domingo, 22 de setembro de 2024

Dr. Clodomiro Anaya: Pátria e Coração Grande

Dr. Clodomiro Anaya: Pátria e Coração Grande A história de Dr. Segundo Clodomiro Anaya Rojas me impressionou. Eu o conheci há muitos anos quando meu tio Rodrigo Anaya Rojas se casou com minha tia Denise, ainda nos anos 80. “Segundo” Clodomiro tem esse nome devido ao fato de ter o mesmo nome do pai, o que seria equivalente ao “Júnior” aqui. Viveu parte de sua infância em sua cidade natal ao sopé dos Andes e outra parte com os avós no Departamento de Cajamarca, no norte do Peru, pois perdeu a mãe com sete anos de idade. Depois estudou no prestigiado Colégio San José, em Chiclayo, no litoral norte, se mudando depois para Lima, a capital, onde viviam seu pai e três irmãos, em busca de novas oportunidades de estudos e trabalho e a família, apesar de unida, vivia com sacrifícios. Sobre a região onde passou a infância, Rodrigo Rojas, seu filho, contou-me um dia que ali existiu uma civilização bem anterior aos incas. Falou também da guerra entre Peru e Bolívia contra o Chile no final do século XIX, guerra da qual sabemos pouco aqui no Brasil. Clodomiro trabalhou como “segurança” por dois anos em uma siderúrgica recém inaugurada há cerca de duzentos quilômetros ao norte de Lima, onde juntou uma certa quantia e resolveu mudar-se para o Brasil em busca de seu sonho. Clodomiro sonhava em estudar Medicina, mas a universidade era muito elitizada em Lima. Tentou, então, uma vaga na Argentina e não conseguiu. Soube, então, de um intercâmbio do governo Juscelino Kubitschek e veio para o Rio de Janeiro. Lá ele ouviu falar em Belo Horizonte. Uma vez na faculdade de Medicina da UFMG, conheceu Rafael de Araújo Cançado. Foi através desse colega, tio de sua atual esposa, que ele conheceu a doce Ângela, da distinta família Lopes Cançado, que conhecemos como Dona Ângela, com quem se casou. Ela é parente da escritora Maura Lopes Cançado, autora de Hospício é Deus, comentada por mim aqui em várias crônicas, tais como Maura Lopes, a Maior Escritora que já Viveu Aqui. Ela o fez prosseguir no Brasil e constituir família. Entre idas e vindas, Dr. Clodomiro é um médico muito querido aqui em Bom Despacho, trabalhou como pediatra, tendo recebido o título de Cidadão Honorário, inclusive. Sempre foi uma pessoa progressista, é muito politizado e informado, acompanha muito as notícias, especialmente do Peru e da “Pátria Grande”, a América Latina. Para quem não sabe, o primeiro capítulo de nossa Constituição, especialmente importante e claro no parágrafo único, aquele que estabelece os princípios fundamentais da Constituição, explica que: A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. Os filhos são: Rodrigo, Tânia, Rogério, Cláudia e Felisa. Fomos junto com Cláudia ao show de Caetano Veloso e Betânia, graças também à minha cunhada Felisa, que gentilmente cedeu o ingresso. Felisa Anaya é a minha querida cunhada, esposa de meu irmão Mário. Doutora em Sociologia, aprovada em concurso pela Unimontes, foi morar em Montes Claros, estudou em Belo Horizonte, mas vem sempre a Bom Despacho, onde passou a infância. Tânia Anaya Segunda, filha de Dr. Clodomiro, procura, através de seus filmes e outras expressões artísticas, valorizar a cultura indígena e afro-brasileira. Em 2005, realizou um calendário que citou a Tabatinga; em 2006 projetou e lançou outro, intitulado Meu Brasil Africano (Minha África Brasileira) junto ao Ministério da Educação. Atividades culturais como as desenvolvidas por Tânia Anaya permanecem iniciativas de indivíduos isolados em nossa região. Recentemente, Tânia esteve em Montes Claros elaborando um novo trabalho cinematográfico. Há pouco tempo, reencontrei Clodomiro numa festa de família, a festa de aniversário de minha cunhada Felisa, uma festa com uma banda cubana. A música preferida de Clodomiro é uma cumbia peruana chamada Cariñito, cantada originalmente pelos “Hijos del Sol”. Carinito significa “Queridinha”: Cariñito Lloro por quererte, por amarte, por desearte Ay cariño, ay mi vida Nunca, pero nunca me abandones, cariñito Nunca, pero nunca me abandones, cariñito Sendo assim, viva Segundo Clodomiro Anaya Rojas, representante da Pátria Grande em Bom Despacho!

Orgulho, Preconceito e Vampiros

Orgulho, Preconceito e Vampiros Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior Fiztwilliam Darcy e Elizabeth Bennett são dois adolescentes de Derbyshire, Inglaterra, que vão passar férias, coincidentemente, em Manaus, no estado brasileiro do Amazonas. Bennet é uma gótica atéia que curte ouvir bandas como The Cure. Já Darcy é de origem protestante, um nerd em férias. Bennet ainda está no esquema escola-cinema-clube-televisão, enquanto Darcy escreve poemas românticos, faz luta marcial, participa de um partido político de centro-esquerda, Bennet gosta de shows de rock e cemitérios. Encontraram-se então num parque da cidade, por acaso, mas identificam-se por serem ambos ingleses. Darcy chama Benett para ver Netflix em seu quarto de hotel, mas ela recusa e diz que, se possível, evita Netflix, pois gosta de sair para festas de rock gótico para se libertar. Benett ia passar duas semanas idílicas em Manaus, visitar o teatro Amazonas, ver o encontro do Rio Negro e do Solimões, passear de barco e visitar uma tribo indígena. Fiztwillian Darcy viajou para ver uma ópera Dido e Eneas, de Purcell, encenada no teatro Amazonas. No entanto, por azar, Manaus e o mundo inteiro são assolados por uma misteriosa pandemia de vampiros e eles não conseguem retornar para Derbyshire, os voos são cancelados. No contexto da pandemia, os dois ficam presos em um mesmo hotel, e, temendo a morte, Darcy, encantado em encontrar alguém que o entende e com medo de morrer, pede Benett em casamento e ela aceita. Eles combinam de casar-se e morarem em Derbyshire, no interior da Inglaterra. No entanto, logo em seguida, a pandemia de vampiros acaba e os dois conseguem voltar para Derbyshire na Inglaterra. Uma vez na Inglaterra onde há crise imobiliária e está difícil alugar um apartamento, os dois adiam o casamento. Darcy vai para Londres estudar para tornar-se funcionário público, enquanto Benett prossegue em Derbyshire onde, apesar da troca de cartas, esse amor vai esfriando. Por fim, Darcy rompe e encontra uma gatinha comunista. Por sua vez, Benett passa da fase gótica. Ela passa a frequentar a igreja do pastor Collins e, por fim, aceita um pedido de casamento dele, que se separou de Charlotte.

Herbert Magalhães: Escritos Vivos

Herbert Magalhães: Escritos Vivos “O resgate de nossas origens é de fundamental importância para as futuras gerações. Garimpar e guardar aquilo que nos representa tem um valor sem preço.” Essa frase –poderia ser o lema de minha coluna – é que abre o livro Escritos Vivos (Divinópolis, 2021, Editora Adelante), de autoria do recentemente falecido coronel Herbert Magalhães. O nome “Geração Pita” é o título do capítulo inicial, uma homenagem ao pai, Epitácio, apelidado Pita, jogador de futebol na juventude (considerado um craque na cidade). São muito encantadoras essas crônicas, que são uma verdadeiras cápsula do tempo: Naqueles anos 50, correr para detrás do muro da Vila, ver o carro de bois gemer; assistir às jardineiras que transitavam na mesma estrada poeirenta com destino a Abaeté, Dores e Martinho Campos; fugir dos deveres escolares para jogar bola e ficar na espera do Pita aparecer para buscar-me pelas orelhas; fugir até o goiabal para colher frutas, enfim muitas saudades. Herbert guardava a lembrança do bangalô onde viveu com a família, Chalé 06, rua Tenente Garro, Vila Militar. Mudaram-se para um bangalô. Herbert recolhe a doce lembrança de sua mãe, dona Nenzinha, a costurar junto a seus filhos. Como eram nove irmãos (!) ele recorda como a situação da família era apertada, inclusive tinha de comer, por vezes, mamão verde “afogado”, pois nem sempre comiam carne. O pai, curiosamente, tentou criar porcos em casa, mas isso trouxe mosquitos e mau cheiro. Muito emocionante para mim foi reencontrar no livro de Herbert a lembrança de um personagem que com que meu pai, Lúcio do Espírito Santo, iniciou seu breve período como cronista aqui no Jornal de Negócios, o “Fidirico”, o “Alemão da Colonha”. Esse personagem foi homenageado numa crônica chamada Bolo do Fridrico: Também não esqueço do Fidirico, o “Alemão da Colonha”, quando aparecia no final da rua, montado em seu burro vindo entregar o leite, na porta de cada um. A meninada atrás cobrando o bolo por ele prometido. Às vezes premiava um deles (MAGALHÃES, 2021, p. 15). Curiosamente, meu pai foi citado elogiosamente nesse livro de Herbert Magalhães. Essas suas memórias são preciosas como memórias do passado de nossa cidade. Ele recorda o “Tirobis”, rapaz que marcou época nos anos 60 e 70. Ele andava com estilingues pendurados no pescoço e papavento na mão. Dava um tapa no traseiro dos passantes. Tirobis foi cunhado de Herbert Magalhães e, embora desse trabalho para a família, era uma boa pessoa, temente a Padre Libério. Herbert foi a missas de Padre Libério e relata sua voz mansa e suas desventuras. Padre Libério, a seu ver, foi deslocado de Leandro Ferreira para Pará de Minas, pois a Igreja buscou reverter a situação, não acreditando em seus milagres. Dona Nenzinha, mãe de Herbert, chorou de alegria ao descobrir que havia o processo de beatificação de Padre Libério. Era marcante, para ele, a “Procissão do Enterro”. Ela acontecia depois da Procissão do Encontro. Era uma procissão que tinha imenso significado, a cidade toda participava. Ela ia da Matriz até a Igreja do Rosário. É interessante a memória sonora: A banda do Batalhão tocando marchas fúnebres. As matracas assustando e acordando os bebês. A coleta de donativos passando continuamente. Todos fiéis com velas acesas. Alguns fiéis pagando promessas. Outros fazendo os percursos descalços, com um peso na cabeça e outro tipo de castigo. Rezar o terço e a ladainha era uma visão fantástica. Na Matriz os sinos tocando (MAGALHÃES, 2021). Além da recordação da quarentena “infantil, doce e santa”, Herbert sente grande carinho e preocupação pelo patrimônio representado pela Vila Militar. Ela começou, segundo ele, em 1921, como Vila Operária, para abrigar os operários da Estrada de Ferro Paracatu. A Vila Militar, propriamente dita, começou com um batalhão de caçadores. Ele foi instalado em 1931 pelo governador Olegário Maciel, preocupado com as iniciativas dos paulistas, como Sétimo BCM. Ele contava que ela é constituída de “Bangalô” e “Vila”. No passado, inclusive, havia uma divisão muito notável no futebol: “era um jogo duro, mas leal, naquele campinho de terra, atrás do muro”. É muito oportuno que Herbert Magalhães tenha escrito essas crônicas e lembranças. Que Epitácio e Nenzinha, seus pais, estejam abençoando esse grande cronista Herbert Magalhães. Recentemente, Herbert nos deixou, para tristeza de uma legião de amigos que aqui ficaram. No céu uma comitiva o esperaria, liderada por Pita e Nenzinha. Lá estaria Tirobis e o seu bodoque, uma fileira de tios e primos em revoada, amores idos e vividos, enfim uma grande e celestial recepção.

Os Retratos Absurdos de Pedro Ramos: Bom Despacho e Macondo

Os Retratos Absurdos de Pedro Ramos: Bom Despacho e Macondo O segundo livro de Pedro Ramos, Ode, Veste, Retrato e Outros Contos Absurdos investe na narrativa curta propriamente dita. E ele dialoga com Kafka, Jorge Luis Borges, Garcia Marquez, Guimarães Rosa. Em seus contos há um mistério que não se entrega, que pede que leiamos mais uma vez, e outra, e mais outra. Não entendemos bem o que ele quer dizer, mas há algo que faísca lá no fundo e nos chama para reler os contos. A influência de Guimarães Rosa parece-nos muito bem resolvida no conto Conversa à São Camilo. A Febre do Passarinheiro me fez pensar, com suas imagens, em uma paródia do psicodélic estilo cinema catástrofe de Os Pássaros de Hitchcock, situada na Macondo de Garcia Marquez. Ou em Bom Despacho, no centro-oeste mineiro. A Morte Só Dura Trinta Dias parece tratar de vida, morte e ressurreição. Acho particularmente os curiosos e realistas os diálogos de Ode às Asas de Vidro, inseridos em meio a narrativas orientadas claramente pela lógica do real maravilhoso, da lógica do sonho, causando o efeito que chamamos de choque que, em francês dizemos que “hurlaient d´être ensembles” (gritam de estar juntas). Por exemplo, leia-se um diálogo assim em O Fado e as Roseiras do Dia e da Vez: --Mamãe, o vovô vai ser cozido? A mãe, abismada, lhe dirigiu um disparate: --Cale-se, menino! Por que acha isso? Comedido, após levar um tabefe, o menino respondeu: --o vovô é frio igual a uma galinha depenada” (RAMOS, 2024, p. 114). Com essa técnica, Pedro consegue imagens que, por vezes, recusamos com certa impavidez, mas que falam ao inconsciente. São como poltronas aconchegantes às quais sentimos vontade de retornar. Pedro, nesse livro, retorna a histórias de fantasmas, do sobrenatural, contadas pela família, retrabalhando-as à luz de sofisticadas leituras. Pedro fez, com dom de poeta, uma bela palestra na Biblioteca Pública Jacinto Guerra, introduzindo seu livro. Nela falou das inspirações de seus textos: Jorge Luis Borges uma vez disse, em sua obra, o livro busca muito mais do que ele realmente retrata em suas páginas. E, muito mais do que um objeto, ele, sim, contém dentro a vida e também a realidade de quem escreve. Jorge Luis Borges a quem eu tenho entremeado a minha obra Ode, Veste e Retrato. Em alguns contos, em alguns, não todos. E também a sua realidade mais sobrenatural, que se faz tão presente, entre as palavras, entre os títulos. E também entre as histórias. Uma vez Borges, quando já estava cego, uma de suas obras chamada O Outro, um conto, ele é levado a refletir sobre si mesmo. Ele, que estava numa cadeira, de outro passado. E, de outro passado, ele mesmo, diz como seria ficar cego. Do que se trata a cegueira? Ele faz um viés muito poético, muito realista, ele mesmo carregava desde criança. Ele carregava uma patologia hereditária chamada glaucoma. Seu avô ficara cego, seu pai ficara cego e ele sabia que um dia ficaria cego. Ele, diante do outro, diante do pôr-do-sol, ele explica que ficar cego não é nada mais do que um lento pôr-do-sol, não era tão ruim assim. Ele associou o ambiente com a realidade de sua doença. orges, além do livro, escreveu um conto, talvez seu conto mais caricato. Seu conto mais famoso é a Biblioteca de Babel. Em cada obra, está dita uma realidade que pode dizer milhões e milhões, pode-se sobrescrever. Além de Borges, vou citar Garcia Marquez, um escritor já conhecido, Vander talvez já conheça, um escritor colombiano, um dos primeiros a se enveredar pelo real maravilhoso, corrente que surgiu na Alemanha, não só na literatura, mas também na arte essencialmente, ele e sua Obra Cem Anos de Solidão, uma obra que para mim é uma das obras mais brilhantes já escritas, que me lembra essencialmente a minha família, lembra a realidade de minha família, dos causos sobrenaturais que tanto cortam o espaço, o tempo, o que nos faz pensar a realidade do que se passa no outro, é pensável, do que é escrito e, posteriormente, do que se leva a crer. Não posso dizer que Garcia Marquez é um escritor cem por cento brilhante. Cada um de nós escritores busca o brilhantismo, refletindo em cada de um de nós seu espírito, por vezes abusando das figuras de linguagem. Garcia Marquez diz muito mais do que parece ser, um caso de uma mulher que conversa com espíritos, um caso de um senhor que procura a guerra, mas depois vira um ourives. Ou também de um homem que ficou louco e se amarrou numa árvore e passou a falar latim. Nas histórias de Garcia Marquez, há esse espírito da corrente mágico-realista, cada escritor tem seu espírito, cada escritor tem seu estilo próprio, dentro daquilo que convêm. Há uma vertente que hoje está em declínio, mas que eu quero fazer ressurgir, ressuscitar na minha obra. Eu digo: o ato de escrever também é um ato de rebeldia, quem escreve se rebela contra si mesmo. Diante desse ambiente que nos circunda. Escrever é mais do que aparecer, é se encontrar em meio aos outros. Escrever é transmitir, não só histórias, não só ditos, mas transmitir e deixar transmitir a si mesmo aquilo que é próprio. Ser um livro aberto para os outros. Alguns escritores se escreveram para se esconder, mas apareceram diante de todos. Muitas vezes eles, aturdidos por problemas pessoais. Podemos citar Voltaire, Chopin, que ficaram doentes. Escrever passa a ser mais do que uma atitude, mas também o pensamento transpassa aquilo que ocorre, não sei se algum de vocês já tentaram escrever um livro, é uma experiência libertadora. Escrever para mim é uma catarse. O ato de catarse é expurgar de si aquilo que é ruim. A catarse é uma limpeza da alma. Escrever para ser o deus de si mesmo. Não digo isso de maneira antirreligiosa. Também podemos citar Ernest Hemingway, sua obra O Velho e O Mar, muito mais do que uma obra sobre pesca, sobre um velho que se joga diante do mar, é uma obra inspirada na passagem de Mateus, evangelho de Mateus, em que Pedro se encontra diante do rio sem poder pescar nada. Essa é a realidade do escritor. Ele se faz diante do rio, diante da correnteza que flui de si mesmo e ele não encontra, para procurar um peixe mais belo. É importante que o escritor não deixe de escrever sobre si mesmo. Como se pode ler acima, Pedro, curiosamente, também reencontrou, como aconteceu comigo, muito em comum entre as narrativas de Garcia Marquez e os casos contados por familiares. Nessa obra de contos, Pedro Ramos evoluiu significativamente em sua obra literária, encaminhando sua sensibilidade para os escritores do boom literário latino-americano, o que é um caminho afim de sua sensibilidade. E mostra-se, mais do que uma promessa, um artista local que pode, em breve, ser candidato a voar sem asas de vidro.

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

País dos Privilégios (Bruno Carazza dos Santos, Companhia das Letras, 2024)

País dos Privilégios (Bruno Carazza dos Santos, Companhia das Letras, 2024) Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior Bruno Carazza, nesse livro, resolve um problema importante, e que tinha ficado no ar na pesquisa de Raymundo Faoro: quem são os donos do poder no Brasil? Faoro não tinha entrado em detalhes, o que deixou margem para o uso oportunista dessa ideia de que existe uma casta que suga o estado: Collor falou em combater os “marajás”, Guedes atacou os “parasitas”, fazendo, então, um ataque a todo o funcionalismo público, privatizando estatais como Embrafilme, etc. Eles o fizeram em favor de um setor de empresários que podemos chamar de burguesia compradora, que tem menos interesse em um estado estruturado, contra o outro setor, o burocrático. A escolha de comentar Vargas e Fernando Pimentel do PT nessa introdução feita por Bruno fez reverberar essa disputa entre esses dois setores, uma vez que Vargas e PT são caracteristicamente ligados a esse setor da burguesia que chamamos burocrático, mais ligado ao estado. Ele elenca o funcionalismo público privilegiado: magistrados, Ministério Público, elite dos poderes executivo e legislativo, políticos, militares, cartórios. A partir dessa pesquisa rigorosa, Bruno Carazza nos fez um grande favor, pois evita a utilização demagógica desse pensamento daqui em diante. Bruno tem a consciência da autocrítica e comentou que o estado brasileiro não é inchado em relação aos países desenvolvidos do mundo (embora ainda tenha se feito presente em País dos Privilégios o termo “estado inchado”, sugere-se a sua retirada em uma nova edição). O próprio autor comentou, de forma bastante lúcida que “o tamanho do corpo dos servidores públicos do país é bem menor do que o apregoado pelos defensores do estado mínimo” (CARAZZA, 2017, p. 154). Por outro lado, livro baseia-se em pesquisa empírica, traz dados, mas não consta de País dos Privilégios a bibliografia recente a respeito do mesmo tema, o texto Elite do Atraso, de Jessé Souza, bem como amplo debate a respeito de Faoro realizado por Leonardo Avritzer no site A Terra é Redonda. Visto à luz das reflexões de Jessé de Souza, o texto de Carazza adota o que Jessé chama de vira-latismo e racismo culturalista (por pensar no Brasil em um país pior do que os outros), bem como apresenta um pensamento liberal que aponta corrupção de origem cultural lusa presente no estado como maior de nossos problemas (o que, para Jessé, leva aos abusos da lava-jato). Como explicou Jessé de Souza: A partir de Raymundo Faoro, inclusive, o mercado passa a ser visto como o céu na terra, prenhe de virtudes democráticas que apenas o estado não permite florescer. O cidadão comum é convidado a ver o mercado como competição real do mais apto, como nas padarias da esquina que disputam quem produz o melhor pão. Nada é dito sobre o grande mercado controlado por monopólios que fraudam a sociedade sob a forma de controle de preços, juros extorsivos e assalto ao orçamento público, via isenções fiscais fraudulentas, sonegação de impostos, etc (SOUZA, 2019, p. 146). Podemos dizer, à luz de Jessé Souza, que o título colocou uma excepcionalidade do Brasil em termos de privilégios que não cabe. Se são privilegiados os funcionários públicos brasileiros, o quanto o são os funcionários do complexo industrial-militar estadunidense que presidiram a invasão do Iraque? Em todo mundo, o poder está nas altas esferas do poder e nos escritórios das multinacionais. Curioso como surge a ideia de um capitalismo já estruturado em Portugal: Utilizando um conceito formulado por Max Weber, Faoro classifica como “capitalismo politicamente orientado” a estratégia inaugurada por D. João I e seguida por todos os monarcas que o sucederam nos séculos posteriores, de se lançarem ao mar em busca de novos negócios (CARAZZA, 2024, p. 15). Faoro, ao nosso ver, deixa-se levar demais por autores portugueses que postulam que a primeira revolução burguesa foi a revolução de Avis, bem como a hipótese de que não existiu feudalismo em Portugal, primeiramente colocada por Jaime Cortesão, mas que parece ter se tornado hegemônica. Para Weber, existem dois tipos de “capitalismo”, o politicamente orientado, em que o estado tem um papel, e o economicamente orientado; mas nem Weber e nem Marx falaram sobre o precoce “capitalismo” português em suas obras. Como deixariam de ter detectado os fenômenos mencionados pelos portugueses, a não- existência do feudalismo (o que faz pensar que o capitalismo é o mesmo que trocas comerciais) e a tal revolução burguesa pioneira? Portanto, “capitalismo” não nos parece um termo adequado. O melhor seria, sim, o mercantilismo, a penúltima fase do feudalismo. O capitalismo ainda estava embrionário. E equívoco veio de Faoro. Faoro pensava que o mercantilismo era o primeiro passo para o capitalismo industrial. Ao nosso ver, muito do que Carazza apontou no passado deveu-se à presença dos estamentos feudais, para os quais não havia diferença entre público e privado, bem como da exportação do feudalismo para o Brasil e suas sobrevivências atuais (restos feudais, sob a forma de latifúndio). A ideia de soberania popular surgiu no tempo do Iluminismo e procurá-la em tempos anteriores pareceu-nos anacronismo, bem como a imutabilidade desse estamento no decorrer das épocas. Quando Portugal exportava para aqui um certo número de nobres (citado por Bruno), de forma alguma ela era numerosa em relação à população da colônia. Eles eram algo bem diferente do funcionário público hoje existente. Eram grandes proprietários de terra e executavam poder de vida e morte sobre seus comandados, sempre em nome do rei e da Igreja Católica (existia fusão estado e Igreja Católica, vale lembrar, traço tipicamente feudal). Prosseguindo, para Bruno Carazza, “após aportar no Brasil em 1500, os portugueses implantaram por aqui esse mesmo sistema extrativista” (CARAZZA, 2024, p. 15). A grande questão aqui é que não importamos o mesmo sistema extrativista e sim algo mais atrasado e, que, segundo Jessé Souza, nos moldou, o escravismo. Podemos supor que não exportou o “capitalismo”, mas predominantemente escravismo e feudalismo, embora também outros modos de produção não hegemônicos, como o capital mercantil. O açúcar no Nordeste já era plantado com auxílio de capitais holandeses. Isto posto, pode-se esperar que tais pontos sejam debatidos nos volumes a seguir de País dos Privilégios (trata-se de uma trilogia). Bibliografia: CARAZZA, Bruno. País dos Privilégios. Companhia das Letras: 2004. Raymundo Faoro, Críticas Equivocadas>. SOUZA, Jessé. Elite do Atraso. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019.

Quita

Quita Quita é a nossa última Angélica, filha da penúltima Belchiorina. Vê-la anoitecer dói. Busco no fundo do baú a contadora de estórias e ela vem assustando com os “causos” de assombração. O frio do medo gela, os olhos crescem, mas ninguém arreda pé. A alma penada errante acompanha uma procissão portando um osso amarelo de canela e as vozes fúnebres se repetem tediosas. O que era um “osso de canela”? Ela mostrava com um toque a perna morena e dava sequência ao causo com seu caipirês magnético. Agora era um homem que acorda no meio da noite com um peso enorme “em riba da sua cacunda”. O infeliz sente “a coisa” e grita “_ arreda!” O que vem depois perde-se na névoa da infância...os ouvintes pasmos crescem, Quita sente o vórtice da vida, tal qual a flor arrastada pela fonte no poema de Vicente de Carvalho: “A Flor e a Fonte”. Não há escolha: a correnteza arrasta. E lá vai a nossa Quita, triturada. Adiante, onde ficam os cabelos rebeldes cacheados, o porte majestoso, a voz veludosa? A gente se perdeu de Quita, a vida nos arrastou em diferentes cachoeiras. A professora rural, a cantineira, a merendeira, tempestuosa corredeira que acaba na inexorável decrepitude. A Rádio Nacional, fonte das estórias de assombração – ainda bem que perguntei a tempo –findou-se também, faz tempo... E no humor Quita também surpreendia. Havia o caso da moça bonita assediada que ofereceu um figo ao assediador e ele “indaga”: “De onde o tiraste tu?” A rima curta nem pedia resposta. O mundo que Quita nos abriu era anedótico, tétrico, emocionante. Que nem uma montanha russa. Uma tirolesa, um trem fantasma. Mais que isso, só a vida verdadeira. Uma surpresa a cada esquina. Um vendaval, um por do sol, um luar do sertão. Um redemoinho. No Córrego d´ Água, a roça pacata que a viu crescer, tudo isso era banal. A água de cisterna, a caçamba descendo cantante. As lamparinas. O pai dela, meu tio tristonho, de poucas palavras, mas de um fundo tão doce, de bondades caladas. As longas caminhadas, porque o trem passava longe e a gente tinha que acabar de chegar. Quita vinha à cidade para as festas religiosas, Semana Santa em especial. Bom Despacho pequena e poeirenta, suas luzes macilentas, a matraca, Jesus e sua cruz, Verônica mostrando a face sangrenta no lençol branco e dizendo aos homens, em latim, que parassem e vissem se há dor maior; a procissão e suas velas acesas, a noite de lua cheia –por que a sexta-feira da Paixão sempre é enfeitada por uma lua cheia especial e –impressão minha –sempre acabava em chuva, tropeços, correria? A ruína de Quita, a nossa última Angélica, me fez pensar em Virgília, a imponente ruína ao final de Brás Cubas, em “Memórias Póstumas”...Pobre Quita, sempre tão reta, sensata, agora confusa...anoitecer é fatal. Tudo muda: hoje não seria natural contar casos de assombração a crianças: celular não as arrebataria mais? A Quita que minha memória registrou tinha o riso em cascata e a resposta pronta. Foi assim que ao final da adolescência, tendo se tornado bastante alta para os padrões femininos da época, passou por uma mesa onde um homem baixo bebia sua caipirinha e lhe dirigiu um comentário meio grotesco –“Cristo, como é possível crescer assim, crescer sem parar?!” –Jesus, como é possível beber assim... Beber sem parar? Indagou ela de volta. Um dia Quita cismou que iria ser freira, arrumou seus arranjos em uma “capanga” e se mandou de casa. O pai, perplexo ao saber da decisão da filha partiu atrás...foi encontrá-la na estação, esperando o trem. A volta humilhante, superada com muita reza, já no dia seguinte era página virada e a vida seguia... O amor, com suas ciladas, a ninguém poupa. Lembro-me vagamente de um rapaz bem apessoado, que diziam “de posses” e a paixão produzida e escanteada. O correr dos dias lava a alma. Os estropiados de hoje são os altaneiros de amanhã. Ei-la, pois, feliz de novo e pronta para as novas surpresas, o sorriso largo de volta ao rosto. Guilo chegou tardiamente, quando Quita, menos buliçosa, parecia render-se à solidão. E veio Aline. O cantor Christophe motivou o nome, por sugestão de Bete. E Quita adotou Maria, filha da última Belchiorina, aquela que morreu a caminho de uma reunião na escola rural onde os filhos estudavam. De nossa genealogia que remonta às raízes de Bom Despacho, ficaram as memórias de nosso bisavô ébrio, autor de poemas românticos perpassados de cortante ironia e humor. Nosso primeiro jornalista, dizem. Trágico viúvo de Angélica – a Quitinha. Nosso avô (genro daquele) negociou fiado a última junta de bois. A ruína financeira da família já evidente. Os netos dos antigos proprietários da Piraquara passaram a empregados. Os escravizados (quando havia aquela aberração histórica) foram deixando espontaneamente aquela família sucumbida, segundo testemunho de minha avó. Meu tio, pai de Quita, lidou sozinho em sua pequena propriedade, de sol a sol, até findar-lhe a saúde. Quita é o resumo das glórias e falências. Tão cheia de vida e agora fechada em si, meio esquecida. Tão espirituosa, mesmo depois de aposentada vendedora da Avon era recebida sempre com carinho pelo dedinho de prosa que oferecia, sem pressa. A doença não lhe tirou a doçura nem a generosidade, mas lhe fez crescer um medo mórbido de tragédias familiares, de que algo aconteça com suas crias... Esteja em paz, Quita. A flor nada pode quando a correnteza a arrasta, senão aproveitar o canto da água, o relevo e a vista deslumbrante à sua volta. Sempre haverá um céu azul ou um anoitecer glorioso. Se uma assombração surgiur nessa trajetória, acene para ela e prossiga. É essa a vida: se deixar levar. No final, o grande mar aguarda todos os regatos, rios ou riachos. Seremos apenas uma gota d´água a mais, mas estaremos plenos, completos e infinitos.

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Última Carta Aberta para um Frei Incoerente

ÚLTIMA CARTA ABERTA PARA UM FREI INCOERENTE 3 de julho. Escrito por Leonardo M. Fernández Outono «Não posso estudar sobre peles mortas enquanto meus irmãos morrem de fome». Santo Domingo de Guzmán *** Caro Frei Beto: Nos últimos dias, soube da comemoração do seu 80o aniversário em Cuba. Primeiro, quero felicitá-lo por essas oito décadas de vida. Espero que esta ocasião seja uma pausa para você reflectir, como bom religioso, sobre o seu compromisso social e espiritual atual. Aos meus parabéns gostaria de acrescentar algumas perguntas: Onde está o seu voto de pobreza? Por que um homem que diz optar preferencialmente pelos pobres legitima um governo totalitário? Por que comemorar em uma embaixada situada em um país não democrático? Por que não fazê-lo com seus irmãos dominicanos que vivem em Havana? Esqueceu-se que viveu em ditadura e que sofreu na primeira pessoa? Há muito que os católicos cubanos sabem das suas ambiguidades, mas é escandaloso conhecer as suas ideias públicas num país onde comer hoje é um luxo. Já estamos fartos de ouvi-lo falar de soluções alimentares impossíveis: cascas de batatas fritas (num lugar onde estes tubérculos e óleo são produtos quase inexistentes) ou, recentemente, de convidar as pessoas a semear nas janelas. Você ignora que há famílias que não sabem o que alimentar os seus filhos? E, por favor, não se justifique no embargo, que como bom católico progressista que sou, as letanias me sobrecarregam. De verdade, se deseja continuar como conselheiro presidencial, por que não recomenda uma transição para a democracia em vez de desfilar pela Távola Redonda e posar em banquetes ao lado de Lis Cuesta? Não se obstine em continuar a ditar a cadeira sobre uma realidade que você não sofre, porque isso é um pecado que clama ao céu. Todos nós sabemos bem que a Cuba que conhece não é a dos bairros marginalizados e dos solares; mas sim a dos jantares caras, das recepções, das casas de visitas e dos carros oficiais que usa frequentemente. No entanto, os cristãos podem corrigir o seu caminho. Meu convite, Frei Betto, é que deixe de lado os poderosos e se concentre nos pequenos, como reza o Magníficat. O primeiro passo poderia ser visitar o bairro de La Güinera, onde dezenas de famílias sofrem a condenação dos seus filhos a mais de vinte anos de prisão por exigirem uma vida digna. Você conhece a história do nosso irmão Angel Maria Meza, um leigo católico condenado a oito anos de prisão por se manifestar pacificamente em 11 de julho de 2021? Garanto-lhe que, se pedir ajuda a algum religioso cubano, o levará com o pouco combustível que tem para confortar os seus pais idosos, que choram todos os dias pela ausência do filho. Mas talvez o mais grave de sua atitude de apoio ao estado cubano seja que no próprio dia do seu aniversário, duas mulheres, Alina Barbara Lopez e Jenny Pantoja, foram espancadas por agentes da Polícia Nacional que cumpriam ordens da contra-inteligência. Que atitude tão pouco digna de um frade que foi preso por uma ditadura. Poderá viver em paz com a sua consciência quando duas mulheres, pelo simples facto de tentarem manifestar-se pacificamente, experimentaram experiência semelhante à sua? Irmão Carlos Alberto, o lema da sua ordem o interpela e o convoca a respeitar a complexa existência da cidadania cubana. Pergunto-lhe: como frade dominicano, continua a sentir-se chamado a abençoar a realidade dos pequenos? E não estou falando de receitas de culinária, mas sim de acompanhar a realidade de uma igreja cubana fraca que sobrevive dia após dia. Peço-lhe que abençoe — e isso não se trata de abraçar a família Castro, Díaz-Canel ou Lis Cuesta — os jovens que arriscam e por vezes perdem a vida nos corredores migratórios, perante a impossibilidade de aceder a uma vida digna em Cuba; ou as famílias de os 1066 presos políticos. Finalmente, peço-lhe que seja fiel à sua vocação pregadora, como fizeram no seu dia Frei Antonio de Montesinos ou Frei Bartolomeu das Casas. Defenda com sua pregação a liberdade e o respeito pela dignidade humana. Frei Betto, ainda dá tempo. Louve, abençoe e pregue, pois pelo caminho que vai, a história de Cuba e sua Igreja o colocará num lugar bem distante do Padre Varela e do Monsenhor Henrique Perez. Este é o meu último questionamento, Frei Carlos Alberto, sei que leu os anteriores. Fique ciente de que é possível fazer as coisas de forma diferente; aí está o exemplo dos dominicanos que passaram por San Juan de Latrão anos atrás. ***