Mostrando postagens com marcador teatro. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador teatro. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Beckett fala!

Finalmente um vídeo com a voz de Samuel Beckett, que infelizmente fica atolada numa lama sonora lá no fundo.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Tudo azulzim...

Um blog muito bom que descobri: belas crônicas, fotos, etc.

http://tudoazulzim.blogspot.com/

E um texto que a dona do blog, professora, me pediu:


NOTAS SOBRE O TEATRO DE GERALD THOMAS: UMA DESCIDA NO MAELSTROM
Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior


RESUMO


Esse texto busca analisar a trilogia do encenador Gerald Thomas iniciada com Rainha Mentira (Queen Liar), Terra em Trânsito e, no ano de 2008, enriquecida pela blognovela O cão que atacava mulheres: Kepler, the dog, além de Bate-Man, monólogo escrito para Marcelo Olinto. O texto analisa a virada autoral de Thomas, que passa a partir desses textos a fazer relatos marcadamente autorais, senão autobiográficos, como mais uma forma de cultivar a sua assinatura enquanto autor, mais próximo, segundo ele, do cinema de Glauber Rocha do que realizam, no teatro, os chamados diretores teatrais, um título que Thomas desconsidera e julga figurativo. A partir do texto original da blognovela, escrito por Gerald em seu blog, desvendamos um pouco de seu processo criativo: ao encenar a peça, Gerald Thomas substituiu um texto mais lúdico e coloquial, ligado ao cotidiano, por imagens derivadas do inconsciente inspiradas nos símbolos que criava Beckett.


Palavras-chave: dramaturgia, Terra em Trânsito, Queen Liar, Kepler, Gerald Thomas, blognovela, teatro, Ópera Seca, pós-modernismo


ABSTRACT


This text analyzes the works of the encenador Gerald Thomas initiated with Rainha Mentira (Queen Liar), Land in Transit and, in the year of 2008, his blog´s soap opera named The dog that attacked women: Kepler, the dog. The text analyzes the authorial turn of Thomas, who pass from drama director from authorial and autobiographical dramasas as a form to cultivate its signature while author, next according to it of the cinema of Glauber Rocha of what of they carry through it, in the theater, his teatrical managing calls, a heading that Thomas disrespects and judges figurative. From the original text of blog´s soap opera, congregated in his blog,this work unmasks a little of his creative process: at the moment where it was staged, Gerald Thomas substituted a text more ordinary and playful for images derived from the unconscious one inhaled in the symbols that Beckett created.


Key-words: Land in Transit, Queen Liar, Kepler, Gerald Thomas, blognovela, theater, Dry Opera, post-modernism
INTRODUÇÃO


O início dos anos 80 foi o momento em que o Brasil reconheceu o talento de encenador de Gerald Thomas. O contexto em que sua peça Quatro Vezes Beckett fez sucesso era de redemocratização e abandono das preocupações políticas dos anos 70. A partir de então, transformou-se o contexto em que boa parte dos diretores e dramaturgos brasileiros tinham sido primordialmente brechtianos, mas vivia-se um momento em que Brecht foi perdendo, paulatinamente, sua influência.
Essa pesquisa visa estudar e verificar uma importante mudança ocorrida na carreira do encenador Gerald Thomas desde meados dos anos 2000: Gerald decidiu não mais encenar textos de outros autores, esforçando-se agora por encenar e redigir sua própria dramaturgia. A primeira experiência dessa nova fase foram as peças Terra em Trânsito e Rainha Mentira (Queen Liar). Ele se aproxima, portanto, do traço autoral de um Glauber Rocha, que sempre escrevia e dirigia seus filmes, tendo todos eles a sua marca, sua assinatura autoral e muitas vezes, como em Idade da Terra, sua presença física e voz propriamente ditas.
Nos anos 90, o crítico David George Thomas já considerava Thomas como mais do que um diretor e sim um encenador surgido a partir de uma visão original das obras de Beckett nos anos 80. É comum nas peças de Thomas a interferência da própria voz do encenador. Por exemplo, em Queen Liar, a narrativa autobiográfica apresenta constantemente a voz do encenador que faz intervenções narrativas. Essa voz narrava, por exemplo, que a personagem da avó se assemelhava a uma personagem do pintor Otto Dix (expressionista alemão que protestou contra guerra pintando os mutilados e mortos). Já Terra em Trânsito, que Gerald considera a mesma peça, refere-se claramente a Terra em Transe, filme de Glauber Rocha: cita-se, por exemplo, o apaixonado por ópera Paulo Francis, enquanto Terra em Transe era o epitáfio do jornalista e poeta ficcional Paulo Martins. Em Terra em Trânsito, uma cantora de ópera se vê presa em seu camarim e entra num processo de enlouquecimento enquanto escuta um discurso reacionário Francis no rádio e desespera-se enquanto alimenta um ganso para fazer foie gras. Trata-se de uma oscilação freqüente na obra de Gerald Thomas e que talvez seja o drama do artista contemporâneo: ele oscila entre um ceticismo neopositivista (“nada prova nada”) e o desespero ultra-romântico (a diva em crise na carreira, Hamlet/Paulo Martins).
Recentemente, em 2008, Thomas realizou mais uma peça que continua essa trilogia iniciada com Terra em Trânsito: a peça O cão que atacava mulheres, Kepler, the dog, inspirada numa blognovela realizada por Gerald Thomas juntamente com os participantes de seu blog no provedor Ig, internet gratuita. Nela, um cão de nome Kepler perambula entre um cenário de pesadelo que, dentre muitos outros personagens, vê imagens que fazem lembrar as torturas nas bases norte-americanas de Abu Ghraib e Guantánamo, assim como um executivo suicida, a busca do Santo Graal, etc. O cão (Fabiana Gigli) está na coleira do personagem do executivo (Duda Mendonça), mas faz referência à imagem, muito recorrente na mídia, da militar norte-americana no Iraque trazendo um prisioneiro iraquiano na coleira, imagem associada a uma mulher dominadora da imagética sadomasoquista, a dominatrix. A dramaturgia de Thomas possui, portanto, referência a um universo de referências muito particular e caro ao autor: Living Theatre, Stoppard, Orwell, Kafka, Kantor, Duchamp, Haroldo de Campos, Oswald de Andrade, às montagens do próprio Gerald Thomas, entre outros.
Gerald Thomas é um enigma, mas não um enigma vazio, como alguns querem que seja a arte contemporânea. Para o crítico norte-americano David George, Gerald realiza uma antropofagia wagneriana. Enquanto isso, no Brasil, devido à sua posição polêmica dentro do teatro brasileiro, é acusado de fazer imperialismo cultural. David George estabelece uma linha de influências para Gerald Thomas no Brasil: José Celso Martinez Corrêa e Antunes Filho, assim como a dramaturgia de Nelson Rodrigues, em homenagem a quem Thomas dirigiu uma peça chamada “Asfaltaram o Beijo”. Ele seria o principal divulgador do pós-modernismo no teatro brasileiro. Mas Thomas vai bem além e é um agitador cultural que exerce muito bem o seu talento para o jornalismo, diferente da tendência de Beckett para escrever poemas e prosa mais extensa. Thomas, por sua vez, é show man: atua como colunista em veículos como Ig, Folha Ilustrada, comentarista no prestigiado programa de TV Manhattan Connection, etc.


2 DE BECKETT A KEPLER


Gerald Thomas começou como seguidor de Beckett e com ele ainda possui muito em comum. Em primeiro, ele surge de uma revisão de Brecht e do teatro político, que terminava não alcançando as camadas populares a quem dirigia seu discurso. Além dessa inabilidade de chegar às camadas populares, e diretamente associada a ela, uma outra dificuldade tem caracterizado uma considerável parcela do teatro dito político: a predominância do compromisso didático em detrimento das preocupações estéticas. Isto é, um desequilíbrio entre conteúdo e forma. Apesar de Brecht enfatizar por diversas vezes em seus escritos teóricos que o teatro engajado não precisaria, nem deveria, excluir o caráter de diversão próprio a essa arte, muitos dos seus seguidores incorreram nesse erro e construíram espetáculos sisudos, excessivamente intelectualizados e de pouco apelo para o grande público. Como explica o encenador Gerald Thomas:

Pouco foi dito sobre isso, mas o efeito de distanciamento, de esfriamento, de racionalização e de didatismo sobre uma arte que é, essencialmente, fabulesca e metafórica começou como uma saudável doença de alerta e acabou por se tornar seu vírus mais fatal (THOMAS apud GUINSBURG et al FERNANDES, 1996, p. 37).

Diante desses impasses, em um mundo pós-muro de Berlin, o teatro político tem sido impelido a redimensionar seus objetivos e suas práticas. O próprio trabalho de Boal evidencia uma busca por um novo posicionamento teórico. Quando comparado ao Teatro político de Piscator, por exemplo, percebe-se que no Teatro do Oprimido já não há um enfoque explícito na questão da luta de classes. A "revolução" de que fala Boal pode também significar uma radical modificação interna do indivíduo-espectador. É a partir da necessidade desse tipo de modificação e da dificuldade em obtê-la é que está o traço que podemos notar em Beckett e Thomas.
Para explicar Thomas, tratemos de Beckett. Em The Rhetoric of Fiction, Wayne Booth utilizou, numa edição revista, a novela Company de Beckett como exemplo de sua teoria do autor implícito, aplicando-a em uma narrativa contemporânea. Como definir Beckett e aquilo que pode ter influenciado Thomas? Tomemos as palavras de Peter Brook:

Talvez a escrita mais intensa e pessoal de nosso tempo venha de Samuel Beckett. As peças de Beckett são símbolos no sentido exato da palavra. Um símbolo falso é mole e vago; um símbolo verdadeiro é duro e claro. Quando dizemos “simbólico” frequentemente queremos dizer enfadonhamente obscuro; já um símbolo verdadeiro é específico, é a única forma de expor uma certa verdade. Os dois homens esperando ao lado de uma árvore seca, o homem gravando a si próprio em fitas, os dois homens escravos de uma torre, a mulher enterrada na areia até a cintura, os pais em latas de lixo, as três cabeças nos vasos: essas são invenções puras, imagens frescas, agudamente definidas – e funcionam no palco como objetos. São máquinas teatrais. As pessoas sorriem delas, mas elas ficam firmes: são à prova de crítica. Não chegaremos a lugar nenhum se esperamos que elas nos sejam explicadas, entretanto cada uma tem uma relação conosco que não podemos negar. Se o aceitamos, o símbolo nos provoca uma grande e pensativa exclamação (BROOK, 1970, p. 57).

Assim como em Company não é preciso explicar de onde vem a voz que sugere ao personagem que imagine, Gerald busca símbolos que não precisem ser explicados nem entendidos racionalmente e sim imagens que falem direto ao inconsciente, símbolos tais como Beckett fazia: e símbolos duros. São símbolos poderosos presentes nas peças recentes de Thomas: em Queen Liar, a figura distorcida da avó que era como um personagem de Otto Dix, a cantora de ópera em crise e seu ganso em vias de virar foie gras, um cão em forma de mulher que diz um texto filosófico enquanto defeca no chão.
Os pontos em comum entre Gerald Thomas e Samuel Beckett ficam mais claros quando se avalia alguns pontos da análise de Wayne Booth a respeito da novela Company. Em alguns momentos, é como se ele estivesse falando da blognovela que ora estamos estudando. O texto de Beckett é um “texto para nada”. Essa forma de limitar artificialmente as palavras imaginadas para fazer um quebra-cabeças minimalista é presente nas peças de Thomas e de Beckett. Para se ter uma idéia, Company inicia-se com a enigmática frase: “Uma voz chega para alguém no escuro. Imagine” (BECKETT apud BOOTH, 1983, p. 445). Tanto o mestre quanto o herdeiro tratam da falta de sentido do mundo. O mundo, em seus textos, é predestinado a ser sentido, e o recurso de escrever sobre ele, “para ter companhia”, está destinado ao fracasso insignificante, produzindo não mais do que falência supérflua e miséria. Ambos buscam estabelecer um equilíbrio delicado entre criar situações que complexas e que geram perplexidade, mas que não são tão confusas ao ponto de não despertarem a curiosidade e demandarem uma interpretação.


3 A VOZ AUTORAL EM KEPLER, O CÃO QUE ATACAVA MULHERES


Gerald Thomas foi uma voz autoral desde o início de sua carreira. Sua interpretação das peças de Beckett já tinha uma assinatura própria. “Julian Beck morreu durante uma voz que ele ouviu, gravada por ele mesmo e ouvida por ele próprio” (THOMAS, 2008), referência em off que entra com a voz de Gerald Thomas quando o personagem de Duda Mamberti está em cena na peça O cão que atacava mulheres: Kepler, the dog e que refere-se à montagem de um texto que Beckett escreveu para Julian Beck quando este já era paciente terminal de câncer (All Strange Away e The Time). O texto em off, surgido devido a exigências extra-artísticas em Nova York, onde, para se apresentar uma peça é preciso depositar pagar um valor vultoso para o ator a título de seguro, encarecendo a peça e obrigando o diretor a ter a voz do ator ao invés de tê-lo presente, passou a ser usado de forma muito inovado como recurso anti-realista por Thomas, num lance verdadeiramente antropofágico, revertendo o desfavorável em favorável e fazendo da voz em off um de suas marcas autorais mais importantes.
Tanto nas peças que ele escreve quanto nos textos que dirige, Thomas busca acionar uma simbólica profunda, vinda do inconsciente, criando símbolos e imagens fortes como os que estão presentes na obra de Samuel Beckett. Quando Thomas surgiu, o Brasil vivia um momento onde se buscava novos caminhos para a dramaturgia. A problemática coletiva dava lugar às questões individuais. O trabalho de Thomas não se filia nem a Brecht nem a Stanislavski, nem segue ortodoxamente os métodos nem de um nem de outro. Thomas recusa tanto o método épico-didático de Brecht (não transmite conteúdos socialistas, prefere polemizar com a esquerda) quanto o método de Stanislavski, que segundo ele não seria apropriado para o teatro (pois o teatro exigiria principalmente projeção de voz), adequando-se melhor ao cinema (a propósito, ele cita o Actor´s Studio, estúdio norte-americano que aplicou amplamente em Hollywood o método do russo, ajudando a criar atores tais como Marlon Brando). Marcelo Alcântara comentou a respeito na revista A Bacante:

(...) Muitas das características do que se vê na tela são facilmente relacionáveis ao nome e à obra de Thomas - uma montagem textocêntrica e sem linearidade, entrecortada por milhares de assuntos, embalada por imagens construídas com rigor, muita fumaça, jogos de luzes e narração em off dublando personagens em cena. Nada disso é novidade, mas aqui há muito mais do que a tradicional relação forma/conteúdo: ganha força também o fator meio (nã-não, não o centro, tô falando do medium por onde o espetáculo é transmitido) - e as influências que esse meio impõe à forma do que é produzido (...). Mas diferente dos roteiros escritos por Samuel Beckett para a TV, por exemplo, Kepler, The Dog visto pela mediação da tela do monitor não passa de um espetáculo concebido para o palco - ainda que sua realização visasse a transmissão pela rede. Por mais que tenha surgido a partir da internet e só faça sentido considerando este fato, o primeiro capítulo da blognovela de Gerald Thomas ainda é teatro filmado, com toda a importância que o registro da efemeridade do palco pode ter, mas também com toda a precariedade e ingenuidade de câmeras que tentam dar conta de captar o todo de forma documental e com pouco diálogo com o meio a que a obra se destina (vale ressaltar que a busca por atores via internet, por meio do envio de vídeos, dialoga muito mais com o meio do que o próprio resultado final). Para os próximos episódios desta blognovela, fica a expectativa de que além da inspiração na atividade colaborativa, haja maiores apropriações (e por que não questionamentos e subversões?) da tecnologia como forma de transformação (e não apenas reprodução/propagação) da produção teatral - além da torcida para que o produto final transmitido pelos precários serviços de banda larga brasileiros seja minimamente estimulante a quem não está num teatro escuro cheio de fumaça (e cujos focos de atenção não estão condicionados a seguir os movimentos de luz e som que ocorrem em cena) (ALCANTARA, 2008).

Divergimos da crítica acima no seguinte ponto: a blognovela foi concebida primeiramente como texto literário, somente depois foi encenada, de maneira totalmente repensada, pela Companhia Ópera Seca e pensado simultaneamente para ser encenado no palco e transmitido pela internet. Diz Mau Fonseca a respeito do “teatrocinema da blognovela”, quase como se estivesse respondendo às críticas acima elencadas por Marcelo Alcântara:

O teatro visto por uma tela pequena de computador sujeito às entropias da exibição intra-pessoal (algo que não seja pessoalmente) é como a comunicação diária no blog. Todos são íntimos distantes, sujeitados a uma entropia diária - a mensagem é verdadeira, mas os formatos criados (os nicknames e as técnicas) dentro do blog são falsescas, tal como na produção cinematográfica. Então, por associação, o blog é como o cinema também, mesmo parecendo absurdo. A encenação da peça ao vivo, como num ensaio, era teatro apenas pra quem estava na platéia, o cenário, elenco, a fumaça, a interação e o peso dos corpos e sons. Ao público em casa, era também uma peça teatralizada porque não houvera montagem anterior, seguia-se obviamente um roteiro, mas a montagem era ao vivo (o plen-air impressionista) - portanto teatro. E a criação foi com base teatral, Gerald é homem do teatro, e sua cia. faz parte do universo teatral. Nossa visão se deslocava na tela do computador procurando pontos focais, sendo que em determinados momentos a tela se escurecia, um corte cinematográfico e teatral. É o teatrocinema ou nenhum dos dois...de repente não é uma coisa ou outra, é apenas uma obra audiovisual, como uma vídeo arte ou "Performance Body Art" que poderia ser reproduzida em paredes de museus ou encostas de morros, laterais de prédios, projetada por grandes projetores interferindo na paisagem, o que aumentaria a percepção e ao mesmo tempo provocaria outras interferências perceptivas em relação ao tema. Afinal, as idéias ou conceitos eram mais importantes que o formato, o que deveria ser relevante era a mensagem. E foi justamente a mensagem que prevaleceu e sendo assim funcionou, não importando quão complexa a linguagem. Quando no cinema o diretor filma várias tomadas da mesma atriz, de costa, perfil, diagonal, de cima, com mão no joelho, no cabelo, boca entraberta, etc e etc, busca-se o excesso da imagem e o detalhismo para construção rica na tela grande. O teatro funciona melhor no minimalismo pra causar a impressão, ao mesmo tempo que limpa a imagem deixando o objeto exposto de forma nua (...). Há ganhos e perdas, seja qual for o meio, a importância de renovar é relevante. Vivemos uma época que se pode pensar - tudo já foi criado e não nos sobrou espaços para mais nada. A ousadia não foi repelida e nossa capacidade talvez ainda exista. Tem que se quebrar espelhos sem medo das pragas do azar e fuçar os escombros do mundo arruinado (FONSECA, 2008).

A blognovela seria, portanto, um gênero híbrido entre a literatura, o teatro e o cinema. Diferente do que Alcântara supôs, Gerald pensou a peça não só como teatro, até porque ele define o que faz como cinema para o palco, assumindo a influência de Glauber Rocha.
Embora conhecido como diretor, recentemente Thomas decidiu que seria preciso dirigir e encenar somente seus próprios relatos para garantir sua assinatura própria. Thomas leva bastante a sério esse direcionamento em seu trabalho: embora tenha de fato recolhido as falas e comentários dos freqüentadores do blog para realizar a blognovela, ao encená-la preferiu uma outra solução: homenagear os mais fiéis freqüentadores do blog através da citação de seus nomes em cena, o que de fato ocorreu, e não utilizar literalmente suas palavras e falas no texto, que foi praticamente todo alterado. Do texto original da blognovela, Thomas manteve a idéia da figura de um travesti, símbolo da ambivalência e da androginia. Um exemplo do texto original:

Gerald: Bom, eu queria reunir todos vocês aqui pra tentar encenar….
(sou interrompido)

Fabio:…Gérald,…?!..Que tal falar da Dóroty Stang, Chico Mendes, o Joãzinho trinta, o “almirante” negro da revolta da chibata, o madãme satã, o dom Élder Cãmara,o Antônio Conselheiro……..!!!!!! Tem tãnto brasileiro BOM e PÓBRE, esquecido ……! Claro que o Mandela e o Bill são legais….! Mas eles não precisam de fãma ou espaço, eles já Os TEM, E MUITO..!..São RECONHECIDOS EM VIDA..! isso é muito legal. Os que CITEI, SE FUUUUUderam em VIDA E NINGUÉM TÁ NEM AÍ COM ELES..!(desculpe o palavrão)

Gerald: Peraí Fabio, calma. Eu nem falei ainda sobre o que trata esse espetáculo! Além do quê tudo já foi escrito sobre Dorothy Stang, Chico Mendes virou filme com Raul Julia e Dom Helder Câmara foi uma das pessoas mais conhecidas e reconhecidas de sua época. Mas estou aqui pra tentar montar uma peça inédita que escrevi pra vocês, do Blog. É uma espécie de remontagem de um espetáculo…. (sou interrompido de novo e vejo que o Vamp esta atacando fisicamente o Fabio). (...). Obs: todos estão mudos no espaço de ensaio. Mau Fonseca tentava dizer alguma coisa tipo “a humanidade é horrivel” mas murmurava, ninguém o ouvia. Sandra tentava socorrer o coitado do Fabio que já flutuava a mais de 30 cm de altura do chão e estava sangrando. Eu me escondia, covarde que sou, atrás da única pilastra de concreto que havia no espaço (...).
Gerald - Cacá, tudo bem, tá ótimo. Justo o que você falou aí, muito justo. Mas eu estou aqui com vocês pra remontar o espetáculo M.O.R.T.E (movimentos obsessivos e redundantes pra tanta estética - aquele que o Haroldo de Campos montou uma tese em cima e que viajou o mundo)….lembram? Nao lembram? Bem foi em 1990 e a segunda versão foi em 1991. Não lembram. É, falta cultura à essa falta de cultura. Falta memória a essa falta de memória!

Gerald – Mas Fabio, eu já disse que…..

Vamp: se voce falar mais uma palavra com esse Fabio eu saio por aquela porta ali e nao volto nunca mais!

Gerald - Mas Vamp…..

Vamp: NUNCA MAIS entendeu? NUNCA MAIS!!!!

(ouve-se uma porta batendo, a luz desce em resistencia e Fabio sussurra: “poxa, perdi meu melhor amigo.. eh a MORTE!)

Fim do Capitulo 1 de uma longa novela da blogosfera! (THOMAS, 2008).

No texto da blognovela, Thomas valorizava a oralidade da fala cotidiana, os assuntos do momento, agindo como se estivesse realmente dirigindo uma peça, refletindo, pensando alto e revendo momentos de sua própria trajetória. Ao transpor a blognovela para o palco, reduziu significativamente o texto, refazendo-o para que ele pudesse trazer referências a dilemas fáusticos sobre a relação, presente no trabalho de Thomas, entre o poder e a arte, tal como o seguinte fragmento: “Não é o que vocês estão pensando. De alguma forma, é o que vocês estão pensando. De alguma forma, o que vocês estão vendo é isto. O que vocês estão vendo confirma o que vocês estão pensando” (THOMAS, 2008).
A essa altura pode-se ver pessoas dependuradas de cabeça para baixo, com um chapéu panamá pendurado no alto de seus corpos pendentes. O chapéu panamá refere-se a um quadro de Magritte e ao trabalho de Reinaldo Azevedo, jornalista e blogueiro da revista Veja e com quem Gerald Thomas polemizou, mas conseguiu reverter a antipatia inicial, travando com ele relações de amizade, numa peripécia que muito abalou os seguidores de ambos na internet, tendo todos entrado em guerra e realizado a paz juntamente com seus “mentores”. Reinaldo Azevedo possui uma relação de oposição radical ao governo Lula, no que existem confluências com a rebeldia anárquica e oposicionista proposta por Thomas. Azevedo, no entanto, alimenta-se da crescente impopularidade do governo Lula entre parte das elites e da classe média, devendo a esse governo boa parte de sua repercussão. E ele concorda, por exemplo, que o governo Lula deve manter sua política econômica. As relações entre Reinaldo Azevedo e o governo Lula fazem lembrar a tragédia Lacerda/Getúlio, inclusive possuem algo que podemos chamar de um resquício de uma dialética. Gerald Thomas diferencia-se de Azevedo por sua posição liberal em relação a costumes, especialmente no que se trata de ecologia e liberdade sexual. Para além dessa discussão, a revista Bacante referiu-se à blognovela como “teatro filmado” e descartou-a como inferior a trabalhos como Quádos, de Beckett (como uma forma de evitar a verve polêmica de Gerald: afinal, ele não se diria melhor do que Beckett, deve ter pensado Marcelo Alcântara). No entanto, Kepler vai bem além de um teatro filmado como habitualmente se faz na televisão brasileira e é teatro agudamente experimental, fazendo jus às influências recebidas de Beckett: é um espetáculo que marca pela sobriedade e despojamento minimal e cujo claro e escuro permanece em nossas mentes. Escreveu Alberto Guzik a respeito de Kepler, the Dog:

É muito poderoso o novo trabalho de Gerald Thomas, "o cão que insultava as mulheres, Kepler, the dog". Vi ontem e ainda está girando na minha cabeça. as imagens, a força das idéias. tudo muito simples, muito despojado, e extremamente requintado. Não parece o gerald capaz de inventar máquinas cênicas complicadíssimas. Este gerald está interessado em explorar o palco nu, a caixa cênica desventrada, sem nenhuma moldura que a enfeite. O resultado é magnífico porque sofre o impacto da visão de mundo lúcida e arguta do encenador. Fabiana gugli está esplêndida, cada vez mais precisa e senhora do palco. E também brilham Duda Mamberti e Pancho Capeletti, dominam a cena com extrema segurança. Mas é das idéias do espetáculo que se precisa falar (...) (GUZIK, 2008).

Na primeira versão da blognovela, o próprio Thomas era, ao mesmo tempo, diretor e ator: ele falava como um dos demais personagens e atuava de fato como um diretor dos demais, sendo partícipe da narrativa, mas resguardando-se a posição daquele que determina a direção que a narrativa deveria tomar. Era uma espécie de “Deus intra machina”. A decisão de antropofagizar até mesmo os comentários dos leitores e trazer à luz imagens que são, como dizia Freud, unmheimlich, ou seja, ex-estranhas, foi a decisão de Gerald tomou para unificar e manter sua assinatura própria, seu gesto e escritura autoral. Rui Filho associou a peça à problemática fundamental da identidade (que ligaremos, aqui, com a de autor e autoria):

Tentar diagnosticar nossa identidade, já seria um desafio imensurável. Tratar o diagnóstico, então, pelo prisma da arte, associando esta ao poder, torna a abordagem ainda mais complexa. Tudo inicia na exposição de corpos dependurados. Escolha anunciada do próprio criador. “Porque eu coloquei ali” (...). Como responder, então, o paradoxo entre “a arte tem a cara do poder” e “o poder tem a cara da arte”? O que parece ser a mesma coisa, expõe uma problemática crucial para chegarmos a tal da identidade. Na primeira questão, a arte é colocada como artifício, instrumento de determinação de uma ordem pela subjetividade da estética; na segunda, o poder se fantasia de subjetividade para esconder sua manipulação. Mas nem tão distantes estão. Equilibram-se na existência do próprio homem como fruto responsável por ambas, já que tanto arte quanto o poder são atributos da necessidade humana de superar o meio, seja ele simbólico (e portanto cultural e natural, entendendo que a origem etimológica das duas palavras são a mesma) ou político. E é esse homem, essa figura, transformada em mulher, que vemos surgir da figura do cão. Se deus é o criador de tudo e todos, então a mulher é responsável pela continuidade da vida. É ela igualmente criadora. A humanidade se configura, portanto, na existência da criação como instrumento de adoração do criador. Adoração exposta em desejo ao próprio corpo, como o strip-tease do ator (metáfora da necessidade de abdicarmos de nossas máscaras sociais para nos reencontrarmos puros e originais), como a idolatria ao inacessível, ao inquestionável, ao que cala, representado pelo Santo Graal (face existencial de criador supremo) (FILHO, 2008).

Vale a pena registrar um ponto importante: o fato da dramaturgia ancorar no “autor”, em se tratando de Thomas, não é garantia de não-decifração. O autor mesmo possui diferentes falas conforme o momento. Em algumas situações ele é “O Rebelde Revolucionário do Teatro Carioca”, em outras ele é “Conservador Realista Norte-americano”, em outras ele fala alemão, inglês, francês. Thomas parece vivenciar, enquanto autor, a dissolução do sujeito de que trataram Nietzsche e Foucault.
A virada autoral de Thomas talvez tenha se dado no momento da grande polêmica gerada por Tristão em Isolda em 2003. Naquele momento, o gesto do autor de protestar diante das vaias da audiência foi extensamente noticiado, assumindo maior importância até do que o debate – que deveria acontecer – sobre a montagem. Na montagem, os elementos que surgiam por associação livre adquiriam maior relevância que a narrativa clássica. Podemos dizer que Gerald Thomas é pós-modernista no sentido em que Fredric Jameson analisou essas formas culturais de origem norte-americana em seu livro A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio: o pós-modernismo surge como uma aceitação e valorização do momento presente, representando, portanto, um abandono praticamente total das utopias da modernidade. Por isso em seu Tristão e Isolda aparece Freud cheirando cocaína, junto a desfiles de moda, etc. A modernidade (Freud, Wagner) foi ali problematizada e, em boa parte, desconstruída. Sua direção foi entendida no Brasil, muitas vezes, como provocação hermética “chata” ou “pretensiosa”, assim como proclamação do vale-tudo nas artes, o que é um grande equívoco.
Minha hipótese é que, a partir da enorme repercussão do gesto autoral ao final de Tristão e Isolda, Thomas tenha decidido tecer sua obra a partir da autobiografia e dos gestos autorais conscientes. O gesto de protesto do encenador em Tristão e Isolda resultou em um processo para Gerald Thomas, processo ao qual ele respondeu politizando os ataques aos quais foi submetido: a era Lula, do tão esperado governo “de esquerda”, favorecia uma nova censura e acusações de elitismo contra ele. O processo acabou arquivado, mas suponho que, mais do que a visão da queda das Torres Gêmeas em 2001, seja esse fato que pode fazer o papel de navio que nos pode guiar para o maelstrom (redemoinho) que é a obra de Gerald Thomas.
Para uma melhor compreensão dessa obra multifacetada é preciso ouvir a voz do autor. Mas esse é um dos enigmas de Thomas: o próprio autor se define como um significante tantalizado, ou seja: o Holandês Voador. Ele assume uma identidade multinacional, não desejando representar a arte de nenhum país, a não ser, quem sabe, a América mestiça e de muitas vozes. Ele é anfótero: conforme o meio, ele assume o papel de ácido ou de base.
Como comentou o crítico Alberto Guzik, em Kepler Gerald Thomas deixou limpa a cena, deixando a “máquina cênica” quase nua, ele que já elaborou complicadas máquinas cênicas tal como em Carmen com Filtro. Essa clareza cênica não implica a ausência de alguns estilemas que celebrizaram o encenador: a voz em off do encenador que substituiu a voz de um ator que está em cena (Duda Mamberti), o texto oscilando entre a simplicidade e o hermetismo, a iluminação que faz sobressaltar o jogo do claro e escuro, as referências eruditas (Susan Sontag), misturando-se às de massa (Led Zeppelin) e às artes plásticas (Magritte), assim como uma reflexão sobre o poder. A reflexão fáustica sobre o poder é muito presente na obra de Gerald Thomas e ele mesmo assume que não dissocia política e estética, tal como Jameson teoriza em A Lógica Cultural do Pós-Modernismo: a superestrutura, no capitalismo tardio, perdeu boa parte da autonomia anterior.


4 A VOZ AUTORAL EM BATE MAN: O AUTOR COMO ISCA DE SI MESMO


Bate-Man, espetáculo mais recente de Gerald Thomas, revê, com precisas variações, questões que tratamos acima. Nessa peça o autor reflete sobre os processos que fazem sua arte através da apropriação de seu próprio trabalho e de suas criações passadas. Iconoclasta por vocação e desejo, era de se esperar que, em algum momento, fosse ao extremo de si mesmo para se recompor. Muitas são as referências paralelas a montagens recentes. As garrafas vazias (Ventriloqüist), o chão estéril de terra (Nowhere Man), as caixas e o encontro com os segredos históricos metaforizados em seus conteúdos de restos humanos (Circo de Rins e Fígados), o desfile de moda (Nietzsche x Wagner), o porão como lugar não-identificável (O Príncipe de Copacabana), os remédios e vitaminas (Terra em Trânsito), o corpo dependurado pelos pés (O Cão que Insultava Mulheres, Kepler, the Dog). Com paciência, papel e caneta chegaríamos a mais tantas outras. E o que isso quer dizer? Assim como assinala o argumento de Bate Man – o homem isca –, Gerald se fisga num panteão simbólico por ele criado, na última década, onde a construção de vocabulário particular identifica autoria e destreza. Poucos são, verdadeiramente, os artistas a constituírem um discurso preciso e particular, mesmo entre os bons artistas. Quase sempre nos defrontamos com apropriações circunstanciais, estímulos produtificados de alfabetos comuns e gerais. Gerald, não. Faz do palco e cena a expressão de um complexo sistema de metáforas organizadas a partir de percepções próprias dos fatos históricos, reavaliando suas origens através de provocativas reinterpretações sígnicas. O autor, mais do que tudo, conserva os valores deturpando qualquer possibilidade de estagnação histórica, levando os fatos e circunstância a constituírem um elaborado jogo de origens e conseqüências, como que nos avisando de haver muito mais no ontem na constituição do agora. Nessa perspectiva, por que deveria ele abrir mão de si mesmo? Bate Man argumenta, portanto, a favor do autor determinando sua particularidade e individualidade, tanto estética quanto argumentativa, em um panteão contemporâneo estéril de pessoalidades e olhares originais.
As garrafas de vinho tinto espalhadas pela cena oferecem ao espectador a possibilidade de contextualizar-se à história. E não qualquer história. A que nos torna piores do que desejamos ser. São vinhos originados em sangue humano produzidos durante a ascensão e queda do Terceiro Reich. Mas não devemos nos limitar ao tal período. A guerra hitlerista é outra vez argumento simbólico. Gerald fala de todas, identificando o horror inerente ao espectro maior do Holocausto. Assim, o homem isca, retorna à sua função de traduzir o coletivo, a face comum que nos identifica, num jogo metafórico digno de Charles S. Peirce e semioticistas de plantão. Está na guerra a maior atrocidade humana, o princípio destruidor que nos iguala e distancia, paradoxalmente. E Gerald, insistente sobre isso, vem tramando, sucessivamente, espetáculos cujo foco primordial é compreender em que momento desse paradoxo tombamos ao distanciamento. Se por um lado, o teatro reserva a comunhão dionisíaca, por outro, o discurso que se pretende questionador desagrada ouvidos. Gerald se utiliza da artimanha do humor, ou melhor, do ridículo para nos aprisionar interessados. Na construção de circunstâncias absurdas, revela o mais próximo de nossas idiossincrasias. O patético em ser humano. E a culpa histórica e religiosa configurada no absurdo da surdez autista. Um homem banha-se e serve-se voluptuosamente de vinho de sangue humano decorrente de guerras, assassinatos e atrocidades históricas. E rimos disso sem perceber que abrimos diariamente as mesmas garrafas, embriagados que estamos pelas manipulações. Enquanto nos distanciamos do ontem, na perspectiva errônea do novo, prostituímo-nos ao silenciar de toda e qualquer responsabilidade por nossos atos. Sim, nossos. Não o do indivíduo, mas de toda a humanidade. Somos, assim, iscas de um teatro ainda pior, maior, orwelliano. Nas guerras encenadas de Gerald Thomas, a humanidade é culpada por omissão, e em Bate Man, o homem devaneia embriagado pela crueldade da consciência. Como o homem de Dostoiévski, em Notas do Subterrâneo, o de Gerald opta por permanecer isolado, porém bêbado, travestido de estética e futilidade, conduzido ao sofrimento de Prometeu pelo exercício da reflexão.
Gerald exercita um saboroso monólogo sobre o silêncio, apoiado na consistência da trilha de Patrick Grant e das alongadas notas de guitarra. Não há como suprir a voz calada, nem mesmo como calar o som estridente e persistente. Bate Man mostra que estamos afundados em nossas ausências. E nada mais coerente, então, do que o autor, encenador, cenógrafo e iluminador, buscar socorro em si mesmo. O mundo se tornara excessivamente absurdo. E beber sangue humano não me parece nada além de uma possibilidade futura dentre as demais.
Gerald Thomas propõe trocadilhos para além das palavras em seu Bate Man, em cartaz do Espaço Sesc, em Copacabana, como se a ação, ou inação, do homem submetido ao “banho de vinho tinto de sangue” fizesse parte do jogo das inevitabilidades do nosso tempo. O indivíduo, torturado pela banalidade da violência, transformado numa peça de carne pendurada numa exposição de atrocidades, se esvai pelas frestas de uma realidade de sentidos duplos e aparências enganosas, que o imobiliza e atrai a sua perplexidade. Vejamos uma passagem do texto:

(Vira de costas e toma mais banho de vinho.
Murmura pra si mesmo.)
Sabe que… eu acho nunca vi….
Sinceramente.
Eu vou dizer uma coisa para vocês…
Ai…
Sinceramente.
Ai….
(pigarreia algumas vezes, como se preparando para falar.
Murmurando.)
Acho que….
Eu nunca achei que agradar a Burguesia seria desperdiçar aquilo, aquilo que eles acreditam ter de melhor. E agora? Que eu fiz tudo isso aqui.
Qual será a próxima?
(tempo, pensando.
Conclui.)
Um banho de caviar?
Banho de caviar.
(olha para baixo e vê caixas de caviar.
Encontra caixas de caviar.
Se assusta com a surpresa.)
Ahhh (...).
E OLHA QUE LOUCURA ESSA AGORA!
MEU DEUS DO CÉU.
Roupas FASHION!
Não posso acreditar.
Um John Galiano direto da próxima coleção de verão!
WOW!
(entra música. Bate Man se veste e começa a desfilar) (THOMAS, 2008).

Portanto, o que resta a esse homem, bêbedo do real, mas que desconhece as razões para o que vive, encharcado de incoerência e de culpa. No teatro de meias verdades ou de mentiras cínicas, interpreta o papel do bufão ensangüentado que bebe vinhos de safras incontornáveis e participa, como foi visto acima, de patético desfile de moda, numa antropofágica deglutição da imensa solidão do silêncio dos tempos.
Nas metáforas da existência na atualidade, Gerald Thomas não abandona as citações, a busca de representar o momento com fatos do passado, de reinterpretar significados e reverberar a imobilidade ruidosa. A escrita cênica de Gerald Thomas capta a intensidade com que expõe as suas próprias dúvidas e inflexiona a arte contemporânea. A capacidade de criar identidade visual para suas montagens permite que o autor, diretor e cenógrafo deixe, a cada espetáculo, a sua marca também na ambientação. Em Bate Man, a semi-arena coberta de areia, com caixas de vinho espalhadas pelo chão e um simulacro de palco ao fundo, cuja cortina se abre para desvendar atrocidades, confirma a sua mão firme para o desenho da cena.


CONCLUSÃO


A obra de Gerald Thomas é uma obra de signos em rotação. Concluímos aqui que entrou numa rotação ainda mais intensa recentemente, acelerando o seu maelstrom de referências. O “turning point” da obra, supomos, foi o gesto autoral de protesto em Tristão e Isolda. O resultado foi a guinada para relatos intensamente autorais ou até mesmo autobiográficos que realizou o autor em Terra em Trânsito e Rainha Mentira (Queen Liar). Analisamos também, brevemente, a blognovela O cão que atacava mulheres ou: Kepler, the dog, considerada por Gerald Thomas como continuação da trilogia iniciada em Terra em Trânsito e Rainha Mentira. A blognovela passou por uma transformação entre o seu formato original no blog e a encenação. Nessa mudança, investigou-se o traço autoral de Thomas. Ao verter a peça, originalmente apenas literária, para o teatro, Thomas tornou-a algo marcado pela preocupação em, com imagens de pesadelo, buscar mobilizar o inconsciente, refletir as relações entre arte e a política no mundo atual, referindo-se indiretamente a episódios de tortura em Abu Ghraib, por exemplo. Em Bate Man, ele continua esse trabalho autoral de encenação de si mesmo em um monólogo escrito para o ator Marcelo Olinto.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ALBUQUERQUE, Severino J. O Teatro Brasileiro na Década de Oitenta. Latin American Review. No. 25.2 (Spring 1992), p. 23-36.


ALCANTARA, Marcelo. Crítica: O cão que insultava as mulheres: Kepler, the dog. Revista Bacante. Disponível em:. Acesso em 20/01/2009.


BOOTH, The Rethoric of Fiction. Chicago University Press: 1983.


BROOK, Peter. O Teatro e seu Espaço. Rio de Janeiro: Vozes, 1970.


FILHO, Rui. Kepler, o cão atordoado. Disponível em: . Acesso em 20/01/2009.


FONSECA, Mau. O Teatrocinema da blognovela. Disponível em: . Acesso em 20/01/2009.


GEORGE, David. Gerald Thomas postmodernist theatre: a wagnerian antropofagia? Luso-brasilian Review, XXXVII, 1998.


GUINSBURG, Jacó et. FERNANDES, Sílvia. Um encenador de si mesmo: Gerald Thomas. São Paulo: Editora Perpectiva, 1996.


GUZIK, Alberto. O Impacto de Kepler. Disponível em: . Acesso em 20/01/2009.


JAMESON, Fredric. A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo: Ática, 1996.


MACKSEN Luiz. Texto pretensioso de Gerald Thomas expõe crueldade de nosso tempo. Disponível em: . Acesso em 21/01/2009.


REIS, Luís Augusto. Piscator, Brecht, Boal e Artaud – Considerações sobre o teatro político. Disponível em: . Acesso em 21/01/2009.


THOMAS, Gerald. Press. Disponível em: . Acesso em 21/01/2009.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Boa Frase de Zelaya tirada do NYTimes

“Politics is not theater,” he said. “There is no script that one follows. It’s dynamic. You play it day and day and see what happens.”

Curiosa frase de Zelaya:

"Política não é como o teatro", disse ele. "Não existe um roteiro que alguém segue. É dinâmico, você joga e no dia a dia vê o que acontece".

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Teatro, mito e metáfora

Teatro, Mito e Metáfora:

Conversas com Gerald Thomas


Por Ana Peluso e Claudio Daniel



Zunái - Você nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu muitos anos em países como a Inglaterra, a Alemanha e os Estados Unidos. O que esse périplo trouxe a você, como conhecimento da arte, de si mesmo e do mundo?

GT - Existe algum conflito sobre onde eu nasci, desde o momento em que me foi revelado - aos 28 anos de idade - que o meu pai não era o meu pai. E que meu "verdadeiro" pai, o biológico era fulano de tal. Minha vida virou de cabeça pra baixo. Tive que rever cada momento da minha vida ate então. Fiz um rewind daqueles 28 anos, de cada beijo e abraço, de cada coisa que me foi dita, enfim... E há cerca de um ano descobri que nasci num quarto de hotel, o Gramercy Park Hotel, aqui em Nova York. Mas ainda não é a versão definitiva. Continuo botafoguense. Ter vivido nesses países todos como um, digamos, "nativo", foi duro e ao mesmo tempo muito agradável. O fato é que hoje, ao ver os fogos de artifício explodirem nesse dia da independência americana, aqui na frente do meu apartamento, em Manhattan, nesse 4 de julho, percebo que não pertenço a lugar algum. Passei 2003 em Londres, achando (ilusão pura) que estaria voltando ao lugar da minha adolescência, o lugar onde tive os meus dois primeiros casamentos e onde aprendi o que era a vida pratica. Pura mentira. Desencanto total. Na primeira oportunidade, me mandei de volta pra Nova York, ainda o único lugar que consigo chamar de "casa". Veja bem, não os EUA, mas Nova York.

Mas sou um Nowhere Man. Sempre fui tratado como tal. Nunca tive o sotaque do local, sempre tentei ao máximo ser como os outros, mas era evidente que esse judeu errante errava mesmo. Acho que as minhas peças falam, narram isso. Então, me refugiei no mundo abstrato da cultura, da pintura, do teatro, da literatura e me infiltrei, mergulhei tão fundo nisso que ninguém conseguiu mais me acompanhar. De tal forma que quando "emergi", as analogias e metáforas que eu fazia eram somente minhas, resultado de leituras muito peculiares e muito particulares. Mas assim é o artista, não é? Isolado, marginalizado e com uma assinatura que nem sempre é entendida. Graças a Deus, tive publico.


Zunái - Suas primeiras encenações teatrais foram realizadas no La MaMa Experimental Theater, em Nova York, onde você adaptou e dirigiu 12 estréias mundiais de obras de Samuel Beckett. Comente essa experiência.

GT - Não sei muito bem por quê, mas o Beckett foi com a minha cara. A biógrafa dele, a Deidre Bair, já estava me seguindo (e seguindo a correspondência entre nós - eu e Beckett) quando, um dia, eu recebi um cartão dele um pouco menos monossilábico que os outros. Aí ela falou: "Voa já pra Paris. Ele quer te ver". Naquela tarde, eu estava embarcando. O resto é história. Tocar em Beckett - fisicamente - era como se eu estivesse tocando em Joyce. Quer dizer, ter essa experiência já vale a pena ter vivido. É como ter dirigido Julian Beck, fundador do Living Theater, que só trabalhou comigo fora da sua própria companhia, a mais revolucionaria de todo o século XX, aquela que tirou o teatro do recinto teatral e levou o drama para as ruas e para as prisões etc. Julian trabalhou em cinema com Pasolini, com Coppola e com Spielberg. Sabendo que ia morrer, com câncer, ele pediu pra trabalhar comigo numa peça de Beckett. Fizemos a première americana de That Time (Aquela Vez), e, frágil do jeito estava, ele rejuvenesceu. Lotávamos o La MaMa Annex na East 4th Street e ainda fizemos uma curta turnê pela Europa até que não deu mais. Julian morreu.


Zunái - Você foi um dos maiores ilustradores do The New York Times, cargo que abandonou para dedicar-se ao teatro. O que o trabalho na imprensa trouxe para você, e o que o levou a esse afastamento?

GT - A pressão de ser o ilustrador da OpEd page do Times é enorme. E você tem que ter uma idéia "genial" diariamente. Veja bem, não é cartoon. Eram pinturas, eu fazia coisas a quatro cores que eram reproduzidas em preto e branco (half tone drop out) e eram metáforas, como aquela que ganhou um prêmio: tratava-se de um artigo que alertava a população sobre caminhões cujo conteúdo era lixo nuclear e que literalmente utilizavam estradas que margeavam as grandes cidades. Com o tamanho dos buracos dessas estradas, podia acontecer um enorme acidente, de proporções inimagináveis. Depois de passar a noite em claro, pensei na seguinte imagem: aquele cartão porta-ovo, que tem aquela divisão que parecem dois silos nucleares. E eu coloquei um único ovo lá dentro, rachado, vazando a gema...


Zunái - Como surgiu a Companhia Ópera Seca? Qual é o balanço que você faz das atividades do grupo? O que levou a sua dissolução?

GT - Meu Deus! Essa resposta precisa de 19 horas! Surgiu com o que sobrou da montagem de Carmem com Filtro 1, com o Fagundes. Ou seja, Bete Coellho, Oswaldo Barreto, Luiz Damasceno e, claro, Daniela Thomas. Aí fomos adicionando gente. No Rio, foi a Vera Holtz, a Beth Goulart, Maria Alice Vergueiro... e fizemos Elektra Com Creta logo após a estréia de Quartett, do Heiner Mueller, com Tônia Carreiro e Sergio Britto. Estourou. Ficou mais de um ano em cartaz. Eu ficava indo e vindo, do Brasil pra cá. Próxima grande produção (grande mesmo): a Trilogia Kafka, aumentando ainda mais o elenco. O Processo, Metamorfose e Praga. Aí vieram os convites internacionais. A trilogia (mais Carmem Com Filtro 2) veio pro La MaMa Annex e fez tanto sucesso que a temporada foi estendida por duas semanas em Viena. Fomos convidados pelo Wiener Festwochen, o Festival de Viena, que é o evento que te abre todas as portas pro mercado de língua alemã (virtualmente, o mercado "sério" de teatro, Alemanha, Áustria, Suíça etc). E aí, não paramos mais. A Cia de Ópera Seca, ou Dry Opera, ficou sendo a companhia de teatro brasileira que mais viajava pelo mundo.

Durou 18 anos, e foi ótimo. Mas acho que chegamos a um desgaste com a residência da Cia no Sesc Copacabana, em 2001, 2002. Tive que apresentar seis novos espetáculos e não há diabo que agüente. Então, desde o Ventriloquist, e Gabi com Esperando Beckett até Reynaldo Gianechini com Príncipe de Copacabana, tinha Nietzsche contra Wagner e Solos Secos e não sei mais o quê. Me desgastei como não sei o quê. Estava em frangalhos. E ainda presenciei a queda do World Trade Center aqui, o que acabou comigo... Na volta, tive que estrear Deus Ex Machina... e o desgaste foi enorme.

Com os "desencontros" que tive no Rio durante Tristão e Isolda, pensei: "pro inferno com o passado". Vou rebatizar a companhia na primeira oportunidade. Quando estreei Anchorpectoris aqui no La MaMa, em marco de 2004, na minha volta a NY, resolvi engajar atores novos e pegar um novo nome, ou seja, o Terceiro Trilho, The Third Rail Company. E assim será com A Circus of Kidneys and Livers, com o Nanini. Afinal, sobrevivi aos 50 anos e me vejo no direito de mudar o que eu quiser. Amanhã, acho que vou mudar o meu nome.


Zunái - Além de diretor, você também é o autor da maioria das peças que encena, como Elektra com Creta, Carmem com Filtro, a Trilogia Kafka, entre outras. Quando você escreve, já está pensando nos atores, na cenografia, na iluminação, enfim, na obra dramática como um todo?

GT - Escrevo diretamente para os "meus" atores, conhecendo as idiossincrasias deles, as suas peculiaridades etc. Dirigir não se dá no palco, mas, muitas vezes, em torno dele ou completamente fora dele. É criação de "climas". E, sim, crio com toda a cena na cabeça, cada luz ligada, cada cenário em seu lugar. É a tal Gesamtkunstwerk que o Richard Wagner falava.


Zunái - Na ópera Mattogrosso, você trabalhou em parceria com o músico Phillip Glass. Como foi esse processo de criação conjunta?

GT - Não foi só em Mattogrosso. Na Trilogia Kafka também. Em Carmem Com Filtro 2 também. Estamos trabalhando juntos em Cantebury Tales, uma ópera baseada nos contos de Chaucer. Não dá pra responder a essa pergunta. Toda parceria tem os seus segredos e as suas manias. Não existe uma máquina por traz, ou tampouco um método. Somos os melhores amigos, o Philip e eu, então, isso facilita muito as coisas. Rimos muito. Fazemos muitas piadas o tempo todo. Ele aceita todas as minhas sugestões e vice-versa. Mas o segredo de uma boa parceria não é a brincadeira entre os dois e nem o fato de fazermos piada o tempo todo. O segredo vem do profundo respeito que um tem pelo trabalho do outro. Só posso dizer que o Philip é o nosso grande compositor erudito contemporâneo, o nosso Beethoven de hoje, digamos. Muita gente não se dá conta disso. O leque de sua obra é enorme. O que já foi escrito sobre ela é gigantesco, assim como os lugares em que sua musica foi apresentada, e os músicos que a regeram ou tocaram foram simplesmente os mais importantes músicos vivos de nossa era. Eu tenho a humildade suficiente para saber que trabalho com o maior gênio da música vivo.


Zunái - Você é organizado, metódico, faz anotações e ensaios muitas vezes ou é mais intuitivo, confiando nas sensações? Comente o seu processo criativo.

GT - Minhas cenas nascem de desenhos meticulosos, cada cena é anotada, desenhada quase que obsessivamente e geometricamente e milimetricamente coreografada com luz e som. Mas, claro, no decorrer dos ensaios acontecem erros. E os erros não existem, então eu os transformo em acertos e os incorporo logo. Chamo isso de obra do acaso total. Como escrevo para aqueles atores que estão ali, nada mais natural do que eles reagirem àquilo que eu escrevi. Então, essa metalinguagem causa uma certa estranheza. Exemplo: Julian Beck estava com câncer terminal fazendo o papel de alguém morrendo. O público sabia disso e o resultado era de arrepiar. Outro exemplo: Fernanda Montenegro e Fernanda Torres, mãe e filha na vida real. A tal cena da masturbação causou tanta confusão (até aqui, no Lincoln Center) porque as pessoas jamais puderam esquecer (e eu as lembrava disso o tempo todo) de que aquelas duas eram mãe e filha na vida REAL. E Gabi era uma entrevistadora também na peça Esperando Beckett, e Reynaldo Gianechini era um ator despreparado, assim como o príncipe dinamarquês Hamlet, é um filosofo despreparado para lidar com as armadilhas reais e cruéis da vida real do castelo de Elsinore. É essa a minha assinatura: a metalinguagem. Uma linha corre abaixo daquilo que você vê e que te soa um pouco atonal, apesar da total harmonia que sai dos alto-falantes.


Zunái - O que significou para você o contato com Haroldo de Campos? Qual é a relação que existe entre a poesia e o teatro de Gerald Thomas?

GT - Haroldo de Campos não significa somente para Gerald Thomas, mas para todo e qualquer criador em qualquer área das artes brasileiras. Sem ele, a arte brasileira não seria considerada "moderna". Seriamos algo como o Uruguai ou a Bolívia. Claro, estou exagerando. Mas quero deixar bem claro que o Haroldo não teve o tratamento em vida que merecia. Eu sinto muita, muita falta dele. Não dá nem para medir o quanto. Éramos próximos. Muito próximos. Não posso dizer como era uma delícia passar as tardes com ele, conversando, ou melhor, bombardeando conversas. Isso resultou em dois livros que ele orientou, ambos pela Perspectiva. E longos artigos que ele publicou pela Folha. E na peça Graal, que ele havia escrito em 1952 e eu encenei em 1997, com alunos da CAL mais a Bete Coelho... Não sei, são tantas as memórias que é difícil dizer. Só gostaria que outros artistas brasileiros fossem mais generosos e confessassem o quanto Haroldo de Campos foi fundamental na vida deles. Infelizmente, a mesquinharia é enorme e isso talvez não aconteça ou demore muito a acontecer.


Zunái - Você já encenou óperas como O Navio Fantasma e Tristão e Isolda. De onde vem o seu interesse pela obra de Richard Wagner? A seu ver, qual é a novidade que essa arte dramática ainda reserva para os dias de hoje?

GT - O teatro musical (como a ópera é chamada em alemão) te dá a chance, como encenador, de delirar e construir, desconstruir temas e mais temas, sem que haja o tal TEXTO, o tal diálogo dos atores que sempre remete à ação para um lugar determinado, ou seja, o didatismo e a objetividade disso, daquilo ou daquilo outro, por mais "surreal" ou "absurda" que a cena seja. Na ópera, a cena é lírica. Geralmente, não se entende o que está sendo cantado (por causa das vogais esticadas, consoantes suprimidas etc), então, o campo da ação fica inteiramente livre para que o encenador lide com o MITO em questão (o Holandês Voador ou Tristão e Isolda, no caso) e os impulsos da música, e constrói em cima desses impulsos as suas desconstruções, os seus delírios as suas leituras sobre esses mitos através dos tempos.


Zunái - Você é conhecido como um artista polêmico. Durante a encenação de Tristão e Isolda, no Rio de Janeiro, ao ser provocado por alguns dos espectadores, reagiu subindo ao palco e mostrando a bunda, o que lhe valeu um processo judicial e o seu afastamento do país. Comente o caso.

GT - Deixa o caso ter um desfecho judicial no STF que eu comento. Aliás, juro que não agüento mais falar sobre. Isso. Foram cinco segundos. O Haroldo de Campos havia morrido naquela tarde e isso havia acabado comigo... Sei lá, deixa esse caso pro STF.


Zunái - O que você espera fazer, quando retornar ao Brasil? Tem planos para novas montagens?

GT - Escrevi uma peça pro Marco Nanini, A Circus of Kidneys and Livers, ou Um Circo de Rins e Fígados, que possivelmente acontecerá mais tarde, neste ano, se eu sobreviver. Marco Nanini é, sem dúvida, o ator dos meus sonhos. Um ator completo, aquele que sabe se desconstruir no palco a ponto de conseguir confundir a platéia sobre o fato de estar ou não perdido no texto, se deu ou não branco na cabeça, se perdeu o norte. Se (des)posicionar no palco é uma das coisas mais difíceis que existem. Exemplo? Um ator, quando tem que fazer um bêbado, inevitavelmente entorta a boca, entorta o tom e começa a cambalear. Bebedeira não é nada disso. Estar bêbado é tentar mostrar ao máximo que NÃO se esta bêbado, não é isso? Os bêbados não tentam provar que ainda estão sóbrios? Mas ator raramente pensa nisso. O Nanini é muito meticuloso nesses pequenos detalhes e, ao mesmo tempo, sabe delirar com uma mera palavra.


Zunái - Diversas produções que você realizou na Europa e nos EUA foram transmitidas pela televisão, em seus respectivos países. A seu ver, no Brasil, faz falta essa parceria entre a televisão e o teatro?

GT - No Brasil faz falta muita coisa. Mas não é só no mundo das artes. O Brasil está em falta consigo mesmo. E nas péssimas condições sociais em que está, por que deveria soltar dinheiro para as artes? Essa é uma pergunta que eu me faço e é justamente por causa disso que não moro no Brasil e não mamo nas instituições que distribuem dinheiro, não faço parte das panelinhas que sobrevivem das mutretas e das ladroagens e das incríveis corrupções (o mundo teatral é uma terrível corrupção, acreditem) que acontecem aí. Nesse sentido, me sinto menos mal no Primeiro Mundo, onde a fome, a educação e a saúde já foram resolvidos e, portanto me sinto menos culpado em cobrar o que cobro para encenar algo que escrevi ou algo que algum compositor compôs.


Zunái - Você já realizou experiências com o cinema? Planeja adaptar alguma de suas peças para a telona?

GT - Há cerca de dois anos, o Dogma 95, da Dinamarca, literalmente "acampou" no meu apartamento em Williamsburg, Brooklyn e propôs um filme. Transformaram a minha vida num verdadeiro inferno durante uma semana (eles bebem 24 horas por dia) e a coisa não deu em nada. Preciso explicar. Tenho uma vida muito ativa na Dinamarca desde o inicio dos anos 90 (92 pra ser preciso), que é quando levamos Flash and Crash Days para lá pela primeira vez e a crítica de todos os jornais foi absolutamente exuberante. Alguns críticos usaram nosso espetáculo para zombar do teatro local, usando o titulo "É assim que se faz". Na platéia só tinha gente de teatro e de cinema, incluindo o Lars, e o pessoal do Dr Dante Aveny, que mais tarde, em 95 e 96 eu fui dirigir. De dois em dois anos, na década de 90, eu ia pra Copenhague me apresentar e fazer debates. O cinema me interessa e ao mesmo tempo não me interessa nem um pouco. Digo, o processo industrial envolvido. Mas nunca se diz não, não é? Em Elektra Com Creta (96), Sérgio Augusto, na crítica que fez para a Folha de S. Paulo, escreveu que eu fazia cinema no palco e urrava: "dêem uma câmera pr'esse homem, urgente!" Acho que o que diferencia o meu teatro do dos outros é que - até hoje - continuo fazendo cinema no palco.


Zunái - Você se considera um artista inovador? Como encara a série de mutações (e permutações) da história da arte? O artista é um inventor ou reinventor da roda?

GT - Não cabe a mim dizer isso. Cabe à História. Conheço bem a História. Sou praticamente formado nela, pela Biblioteca do Museu Britânico. Sei dos seus ciclos, sei das suas injustiças, sei das suas frivolidades e crueldades, enfim. O "meu" inventor da roda é Marcel Duchamp, que colocou a roda de bicicleta em cima de um banco, tornando-a redundante. E, em plena era industrial, os ready-mades vieram pra sacanear a praticidade das coisas. Esse foi um dos statements mais fortes da arte ou da anti-arte, como queira.


Zunái - Morte das vanguardas, fim da história: para você, estes são slogans ideológicos, ou realmente nada mais existe para ser dito?

GT - Nada disso tem mais significado algum. Pode berrar o que quiser. Nada morre e nada nasce. Esta tudo aí nas vitrines. Tudo é decorativo.


Zunái - Como você vê a nova situação de poder no mundo de hoje, e em especial a política desenvolvida por George W. Bush e Tony Blair?

GT - Existe gente melhor do que eu para falar sobre isso. Por isso o livro de Bob Woordward, Plan of Attack, ou o filme brilhante de Michael Moore, Farenheit 911, estão aí. Bush - para começar - "roubou" as eleições na Flórida, então não era nem para ter sido presidente. A conexão da família Bush (o pai e filho) com a família saudita Bin Laden vem de décadas. Não havia nenhuma conexão entre Saddam Hussein e Bin Laden e tampouco Saddam tinha os tais weapons of mass destruction e tanto a CIA e o FBI quanto a NSA sabiam disso. Por isso que George Tenet, da CIA (há um mês) renunciou - dizendo que precisava passar mais tempo com a família. A 911 Commission foi um escândalo. O Senado descobriu o quanto Bush-Cheney mentiram para o publico americano, ignorando qualquer tratado internacional, ou qualquer escrúpulo, a pretexto de invadir o Iraque. PETRÓLEO e bastante dano de estrutura causado pelos bombardeios, para que a Halliburton - firma enorme de construção da qual Cheney foi CEO durante 5 anos - pudesse entrar e lucrar com a tal da "reconstrução" do Iraque. Removeram Saddam, mas, com isso, abriram milhões de tocas de fundamentalistas; aquilo ali vai feder e até agora já morreram quase 900 soldados americanos. Bush é inescrupuloso, burro, guloso, ignorante. Mas vai pagar caro por isso. E Blair, como cúmplice (e às vezes, até como mastermind) vai se sair bem na História, por ser articulado, bem-educado e nunca ter sido aquele a ter tomado a iniciativa. Mas tanto os EUA como a Grã Bretanha (os dois países entre os quais eu me movo) são alvos permanentes graças a esses dois imbecis.


Zunái - Vivemos num conto de Kafka, numa peça de Beckett ou numa fábula das Mil e Uma Noites, em tradução ruim?

GT - Seria injusto colar o mundo de hoje a autores que conseguiram transformar a realidade em metáfora de uma forma tão brilhante. Não vivemos nenhuma metáfora e sim uma horrenda realidade. Eu diria que vivemos algo mais parecido com Orwell ou Huxley.


Zunái - Qual é o sentido de fazer arte hoje, numa era regida pelo mercado, pela moda e pela mídia?

GT - Me pergunto isso todos os dias, e todos os dias a resposta mais honesta que a minha consciência consegue me dar é que a arte hoje não vale a pena. Por isso é que a mídia virou a merda que virou. Os interesses estão nas fofocas, na moda, nas coisas de superfície. A tese de Andy Warhol venceu e quem conseguir ficar famoso por 15 minutos conquistou o seu lugar. Os reality shows são uma vergonha, mas voltamos à época romana dos Coliseus. Me preocupa aonde isso vai dar na escalada da evolução. Daqui a pouco não me resta muita dúvida de que estarão matando pessoas ao vivo na televisão, para que cresça o Ibope. E isso não deixa de ser a arte do nosso tempo.


Zunái - Acredita em alguma utopia, pessoal ou coletiva?

GT - Acho que você terá que me fazer essa pergunta quando sairmos do buraco negro. Ainda estamos em plena virada de século e de milênio. Se você consultar a História, as outras viradas não foram diferentes para as vanguardas. O mundo está sangrento, grande parte do mundo está com fome, doente, e os milionários estão aí, nos Hamptons, em Beverly Hills e no Morumbi com seus enormes automóveis e iates, vestindo griffes de vomitar. Enquanto isso, estamos numa guerra que não existe, a pretexto de encontrar terroristas que talvez sejam simplesmente invenção ou um master plan desse mesmo Bush-Laden que quer beber petróleo e ganhar seus bilhões. Utopia Avenue é uma avenida em Queens e está bem detonada.

LOVE,

Gerald


Veja também fotos das peças de Gerald Thomas, leia um poema dedicado a ele, e conheça a cronologia de seu trabalho em Repertório.

*

*
escreva para ZUNÁI: revistazunai@hotmail.com



retornar <<<

terça-feira, 23 de junho de 2009

Som e Fúria

Com ironia e bom humor, Som e Fúria mostrará o dia-a-dia de duas companhias de teatro - uma, bem sucedida, é dirigida por Oliveira (Pedro Paulo Rangel), na qual atua Elen (André Beltrão), e a outra, falida, por Dante (Felipe Camargo).

O elenco conta no elenco ainda com Dan Stulbach, Daniel Oliveira, Regina Cazé, Gero Camilo, Rodrigo Santoro, Maria Flor, Chris Couto, Débora Falabella e Paulo Betti.

A minissérie é uma co-produção da Globo em parceria com a produtora independente O2 Filmes (a mesma de filmes como Cidade dos Homens), e é uma adaptação da série canadense Slings and Arrows, que retrata os bastidores de uma companhia de teatro que interpreta obras de Shakespeare.

Som e Fúria é dirigida por Fernando Meirelles. Gisele Barroco, Toniko Mello, Fabrizia Pinto e Rodrigo Meirelles também assinam a direção dos capítulos.
Categoria: Música


quinta-feira, 18 de junho de 2009

Blue man group




Eu vi esses caras no Festival Internacional de Teatro em BH e adorei. É uma tendência do teatro contemporâneo mesmo: não se prender a texto, mesclando-o com música, tecnologia e performance, teatro de rua, etc.

domingo, 21 de setembro de 2008

Um Bom Blog de Teatro: Blog do Avanilton

Fui a esse blog e é uma dica boa para quem gosta de teatro. O Avanilton resumiu duas peças do Gerald lá no shvoong, site cultural que vale a pena ser visitado.
http://pt.shvoong.com/
Eles pagam por resumos. Shvoong, em iídiche, quer dizer ímpeto. Aí vão os resumos:

Duas peças de Gerald Thomas são apresentadas em uma mesma sessão.
Terra em Trânsito é um solo com a atriz Fabiana Guigli interagindo com um cisne. A peça mostra uma diva em um camarim, ouvindo no rádio um discurso politicamente incorreto na voz de Paulo Francis, enquanto enlouquece lentamente e não pára de alimentar o cisne com a finalidade de fazer um patê de foie gras.
Já na inédita Rainha Mentira é feito um levantamento alegórico da pulverização das tragédias históricas, como o holocausto e as guerras em Geral e de assuntos absolutamente pessoais. Uma das histórias contadas é a da mãe de Geraldo Thomas, acusada aos nove anos de idade pelo enforcamento do próprio irmão, Um jovem de 17 anos, homossexual, em uma Alemanha já tomada por Hitler.
Terra em Trânsito
Autor e diretor geral: Gerald Thomas
Interpretação: Fabiana Gugli
Cisne: Pancho Cappeletti
Rainha Mentira Queen Liar
Autor e diretor geral: Gerald Thomas
Elenco: Anna Américo, Fabiana Gugli, Fabio Pinheiro, Luciana Fróes, Pancho Cappelletti
http://avaniltoncarneiro.blogspot.com/