cabeças perdidas em
escadarias de mármore antigo, subitamente futuro. (...) Hospício é não se
sabe o quê, porque Hospício é Deus.”
“Existo desmesuradamente, como janela aberta para o sol. Existo com
agressividade.Que emoções escandalosas tenho dentro de mim: é que às vezes
tudo ameaça precipitar-se, minto para mim mesma, não sei para onde dirigir
estas emoções. Minha consciência da inutilidade de tudo mata-me. Esta
incapacidade de sofrer torna-me árida, vazia – (...) invento-me a cada
instante.”
O vídeo do youtube tem uma foto de Maura em sua juventude.
terça-feira, 10 de fevereiro de 2009
O Fantasma de Maura Lopes Cançado
domingo, 31 de agosto de 2008
Blognovela Penetrália, Capítulo 6
Capítulo 6: “Círculos” & “Sapateado”
(Entra
Lúcio: Alguém perguntou pela peça, pelo diretor, não foi? Eu sou um autor implícito aqui, mas essa é obra de acaso total. Não é a obra de arte total do Wagner. Eu arranquei peças e frases de textos esquecidos de um grupo de amigos meus, os sarapatetas. Eles nem ligaram e eu os transformei em bonecos inanimados. Schweitzer me escreveu perguntando de onde é que eu tirei aquela frase que postei aqui no começo da blognovela. Ele ficou um pouco assustado, perguntando se tinha dito aquela asneira. Claro que não falou, eu achei ele simpático e bem informado na entrevista que ele fez com vc no Táxi em Movimento e que está no Youtube. Só acho que o humor não pode estar imposto na pergunta, tem que rolar naturalmente na entrevista, pois assim é melhor.
A frase era algo como “Nietzsche é amigo do Otávio de Carvalho, é viado ou garanhão”? Pedi desculpas ao Schweitzer por ter inventado essa frase e “psicografado” ele aqui no blog. O fato é que do Olavo de Carvalho eu não gosto. Quanto à blognovela: vale Lenin sim, desde que seja uma referência à peça dele (Stoppard) que tinha o Lenin com o Tzara na Suíça, não sei se era Jumpers.Eu quero morrer na blognovela gritando: meu nome é o mesmo do Nero: Lúcio Domício Enobardo. Mate-me Gerald. Onde você estava quando caiu o Muro de Berlim?
Clown de Oswald: bati uma punheta.
Eu: e quando ocorreu a crise argentina e russa nos anos 90?
Clown: cat´s craddle.
Eu: e quando soube que Sontag montou Esperando Godot em Sarajevo?
Clown: mas-tur-ba-ción
Eu (gritando): e no 11 eleven, 2001?
Clown: quis montar a peça de Roberto Schwarz, A Lata de Lixo da História…Ou senão….bronha!
Lúcio: Talvez o Jango tenha sido assassinado. Allende. Ambos, se lutassem, seria para fazerem do Brasil e do Chile um, dois, três Vietnãs, nada menos. Essa barra não aguentaram segurar. Não acho que seja questão de cojones. Era questão de ir contra a própria natureza, a própria índole mesmo. Mesmo assim, prefiro a atitude final de Allende, afundando com o barco. Dizem que Jango se arrependeu de ter deixado o barco sem luta. Desapareceu na memória popular. Como a peça de Glauber: Jango, o Presidente que o Povo Comeu. Glauber se comparava com Jango: "todo mundo me traiu!" Realmente, Jango foi traído por Deus e mundo. Mas uma frase me chamou a atenção ontem: duas gêmeas estão atuando
O Jô achou essa frase “Nelson Rodrigues puro”. Eu prefiro on the rocks. Por que não a mais clean: “ontem quase me deflorei com o desentupidor de pia!” Ou, quem sabe, uma versão gastronômica: “Amanhã de manhã você vai acordar outro pepino na feira…” Quem sabe eu dirija/transcrie uma peça teatral de Machado de Assis, que tal? Qualquer coisa que você colocar vai deixar a crítica perdidinha, pois ninguém conhece o teatro do Machadão, rá-rá-rá!
Francinny: Vc pergunta quem e o diretor,não temos diretor nossas historias são dirigidas por nós, nada de diretores, somos livres mesmo não que não vivemos em um país livre, mas temos a alma livre de tudo e todos,não quero ser um boneco grotesco que toma Prozac, quero ser livre não quero sapatear, ou falar o que todo mundo quer, eu queria vomitar na hipocresia do mundo mas não posso. Na verdade não fui procurar um livro fui procurar ser livre, Lucio tudo e uma loucura a vida e uma loucura, mas eu queria viver em um conto como os de Poe, vamos escrever um conto louco, para os loucos da vida moderna que tenha eu , vc Rodrigo Contrera, Corvo e mais outros loucos Ola para Corvo eu mandaria o retrato Oval eu achei, e a historia de um pintor que com o seu perfeccionismo, para com o retrato da esposa aos poucos em que ele coloria a tela, tirava a cor de sua esposa, e ao fim o retrato ficou perfeita, mas ele nem notou que ela morreu diante dos seus olhos, e isso está acontecendo diante de nós, estou vendo o diretor G.T. morrer diante de nós pois está impondo seu modo de vida, está trepudiando e sapateando diante das nossas criticas mediocres, achando que a razão e só dele como o Pintor diante da sua obra
Lúcio: Parte da minha família mora em Goldensbridge, são três tios que trabalham com um milionário, Mr. Max. Inclusive mamãe já foi lá: avisei-a para procurar algo off-broadway. Vou dar o toque do
Fantasma de Maura Lopes Cançado: Eu nao frequentava obrigatoriamente o pátio. Á tarde, quando eu ia lá, pedia-lhe para cantar a ária da Bohéme, Valsa da Museta. Dona Georgiana recortada no meio do pátio, cantava — e era de doer o coração. As dementes, descalças e rasgadas, paravam em surpresa, rindo bonito em silêncio, os rostos transformados. Outras, sentadas no chão úmido, avançavam as faces inundadas de presença –elas que eram tão distantes. Os rostos fulgiam, por instantes, irisados e indestrutíveis. Me deixava imóvel, as lágrimas cegando-me. Dona Georgiana cantava: chia de graça, os olhos azuis sorrindo, aquele passado tão presente, ela que fora, ela que era, se elevando na limpidez das notas, minhas lágrimas descendo caladas, o pátio de mulheres existindo em dor e beleza. A beleza terríffica que Puccini não alcançou: uma mulher descalça, suja, gasta, louca, e as notas saindo-lhe em tragicidade difícil e bela demais — para existir fora de um hospício.
Rússia (tem a cara da Flora, Cláudia Raia): eu fingi de mortinha, de boazinha. A Ossétia é MINHA!
Ossétia (Lara, Mariana Ximenes, dividida): MAAAAE!
Geórgia (tem a cara da Patrícia Pillar, digo, da Flora): Você não é filha dela, Ossétia! Vocé é minha, filha! MINHA FILHA!
(Cai o pano. Trevas).
sexta-feira, 11 de julho de 2008
Um conto de Maura Lopes Cançado: O Sofredor do Ver
Não costumo sair de casa. Os dias são distantes, depressa, e quase nunca há sol. Habito um apartamento de andar térreo, um pouco escuro, ainda curante o dia, luxuoso e antigo, onde moram três outras criaturas. Ignoro porque moramos juntas. Conheço-as há pouco tempo. São mais ou menos parecidas com as que tenho visto, apesar de sabê-las mais perigosas - decerto pela proximidade. (Na verdade, gostaria de me mudar. Conheço, porém, a inutilidade das mudanças.) Falam demais, andam constantemente armadas, usam com ferocidade os dentes. Estão sempre gordas de razão. Esqueci-me de dizer que são mulheres, estas tremandas criaturas. Apesar deste detalhes, uma delas deixou crescer vasto bigode, que a tornou um pouco mais simpática, ocultando-lhe as presas, fortes, ameaçadoras. Ao levantar-me de manhã, para ir à cozinha fazer meu café, encontro-a, articulando a possante madíbula, no trabalho pertinaz da primeira refeição. Cumprimento-a delicadamente, esforçando-me em parecer afável. Tenho por resposta o rosnar ameaçador de como se protege a caça. Nem sempre consigo tomar até o fim o meu café. A criatura rosna impaciente, às vezes uiva, dançando pela cozinha, dando-me a impressão de grande exagero na sua manisfestação, creio, de alegria.
Volto ao quarto e me deito sob os cobertores, enquanto outra se veste rápida, precisa, para chegar na hora exata à primeira aula do Curso de Geologia. (Ocupamos as duas o mesmo quarto.) Antes de sair, faz ginástica. Conseguiu desenvolver de tal modo os músculos das pernas que, por várias vezes, julguei entrar um edifício inteiro pelo quarto, em sua construção exótica: pilares gigantescos sustentando pequeno tronco, enquanto a cabeça rodava, bola, distante e pequena como a cabeça de um alfinete. Após a ginástica arruma, sempre ráp[ida, precisa, a metade do aposento que lhe pertence, jogando, debaixo e mesmo sobre minha cama, grandes pedras, por ela colhidas diariamente nas praias. Pedras personalíssimas, quase vivas, que já me tomam a metade do leito. Encolho-me sob os cobertores, as pedras ocupando sempre mais espaço, atiradas pela intrépida criatura: mecânica-rápida-organizada. Gostaria de impedir que meu corpo se expusesse diariamente a estas pedradas. Não vejo solução, já que deitar-me sob os cobertores é a maior proteção por mim encontrada. Se abandonar o quarto, enfrentando olhares antropófagos nas ruas, corro o risco de, ao voltar, achar toda a cama tomada. E me sentiria impossível argumentar com as pedras, eu que sou destituída de qualquer senso de organização, mesmo iniciativa.
Não que me ache conformada. Tentei protestar uma vez mas a estudante continuou, so9lene, limpando os móveis. Depois, sem pressa, meteu-me uma grande pedra na boca, deixando tranqüila o quarto. Mais tarde, escutei-a relinchando na sala para as outras, que eu cacarejo demais e não sei marchar. Não a compreendi. Ainda assim fui possuída de grande raiva, tomei de uma arma esquecida por uma delas na dadeira, tentei atingi-la nas costas. Não consegui e terminei amarrada em trouxa dentro de meu próprio cobertor, onde passei dois dias. Ao libertar-me, grunhiu qualquer coisa, como sentir pena dos meus compromissos. Que ignoro quais sejam.
A terceira criatura é tirana - e muito boa pessoa. P:roibiu-me mover rápido a cabeça para os lados, temendo que o ar sinta-se demais agredido. Assim, ando pelo apartamento buscando ver sempre o que está à minha frente. Se me viro, faço-o com delicadez. Esse cuidado me traz em constante tensão. É uma mulher pequena, rosto quadrado, cabelos duros de torre; vai sempre ao cabelereiro. Costumo confundi-la com os objetos da casa.
Como já disse, evito sair à rua. Os edifícios me ameaçam, as mãos frias do vento me sufocam. Além dos olhares assassinos e da velocidade; pessoas enormes deslizam ruidosas pela cidade, conduzindo dentro delas outras pessoas. Posso vê-las quando arrisco meu olhar assombrado pelas janelas dos seus ventres.
Não prefiro coisa alguma. No entanto, saio às vezes, principalmente à noite. Vem buscar-me um ser que desconheço - embora venha buscar-me. Mostra-me os dentes, parece quase sempre irritado, joga-me porta a fora como se eu fosse um saco de abóboras. Costuma também relinchar, mostrando toda ferocidde nos dentes brancos. Nas ruas, busca proteger-me. Apesar de já me haver deixado sozinha, entregue às feras, habitantes de um certo subúrbio. Este ser talvez me quisesse dizer algo. Vejo-o luzente, vestido de alumínio, brilhando de noite à minha frente. Não seria sua maneira de rir? Indago-me se essa lata possui um coração.
Além dele, visita-me, não se para quê, outra criatura, um pedaço de tronco fino de árvore. Sentado à minha frente, discorre longamente sobre pulgas, galinhas e percevejos. Depois do quê, sai sem se despedir, encolhido em sua própria casca, morena, rugosa.

Ruas fervilham. Duelos se dão e todo instante. Mulheres se odeiam, beijando faces umas das outras. Muitas enxertam carne de vaca nas nádegas. Nem por isso perdem o jeito mau e duro de andar. Mostram as presas, se as olhamos dão constantes coices. Homens comem ávidos, o hálito podre provocando náusea. Mas é então que as fêmeas se agitam de todo, coiceam e relincham, movendo caudas e crinas. O asfalto queima.
Encolho-me no apartamento, sofrendo a presença das três horrendas criaturas. Gostaria de viver sozinha, ou pelo menos possuir um quarto, onde não me atormentassem tanto. Móveis animados passeiam o dia todo pelo aposento. Ouço ruídos esquisitos.
Tudo se tornou demais difícil depois do crime da futura geóloga, assassinando o espelho com uma pedrada. Considero esse crime a maior desgraça em minha vida, inútil, calada, vazia. Foi o espelho a única criatura humana que conheci. Desde a infância habituara-me a ele e não havia como temê-lo. Vê-lo diariamente, minha grande aventura. Contemplava-lhe a figura trêmula, hesitante, de olhos escuros, amáveis. O espelho possuía de medo o rosto branco. Tinha de medo o rosto. Aquele belo rosto quase sempre triste levou-me a admitir, em algum lugar, outros rostos, outras pessoas, outros medos, outras lágrimas. Esqueci-me de dizer que, se nenhuma dessas criaturas parece alegre, nenhuma também se mostrou ainda triste. É deveras sombrio. Existe em tudo grande ordem. Jamais vi alguém subir correndo uma escada, saltar dois ou mais degraus. Fazem-no um por um, meticulosos. Sou obrigada a seguir o que se estabeleceu ou desperto cólera. Começo a perder a noção do tempo. Acompanhando o crescimento do espelho acompanhei meu próprio crescimento. Vendo-o se transformar, tive consciência de minha infância perdida. Cada vez mais o espelho se tornava adulto, o que me obrigava a admitir-me também assim. Já não sei, mas talvez eu esteja quase velha. Tenho chorado muito. As caras de cimento armado acusam meu rosto molhado de deterioração. Mas é que tenho chorado. Diariamente tomo entre as mãos a caixa onde estão os restos mortais do meu amigo. E sofro. Sozinha, sem outro rosto, outra esperança, é-me impossível voltar a acreditar.
Do site e revista editado por Sônia Coutinho:
http://www.sidarta.blogger.com.br/2003_03_30_archive.html
quinta-feira, 3 de julho de 2008
carta III
Maura
Rio, 14 de outubro de 1967
Vera,
Hoje é sábado.
Resolvi continuar a carta para me comunicar com você. Estou muito sozinha, triste, infeliz e com fome. Amanheci me sentindo tão mal, minhas pernas doíam tanto! Permaneci na cama até uma hora. Tive a desgraça de ler um conto lindo de Ray Bradbury, “O próximo na fila”, muito depressivo, e caí na maior fossa. Também, nunca pensei que responsabilidade fosse coisa tão penosa e exigisse esta vigilância, esta constância, esta capacidade para continuar lutando e querendo – quando o terreno anula qualquer luta e os adversários nos desprezam completamente, nem ao menos tocando em armas, mas sorrindo levemente e nos dando as costas. Porque assim tem sido minha luta: contra o quê? Quem? Onde estava o Alto Tribunal? Onde estava o juiz que nunca tinha visto?
Não pode existir vida mais kafkiana do que a minha.
Todos me negam. Mas, por que me negam, se nem ao menos me conhecem, ou eu os conheço?
Veja: estou louca para trabalhar. Escrevo bem e todos sabem. Sou mais capaz do que a maioria das pessoas que conheço. Aos ser apresentado a alguém, este alguém me diz: “Li seu livro muitas vezes. É de grande importância. É maravilhoso. É seríssimo”.
É tanta coisa que já nem sei. Outros falam, dos contos, a mesma coisa. A filha do José Luiz do Rego, disse-me: “Um amigo meu leu seu livro sete vezes”.
Entretanto, Gilda, a mais medíocre e vulgar criatura do mundo, está na Europa por conta da revista Realidade, fazendo reportagem. Li uma reportagem dela nesta mesma revista, uma droga. Eu faria mil vezes melhor, estou certa. Eu que não durmo pensando em como fazer para entrar para um curso de inglês, ou francês audi-visual, pensando onde encontrar, no dia seguinte, alguém que me dê o dinheiro da refeição, condução e cigarros, que não escrevo porque tenho a minha máquina empenhada, não trabalho porque não me deixam. É neste desgaste que se exaurem minhas energias.
Ando tão cansada, Vera, tão fraca. Tenho medo de cair doente e não poder mais nem procurar emprego. Talvez não esteja habituada a andar e pensar tanto. Talvez não tenha mesmo muita resistência física - ou esteja cansada com razão – ou as preocupações sejam grandes demais. Eu não creio que me fosse impossível trabalhar o dia todo, sabendo que o meu sustento estava garantido e me restasse algum tempo e condição para meu trabalho de criação. Mas o tempo se escoa por entre meus dedos, nada realizo e me frustro cada vez mais: preciso passar meu Diário a limpo, começar um romance, ( tenho todo em gestação), estudar línguas, tentar uma bolsa de estudos na Europa. Todos vão, por que eu não?
Você vai perdoar-me estas lamentações, este desabafo, esta transferência de problemas. Mas quem, a não ser você, me ouviria? Ninguém me quer bem, Vera. Todos me usam. E usaram. É incrível que eu nada consiga no Ministério, com tantos pistolões. Mas não vou conseguir, esteja certa. Encontrei lá um oligofrênico – epilético – imbecil, primo do Ministro. Está no gabinete, diz-se meu amigo. É analfabeto, sei que vai fazer milhões de fofocas (como fez a Glorinha), estou mais deprimida por isto. Mas, chega de choradeira.
Você falou com o Edson? Acho melhor não lhe escrever mais, hoje.Você vai achar-me dissociada, esquizofrênica, etc. Além de eu correr o risco de fazê-la cansar-se de mim.
Domingo
Hoje estou melhor. Passei o dia em casa de dois amigos meus: Adauto e Mario Rola. Esqueci-me de que são meus amigos, tomo refeições lá. Falei tanto
Fui ao Teatro, Nataniel, que me acompanhava, durante o intervalo chamou a Tônia Carrero, que se achava perto de nós, e apresentou-nos: “Tônia, esta é a Maura Lopes Cançado”. Ela tirou-me uma linhada, de cima para baixo, sorriu muito constrangida, mostrou-se tão horrorizada como se alguém lhe tivesse apresentando o Gaguinho. Eu não me incomodei,
Dias atrás esta estrela mandara dizer-me, pela Luiza Barreto Leite, que fosse apanhar umas roupas em sua casa. Fui recebida no portão, pela empregada. Entregou-me uma trouxa de roupas do século dezenove. Naturalmente a estrela considerou uma ofensa ser apresentada a alguém que recebe roupas velhas nos portões. De qualquer maneira, não é pela Tônia, preciso comprar dois vestidos, uma bolsa, etc.
Aconteceu, agora, Vera, uma coisa que eu chamaria de horrível, não fora estar preparada para tudo.
É muito chocante para ser contado
Mais uma, mais uma, mais uma. Quando aprenderei a lidar com as pessoas? Quando serei capaz de me defender da humanidade? Eu chego a pensar que tenho qualquer coisa de santa. Lembra-se de “Noites de Gabíria?.
Um grande, grande, grande abraço.
Maura
Carta II
Rio, 13 de outubro de 1967
Vera querida,
Como vai? Pergunto, agora, porque esquecí-me de fazê-lo há meia hora pelo telefone. Além de minha preocupação em ser rápida, sustentava os olhares quase assassinos dos dois velhos gerentes, (ou donos), do Hotel, principalmente ao me ouvirem falar de minha precária situação financeira.
Mas, Vera, como você é louca e faz as associações de idéias mais esquisitas: perguntar-me por uma mulher “imbecil – desquitada – mineira, sentada numa cadeira de balanço e vomitando asneiras o tempo todo!”. Isto porque lhe mandei um conto rasgado que você já lera, “enquanto eu penteava os cabelos, com um pegador de roupas no nariz, naquela casa estranha, com cachorros subindo pelo pescoço da gente, quadros horríveis, homem de pijama na sala, menina retardada de tênis e perna salpicada de alvaiade”.
Vou escrever um conto juntando toda essa loucura e vai sair lindo, quer apostar? Mesmo porque, você desmoralizou tanto a casa e seus habitantes, deixou tão óbvia sua reprovação ao meu mau gosto em escolher moradia, que fui tomada por todos os sentimentos negativos: briguei com a dona da casa, joguei trinta livros pela janela – e fui parar no Hospício.
O final da aventura foi minha ida desesperada para Belo Horizonte (onde jurara não pôr mais meus sábios pés), com o vestido do corpo, um sapato velho e, não sei porque, um livro de Samuel Bechett ( teatro), lindamente encadernado.
Falei mal de você durante dois meses. Começava, assim:
“ A Vera é, sem dúvida, uma agitadora nata. Ou terrorista. Chega desencadeando a revolta, acompanha até certo ponto o movimento e, na hora do pânico, está em outra parte da América Latina”.Em seguida, narrava a minha odisséia.
O Delpino foi um que ouviu, deslumbrado.
Agora sou bem capaz de ir procurar a tal idiota – desquitada – mineira, só por masoquismo – pois você me despertou desejos incompreensíveis, justamente quando me acho tão bem disposta, equilibrada e dinâmica.
Tenho mil coisas a contar-lhe. Irei por etapas:
A Aparecida esteve aqui, você sabe. Gostei dela, principalmente ao ouvi-la falar mal do Celso, de quase toda a família e de Minas Gerais em peso.
Em contrapartida, falei mal de noventa por cento da humanidade, não respeitando estados, nem nacionalidades. A burrice, a hipocrisia, o egoísmo, tudo – são universais.
Você me achou triste na minha última carta. Eu já nem mais estava triste, Vera, eu estava arrasada, quase ruída. Foi, deveras, uma experiência quase mortal a de tentar coexistir com o Cesarion. Ele não tem o menor respeito humano por mim, tratava-me como a um ser muito inferior, menos do que a sua empregada.
Quando você mandou aqueles cem mil cruzeiros, eu havia dito a ele para não aceitar, pois você trabalha muito, não seria justo. Naturalmente, ele fez o contrário. Ele acha que todo mundo deve ajudar-me – menos ele. Agora, por exemplo, tomo refeições em casa de amigos, jornalistas. São do Jornal do Brasil. O Cesarion sabe, mas não se constrange.Enfim, isto não tem importância.
Estou muito bem, ando o dia todo tomando providências, tenho saído bastante à noite, vou ao cinema, teatro, e tudo.
Um amigo meu, Otoniel, artista de teatro e funcionário do MEC, veio morar no meu hotel. Leva-me ao teatro, diverte-me, também passa fome, mas nenhuma desgraça consegue abatê-lo. Costumo dizer-lhe que só conheço duas pessoas no mundo capazes de desmoralizar todos os infortúnios, desmoralizando-os até a comédia: Você e ele. São, todos dois, muitos sãos de espírito.
Em Niterói eu estava morta. Passei quase quatro meses sem ver ninguém, sem falar, tolerando as agressões do Cesarion e tudo fazendo para não entrar no seu jogo. A doutora explica-me: Ele quer que você brigue, dê um escândalo, pois assim se justifica. Leia: “Fiz tudo para ajudá-la. Todos sabem. Foi inútil”.
“Não entre no jogo dele, Maura”. E eu não entrei, realmente.
Vera, eu ganhei mais de vinte anos de vida, com os meus oito meses de psicanálise. Estou tão diferente. Conservo-me lúcida. Entretanto, não mais agrido. Minhas armas, agora, têm sido a compreensão ou a ironia. Ao mesmo tempo estou percebendo o afeto das pessoas por mim, tenho me relacionado muito bem e com várias pessoas, estou mais ou menos sociável, e não dou muita bola para o julgamento alheio. Só o necessário, para não entrar
Ocorreu-me uma coisa linda para escrever-lhe: A epígrafe do meu Diário, No Quadrado de Joana. Tirei-a de Rimbaud:
“Quando somos muito fortes, - quem recua? Muito alegres, - quem cai de ridículo? Quando somos muitos maus, que fariam de nós? “.
“Sou de uma raça longínqua; meus pais eram escandinavos: eles se trespassavam as costas, bebiam o próprio sangue”.
“Eu me via diante de uma turba exasperada, defronte do pelotão de fuzilamento, chorando a infelicidade de eles não me terem podido compreender, e perdoando, como Joana D’Arc!”. Padres, professores, patrões, enganai-vos entregando-me à Justiça. Jamais pertenci a este povo; jamais fui cristão; sou da raça que cantava no suplício. Não compreendo as leis; não tenho o senso moral, sou um bruto: vós vos enganais”. Rimbaud.
Você não acha que é a melhor epígrafe para meu Diário?
“Nela apareceu um homem delgado, de débil aspecto àquela distância e àquela altura, que se inclinou para fora e estendeu os braços ainda mais distantes para a frente. Quem era? Um amigo? Uma criatura bondosa? Alguém que participava de sua aflição? Alguém que queria socorrê-lo? Era ele o único? Eram todos? Era ainda possível alguma ajuda? Não haveria objeções que se tenham esquecido? Com certeza que as havia. É certo que a lógica é inquebrantável, mas não pode opor-se a um homem que quer viver. Onde estava o juiz que nunca tinha visto? Onde estava o Alto Tribunal ante o qual nunca comparecera? Elevou as mãos e separou todos os dedos”. Kafka. O Processo.
O Cesarion me disse que você escreve política no jornal. Ótimo. Fale-me de você em suas cartas. Vou mandar-lhe três contos para você escolher o que deve ser publicado. Além do “imbecil – desquitada – mineira”.
Amanhã irei ao “Sol” tirar cópias dos contos. Domingo, ou hoje mesmo, começarei o “Imbecil”. Minha máquina está empenhada. Há dois editores dispostos a publicar meu Diário. Vou propor a um deles tirar a minha máquina do penhor, pois preciso passar um terço do Diário a limpo. O José Álvaro editor, ou o João Luiz Medeiros, que é o dono da Editora, não quer publicá-lo porque considera uma temeridade lançar um livro contendo nomes de pessoas tão em evidência em situações inglórias. Ele é burguês e muito comprometido. Mas vai publicar um livro de contos, meus. Estou copiando os contos do Reynaldo Jardim, que os tem. Será para breve. Eu gostaria muito de escrever crônicas. Vou fazer uma porção e mandar-lhe. Se você gostar, talvez consiga aí uma coluna para mim.
Vera, parece mentira, mas ninguém quer me dar emprego. Há um mês estou no Rio, emagreci oito quilos, ando o dia todo, vou aos jornais – e nada! A Luci Bloch atendeu-me ao telefone de maneira totalmente vaga. Não se lembrou de mim, a princípio, apesar do Cesarion ter-lhe mandado o meu livro. Depois, lembrou-se e pediu desculpas, disse-me ser muito procurada e mandou-me falar com um tal de Arnaldo Niskier – e pedir-lhe para fazer um estágio. Assim mesmo, tentei duas vezes, não o encontrei. Você não acha que ela quis se livrar de mim? Meus amigo consideram um absurdo eu fazer reportagem. Quanto a mim, numa revista como a Manchete, confesso que gostaria de experimentar. Acredito que o Castello Branco se dê com ele.
Agora, imagina você: estou aposentada. Não, oficialmente. O processo acha-se na Social do Ministério. Conversei, hoje, com o Dr.Bergamini (chefe de lá), ele perguntou-me se não fui examinada por uma junta médica da Biometria. Não, não fui. Nem sequer sei onde fica a Biometria, ou conheço alguém (médico) de lá. Estou com um ofício da junta do IPASE, afirmando que posso e devo voltar ao serviço, assinado pelo Professor Neves Manta, chefe. Diante desta confusão toda, o Dr.Bergamini aconselhou-me a pedir ao Edson Franco para segurar o meu processo, enquanto peço revisão dele, isto é, uma passagem pela junta médica da Biometria. Se o processo for engavetado eu continuarei trabalhando normalmente e não se falará no assunto. Mas, acontece que, junto ao Edson, ser-me-á fácil conseguir minha readaptação em outro nível. Depois, me aposento. Não entendo nada de burocracia, Vera, mas o Edson podia, perfeitamente, conseguir tudo para mim.
Aliás, o Edson Franco está bem a par desta confusão. Disse-me que apenas dez por cento dos funcionários ocupam funções condizentes com suas capacidades. Ele foi muito gentil comigo, disse-me que terá muito prazer em deixar-me na secretaria. Estou muito cansada, começo a escrever mal, é meia noite, andei o dia todo.
Um beijo.
Carta de Maura Lopes Cançado
Rio, 20 de agosto de 1967
Vera, querida:
Recebi as roupas. Gostei muito. É uma grande alívio a gente poder sair sem, antes, ter passado quase toda a noite em claro se indagando: “ Como vai ser? Eu não tenho um trapo”. Os seus vestidos serviram-me, perfeitamente. Os sapatos, também. Pode mandar quantos você queira que me farão muito feliz. Quanto ao costume que a sua amiga mandou, é lindo. Adorei-o. Principalmente a cor. A saia está muito larga, terei de procurar uma costureira bem micha, que não se ofenda em fazer consertos, para apertá-la. O pior, o mais trágico, mais dramático, é que ninguém se considera micha. Nem ao menos pouco brilhante. Todo mundo é sublime. As costureiras, ainda as que apenas sabem movimentar a máquina com certa precisão julgam-se rivais fortíssimas de Mary Quant e Pacco Rabanne. Isto me faz lembrar Fernando Pessoa: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus amigos têm sido campeões em tudo”.
Arre, estou farta de semideuses!
Onde é que existe gente no mundo?
Mas a moça foi muito gentil. Dê-lhe um abraço por mim. Esta gentileza, entretanto, não impediu nascer em minha angustiada pessoa um terrível drama de consciência: olho o costume a todo o instante, quero, devo vesti-lo mas, como? –se a saia cabe duas Mauras? E me considero a última das criaturas. Nunca serei capaz de ajudar nem a mim mesma. Sou um zero. Qualquer criadinha já teria desfilado com o costume. Ela saberia o que e como fazer. Eu, não. Principalmente minhas mãos, parecem de todo inúteis.
Mas a propósito de consertos de roupas, já estou quase me habituando a esta situação aflitiva, como um modus vivendi: tenho mais alguns vestidos, dados por uma namorada de um médico, meu amigo. Que catástrofe! A moça é enorme, o dobro de mim. Os vestidos estão aqui há um mês (não são grandes coisas, mas servem), e só serviram, até hoje, para me atormentar, criando-me os maiores complexos de inferioridade. Eu, além de não ser alta como desejava, sou incapaz de reparar qualquer coisa. Não sei se por mazoquismo ( ou acreditando num milagre qualquer), tirei-os do armário e deixei-os expostos sobre uma mala. A cada instante contemplo o pequeno monte, instrumento de suplício, mais sério do que na “Colonial Penal”, de Kafka, eu acho. A mala fica em frente à minha cama, é a primeira coisa que vejo, ao despertar. Por aí você pode fazer uma idéia. A este monte, que fala mais alto à minha covarde e escura consciência do que todos os analistas juntos, juntei o belo costume que sua amiga me mandou. E entrei num estado total de depressão. Para sair dele eu teria, talvez, de aprender a costurar. Mas como me deixei afundar, sem nenhuma esperança, não poderia sequer pagar as aulas de costura.
Você julga que estou brincando? Juro ser tudo verdade, Vera. Antes de deixar a análise, a doutora Kate ( aquela gringa), ouvindo-me falar do que me desagradava, quase me levando ao suicídio, mas que eu não tinha iniciativa nem coragem para deixar, o hospício, por exemplo, disse-me:
“Vi um quadro num museu da Europa que mostrava um grande escritor trabalhando. Ele estava deitado em seu leito, coberto até o pescoço por vários cobertores, um chapéu enfiado até os olhos e um guarda-chuva aberto sobre si, enquanto escrevia”. Por quê?- perguntei, me divertindo.
“Porque chovia dentro de sua casa. Dizem que ele deixou uma obra, foi um grande escritor. Esqueci seu nome, mas é muito famoso”.
Tive um ataque de riso. Ela falava tão sério! Perguntei-lhe: “Por quê ele não se mudava?”. “Porque não tinha dinheiro”, respondeu. “Por quê não consertava o teto?”.
Ela: “Você consertaria? Não sei (continuou) mas, ouvindo você falar, visualizei o quadro perfeitamente, como se o tivesse vendo. Parece até alucinação”.
“A senhora achou-o muito divertido, quando o viu?”, perguntei, ainda. Respondeu-me:
“Não me interessou muito porque eu ainda não conhecia a Maura. Mas agora entendo exatamente aquele escritor. Era como você: deixa estar para ver como fica”.
Tive um ataque de riso. Ri mais de dez minutos deitada naquele sofá chato. Devo ter rido por defesa, eu creio.
As coisas mais simples conseguem levar-me à sensação total de derrota. Estes vestidos, por exemplo: pensando neles, ou vendo-os, entro num desespero tão grande como se me encontrasse literalmente nua. Não tenho utilidade, Vera. Como pode existir pessoa tão incapaz de viver, como eu? Escrevi um conto, não sei se você o leu (saiu publicado no Correio da Manhã), “Colisão ou Espelho Morto”. Nele eu consigo falar de minha visão do mundo e na dificuldade em nele existir. É para mim meu melhor conto. Há uma passagem em que falo de minha companheira de quarto, estudante de geologia. Ela joga pedras sobre minha cama, pedras colhidas por ela, diariamente, nas praias. Estas pedras já me tomavam a metade do leito,
“pedras personalíssimas, quase vivas, que já me tomam a metade do leito. Encolho-me sob os cobertores, as pedras ocupando sempre mais espaço, sentindo-me impossibilitada de argumentar com as pedras, eu que sou destituída de qualquer senso de organização, mesmo iniciativa”.
Inconscientemente confessei que considero qualquer ser, mesmo inanimado, com mais personalidade do que eu. E capaz de me subjugar, até com argumentos. Pois se não acredito nem ao menos em minha identidade. Sonho sempre: depois de muitas confusões, onde não consigo me comunicar com ninguém, e tudo, as pessoas, as circunstâncias, até os objetos me apavoram, procuro salvar-me provando a alguém (quase sempre a meu médico), que sou Maura Lopes Cançado, a que escreveu “Hospício é Deus”, ou fez outra cretinice parecida. Não me acreditam. Procuro meus documentos, não os encontro, as pessoas riem e debocham de mim. Não vou contar-lhe um desses sonhos porque são todos longos – mas alguns estão no diário
Há outro sonho terrível: eu me vejo a mim mesma, muito bonita e cercada por pessoas. Estou saindo de uma escola de teatro. Mas entre mim e eu, há uma parede de vidro. Vejo-me de perfil. Sou loura, bonita e uso casaco de lã bem largo. Súbito, viro-me em minha direção. E me vejo feia, horrível. Sinto-me angustiada, quero falar-me, mas eu não me vejo e desço uma rua, inteiramente indiferente e ignorando minha presença do outro lado da parede. Então, desço também, gritando-me, gritando-me: “Você precisa fazer uma operação plástica”. Mas não me posso ouvir, há uma parede de vidros muito grossos. Acordo suando, é terrível.
A doutora me disse, certa vez: “ Uma das coisas que mais me impressionou em você foi este sonho em que você se vê, mas há uma parede separando-a de si mesma. É, sem dúvida, um sonho de esquizofrênico”.
Ô, Vera, perdoe-me contar-lhe tudo isto. Mas eu morro, se não falar com alguém. Eu estou tão sozinha, tão desesperada, tenho tanto medo de mim mesma. Porque não sei até onde sou capaz de destruir-me. O pior é que não ouso muito. O Wassilly me disse uma vez: “Você não assume compromisso nem com a loucura. Nunca ficará louca. Seria comprometer-se”.
Creio ser verdade. Se estou no hospício, me comporto como sã; se estou fora, esquizofrenizo-me.
Quanto à questão de iniciativa, você está vendo como, inconscientemente, acredito que até mesmo uma pedra a tenha mais do que eu? ( Isto me passara despercebido. Só agora, lendo o conto, dei-me conta). Mando-lhe o conto. Peço-lhe que mo devolva. Ao escrevê-lo, eu morava no Flamengo, em casa das “três horrendas criaturas”. A geóloga era, na verdade, uma estudante de odontologia oligofrênica e, apesar disso, me intimidava como se tivesse descoberto a lei da gravidade. O quarto era meu, mas resolvi, por medida de economia, dividi-lo com outra. A mulherzinha se instalou lá, sentiu-se logo a dona, pressionou-me tanto que eu me mudei – calada e revoltada. Até hoje o Stenka não conseguiu entender como sou indefesa a este ponto. A do bigode era lésbica. Inofensiva, amante de uma professora de violão, de Belo Horizonte, uma tal de Maria Tereza. O “ser que desconheço” é o Stenko. Ele nunca me pôde perdoar esta lealdade. Imagina que eu estava sem máquina, pedi-lhe que o batesse no jornal para mim. O Wassilly gostou muito, disse que me retratava fielmente. Não o entendi bem, na época. Hoje o entendo. E hoje entendo também a minha imensa solidão e sinto uma grande pena de mim. E me pergunto quando foi quebrada qualquer coisa que tornou a minha vida tão à margem, sempre, tão destituída do sentido normal que têm as outras vidas. É como se eu não encontrasse meios para viver a minha vida. Ou será mesmo, este equívoco, a única coisa que me foi dada?
Mas isto tudo já está enchendo. Mudemos de assunto. Afinal, você não é analista. Mas é, talvez, a única pessoa realmente minha amiga, me indago como se pode ser como você, Vera: tão boa, tão honesta em suas intenções, tão pouco egoísta. Eu não sei fazer elogios, sou seca, mal educada e, principalmente, sinto vergonha em exteriorizar meus sentimentos. A doutora fez todo o possível para provar-me seu afeto. E só conseguiu que eu a achasse estúpida, mal intencionada, egoísta, incompetente. Repeti-lhe muitas vezes: “A senhora carece de humildade – além de ser inculta e pouco inteligente. Não reconhece que sou muitíssimo mais do que a senhora e que devia estar sendo paga para ser analisada, em vez de pagar-lhe?”.
Entretanto, ela me assegurava que a análise comigo era muito produtiva por causa de minha franqueza e coragem. Se tínhamos uma má relação, era uma relação. E, mazoquisticamente, aceitava de mãos abertas todas as minhas agressões. Fora disto eu não sei me relacionar. Não. Há três maneiras: sexualisando a relação, agredindo ou escrevendo. Fora disto é tudo mentira o que digo.
O Cesarion não sabe é que ao dizer-lhe: “Eu não gosto de você”, estou dizendo justamente o contrário. Gosto de você mas me sinto rejeitada, por isto te detesto. Mas não é ódio, Vera. É exatamente o contrário. Você entende, não? Sei que você entende. Voltei a falar de meus problemas, desculpe-me. É que sou de fato egoísta mas, sobretudo confio muito em você. É em quem mais eu confio e talvez isto queira dizer: Só confio em você.
Eu, sem dúvida, não quero trabalhar. Ou: Eu, sem dúvida, quero trabalhar. A ambivalência é a principal característica do neurótico e o que mais gera conflitos. É como sentir assim: quero correr, com uma força incrível e, ao mesmo tempo: quero ficar inerte, também com uma força incrível. Você já pensou a situação de um desgraçado deste? Pois sou uma desgraçada. Mas, agora, o instinto da vida, em mim, está mais aguçado. E, de certa forma, me sinto comprometida com você e o Cesarion. Devo trabalhar porque, afinal de contas, alguém acredita
Nunca me esqueço disto. Porque eu também queria.
Você já sabe que vamos nos mudar? É lastimável e eu me considero tão culpada. Deu tudo errado, você sabe. Estou sem um dente na frente, vou colocá-lo amanhã. Logo depois tratarei de providenciar tudo, inclusive o estágio na Jóia. Mas como me considero burra, inculta, insegura, incapaz, você acha que poderei fazer alguma coisa?
Quanto à temporada de seus parentes aí, imagino o que tenha sido. Já percebeu que todos os nossas parentes, ou são burros, ou são loucos? Muitos se queixam disto. Eu, então... Mas você é forte e possui bom mecanismo de defesa. Eu é que me deixo sempre envolver. Quando fui a Belo Horizonte agora, encontrei minha família tão enrolada que, ao dar por mim, estava diariamente freqüentando a delegacia de Roubos e Furtos, na melhor conversa com um comissário metido a conquistador, para livrar a cara de um dos meus cunhados – muito naturalmente – foragido. Pretendo não voltar lá, nunca mais! Mas veja você como os mineiros são vivos: tão logo me viram, usaram-me. E a idiota foi envolvida direitinho!
Vera, por incrível que pareça tenho ainda milhões de coisas a dizer-lhe. Continuarei a carta, depois. Hoje estou doente, tenho um pouco de febre. Apareceu-me uma bolha imensa na coxa ( de vez em quando isto me acontece), fui ao médico do IPASE. Ele perguntou-me se durmo bem, respondi que não. Se tenho vida sexual regular, respondi-lhe que não tenho atualmente nenhuma vida sexual. “Então está explicado – respondeu-me – seu mal é de fundo psicológico. Aliás, esta manifestação é freqüente nas virgens. Por quê você não tem vida sexual?”. “Porque não tenho amante”, respondi. “Mas não pode arranjar?” “Bem, o problema não é assim tão simples”.
Ele falou durante uma hora, parece inteligente e sabe o que diz. Mas a verdade é que eu não sei como resolver, pelo menos por enquanto, o problema.
Um grande, grande abraço para você.
Maura
Adeus a Cesarion Praxedes
por Pedro Rogério Moreira
*Jornalista e escritor - pedrorog@senado.gov.br
Um aviãozinho amarelo voava pelo reino encantado do Oeste de Minas no tempo em que vestíamos calças curtas e nos assombrávamos com as histórias da moça bonita que o pilotava num céu azul-feliz. Na carenagem do motor havia a inscrição: 'Cesarion'. A aviadora arrebatava as emoções do mundo com as piruetas que realizava tanto no ar quanto
O destino me pregou uma peça com Cesarion. Somos contemporâneos, ele na sua terra natal, São Gonçalo do Abaeté, o Pedrim
Desde que mudei-me para Brasília, há vinte anos, não via o Cesarion. Mas falávamos ao telefone. Um dia fui lhe contar que a Princesa, personagem de meu romance 'Bela noite para voar', era sua mãe Maura Lopes Cançado. 'Olha, Cesarion', disse-lhe eu, cheio de dedos, 'no livro a Maura vai namorar o presidente Juscelino Kubitschek, está bem?' Respondeu-me: 'Trate-a com ternura'. E contou-me passagens desconhecidas da vida sensacional, embora de grande sofrimento, da sedutora e explosiva Maura, poeta, romancista, memorialista, contista premiada de 1958 pelo Jornal do Brasil.
Maura, uma das mais inquietantes inteligências de sua geração, e, por isso mesmo, desde cedo incompreendida, o que certamente a levou aos paroxismos, esteve internada muitas vezes; numa dessas internações, matou uma paciente. Em 1993, morreu num hospital psiquiátrico do Rio. Precisa urgentemente ser retirada do esquecimento a que são relegados os loucos varridos. Nas antigas fazendas de Minas havia isso: o quarto de doido. O corpo de Maura continua num deles, junto com sua obra literária audaciosa. Como também permanece no quarto de doido outra menina que saiu de Minas para o Rio, antes de Maura, e teve igualmente uma vida trepidante e infeliz: Dora Vivacqua, nossa 'Luz del Fuego'. Vidas paralelas com conexões que só Deus sabe! Essas meninas tinham mesmo de vir de Minas...
Cesarion foi testemunha do sofrimento. O pai era o tenente Jair, filho do eminente coronel Praxedes, um dos pró-homens do antigo Bom Despacho. Jair deixou a Polícia Militar e se tornou aviador. Praticava num táxi-aéreo aquela aviação romântica que ainda sobrevive no interior. Era tido como um ás no sertão do São Francisco. Nos anos 60, num pouso de emergência, no Abaeté, sacrificou sua vida para salvar a do menino que o acompanhava. Belo final para um filme romântico de aventura, como foi a vida de Jair, me disse o filho.
Agora, a vez de Cesarion. Tinha 58 anos, deixa um filho, César, do casamento com a mulher que ele sempre amou, a jornalista Míriam Lage. Sofreu uma hemorragia no esôfago e acabou morrendo no hospital, no dia 7 passado. Ainda outro dia mesmo nos falamos. Ele me contou, feliz, que resolvera escrever um romance autobiográfico. Acumulara uma diversificada experiência em sua carreira profissional. Sabia 'lidar com as pretinhas', como classificávamos os bons redatores no tempo das máquinas de escrever. No mesmo passo em que desenvolveu sua intensa atividade de jornalista, especialmente na revista Manchete, Jornal do Brasil e Rádio JB, Cesarion trabalhou na Nuclebrás e em Furnas, transformando-se num craque em energia nuclear. Era poeta publicado, denso poeta.
Mais importante do que tudo isso, porém, é que Cesarion Praxedes, mesmo tendo convivido pouco com o pai e a mãe, jamais deixou de ser o menino cujo nome batizou o aviãozinho de minha infância. Menino no pomar disposto a ajudar aqueles que chegam para a comunhão da manga-espada, da jabuticaba, do jambo. Pronto para estender a mão amiga, como ele sempre estendeu, do alto da árvore, aos pequenos que não conseguiam pegar o fruto desejado.
Cesarion foi encontrar-se com Maura e Jair no céu azul-feliz daquele reino encantado que outrora povoou o Oeste de Minas e que teima em morar em nossos corações e mentes. Porque só a infância nos redime das besteiras de adulto. O exagerado Nelson Rodrigues dizia que o homem só é feliz até os 12 anos. Tá bom. Mas se você ficar para sempre com essa idade será feliz até à hora derradeira.
Site com cartas de Maura Lopes Cançado
quarta-feira, 28 de maio de 2008
Hospício é Deus! Literatura e Insanidade
Gilberto G. Pereira
“Sempre estive à altura do inesperado”
Nietzsche
“Considero-me além de qualquer expectativa”
Maura Lopes Cançado
Pouca gente já ouviu falar de Maura Lopes Cançado. Mesmo entre os leitores assíduos da literatura brasileira, é raro encontrar quem conheça pelo menos um dos dois livros que ela publicou: Hospício é Deus (Diário I) e O sofredor do ver. Passou despercebida pelo público geral, essa escritora que viveu entre a lucidez e a loucura e que encantava os colegas de redação no Jornal do Brasil na década de 60 com histórias divertidas e dramáticas.
Em Hospício é Deus, escrito durante uma de suas internações no hospital psiquiátrico Gustavo Riedel, no Rio de Janeiro, aos 29 anos, ela diz: “Sou um anjo com vocação para demônio”. A frase lapida a essência de Maura, não só pelo que tem de demoníaca, mas também pelo que possui de luz e amplidão. Conforme o subtítulo, o livro foi escrito como se fosse um diário. Nas 20 primeiras páginas, Maura faz um apanhado autobiográfico, da infância até sua ida para o Rio de Janeiro, aos 22 anos. Depois as anotações são marcadas por datas que vão de 25 de outubro de 1959 a 7 de março de 1960.
Ao falar de seu tempo de infância, escreve: “Não creio ter sido uma criança normal, embora não despertasse suspeitas. Encaravam-me como a uma menina caprichosa, mas a verdade é que já era candidata aos hospícios aonde vim parar”. Em suas próprias palavras, a primeira entrada numa casa de loucos foi aos 18 anos, ainda em Minas Gerais, Estado onde nascera em 1930. Nessa mesma época, também tentou o suicídio pela primeira vez, e desde então, até a casa dos 30, sempre freqüentou sanatórios.
Ela define o hospício como “uma cidade triste de uniformes azuis e jalecos brancos”. Num momento de rara sensibilidade e capacidade de olhar ao mesmo tempo ao redor e para dentro de sua própria condição, ela escreve: “O que me assombra na loucura é a distância – os loucos parecem eternos”, e diz mais: “Hospício são flores frias que se colam em nossas cabeças perdidas em escadarias de mármore antigo, subitamente futuro. (...) Hospício é não se sabe o quê, porque Hospício é Deus.”
Hospício é Deus é mais que um diário. O que há de literário nele é pulsante, vivo e muito atual. Hábil na arte de narrar, Maura costura suas conjeturas, conspirações e maluquices no interior do sanatório junto a histórias que evocam lembranças recentes. “Não é, absolutamente, um diário íntimo”, dizia ela, “mas tão apenas o diário de uma hospiciada, sem sentir-se com direito a escrever as enormidades que pensa, suas belezas, suas verdades. Seria verdadeiramente escandaloso meu diário íntimo.”
O tom megalomaníaco em que ela se expressa revela sua loucura, mas também deixa florescer a forte presença de espírito, e é isso que nos faz crer em tudo que está ali. A literatura, antes de mais nada, precisa convencer o leitor. Segundo Assis Brasil, “é bastante curioso, do ponto de vista crítico, saber que um escritor do porte de Maura Lopes Cançado tem um acervo existencial raramente encontrável em escritor brasileiro, sempre apegado a draminhas domésticos ou ligeiras crises passionais. Se seus diários tivessem sido publicados num outro país, teria elevado o nome de Maura Lopes Cançado ao plano literário internacional.”
Seu ‘acervo existencial’ é mesmo raro, e sua capacidade de criar vai além da loucura comum, fazendo observações agudas de si mesma e de seu mundo conturbado. “Existo desmesuradamente, como janela aberta para o sol. Existo com agressividade.” Eis mais uma frase lapidar de Maura, entre muitas que nos encantam, como este outro feixe esclarecedor: “Que emoções escandalosas tenho dentro de mim: é que às vezes tudo ameaça precipitar-se, minto para mim mesma, não sei para onde dirigir estas emoções. Minha consciência da inutilidade de tudo mata-me. Esta incapacidade de sofrer torna-me árida, vazia – (...) invento-me a cada instante.”
A voz dos outros
Esta assertiva coloca a obra de Maura no seu lugar devido, ou seja, no terreno da invenção. Não se trata de um diário realmente, mas de pura ficção. Quando escreve, Maura nos convence de que está falando sobre sua realidade. Mas basta o cotejo com um ou dois textos de quem conviveu com ela no Jornal do Brasil para descobrirmos a profunda montagem inventiva que é sua autobiografia. Ou seja, Maura é uma criação de si mesma, um personagem de sua própria obra.
Entremeando com outros relatos do diário, a autora vai contando uma história de amor platônico entre ela e o vice-diretor do hospital, o Dr. A. Como boa romancista, ela sabia que essa história serviria como fulcro de sua narrativa para a maior parte de seus possíveis leitores.
Em muitas passagens de Hospício é Deus, Maura se diz dotada de uma beleza avassaladora e de uma inteligência rara. No Jornal do Brasil conviveu com grandes nomes, que na época estavam se formando como figurões das artes brasileiras, como Carlos Heitor Cony, Amílcar de Castro, Ferreira Gullar – de quem ela diz “acho-o frio, esquizóide, distante. Creio não gostar dele. Mas gosto” –, Reynaldo Jardim, que prefaciou o livro, Assis Brasil, Mário Faustino, José Guilherme Merquior, entre outros.
De acordo com o jornalista José Louzeiro, que também conheceu a escritora, ela fora casada com um rico empresário mineiro, de quem se separou quando, ao pilotar um teco-teco, caiu sobre uma casa no bairro onde morava. “Feita a perícia, constatou-se que o aparelho não apresentava qualquer defeito mecânico. Maura abriu o jogo: tinha vontade de ver um avião cair e, estando dentro dele, a coisa lhe parecia muito mais empolgante.” O resultado foi o fim do casamento, o ex-marido querendo colocá-la no hospício e os parentes olhando-a com o rabo do olho.
Segundo Louzeiro, num texto que circula na internet, Maura encantava as pessoas com histórias iguais a que foi contada acima. “Sempre que começava a falar de suas aventuras, formava-se a roda de curiosos. Mas quando descobriram que ela misturava alhos com bugalhos, a platéia diminuiu.”
Louzeiro ainda diz que a escritora matou uma colega de hospício, enquanto estava internada, afirmando que a interna estava “impregnada”. Cony também conhece muitas histórias de Maura. Em texto publicado no caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo, do dia 15 de junho de 2007, ele lembra alguns desses casos. “Maura me procurou, dizendo que desejava escrever um romance. Tirei o corpo fora, não se ensina ninguém a escrever um romance, um ensaio, uma poesia. Ajudei-a apenas materialmente, dando-lhe uma máquina de escrever. O resultado foi ‘Hospício é Deus’.”
Maura Lopes Cançado tornou-se uma espécie de lenda nos parcos meios literários do Brasil. Além da ficcionalidade a partir da autoconstrução de seu perfil psicológico e físico, percebe-se que até mesmo os relatos de fontes confiáveis, como Cony e Louzeiro, podem entrar para o rol da ficção. Como é o caso do homicídio, cujo número sobe nas contas de Cony, passando de um para dois, e com outra versão. “Em duas de suas crises mais violentas, matou uma enfermeira e um namorado, cumpriu pena em presídios psiquiátricos, foi liberada por parecer de médicos que a examinaram e por juízes que absolveram.”
Apesar da tendência psicopática de Maura, sua literatura fala mais alto. Mesmo porque seus dados biográficos nunca foram apurados e trazem muitas contradições. Pelo menos ninguém se interessou em apurá-los até agora. O ano de sua morte aparece em textos da internet como sendo 1992, 1993 (segundo a edição de abril de 2002 do jornal Estado de Minas, no caderno Feminino & Masculino) e 1997.
Segundo Cony, Maura “morreu há pouco [1997?], esquecida e conformada, aparentemente curada da loucura que a levou a diversas internações em hospícios e clínicas psiquiátricas. Não mais escrevia, não procurava ninguém e por ninguém era procurada, a não ser por seu filho, Cesarion Praxedes, que morreu dois anos atrás.”
Já o jornalista e escritor Pedro Rogério Moreira, na revista Encontro (Março - 2004 - Ano II - nº 25), diz que Maura “morreu em 1993, aos 64 anos, num hospício do Rio.”
Uma possível ascensão
Sua fortuna crítica também é parca, em parte pelo volume de sua obra, o que não é desculpa, porque, mal comparando (chegando a cometer uma heresia), Juan Rulfo escreveu aproximadamente a mesma quantidade de páginas e tem uma fortuna crítica dez vezes maior do que sua própria obra. E em parte pelo desinteresse ou desconhecimento dos estudantes de Letras.
Mas, voltando ao Cony, segundo ele, as dissertações de mestrado sobre a escritora já começam a crescer. “É um fato mais ou menos comum em todas as literaturas: escritores de talento, alguns beirando a genialidade, passam desapercebidos por seus contemporâneos e somente aos poucos vão conquistando espaço entre os estudiosos fatigados de analisar as obras já exaustivamente analisadas pela massa crítica que se forma nas academias, nas editoras e na mídia. Temos alguns exemplos entre nós – e o de Maura me parece o mais recente e emblemático.”
Entre os estudiosos da literatura brasileira, o escritor e crítico literário Nelson de Oliveira é um dos que sempre recomendam Maura Lopes Cançado como importante autora da prosa em língua portuguesa.
No prefácio de Hospício é Deus, Reynaldo Jardim escreve:
“Eis a tranqüila fúria. Ei-la aberta à emoção e ao tédio. Ei-la cantando a ficção real do cotidiano alumbrado. Ei-la, pânico sem susto, desvairando o pensamento claro, assombrando o sonho preciso, limpo e justo do pesadelo em vigília. Calmo sobressalto. Eis o canto mais alto de ser, sendo a um tempo e medo, lúcido punhal e carne transpassada. Eis o que não pode ser amada e se autodevora: flora animal, passiva flor urbana sob o peso da luta, transmutando impotência de vítima em demoníaco cacto flamante, visgo de fogo simulante, granadas no arsenal.”
Jardim diz para termos medo do livro, chamando a atenção para a periculosidade do escrito contra a lucidez dos leitores tranqüilos. Faz isso como isca, é verdade. Em todo caso, o que se vê no livro de Maura Lopes Cançado é uma beleza profunda. O belo assusta, às vezes, por ser demasiado abissal, mas também nos revela muitas verdades. E é o que a autora faz nesta obra.
Frases do diário:
“Considero meu diário simplista. Sou muito mais do que aparento ser neste diário.”
“Estou brincando há muito tempo de inventar, e sou a mais bela invenção que conheço.”
“Chego à conclusão de que o mal é uma dimensão da minha natureza.”
“Qualquer reação, se estamos diante de um analista (ou com pretensões a), é sintomática, reveladora de conflitos íntimos, ponto de partida para as mais variadas interpretações. Em se tratando de simbologia, somos traídos a cada instante (ignoro se sobra algum prazer na vida para estes interpretativos analistas). Jamais expressamos a verdade – que passa por caminhos sinuosos, apenas conhecidos do ‘monstro’ à nossa frente, o analista, único que não se deixa enganar. Em relação ao sexo a coisa é um desastre: lápis, caneta, dedo, nariz, são símbolos fálicos. É irritante: tenho o inocente hábito de estar sempre com um dedo ou lápis na boca. Não compreendo como um simples lápis ----------. Mas o tal de analista compreende. E julga flagrar-nos quando fazemos observações puras e autênticas. Ah, ele sabe que não são autênticas. O tal de analista sabe. Uhhhhhhhhhhhhhh!”
OBS: Hospício é Deus foi publicado pela primeira vez em 1965. Depois teve outras edições. O exemplar utilizado para o presente texto foi editado pela Record em 1979, e, apesar de trazer o subtítulo “Diário I”, o autor deste texto nunca encontrou o possível Diário II. Talvez tenha ficado apenas na intenção da autora.
Site onde se lêem algumas cartas de Maura Lopes Cançado http://www.verabrant.com.br