Um observatório da imprensa para a cidade de Bom Despacho e os arquivos do blog Penetrália
sexta-feira, 28 de janeiro de 2011
A Vida Alheia: e se Adorno tivesse um celular?
estudam Adorno e a teoria crítica. Siderados pela crítica de Adorno a
Stravinski e ao jazz, trocando confidências em alemão, deslumbrados com
Schoenberg, eles não têm criticado as novas tecnologias representadas pelos
celulares e a internet e os produtos da indústria cultural tais como as
telenovelas. A recepção de Adorno tem deixado de lado contribuições de
teóricos e pesquisadores tais como José Ramos Tinhorão, Gilberto
Vasconcellos e Glauber Rocha. E, sem isso, o estudo da indústria cultural tem
sido mero jogo aristocrático de elite, restrito às universidades.
O celular ou telefone móvel generaliza-se na era do capital também móvel
pelo mundo e na voga da razão comunicativa. Embora favoreça a razão
comunicativa, o celular provoca um retrocesso nas boas maneiras, assim como
favorece o uso invasivo ou irracional do telefone. Por fim, com a proliferação dos
celulares, o diálogo fica praticamente impossível. O diálogo é interrompido
pela chamada insistente dessas pequenas sereias do inferno.
Embora a terceira geração do Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt, hoje
em dia, escute Bob Dylan após o corte com a razão negativa realizada por
Habermas, mesmo Dylan é insuportável uma vez transformado em música de fundo
para um celular. E, se antigamente utilizava-se músicas para fundo no
celular, cada vez mais o celular é que determina os rumos da canção popular,
com as canções de massa reiterando sem cessar: “beijo, me liga”, “amor, por
favor, não desligue o telefone”. Não se vende mais um telefone, mas sim a
luxuriante troca de mensagens que se pode fazer através do telefone. No
entanto, essa troca torna a vida dos próximos insuportável, pois se dá
dentro do cinema, no teatro, no trabalho, durante uma palestra, etc. E o
pior é que, nesse mundo idílico do sexo verbalizado, irrompeu há alguns anos
o telelumpen: o trabalhador degradado pelo liberalismo que cai no submundo
do crime e, a partir do presídio, comete crimes através do celular. E os
crimes do telelumpen são justamente a perversão da linguagem do amor
telefônico: o bandido afirma que seu filho foi seqüestrado e logo em seguida
ouve-se a voz de um outro deles que dramatiza, claramente influenciado pelas
telenovelas: “pai, eu te amo”. Se o padrão da Globo é classe média, então a
classe média está sendo vítima, através do celular, de crimes inspirados em
sua própria estética de classe.
O celular opera, então, com o fetiche: compra-se um celular para
possibilitar o sexo oral. As telenovelas operam com um esquema semelhante.
Elas nascem e se apropriam da teorização de esquerda do realismo crítico
enquanto intervenção na realidade, tornando-o realismo reacionário. Assim como
as “pegadinhas” da TV mostram atores encenando e os passantes têm suas
reações à situação, que tomam como real, registradas e exibidas para criar
constrangimento, ao mesmo tempo, as telenovelas recriam a realidade através
de amplos painéis sociais, reduzindo qualquer conflito de classe a um
conflito entre “pobres” e “ricos”.
O principal assunto da novela é o dinheiro, em torno do qual tudo gira. A
solução para a desigualdade social e a luta de classes é casar com um homem
ou mulher rica. Os defeitos de um homem ou de uma mulher são facilmente
compensados pelo acesso à sua conta bancária, na verdade bem mais cobiçada
do que sua cama. Na ética prostituta da telenovela, uma aula de violino é
desculpa para um encontro sexual extraconjugal. Por trás desse tipo de
situação está a disposição estrutural para colocar toda a cultura para
render dinheiro, desprezando tudo aquilo que, nela, não servir para esse
propósito. Quem não puder se prostituir é “múmia”, no entender desse tipo de
programa televisivo. Como diz o grande jornalista Laerte Braga, que deve ser
urgentemente estudado pelos teóricos da indústria cultural brasileira, o
lema das telenovelas e do BBB é “o bordel em sua casa”.
A apresentação realista e naturalista das novelas, assim como todo o esforço
mercadológico em torno delas, convida a tomarmos a representação enquanto
espelho de nossas vidas e mais, a considerarmos aqueles personagens como pessoas do mundo real. A telenovela mobiliza as fantasias das massas, exercendo enorme impacto sobre a vida cultural do País. Aliás, a telenovela praticamente destruiu o cinema e o teatro do Brasil, arrasando, através do mercado, com todas as tradições e linguagens que não a dela. Mesmo as leis de incentivo à cultura do estado subvencionam abertamente produtos com essa estética.
Nos últimos anos, com o surgimento de novas mídias, a telenovela perdeu
parte de seu impacto cultural. O seu lucro é baseado na venda não só dos
produtos nos comerciais, mas na venda de produtos dentro da ficção: vende-se
produtos apresentados durante as cenas quanto nos intervalos comerciais, por
isso a televisão dá tanto lucro. Para isso, nessa ficção cada vez mais os
objetos ganham uma presença mais viva que os atores. Uma vez num
restaurante, ganha enorme destaque o nome do restaurante, suas mesas e
cadeiras e a refeição. Aliás, as telenovelas operam de forma gastronômica:
tanto as refeições são apresentadas de forma bem atraente, intencionando
produzir o desejo de comer, com os atores e atrizes ganhando também uma
apresentação semelhante, com seus corpos apelando para fantasias sexuais e
masturbatórias. O nome de um galã como Gianechinni torna-se, mais do que um
nome, um adjetivo que é sinônimo de “bonito”: “ele não é Gianechinni”.
Como quem trabalha em televisão é glamourizado, nasceu ao redor das televisões
toda uma indústria de revistas repugnantes que se ocupam, sem nenhum
escrúpulo, da vida alheia, mas em especial da vida dos famosos, roubando e
invadindo, de forma altamente predatória, sua vida privada, infernizando
suas vidas com uma punição que responde ao fato de terem dinheiro e fama numa
sociedade como essa. E bem que poderiam adotar o slogan: “a vida alheia é mais
interessante do que a sua”, uma verdadeira apologia criminosa da alienação coletiva.
Os atores que fazem a novela e todos que aparecem na televisão passam a
dispor de um enorme capital simbólico, passam a ser “celebridades”, ou seja,
alguém que dispõe de capital simbólico devido à sua visibilidade.
A telenovela, ao entrar em crise, produziu um subproduto diretamente
articulado ao celular: o show de realidade, Big Brother Brasil. Nele,
telefona-se para eliminar um participante e o programa aufere lucros com isso. O reality show encena o drama de um “campo de concentração”, um drama nacional: nossas prisões são campos de concentração para pobres. O drama de um Auschwitz onde o cárcere possibilita a lazeira do consumismo e onde se tem de falar alto para que sua voz possa ser captada pelos microfones. O microfone manda na voz do participante e a edição da realidade com a estética da telenovela, as ligações de celular e o veneno de Bial modelam seu destino, sua vida e sua
morte dentro do “campo”.
Cada cidadão, despido de culpa coletiva, liga para eliminar um “judeu”, ou melhor, um participante, que então vai para a câmara de gás da realidade. Lá fora, o aguarda a sentinela kafkiana e caucasóide chamada Pedro “Bial”, cujo nome é uma variação alemã de “azul”. É o “kapo” Pedro “Blau” que destila o seu Azul da Prússia verbal.
A grande diversão, após a novela, é reencenar um dos grandes acontecimentos de nossa era, tornado agora um mito exaustivamente explorado pelo cinema norte-americano e muito repetido para poder justificar o martírio do povo palestino: Auschwitz. Aos sobreviventes do BBB e de Auschwitz sempre se faz a mesma pergunta: “o que você aprendeu?” Respeitarei muitíssimo mais o deputado federal do PSOL Jean Wyllys quando ele tiver a coragem de, como uma personagem do filme O Leitor, d responder a essa pergunta assim: “Não aprendi nada, os campos (e o BBB) não eram terapia. Se quiser aprender alguma coisa, não vá aos campos (e não veja o BBB)”. Como reencenação de um grande drama de nossa era, o slogan do BBB poderia ser: "a solução final ao alcance de um toque do seu celular".
Após a decadência das novelas, se seguirá a decadência do formato reality
show e isso se dará com rapidez maior do que se deu com o produto “telenovela”.
Será necessária, no futuro, uma campanha para que a sociedade se
“destelevise”, assim como os estudos de Foucault produziram a luta
antimanicomial: será preciso também uma luta contra a máquina-desejante e alguém vai ter que também abrir um capítulo para a televisão em um novo volume de A História da Loucura. Aliás, os foucauldianos e deleuzianos precisam dizer que a
grande lição do Big Brother é que uma grande empresa de televisão é hoje
também uma das instituições que buscam o controle total, até mais do que
escola, o presídio e o hospício. Faltou a Foucault o insight de que a prisão
onde tudo se podia ver, o panóplio holandês, deu nos campos de concentração
nazistas e, na atualidade, na prisão de consumo do Big Brother Brasil.
[Esse artigo é meu, mas quem quiser ler outras análises adornianas e derridianas, recomendo arquivoscriticos.blogspot.com]
segunda-feira, 29 de novembro de 2010
No meio do Caminho para o Complexo do Alemão
Fumei a pedra no meio do caminho
Fumei mais uma pedra
No meio do caminho eu queria mais uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas cocaínas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho fumei uma pedra.
Fumei uma pedra e queria mais uma pedra e viciei na pedra que fumei no meio do caminho para o Complexo do Alemão no meio do caminho eu queria uma eu roubei e viciei na e matei e viciei na pedra uma pedra UMA PEDRA PEDRA PEDRA PEDRA PEDRA PEDRA PEDRA PEDRA PEDRA PEDRA PEDRA PEDRA PEDR...
(A propósito do lançamento do livro A Biografia de um Poema).
terça-feira, 8 de junho de 2010
Alice
[Graças ao meu editor Fernando Gonzaga, descobri que esse conto meu dialoga com o conto Temporal Semáforo, da escritora hoje radicada no Canadá Rita Espechit.]
“Era capaz de arrancar da mente toda esperança humana/ Contra toda alegria, para sufocá-la, construí a primavera esquálida de uma besta selvagem”.
Arthur Rimbaud
Alice chega do trabalho cansada. Fecha a porta do apartamento de três quartos e um banheiro. O gato persa vem roçar-lhe os pés.
Ele se chama Roni e tem grandes olhos negros. Seu corpo é recoberto de pelos longos, de cor cinza carregado.
Alice está só, senta-se no sofá com Roni nos braços magros. Começa a acariciá-lo, frenética. De súbito se ergue, deixando o gato estirado no sofá. Ela vai até a janela.
O casal do apartamento vizinho faz amor. Alice sempre gosta de chegar do serviço e assistir.
Quando acabam, os dois amantes apagam a luz do quarto. Alice volta ao sofá e aos carinhos de Roni. Nesta hora Alice costuma recordar-se de seu amor fracassado, Seleiman Abdallah, um sírio-libanês naturalizado brasileiro. Alice lembra-se das noites em que Seleiman apalpava seus seios brancos e macios com fúria animal. Agora resta a dor da solidão absoluta. Seleiman tinha apenas vinte e dois anos, Alice já passara dos trinta...Ele acabou por abandoná-la subitamente, sem remorsos ou explicações, desaparecendo sem deixar vestígios. (Exceto algumas lembranças na mente de Alice, claro.)
A moça liga a tevê, assiste várias novelas, telejornais, programas de auditório...nada a deixa satisfeita, parece impossível. Ela corre ao quarto, apanha uma caixinha branca e vermelha. Retira de seu interior dois comprimidos róseos. Vai à cozinha e observa o branco dos azulejos, bebe um copo d’água para empurrar os sedativos goela abaixo. Agora vai ficar satisfeita, enquanto durar o efeito do anti-depressivo. Dez da noite desliga a tevê, vai tentar dormir na grande cama que enche um dos quartos. Enrolada em lençóis, olhando para a brancura da parede, Alice está inquieta. Olha o relógio: onze e quinze, onze e vinte, onze e meia, onze e quarenta; Alice não dorme.
Então corre até o banheiro e enche a boca de cápsulas brancas. Engole tudo olhando para o rosto pálido e ossudo no espelho. Agora sabe que dormirá.
Brota-lhe um sonho. Ela odeia sonhos, acredita que surgem por efeito das drogas. Naquela noite surge um mar de àguas sombrias. Parece um oceano de chumbo líquido. Acima um amarelo céu, das nuvens descem raios azulados e outros verdes. Paisagem suave, mas inquietante talvez devido ao sol, enorme esfera avermelhada que desliza entre nuvens como chumaços de algodão e derrama nelas o seu rubor. O sonho desaparece subitamente.
Na manhã seguinte, Alice acorda com os olhos embaçados e forte dor de cabeça. Sai correndo, ela tem que chegar rápido ao banco. Quando eufórica devido a um bom remedinho, compra mais para tomar depois pois a depressão não tardará. Roni observa tudo, deitado sobre uma almofada de veludo, com saudade, quem sabe, da Pérsia de onde vieram seus ancestrais ou do Egito, onde os gatos eram animais sagrados: se alguém matasse um a pena era a morte...
“Como está ela, doutor?”
“Em coma profundo.”
“E o prognóstico?”
“Coma profundo. Por tempo indeterminado. Não temos expectativas...Abusou dos remédios e não foi possível fazer a lavagem estomacal a tempo...A vizinha ouviu seu grito, mas demorou a entrar no apartamento. Lamento, lamento muito.”
Eu via Alice morrer aos poucos. Ela murchava como uma flor exposta ao sol do meio-dia. Seu olhar ausente, mente exilada, mãos magras e pele viscosa formavam um quadro deveras desagradável. Soube então que eu era a única pessoa que a visitara no hospital:
“Você é namorado dela?”
“Não...”
“Você conhece alguém da família dela, ou os colegas de trabalho?”
“Infelizmente não sei dizer nada.”
“E de onde você a conhecia?”
“Não me lembro, me desculpe.”
Somente com muito esforço me lembrei: eu a conhecia da farmácia onde eu trabalhava como uma criança gerenciando uma fábrica de chocolate. Comprávamos juntos amplos estoques e injetávamos aquela estranha química em nossos corpos. Um dia saímos e, enquanto comíamos batatas fritas, Alice me contou sua primeira tentativa de suicídio, com um revólver, na adolescência. “Agora sei que basta um tiro no céu da boca...”
Ela dizia isso com um ar displicente. Eu contei que já estivera internado numa clínica psiquiátrica devido a uns comprimidinhos. Ela me olhou como se eu fosse uma reencarnação de Buda. Pareceu-lhe uma iluminação, um caminho a ser seguido. Deu-me uma cópia da chave de seu apartamento. Almocei lá num domingo, degustando frango xadrez e rolinhos à primavera enquanto ouvia revelações: “Não tenho ninguém por mim neste mundo.” Então tive de sorrir: “Eu tenho e queria que todos morressem”. Continuamos comendo em silêncio.
Quando eu soube que o fim chegara para Alice, semanas depois, com um telefonema do hospital, fui direto ao apartamento onde ela vivera -- logo depois do expediente na farmácia. Roni aproximou-se, miando. Enquanto observava os espinhos e as flores vermelho-hemoglobina do jardim do apartamento que agora ficara aos meus cuidados, eu ia recordando meu poema em homenagem à Alice, que se chamava Um Abismo Cinzento:
Ela viu sol onde sombra havia
Onde havia o mar, viu desertos
Está agora vagando...Caindo num poço sem fundo...
Afogando-se em dor coagulada,
Ela que viu fogo onde gelo havia.
Ela viu o mar de chumbo líquido
Eu sei que existe, também já vi
& em suas ondas azul-metálicas
Viu a espuma-renda suave a bordar de branco
Uma face de um abismo cinzento.
terça-feira, 10 de fevereiro de 2009
O Fantasma de Maura Lopes Cançado
quinta-feira, 18 de setembro de 2008
Socialismo para os Ricos!
John Hemingway
“A primeira panacéia de uma nação mal governada é a inflação monetária; a segunda é a guerra. Ambas trazem uma prosperidade temporária; ambas trazem uma ruína permanente. Ambas são o refúgio de políticos e economistas oportunistas” (Ernest Hemingway, 1932)
É o grande terremoto? O arraso, o colapso financeiro que alguns previam nos últimos dois anos? Bom, eu não estou seguro, mas quando o governo americano investe 85 bilhões para praticamente nacionalizar a maior companhia de seguros do mundo (AIG), então mudanças fundamentais estão vindo.
Os aproveitadores do capitalismo de “choque e espanto”, os conquistadores de Bagdá, os destruidores de Nova Orleans, aqueles que são conduzidos por Ele (através de W. Bush, através de quem Deus fala) abraçaram o socialismo! Pelo menos para os ricos.
Imagem da sopa durante a grande depressão dos anos 30
Longe de ser um ignorante sobre finanças, MCain estava correto quando disse que a economia é basicamente saudável. Nosso sistema de bancos, firmas de seguro e empresas funciona para proteger os que estão no poder. São geridos pela elite do país (Fed não é um banco estatal). É um sistema fechado onde os lucros (quando os tempos estão bons e a grande bolha está crescendo) são privatizados e as perdas socializadas. Os apostadores da bolsa americanos e os jogadores da ciranda financeira de Wall Street que causaram o arraso são os primeiros a passar a bola para a frente. Nós, filhos e netos estaremos pagando esse fiasco deles por anos. O que significa menos dinheiro para a educação, saúde, para reconstruir nossas cidades decadentes nem para nada que melhore nossas vidas.
E será isso que a elite irá chamar de um doce acordo.
terça-feira, 9 de setembro de 2008
Blognovela Capítulo 7 e fim: FOGO NOS TEATROS!
Blognovela Penetrália, capítulo 7 e fim: FOGO NOS TEATROS!
(Lúcio e o elenco restante da blognovela deslocam-se para um teatro mofado, no centro do Rio de Janeiro. Enquanto eles atuam, no fundo do palco passam ratos e baratas, MILHARES. Lúcio já sapateando, encontra-se com Mário, João Paulo e Mariana, personagens das propagandas do governo federal).
Lúcio: pessoal, reli algumas coisas e não encontrei o capítulo 1 dessa blognovela. Queria acabar tudo agora, mas como? Como acabar algo que não começou?
Mariana (andando em círculos e desviando das baratas e ratos): ora, você achou que isso aqui era os monólogos da vagina? Tende paciência! E esses bichos horrorosos aí?
Lúcio: todo teatro brasileiro tem.
Mariana: mas o que vejo no Brasil é de dar medo.
Lúcio: pode ir queixar-se ao Lula. Foi ele que inventou vocês, junto com a agência W/Brasil. Vocês vivem no mundo possível, enquanto eu vivo no mundo real, vocês são replicantes que inventei para implicar e praticar minhas implicâncias. Misery. Back to misery. Feliz o país que tem sua independência no sete de setembro. Lula tá contando com o pré-sal no cu da galinha.
Mariana: grosso! A Marisa tem tailleurs bonitos como os da Marta e...
João Paulo (chorando ao celular): buá, essa blognovela tem mesmo que acabar? Mas nem começou!
Lúcio: ela começou inspirada na blognovela do Gerald e nos monólogos que estão aqui nesse blog. Metablog.
Mário (entra empunhando uma guitarra, faz um solo, com uma banda de acompanhamento): agora eu não ouço mais a minha abelha amiga! Eu faço rock e não a escuto mais! Eu estou tocando na banda HORTA!
João Paulo (pára o choro subitamente): vamos comer queijo camembert?
Mariana: Onde você encontrou camembert?
João Paulo: ali nas cadeiras, estão todas de queijo camembert francês. E esse teatro nem é do circuito SESC, senão seria mais chique. Comeríamos sapo barbudo com pernas de rã com vinho de uvas PT light. Lula era um sapo barbudo que a elite devorou goela abaixo com a gula de quem come pernas de rã num restaurante chique. Aliás, esse papo me deu água na boca. Onde tem churrasco de rã em Sampa?
Mariana (eufórica): tão vendo, bem que o Lula disse que tá pintando uma nova classe média!
Mário: Ah, Mariana. Lula tá comemorando o pré-sal no sete de setembro para esconder nossa nudez transatlântica e a falta de projetos. Projeto de nação. Obras. PAC, saci, César Benjamin, PSOL.
Mariana (tá um tapa na orelha de Mário): pirou?
Mário: preciso tocar sempre a guitarra, senão escuto a abelha, ai (dá um tapa na própria orelha). Lula estava é fazendo politicagem eleitoreira.
João Paulo: Mariana, você deixou um refletor ligado. Pois é, não vamos ofender o nosso PAI indireto. Ele gosta tanto de metáforas familiares. Falava que tava construindo a casa no tempo do Fome Zero. Agora a casa é zero. Ruínas.
Lúcio: Não tenho nada com isso. Não tem. Não. Já leram Wayne Booth falando de Company, do Samuel Beckett. Imagine.
Mariana (nervosa e com pressa): gente, preciso desligar aquele refletor. Meu Deus. Não é para lá. Não é para lá. Meu Deus. Meus pés não me obedecem. Não gosto disso do Beckett, começa na terceira pessoa, depois entra o eu, parece confuso, parece meus pés.
Lúcio (sapateando intensamente): Hoje vou me curar de meu sapateado vivendo uma grande emoção. Vou trancar vocês, personagens de propaganda do governo federal, e vou matá-los nesse teatro. TRATA-SE DE UM PROTESTO CONTRA A SITUAÇÃO DOS TEATROS BRASILEIROS! AGORA FORAM VOCÊS, MAS NO FUTURO PODERÃO SER PESSOAS DO MUNDO REAL! PODEM OCORRER MORTES! MORTES! MORTES! FOGO NOS TEATROS BRASILEIROS!
(Lúcio corre, mesmo sapateando, e fecha os demais colegas dentro do teatro
sexta-feira, 11 de julho de 2008
Revista Cidade do Sol
http://lucemiro.tripod.com/revistacidadedosolbomdespacho/
Confiram.
quinta-feira, 25 de outubro de 2007
Syd Barrett
Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior
Comentar a respeito de Syd Barrett (1946-2006), o co-fundador do Pink Floyd, é tratar de um tempo em que a música popular era um universo efervescente de experimentação e o rock/pop não tinha se tornado, como hoje em dia, a Coca-Cola da música. Existia espaço para referências literárias e experimentalismos, que deram lugar, muitas vezes, ao império da mercadologia.
Criou-se toda uma aura mística em torno de Syd Barrett, gerando um mito que o compara a um Nietzsche de nosso tempo. Alguns anos antes, quando Barrett co-fundou o Pink Floyd com Roger Waters (que tocou recentemente na praça da Apoteose), Mason e Wright, o compositor deu um forte impulso à banda naquele início de carreira. Depois de ter lançado vários singles e The Piper in the Gates of Dawn, Barrett, que preferia o rythm and blues (o próprio nome Pink Floyd saiu de uma fusão dos nomes de seus jazzistas favoritos, Pink Andersenl e Floyd Consel) à fusão entre rock e música clássica, ou seja, o chamado progressivo. As razões de sua saída do Pink Floyd deram origem a muitas lendas, mas o fato é que Roger Waters assumiu a liderança e colocou David Gilmour como guitarrista no lugar de Barrett após a turnê norte-americana, em 1968.
Entre 1968 e 1972, Barrett partiu para uma mal sucedida carreira solo; lançou dois álbuns: The Madcaup Laughs (que contava com a maioria dos componentes da banda Soft Machine, com exceção de Kevin Ayers) e Barrett. Decepcionado, a seguir retirou-se completamente do universo da música. Um álbum de material inédito, Opel, saiu em 1988.
Ao falar sobre The Piper at the Gates of Dawn (O Flautista nos Portões da Madrugada), Syd respondia prontamente: “Wind in the Willows” (Vento nos Salgueiros, livro infantil de autoria de Kenneth Grahame). No referido álbum, a canção Chapter 24, por exemplo, saiu diretamente do I Ching, com muitas palavras retiradas diretamente do livro. Barrett gostava muito de canções simples, que atingissem muitas pessoas, podendo também ter mais de um sentido. Octopus (Polvo) foi uma canção que Barrett pensou e mentalizou durante seis meses, antes de chegar a realizá-la. Na canção, doze linhas são, cada uma, antecipando a próxima e remetendo a um tema comum. Funciona como uma combinação de palavras que se direcionou num sentido, para depois o refrão vir e mudar o tempo, dando uma unidade a toda a canção. O clima das canções de Barrett remetia muito à infância, aos contos de fadas e às rimas infantis, as chamadas nursery rhymes. As letras de Barrett eram colagens surrealistas. Numa entrevista realizada na época do lançamento do disco Madcaup Laghs (1970), afirmou que escutava Bo Diddley, Beatles e Stones e velhos discos de jazz. Nesta época, lia Shakespeare and Chaucer.
Numa das poucas entrevistas que deu após sua saída do Pink Floyd, em 1972, Barrett estava de cabelos curtos, quase como um skinhead. Sobre si mesmo, afirmou: “eu sou um pintor, estudei para ser pintor”.
A escrita de Barrett sempre foi voltada para canções e não para as longas peças instrumentais que o restante do Pink Floyd apreciava. “A escolha do material dos demais membros do Pink Floyd tem muito a ver com o que estudantes de arquitetura costumam pensar”, comentou Barrett após sua saída da banda. “Coisas pouco instigantes, primárias. Qualquer um que estivesse andando numa escola de artes poderia pensar coisas semelhantes, mas quem sabe eles estejam planejando voltar para a escola”.
O Pink Floyd gradualmente afastou-se de canções como See Emily Play. Syd afirmou que, no começo, os ruídos eletrônicos foram necessários, eram algo excitante. Para Syd, ser um grupo pop era fazer singles. Mas ele afirmou que sua saída não foi uma briga, foram alguns problemas. Syd negava a versão de que saíra da banda porque enlouquecera em meio a viagens de ácido, dizendo que isso nada tinha a ver com o trabalho musical propriamente dito. Barrett atribuiu tudo ao fato de ter morado em Londres. As canções, afirmava ele, transmitiam uma atmosfera, mais do que contar uma história.
Syd voltou a usar seu nome real, Roger Barrett. Passou o resto da vivendo anonimamente em Cambridge, indo à casa da mãe, pintando e fazendo jardinagem. O trabalho com o Pink Floyd continuou lhe rendendo direitos autorais e ele viveu com certa segurança. No entanto, raramente aceitou falar com os fãs e jornalistas que o procuraram durante todos esses os anos.
Em torno dele floresceram lendas sobre o fato de que o excesso de drogas o fizera enlouquecer e levara à total instabilidade mental, o que não correspondia à realidade. Após sua morte em 2006, sua irmã Rosemary, enfermeira de profissão, afirmou que “Roger” não entendia o contínuo interesse por seu trabalho com o Pink Floyd, tinha certa dificuldade com o convívio social, mas era muito popular entre os lojistas da vizinhança e as crianças. Estudava profundamente História da Arte, tendo deixado um livro inédito a respeito. Para ilustrar as letras de Barrett, segue abaixo então a tradução de três das canções de Madcaup Laughs: Octopus, Dark Globe e Golden Hair:
Polvo
Viajando para cima, para baixo, dentro e fora
Você nem tem palavras
Viajando, viajando num dragão de sonho
Que esconde suas asas numa torre fantasma
Velas arrebentando em cada prato que quebramos
Estouram por agulhas espalhadas
O gongo do minutinho
Soa e limpa sua garganta
Madame, veja bem antes de ficar
Olha, olha, nunca fique muito quieto
A velha marca original
A verde, herbácea banda
E o tom em que tocam é “confie em nós”
Então viaje para cima, para baixo, dentro e fora
Você nem tem palavras
Tire-nos daqui
Por favor, feche os olhos para a volta do polvo!
Não é mau estar perdido na floresta
Não é ruim na floresta, aqui é tão quieto
Significa menos para mim do que pensei
Com um doce monte de sementes
Potes de mel, comida mística brilhando...
Bem, o maluco riu para o homem na fronteira
Hey, ho, rufam os tambores
“Trapaça!” Disse ele chamando o canguru
É verdade que em suas árvores eles gritam
Por favor, deixem-nos aqui
Fechem os olhos para o passeio do polvo!
O maluco riu para o homem na fronteira
Hey, ho, rufam os tambores
Os ventos sopram e as ondas chegam em vagas
Eles nunca vão me colocar em sua bolsa
Os mares vão sempre ir e voltar
Quanto mais alto você voa, mais fundo você cai
O vento sopra no trópico
Os afogados sentam nas cadeiras
A porta guinchando vai sempre guinchar
Dois para cima, dois para baixo e nunca mais nos encontramos
Na viagem meramente esqueça meu lado
Por favor, tire-nos tire daqui
Feche seus olhos para a volta do polvo!
A capa de Madcap mostrou Syd agachado e pensativo no chão de uma sala vazia. No fundo, uma garota nua. A foto traz a atmosfera das canções, minimalistas, despreocupadas com a moda, sinceras, sem produção refinada, deixando que o ouvinte se concentrasse no efeito de fluxo de consciência. O trabalho engendrava um intimismo gentil e uma hesitante, mas intensa, consciência. Outra canção do mesmo disco foi Dark Globe (Globo Escuro):
Oh, onde estará
O salgueiro que sorriu para essa folha?
Quando eu estava sozinho você me prometeu seu coração de pedra
Minha cabeça beija o chão
Estava quase caindo, encostando na areia
Por favor, por favor, me dê a mão
Eu sou somente uma pessoa cujos braços batem
Nas mãos, que ficam pendendo no alto
Você sentiu minha falta?
Você sentiu minha falta no fim das contas?
O caminho dos passarinhos
Ao redor dos cafés
Marca sua língua
Minha cabeça beija o chão
Estava quase caindo
Por favor, por favor, me dê a mão
Eu sou só uma pessoa acorrentada no frio como esquimó
Tatuei meu cérebro afinal...
Você sentiu minha falta?
Você sentiu minha falta no fim das contas?
E, finalmente, o poema de Joyce que Barrett musicou, Cabelos Dourados (Golden Hair), letra originária do poema Chamber Music:
Abra sua janela, cabelos dourados
Eu vejo você cantando no ar da meia-noite
Fecho meu livro e não leio mais
Observando o fogo dançar no chão
Eu deixo o livro, eu deixo a sala
Desde que escutei você cantando na bruma
Cantando e cantando, um mero ar livre
Abra sua janela, cabelos dourados...
Ao todo, a carreira musical de Syd Barrett foi apenas de 1965 até 1972. Passou 32 anos recusando-se resolutamente a gravar qualquer música ou aventurar-se numa apresentação. Barrett começou a fazer música na adolescência, pouco depois da morte de seu pai, um médico. Seu estilo de tocar guitarra era singular. O primeiro single da banda, Arnold Layne, era sobre um sujeito perturbado que roubava roupas femininas dos varais locais em Cambridge. David Bowie adorou os climas ora claros ora escuros das canções de Barrett. Recentemente, Bowie juntou-se aos remanescentes do Pink Floyd para homenagear Syd, cujas músicas tiveram grande influência sobre ele.
Muitos viram em Jugband Blues (1968), última canção gravada de Syd com o Pink Floyd, um apelo de um homem frágil, que lutava contra a esquizofrenia. Essa perturbação mental foi a razão que Roger Waters apresentou para o afastamento de Barrett da banda. Num depoimento de Waters sobre Barrett, disponível no Youtube, ele elogiou o talento do Barrett pintor: “Barrett pintou um quadro com leões, arcos romanos e criou uma perspectiva muito estranha (o quadro comentado por Waters segue em anexo junto com esse artigo)”. Ele fez algumas apresentações com uma banda local chamada Stars no início de 1972, mas uma crítica negativa numa revista o desistir das ambições musicais e tornar-se um anti-social e recluso em tempo integral.
Seu fantasma continuou a fascinar muitas gerações de músicos de rock. O próprio Pink Floyd foi assombrado por seu espectro, conforme referências a ele em Dark Side of the Moon, Wish You Were Here e The Wall. David Bowie relançou a forma deslocada e bastante inglesa de projeção vocal em canções como The Bewlay Brothers. Em 1976, logo depois que John Lydon entrou nos Sex Pistols, Malcolm McLaren tentou convencer, sem sucesso, a banda a tocar canções de Barrett. A banda The Damned tentou fazer com que Barrett produzisse seu segundo álbum. Várias bandas da New Wave (tais como os Soft Boys) apropriaram-se do toque surreal de Madcaup Laughs como parte de sua estética. Ele tornou-se um flautista encantado para o rock independente dos anos 80, citado tanto Blur como por Brian Jonestown Massacre. No novo milênio, basta ouvir atentamente Libertines ou Babyshambles para saber que o diamante louco da música de Syd continua informando as escolhas criativas da última geração do rock e dos espíritos boêmios.
Bibliografia:
Syd Barrett Archives: www.sydbarrett.net/welcome.htm.
Encaixe Revista Piauí
Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior (Bom Despacho/MG)
Moro numa casa ensolarada, amplas varandas com floreiras, onde Miele, meu gato, gosta de tomar banho de sol. Toda manhã, na casa em frente, a modelo Ésper, exercita-se brincando com Paco, um coelho cinza-claro. Já pensei em contratá-la para trabalhar na área de marketing da fábrica de tecidos de minha família. Só não levei adiante essa idéia porque o marido, Ocimar, me falou do temperamento explosivo e forte tendência à anorexia da jovem esposa.
Naquela manhã de sábado de aleluia, embalado pelos gritinhos e gemidos de Ésper, acabei dormindo na rede de tafetá azul estendida na varanda e tive um sonho: o jardim estava cheio de lagartas de todo tipo, lisas e veludosas, pretas e vermelhas, amarelas, moles ou com carapaças, cheias de ornamentos barrocos. Dei alguns passos e esmaguei muitos bichos da seda que babavam em meio a tafetás, gazes, Jerseys, popelines e mousselines. Depois eu estava na guerra com um trator sobre rodas envolvidas em esteiras rolantes. Mas o pior foi quando eu vi Miele perseguindo Paco: o coelho se debatia e eu, paralisado.
Esforçava-me por tirar Paco daquela enrascada, quando os pêlos do tornozelo dele grudaram na colcha de chenile. Miele avançou feito doido sobre Paco. Acordei.
Quando contei o sonho a Anabela, viu nisso uma premonição. “Você é cheia de não-me-toques”, ataquei, saltando para a cozinha.
Foi quando vislumbrei um vulto se esgueirando da cozinha para o jardim. Passou por baixo das alamandas amarelas e foi se esconder no roseiral. Mal pude acreditar no que vi. Miele havia matado Paco e se preparar para devorá-lo.Como iria explicar a tragédia aos meus vizinhos, Ocimar e Ésper? A dona do coelho certamente sofreria um troço.
Tomei Paco nas mãos, o corpo inerte. Lavei o coelho com cuidado e, cego de preocupação, enxuguei-o cuidadosamente com a colcha de chenille.
Recusei-me terminantemente a dizer qualquer coisa e deixei o corpo de Paco estendido no chão, na porta da casa de Ocimar e Ésper. Pedi a Anabela que não narrasse o fato a ninguém. Anabela, deprimida, bradou o mantra “faraooon”, colocou alguns anões a mais no jardim e reclamou porque a manta de chenille ficou suja de manchas marrons.
Ainda temi, durante algum tempo, que o casal vizinho me abordasse. No entanto, dentro em pouco, para meu alívio, eles se mudaram. A saúde de Ésper havia piorado. Anabela, sempre que se tocava no assunto, tornava-se sombria e cantava para si mesma alguns versos de uma canção melancólica de Jacques Prévert: “Ceux qui flottent e ne sombrent pas/Ceux qui ne prennent pas Le Pirée pour un homme...”
Algum tempo depois, encontrei Ocimar numa lavanderia próxima. “Como é que vão você e a Ésper?” Ele me contou que a mulher estava sofrendo alucinações, internando-se em clínicas. Ela ficou pirada com a morte do Paco.
“Você se lembra do Paco, meu coelhinho? Ele morreu envenenado por agrotóxicos e Ésper, após algumas pompas fúnebres, enterrou o bichinho no jardim. No entanto, algumas horas depois, o encontrou morto na soleira da porta. Paco foi enterrado vivo, desceu à mansão dos mortos e ressuscitou, tentou buscar nossa ajuda, mas morreu de novo”.
Eu, então, às tontas alegei um compromisso e despedi-me de Ocimar. Espero que ele leia esse texto.
Paul Ricoeur (Tempo e Narrativa)
A primeira parte da presente obra visa atualizar os pressupostos maiores que o resto do livro submete à prova das diversas disciplinas tratando seja de historiografia, seja de narrativa de ficção. Esses pressupostos têm uma raiz em comum. Quando se trata de afirmar a identidade estrutural entre a historiografia e a narrativa de ficção, como nós nos esforçaremos para provar na segunda e na terceira partes, onde se cuidará de afirmar o parentesco profundo entre a exigência de verdade entre um e outro modos narrativos, como nós faremos na quarta parte, uma pressuposição domina todas as outras, à saber que o engenho último da identidade estrutural da função narrativa da exigência da verdade de toda obra narrativa, é o caráter temporal da experiência humana. O mundo trabalhado por toda obra narrativa é sempre um mundo temporal. É a essa pressuposição maior que é consagrada nossa primeira parte.
Que a tese apresenta um caráter circular é inegável. É o caso de toda asserção hermenêutica. A primeira parte que aqui está tem por ambição colocar essa objeção. Nós nos esforçaremos no capítulo III por demonstrar que o círculo entre narratividade e temporalidade não é um círculo vicioso, mas um círculo onde os dois meios se reforçam mutuamente. Para preparar essa discussão, eu penso poder dar a essa tese a reciprocidade entre narratividade e temporalidade duas introduções históricas independentes uma da outra. A primeira (capítulo I) foi consagrada à teoria do tempo em Agostinho, a segunda (capítulo II), à teoria da intriga em Aristóteles.
A escolha destes autores tem uma dupla justificativa, nós nos propomos entrar independentes no círculo de nosso problema: de um lado pelos paradoxos do tempo, de outro pela organização inteligível da narrativa. A independência delas não consiste somente nas Confissões de Santo Agostinho e a Poética de Aristóteles pertencem a universos culturais profundamente diferentes, separados por muitos séculos e por problemáticas que não se sobrepõem. De maneira mais importante para nosso propósito, um se encarta da natureza do tempo, sem se cuidar de fundar sobre essa pesquisa a estrutura narrativa da autobiografia espiritual desenvolvida nos nove primeiros livros de Confissões. A outra constrói sua teoria da intriga dramática sem consideração pelas implicações temporais de sua análise, deixando à Physique de colocar a análise do tempo. É nesse senso preciso que as Confissões e a Poética oferecem dois acessos independentes um e outro ao nosso problema circular.
Mas essa independência das duas análises não retêm mais a atenção. Elas não se atêm em convergir contra a mesma interrogação a partir de dois horizontes filosóficos radicalmente diferentes: Elas engendram cada uma a imagem inversa da outra. A análise agostiniana deu do efeito do tempo uma representação na qual a discordância não cessa de desmentir o desejo de concordância constitutivo do animus. A análise aristotélica, ao contrário, estabelece a preponderância da concordância sobre a discordância na configuração da intriga. É esta relação inversa entre concordância e discordância que me parece constituir o interesse maior da confrontação entre as Confissões e a Poética –confrontação que me pareceu mais incongruente que aquela que vai de Agostinho até Aristóteles, no desprezo da cronologia. Mas eu pensei que o encontro entre as Confissões e a Poética, no espírito do mesmo leitor, será tornado mais dramático se ele é da obra ou predomina a perplexidade engendrada pelos paradoxos do tempo contra aquele onde leva o contrário a confiança no poder do poeta ou do poema de fazer triunfar a ordem sobre a desordem.
É no capítulo III desta primeira parte que o leitor encontrará a célula metódica cujo resto da obra constitui o desenvolvimento e talvez a revisão. Nós colocaremos em questão por ele mesmo – e sem outro cuidado de exegese histórica – o jogo inverso da concordância e da discordância que nós legou as análises soberanas do tempo por Agostinho e da intriga por Aristóteles.
As Aporias da Experiência do Tempo
A antítese maior em torno da qual nossa própria reflexão vai tornar a encontrar sua expressão a mais azeda no final do livro XI das Confissões de Santo Agostinho. Dois traços da alma humana se encontram confrontados, aqueles que o autor, com seu gosto marcado pelas antíteses sonoras, dá a mistura entre a intentio e a distentio animi. É esse contraste que eu compararei anteriormente com aquele do muthos e da peripeteia em Aristóteles.
Duas observações devem ser feitas antes. Primeira nota: eu começo a leitura do livro XI das Confissões no capítulo 14, 17 com a questão: o que é de efeito o tempo?” Eu não ignoro que a análise do tempo está encaixada numa meditação entre as relações entre a eternidade e o tempo, suscitado pelo primeiro versículo da Bíblia: em princípio foi feito Deus...
Nesse senso, isolar a análise do tempo dessa meditação, é fazer ao texto uma certa violência que não é suficiente para justificar o desejo de situar no mesmo espaço de reflexão a antítese agostiniana entre intentio e distentio e a antítese aristotélica entre muthos e peripeteia. De qualquer modo, essa violência encontra alguma justificação na argumentação mesma de Agostinho que, em se tratando do tempo, não se refere mais à eternidade que para marcar mais fortemente a deficiência ontológica característica do tempo humano, e se mede diretamente nas aporias que afligem a concepção de tempo de modo tal. Para corrigir um pouco esse corte feito no texto de Santo Agostinho, eu farei uma reintrodução da meditação sobre a eternidade em um estágio anterior da análise, no desejo de encontrar uma intensificação da experiência do tempo.
Segunda observação notável: isolada da meditação sobre a eternidade pelo artifício do método que eu venho ter, a análise agostiniana do tempo oferece um caráter altamente interrogativo e mesmo aporético, que nenhuma das teorias anteriores do tempo, de Platão a Plotino, não possuem a um tal grau de acuidade. Não somente Agostinho (como Aristóteles) procede sempre a partir de aporias recebidas da tradição, mas a resolução de cada aporia faz nascer novas dificuldades que não cessam de relançar a procura. Esse estilo, que faz que todo avanço de pensamento suscite um novo embaraço, coloca Agostinho na vizinhança dos céticos, que não sabem, dos platônicos e neo-platônicos, que sabem. Agostinho procura (o verbo quarere, veremos, aparece com freqüência no texto). Pode ser que ele deveria ir até o ponto de dizer que aquilo que chamamos a tese agostiniana sobre o tempo, e que qualificamos voluntariamente de tese psicológica para se opor àquela de Aristóteles e mesmo àquela de Plotino, é ela mesma mais aporética que Agostinho admitiria. É o meio que eu emprego para mostrar.
As duas observações iniciais que devem estar juntas: o encaixe da análise do tempo numa meditação sobre a eternidade dá à procura agostiniana o tom singular de um “germinar” pleno de esperança, que desaparece numa análise que isola o argumento propriamente dito sobre o tempo. Mas é precisamente destacando a análise do tempo de seu pano de fundo eterno é que ficamos sabendo dos traços aporéticos. Certamente, esse modo aporético difere daquele dos céticos, no sentido em que ele não impede uma forte certeza. Mas ele difere dos neo-platônicos, no sentido em que a raiz assertiva não se deixa jamais apreender em sua nudez próxima das novas aporias que ele engendra.
Esta característica aporética da reflexão pura sobre o tempo é para toda a seqüência da presente procura da maior importância. Em dois sentidos.
De início, deve-se avaliar que não existe, em Agostinho, uma fenomenologia pura do tempo. Pode ser que jamais existiu antes dele. Assim, a teoria agostiniana do tempo é ela inseparável da operação argumentativa através da qual o pensador corta umas após as outras as cabeças sempre renascentes das hidras do ceticismo. Então, não há descrição sem discussão. É porque ele é extremamente difícil – e talvez impossível –isolar uma raiz fenomenológica da sanha argumentativa. A “solução psicológica” atribuída a Agostinho não pode ser nem uma “psicologia” que pudéssemos isolar da retórica do argumento, nem mesmo uma “solução” que pudéssemos suster definitivamente no regime aporético.
Esse estilo aporético como uma outra significação particular numa estratégia de reunir na presente obra. Esta será uma tese permanente do livro que a especulação do tempo é uma ruminação inconclusiva à qual somente replica a atividade narrativa. Não que esse resolva e suplemente as aporias. Se elas os resolvem, é num sentido poético e não-teórico do termo. O colocar em intriga, diremos mais tarde, responde à aporia especulativa por um fazer poético capaz certamente de esclarecer (esse será o sentido maior da catharsis aristotélica) a aporia, mas não de sua solução teórica. Num certo sentido, Agostinho ele mesmo orienta contra uma resolução desse gênero: a fusão do argumento e do hino na primeira parte do livro XI – que nós vamos de início colocar em parênteses –já deixa entender que somente uma transfiguração poética, não somente da solução, mas questão ela mesma, libera a aporia de não-sentido que ela coteja.
A Aporia do Ser e do Não-Ser do Tempo
A noção de distentio animi, junto da intentio, não se desenlaça mais que lentamente e sofrivelmente da aporia maior que exerce o espírito de Agostinho: saber aquela da medida do tempo.
Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior*
O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) criado por Lula no início do segundo mandato agora em curso (e que pretende realizar o famoso “espetáculo do crescimento”) prevê várias medidas e obras fazer o País crescer (para termos uma base de comparação, Venezuela e Argentina crescem muito mais que o Brasil).
Assim sendo, dentro da previsão de investimento em transportes, o PAC promete a duplicação da BR 262 – MG, entre Betim e Nova Serrana e a criação de uma linha de transmissão de energia elétrica entre Itumbiara e Bom Despacho. Foi destinada também uma ampla verba para a revitalização da bacia do Rio São Francisco (um milhão e seiscentos mil reais). Obtive esses dados no material preparado para a imprensa (secretaria de imprensa e porta-voz, Brasília, 22 de janeiro de 2007).
Para fazer diminuir o tal do “Custo Brasil”, o PAC prevê que as cidades com menos de 300 mil habitantes deverão ter vereança gratuita, ou seja, o cargo de vereador passará a não ser remunerado. Estaríamos retornando a uma situação que existia no passado.
A prevista vereança gratuita foi posta em debate num artigo de Sacha Calmon (O PAC e seus Óbices, Estado de Minas, 03/03/2007), advogado tributarista e professor titular de direito tributário. Segundo Calmon, trata-se de dos pontos controversos do PAC, que não são poucos. Essa medida não constou no material divulgado para a imprensa e, ao que tudo indica, não está sendo extensamente repassada para a opinião pública.
Segundo Calmon (que pouco escreveu a respeito da vereança gratuita em seu artigo, limitando-se a dizer que a medida está no PAC e ele deseja debatê-la), o plano é, no geral, positivo porque inaugura um planejamento integrado no país, sinaliza a continuidade da queda dos juros básicos, fragilizando os execráveis monetaristas encastelados no BC, além de relançar o desenvolvimento, acenando aos investidores e desonerando setores importantes da economia.
A Muchacha de Léon e o Ato Sexual do Monstro
Ele sabia que aquilo a perturbava, mas se limitava a despir ao terno e dizer:
_Vai te fazer bem esquecer a você esquecer disso tudo, sorry, mi muchacha, yo soy un ombre sincero, o luar vai te fazer um bem...Vai ser muito melhor do que ler Althusser...Lendo este louco, você pode ficar achando que um dia vou chegar da rua e te estrangular, enquanto você assiste a novela das seis.
Che Guevara a espiava tirar a calcinha, o argentino ficava lá na parede de boca aberta, flácida, Che tudo olhava com os olhos fixos no infinito, era sempre assim, cósmico.
Isso enquanto seu marido murmurava docemente em sua orelha, mas mãos bobas buscando reentrâncias, ele torturava a carne da muchacha e ela estava impávida. Depois lhe arranhava as costas.
Daqui no passarán. Mas ele era um bruto, com os dedos ia avançando, seguia para o front, hay que endurecer pero sin perder la ternura, a baioneta, a trincheira, aquilo era a batalha do corpo a corpo, boca a boca. Cantando uma canción desesperada y otros poemas de amor.
Na manhã do dia seguinte, depois de fazer café, enquanto folheava na estante coisas cheias de letras como Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, O Capital, ela falava:
_O apartamento não tem espaço para essa coiseira toda, tem livro por tudo quanto é lado, mas a gente acabou de casar e o apartamento é muito apertado, é um ovinho.
Ela o olhava com hostilidade, como se fosse Paulo Francis _ isso de cheirar comunismo fazia mesmo mal _ e ainda citava Churchill cinicamente:
_Quem não é socialista aos vinte anos não tem coração, quem não é conservador aos quarenta anos não tem cabeça.
Ela o torturava com esta frase, sua carne era fustigável por palavras perfuro-cortantes. Ele retrucava com deixando fluir um falatório:
_Levantem-se, famélicos de todo o mundo, sassaricai agora como na hora da morte! Tesudos de todo mundo, uni-vos, nada tendes a perder, a não ser os seus culhôes, tesudos de todo mundo, sassaricai...
Tinha dia que ele danava a escrever uns textos descabelados assim para ela:
_O prazer orgástico de ouvir Guns and Roses em cristalino Compact Disc é destes da burguesia decadente e devassa, a reação entorpece com ópio. Oferecem cannabis sativa e tetas para os proletas. Os popstars niilistas são deuses para quem vocês fazem palhaçadas, seus ciberpanquis e neoripis de cabelos desgrenhados, vocês acham que Zaratustra falou e disse, né, bichos? Hein? Leram Paulo Coelho? Queriam fazer uma canção para fazer chorar de plástico enquanto dançam as bailarinas do Show da Morte, o Fantástico?
_Mas querido, isso é loucura, vê se pode!
Em resposta ao grito da moça, começou outro discurso:
_Estamos aqui conversando, mas ainda há pouco matavam iraquianos em nome de um aiatolá qualquer. Enquanto isso uma maluca está tramando uma nova religião, cujo primeira mandamento será: “ Enquanto não finda o mundo, transai altas loucuras”.
O Show dos Beatles nas Filipinas
· Miguel
· J. C. Rabonú
· Henry Ford Cristo
No terraço de um hotel quatro estrelas no centro de Belo Horizonte.
CENA 1
(Paul e Miguel acabaram de chegar dos EUA e estão no terraço do Othon Palace em BH, bebendo muito).
Miguel (entra cantarolando): “E o som dos Beatles na vitrola...Será, que algum dia eles vêm aqui? Cantar as canções que a gente quer ouvir?”
Paul Rabbitt (irritado): Miguel, há algo dos Beatles que nunca foi dito e que você não sabe. Vou revelar agora.
Miguel: Ah, fala o meu grande guia espiritual.
Paul Rabbitt: Os Beatles só fizeram um concerto em país de Terceiro Mundo: as ilhas Filipinas. E eles não fizeram reverência ao ditador local, Ferdinand Marcos. No dia seguinte, foram vaiados ao ir fazerem o show. O show foi terrível!
Miguel: Oh! O show dos Beatles nas Filipinas!
Paul Rabbitt: e John Lennon gritou: nunca mais iremos a um país como esse! Esse país é um hospício!
Miguel: então foi por isso que os Beatles não vieram ao Brasil nem Lennon cumpriu a promessa de vir dançar fantasiado o carnaval de máscara, para que ninguém o reconhecesse!
Paul Rabbitt: não acabo de te dar a luz, Miguel?
Miguel: Siiiim! Este país é um hospício! Salve o lindo pendão das minhas pernas que a brisa do Brasil beija e balança!
CENA 2 (Paul e Miguel conversam no quarto de hotel, agora sóbrios).
Paul Rabbitt: Miguel, Miguel, você ligou para a editora hoje?
Miguel: Liguei. Eles vão estar mandando o adiantamento em breve.
Paul Rabbitt: “Vão estar mandando”. Não suporto esse gerundismo de Telemarketing. Copiado do inglês.
Miguel: Desculpe, desculpe, vou providenciar tudo, pode ficar descansado e ir escrevendo seu livro.
Paul: estamos aqui no Brasil para conhecer o tal Rabonú. Nesse meio tempo, enquanto não falo com ele, vou visitando uns parentes aqui. A viagem será proveitosa...
Miguel: Você está escrevendo sobre a segunda vinda de Cristo, não é?
Paul: Pois é. Mas, se não encontrar inspiração aqui vou para Los Angeles ou o sul da França. Há anos meus livros de auto-ajuda e esoterismo são um sucesso nos Estados Unidos e Europa.
Miguel: Rabonú é, pelo que soube pelos e-mails, um mau profeta, um arrogante dono da razão.
Paul: Você acha que ele pode ter alguma novidade utilizável em meu livro, não é?
Miguel: Claro! Eu já estou entrando em contato com ele via telefone e telepatia, não se preocupe.
Paul: Será que ele se diz uma reencarnação de Cristo? Se não disser, não presta! Eu sou como o Paulo Francis.
Miguel: Vejamos se esse contato vai ser proveitoso.
Paul: É bom, senão...Você tem outro emprego em vista? (Paul sorri, sarcástico, servindo-se de uísque e gelo).
CENA 3
Paul Rabbitt: Veja, Miguel, estou compilando informações sobre a Segunda Vinda. Já reuni as citações bíblicas sobre a volta...
Miguel: Ficou só na Bíblia, até agora?
Paul Rabbitt: Não, já soube da vinda de um suposto Cristo-mulher, da crença russa de que Cristo reencarnou num corpo de soldado e depois foi morto. Li também a respeito de um beberrão e blasfemo italiano que passou alguns dias em um mosteiro e saiu convencido de que ele mesmo era Cristo, tendo reunido um bom número de fiéis e causado confusão Itália afora.
CENA 4
(Paul e Miguel encontram-se com Rabonú em Ouro Preto).
Paul: Foi preciso vir a essa praça suja, essa feira bagunçada?
Miguel: Vai ser legal, aí, de boa...
Paul: Há tantos anos costumo ir só a Champs Elysées e ao Central Park em New York...
Miguel: Olhe, lá vem ele.
(Rabonú aproxima-se com roupas de hippie. Ele tocava junto com um conjunto de músicos peruanos a canção If I Could, de Simon and Garfunkel).
Paul (falando baixo para Miguel): Mas é um coitado! É só um pobre diabo!
Rabonú (encara muito sério Paul Rabbitt e Miguel): O Hercóbulus está chegando!
Paul: O que é isto? É o nome do novo Cristo?
Rabonú: Naaaaaão! O planeta Hercóbulus está chegando! Eu sou o profeta da chegada de um planeta vermelho e gigante que está afetando a Terra!
Miguel (aflito): Se você é profeta, é a reencarnação de Cristo?
Paul: Deixe-o falar, Miguel, vamos ver se presta.
Rabonú: Calem-se! Agora vocês escutarão minhas sábias palavras. As mudanças climáticas pelas quais a Terra está passando são fruto da aproximação de um planeta cinco ou seis vezes maiores do que Júpiter! E vocês têm pouco tempo para seguir meus ensinamentos e apagar seus defeitos psicológicos para poderem ser salvos.
Paul: Mas não seria culpa do Bush?
Miguel (cantarola): and who is the fascist? Bush, Bush, Bush, Bush!
Rabonú: Sim, o planeta está chegando com extraterrestres que já vivem numa sociedade mais adiantada, a sociedade socialista. Eles só salvarão alguns dentre nós.
Paul Rabbitt: Rabonú, os extraterrestres socialistas vãos nos ajudar?
Rabonú: Os terrícolas crêem que é tudo brincadeira, mas realmente é princípio do fim do planeta Terra. Ninguém, no entanto, poderá deter o cataclismo.
Paul: Não há nada que possamos fazer, senão esperar o apocalipse? Mas não virá nenhum Jesus, nenhum sinal?
Rabonú: Hercóbulus tem sua humanidade, tão perversa quanto a daqui. A nossa ciência não poderá atacar os Hercobulusianos porque eles se defenderão e fim será mais rápido ainda.
Miguel: Então existe vida inteligente fora da Terra?
J. C. Rabonú: Os cientistas vão rir feito asnos zurrando, pois infestaram o planeta com armas atômicas e não levaram em conta que existe Deus e sua Justiça Divina.
Paul: Mas nenhum cientista avisou-nos da chegada desse planeta? Por que eles estão nos escondendo esse fato?
Rabonú: O que está acontecendo agora, com todos procurando ganhar dinheiro a todo custo, aconteceu na Atlântida, numa época em que Deus era o dinheiro.
Paul: Existiu um culto ao Deus-dinheiro? Nunca ouvi falar.
Miguel (cantarolando): Money makes suffer downer, money makes the world go roooound!
J. C. Rabonú: O eixo da Terra está fora do seu lugar e com tremores, terremotos, maremotos, acabará por deslocar-se e virá o afundamento.
Paul: E os ETs? Não se importam com nosso destino?
J. C. Rabonú: Os ETs são super-homens e sábios! Tenho ido, em meu corpo astral, a Vênus e Marte. Consigo descrever essa maravilha de habitantes, com sabedoria, cultura e vida angélica muito superiores às daqui.
Miguel: Vinde conosco para a Feira Literária de Parati, a FLIP, onde o Sr. Paul Rabbitt deve em breve fazer a leitura de um capítulo do livro dele. E terá oportunidade de advertir a humanidade, pois lá existem repórteres de todo mundo.
J. C. Rabonú: Vamos, vamos! Os fatos não se fazem esperar e é preciso prevenir a humanidade. No mais, não há tempo a perder em coisas ilusórias.
CENA 5
(Miguel, Rabonú e Paul estavam no hotel, fazendo os preparativos para partida até Parati, peregrinando na Estrada Real, quando encontram Henry Ford Cristo).
Paul: Miguel, Miguel, já estão prontas as malas?
Miguel: já está quase tudo pronto, Paul.
Paul (voltando-se para outro lado): Rabonú, você vai partir conosco?
J. C. Rabonú: Sim, partirei em peregrinação junto a vocês e alertarei a pobre humanidade.
Henry Ford Cristo (entra com coroa de espinhos, largas roupas brancas e barba de profeta): A Humanidade será alertada por mim, não por você! Sou o Cristo que regressou!
Paul (extático): É você quem eu estava esperando!
Henry: Eu já renasci em vários lugares e ainda não fui aclamado Salvador. Eu renasci em Bristol, fui preso, supliciado e novamente morto no pelourinho. Fui um bêbado na Itália, no século dezenove, depois me revelei o Salvador, mas novamente fui supliciado. Apareci na Rússia também, filho de uma camponesa e de um ancião de cem anos, mas o Czar me mandou crucificar frente ao Kremlin. Depois, renasci como um louco gaguejante em Novrogod, para ser novamente preso e supliciado junto com os anti-czaristas. Deus muitas vezes utiliza a máscara da imbecilidade. Eu fui um cozinheiro negro de um vagão restaurante nos Estados Unidos, profetizei que era o Jesus Negro, mas fui morto outra vez, no Sul dos EUA, pela Ku Klux Klan. Agora vim para a Segunda Vinda definitiva, nasci em Belém do Pará no Brasil e lá fui preso pela polícia, revivendo meu martírio. De lá, parti para fundar minha Igreja em torno de Brasília, cidade fonte futura de um jorro universal de leite e mel...
Paul: Mas ora você vem como Cristo-homem, ora como Cristo-mulher?
Miguel (cantarolando Ney Matogrosso): Se Deus é menina e menino, sou masculino e feminino...
Henry Ford Cristo: Sim, já fui a camponesa Ana Lee. Eu já fui um Cristo-mulher, eu fui presa e interrogada, mas comecei a falar em todas as línguas conhecidas. E profetizei que na Américas nasceria a coisa nova, um mundo sem maldade! Minha porção mulher foi derrotada, mas eu renasci em Belém! Desta vez, para triunfar!
Paul: Escute Henry Ford Cristo, tenho uma proposta para lhe fazer...Gostaria muito de ir te entrevistando...
Henry Ford Cristo: Como já disse, na minha primeira aparição em Belém do Pará, invadi uma catedral para arrebentar com o bonequinho. E expulsei o falso sacerdote.
Paul: Que bonequinho?
Henry Ford Cristo: Para mim, a figura do Cristo crucificado não significa nada! Eu sou o Cristo renascido! De nada vale um Cristo morto. O povo brasileiro precisa de um Cristo vivo, audacioso, andando entre nós...
Paul: Glauber Rocha, em seu último filme, também enfocou o mito Cristo. Em Idade da Terra tinha Cristo militar, que era o Tarcísio Vieira, existia o Cristo guerrilheiro e vários outros Cristos que lutavam contra Brahms, o símbolo do imperialismo.
Henry Ford Cristo: Mas mito eu não sou! Quando fiz minha primeira ação cristã, expulsando o falso sacerdote da Igreja, ele chamou a polícia, me chamando de louco, esquizofrênico. Sou feito de carne e não de mito!
Paul: E esse nome americanizado? Cristo made in Usa! Lennon dizia que, se vivesse no mundo antigo, gostaria de viver em Roma, mas como vivia no mundo moderno, vivia em New York como eu…
Henry Ford Cristo: Então, Paul, ele perderia minha primeira vinda e nem ficaria sabendo...
Paul: Genial! Está vendo, Miguel, que achado esse homem!
Miguel: Pois é... Agora vamos para Parati, para a FLIP, como vamos fazer?
Paul: Senhor, venha comigo e lhe apresentarei para uma platéia cheia na Feira Literária de Parati.
Henry Ford Cristo: Em verdade vos digo: minha resposta é sim e irei contigo.
Paul: Que bom! Iremos conversando sobre esses assuntos, sobre essa sua nova vinda...
Miguel (falando baixo para Paul): Mas esse cara é maluco, Paul.
Paul (dando uma cotovelada em Miguel): Miguel, informe ao meu motorista que estamos partindo agora! Miguel, pegue as malas de Henry Cristo, o salvador que se apresentou a mim na estrada real de Parati, a nova estrada de Damasco! (e falando baixo para Miguel): Miguel, vou apresentar esse sujeito na Feira e vai ser um sucesso, além de colher material para o meu livro! Agora vá pegar as malas dele, vá...
Miguel: já vou, já vou.
CENA 6 ( Horas depois, viajando no carro de Paul, os quatro chegam a um bar em Tiradentes).
Miguel (à parte no bar, dirigindo-se para Paul): Paul, acho que não foi boa idéia trazer esses malucos junto da gente.
Paul: Mas são dois profetas!
Henry Ford Cristo: Ah, sei. Estive ali olhando a sinuca desse bar...Vamos jogar uma partida?
J. C. Rabonú: Devemos abandonar todas as ilusões enquanto o Hercólubus não chega...E penso que não há problema em nos divertirmos um pouco. Eu, com um saltinho já fico flutuando...
Henry Ford Cristo: Então você tem superpoderes?
J. C. Rabonú: Não, isso é coisa de cientistas que ficam zurrando burrices. Desenvolvi capacidade de sair de meu corpo carnal e fazer viagens astrais.
Miguel (conciliador): Pessoal, vamos jogar uma partida de sinuca para relaxar, que tal? (Paul, Rabonú e Henry Ford Cristo concordam e passam a debater entre copos de cerveja e tacadas de sinuca):
Henry Ford Cristo: Eu tive uma visão, vi uma porta aberta no céu, uma voz falara comigo.
Rabonú: Eu não tive uma visão, saí do corpo em viagem astral.
Paul: O que vocês acham do messias Lula?
Rabonú: Lula não é o messias esperado pelo povo brasileiro. Eficácia definitiva, só na Justiça Divina, que nos enviou o Hercólubus, que agora está chegando.
Paul: Os messias não resolvem! Vejam os índios Morales e Chávez...
Henry Ford Cristo: Eles decidiram, pelo menos, enfrentar o império americano decadente. Com eles, e com os aiatolás atômicos, com os mexicanos na fronteira do muro da morte, começarão as invasões dos doces bárbaros.
Miguel (cantarola): Afoxé, lindas canções, nossos planos são muito bons!
J. C. Rabonú: Chávez e Evo Morales são índios que conspiram contra o branco. De nada adiantará esse forte apego material. Pior ainda que se eles se ligarem ao selvagem materialismo científico do comunismo...
Henry Ford Cristo: Chávez e Morales são manifestações de um Cristo popular, um Cristo cósmico, glauberiano. Chávez é novo gênio da raça!
J. C. Rabonú: Estoy com Diogo Mainardi, sou pelo ufanismo da calamidade. De nada adiante resistir, se o mundo acabará dentro em pouco. O presidente do Irã é da maldosa humanidade de Hercólubus. Ele está no meio de nós.
Henry Ford Cristo: A Amazônia deverá ser preservada com a espada de Cristo. Estamos vivendo os últimos tempos que se estendem da minha Ascensão até a minha volta enquanto Juiz. O que, aliás, já ocorreu.
Rabonú: Henry, você não é o salvador, você quer fazer a revolução dos idiotas!
Paul: Em meu novo livro, falarei sobre o messianismo religioso, mas não sobre o messianismo político. A América Latina já sofreu muito com seus líderes e caudilhos carismáticos...
Miguel (cantarolando): Enquanto os homens exercem seus podres poderes, padres, bichas, adolescentes e mulheres fazem o carnaval. Ah, a incompetência da América Católica, que sempre precisará de ridículos messias.
Rabonú: carismáticos como Hitler.
Paul: Eu não queria chegar até aí.
Henry Ford Cristo: Chávez é muito diferente de Hitler. O nacionalismo de direita de Bush, que faz guerras de conquistas, é que se aproxima do de Hitler.
Paul (gritando): Cheeega! Moooorrram! Tomara que vocês morram no meio de uma frase, como disse Nelson Rodrigues em Anti-Nelson Rodrigues.
CENA 7 (Paul aparece no telefone, fora do bar, onde se ouvem, ao longe, rumores de sinuca, copos e a discussão acalorada de Rabonú e Henry Ford Cristo).
Paul: Olhe, como eu lhe disse, estou trazendo dois profetas impressionantes para compor a mesa comigo em julho. Sim, sim, estamos fazendo a Estrada Real....Sim....Estou recolhendo material para meu novo livro...Sim, sim, sim, vai ser muito interessante, vocês vão ver...Pois é, pois é, já estou avançado. É sobre a Estrada Real. A estrada real agora é meu caminho de Santiago...
CENA 8 (Em Parati, os três hospedados em um hotel luxuoso, conversando no Hall, sentados em poltronas).
Henry Ford Cristo: Parati, enfim. Vim, vi e venci.
Paul: Gostaram da chegada na cidade?
J. C. Rabonú: O Brasil é um país tão jovem, tão criança, mas já está decrépito o suficiente para a chegada do Hercólubus. É uma civilização nova, mas que tem todas as taras de uma Grécia ou de uma Espanha em decadência. É como se o Brasil tivesse nascido de barbas brancas...
Henry Ford Cristo: Nós somos um país invadido culturalmente pelo imperialismo dos United States, Rabonú, e você é um índio lúmpen, um alienado pela cocaína mística, diferente da coca dos cocaleros de Morales, que é libertadora. Sua coca é um entorpecente que lhe faz esperar incólume o Hercólubus...
J. C. Rabonú: Você não passa de um falso profeta, um falso Cristo dentre muitos que já apareceram. Um Antônio Conselheiro tupiniquim, um Pai João sem Contestado. Seu Contestado é a mitologia anti-imperialista. A livre competição dos terráqueos com os hercolubusianos lhes mostraria o que é uma humanidade mais maldosa, mais competitiva e mais ligada à livre iniciativa.
Henry Ford Cristo: Indiota! Você receberá os sacramentos católicos em seu leito de morte, sem a chegada do seu Hercúlubus! Her-CÚ-lu-bus! Para você, todos os índios e todos os brasileiros deveriam ter a cara maldosa do Diogo Mainardi. Os herculubusianos seriam colunistas da revista Veja, economistas liberais que deram um drop out na escola, portanto, todos teriam a cara maldosa do Diogo Mainardi. Todos caindo fora da escola!
J. C. Rabonú: Aguarde e logo você queimará no fogo do Hercólubus, seu blasfemo!
(Dito isto, Henry Ford Cristo começa a acender velas em seu quarto de hotel, um atrás da outra).
Paul: o que é isto, Henry?
Henry Ford Cristo: Para espantar o cheiro de enxofre e o mau agouro.
Miguel: Como assim? Vamos acabar sendo expulsos do hotel. Isso não é permitido.
Henry Ford: Como o tal do Hercólubus está chegando, igualmente como o presidente norte-americano está prestes a chegar, a nos visitar.
Paul: Para quê tantas velas?
Miguel: Deixe-me apagá-las, Paul.
Henry Ford Cristo (dando um berro): Nãaaaaaaao! É preciso nos livrar do cheiro de enxofre que vem do presidente norte-americano, fora a energia negativa advinda da vaidade dos escritores que estão aqui na Feira Literária de Parati! A fogueira das vaidades desses escritores!
CENA 9 (Do lado de fora do hotel, barulho de sirenes, ambulância, algazarra de pessoas conversando).
Paul: Oh, meu Deus! Cadê o Henry Ford Cristo?
Miguel: Aquele maluco fugiu! Eu te disse, eu te disse!
Paul: A culpa foi sua, Miguel, você não apagou as velas que Cristo ia deixando no quarto...
Miguel: Você é que teve essa idéia de trazer esses malucos aqui para Parati! Não tinha como vigiar esse pirado do Henry Ford Cristo, eu tinha que fazer contatos com seus agentes literários, preparar a mesa para sua conferência. Além do mais, não estava previsto que o Rabonú e o Henry Ford Cristo iam falar, pô! Tudo eu!
Paul: Henry Ford Cristo, Henry Ford Cristo, por que me abandonaste? Por que puseste fogo em nosso belo Hotel Parati? Lemi, Lemi, Lamá Sabactani!
(Neste momento, Rabonú entra gritando, fugindo do hotel em chamas)
Rabonú (berrando e olhando para as chamas): O Hercólubus chegou! Chegou! Ahhh, pobre humanidade sofredora, sofra a última vez, ainda! (Dito isto, Rabonú tomba aos pés de Paul e Miguel).
Paul: Pobre Rabonú! Miguel, busque socorro para ele! Ah, meu Deus, pelo amor de Henry Cristo, o que farei agora?
Miguel (ao sair de cena, grita para Paul Rabbitt): Você vai superar, Paul, você vai superar.
Paul (com voz chorosa): Como irei superar a perda desses dois profetas! Perdemos Henry Cristo e Rabonú! Perdi a Feira Literária Literária de Parati!
Miguel (enquanto volta com uma maca e enfermeiros vestidos de branco, cantando uma canção dos Beatles): We can work it out, we can work it out. Life is very short, there is no time for fusing and fighting my friend.
CENA 10 (Paul Rabbitt está numa mesa sozinho. Flashes espoucam e microfones o cercam por todos os lados):
Paul (para os microfones): Agora muita atenção. Vou ler um trecho de meu novo romance, A Segunda Vinda, para vocês: enquanto andava pela Estrada Real numa peregrinação mística, encontrei-me em Diamantina, no início de minha peregrinação, o profético índio J. C. Rabonú, fazendo suas profecias a respeito da chegada do planeta Hercólubus, um planeta vermelho e gigante que chegará para justiçar os cientistas burros do nosso planeta pequeno. Para destruir a Terra, esse planeta pequeno!
Eis que surge, eis que surge o Messias em pessoa. Ele atendia pelo nome singelo de Henry Ford Cristo. Era um Cristo perfeito, já renascia crucificado, com coroa de espinhos e tudo. Ele trazia uma verdade, duas verdades, muitas verdades de esquerda. Ele estava em Ouro Preto. Ele me contou que já renasceu em vários lugares e ainda não foi aclamado Salvador. Ele renasceu em Bristol, fui preso, supliciado e novamente morto no pelourinho. Foi um bêbado na Itália, no século dezenove, depois me revelou-se o Salvador, mas novamente fui supliciado. Apareceu na Rússia também, filho de uma camponesa e de um ancião de cem anos, mas o Czar mandou crucificá-lo frente ao Kremlin. Depois, renasceu como um louco gaguejante em Novrogod, para ser novamente preso e supliciado junto com os anti-czaristas. Deus muitas vezes utilizou a máscara da imbecilidade. Ele foi um cozinheiro negro de um vagão restaurante nos Estados Unidos, profetizaram que era o Jesus Negro, mas foi morto outra vez, no Sul dos EUA, pela Ku Klux Klan. Agora virá para a Segunda Vinda definitiva, renascerá em Belém do Pará no Brasil e lá será preso pela polícia, revivendo seu martírio. De lá, partirá para fundar sua Igreja em torno de Brasília, cidade fonte futura de um jorro universal de leite e mel... Bom, esse é o trecho que posso divulgar e adiantar para vocês. No mais, planejo para breve uma nova peregrinação mística: irei viajar pela ferrovia transiberiana acompanhado de Mãe Santinha do Cantuá, uma mãe de santo de minha devoção...
(A fala de Paul Rabbitt é interrompida pela canção Across the Universe, na versão da banda eslovena Laibach, e, quando a canção acaba, TREVAS).