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terça-feira, 17 de novembro de 2009

Glauber 70 anos e o último poema dele

Dia 14 passado, Glauber Rocha faria setenta anos.

O último poema de Glauber, lido de joelhos no palco por sua amiga Norma Bengell:

Não morri na cruz na Sexta-feira da Paixão
e depois do terremoto segui minha volta pelo mundo
Esta é a terceira e definitiva.

Do Palácio Rio Branco raiará a luz do mundo antes do século 3.

O rei da morte será o rei da vida

e o povo pobre será o povo rico

a cruz desaparecerá e os símbolos serão infinitos.

Se o homem continuar a comer os bichos

Os bichos comerão os homens.

A mulher é a terra. O homem, o cosmos.

O homem fecunda o ventre da mulher.

Nove meses depois nascem as flores do mais sagrado fruto

da natureza.

O povo estará unido em torno do grande pajé,

espelho de Deus.

E os signos conjugados criarão o horóscopo

sem destino.

Querer é poder

e assim guiarei as dozes tribos

em direção ao inferno

E das cinzas do Inferno renascerá o Paraíso.

Do livro Glauber, Esse Vulcão, João Carlos Teixera Gomes, p.519, 1997

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Glauber sobre a China

Glauber sobre a China:

Na China, está acontecendo uma coisa muito importante, uma revisão crítica e dialética do socialismo. Isso abre novas perspectivas históricas para um país que ficou mumificado pela teoria do maoísmo. Felizmente, houve em tempo uma revisão dialética e o povo chinês pôde entrar num barato de uma neocapitalização que não destrói as perspectivas do socialismo, mas abre possibilidades para que o socialismo possa ser feito na paz, na liberdade e no progresso, adotando uma política nova, uma política revolucionária, de todos aqueles que pensam em salvar o povo da fome e da miséria.


Em: A Épica Eletrônica de Glauber, p. 125

Um vídeo de drum´n´bass que atualiza a parte que mais gosto de Terra em Transe:

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Honduras, Terra em Transe

Os brasileiros veem com distanciamento o golpe em Honduras, mas deveriam se lembrar da deposição de Jango em 64, que tem tudo a ver com a de Zelaya. Vejamos o filme de Glauber, não é a da cena que mais gosto, mas:



Uma frase do filme, em homenagem a Honduras e ao meu amigo poeta Fabrício Estrada:

"Nós precisamos resistir, resistir...e eu preciso cantar!

EU PRECISO CAAAANTAR!"

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Glauber X Jorge Schweitzer

Eu gostaria de falar sobre o equívoco que Jorge Schweitzer comete em igualar Glauber com Duda Mendonça no seu Táxi em Movimento (taxiemmovimento.com.br), mas deu preguiça.

Acho fútil. Duda, publicitário, opiniático desde sempre, queria pagar a dívida externa, publicitário dando pitaco em política e comprometido financeiramente, inclusive, vide mensalão.

Glauber sempre frisou o outro lado, ou seja, era contra pagar a dívida, contra o imperialismo.

Ah, jornalistas à la Azevedo/Mainardi...tantas vezes cafetinando a verdade. Cafetinar a verdade pelas ruas do Rio, grande bordel do Terceiro Mundo: tarefa inglória.

Falando na Abril, Jorge se baba: eles estão chupando as pautas do seu Táxi em Movimento.

Inveja da interlace? De um implante capilar?

Queria ser colunista na Veja? Não, queria colocar a cabeça de Schweitzer na bandeja como numa peça do teatro do absurdo.

Mas, claro, para falar bobagens: ele descobriu Glauber agora, graças a um amigo do Reinaldo Azevedo e seu ex-amigo: daí que ele não quer entender.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Diogo Mainardi X Glauber Rocha: Maranhão 2009

O Diogo agora implicou com o Maranhão 66, do Glauber, que ele acha favorável ao Sarney. Diogo, não "intertrepa" errado de novo, não!

Muito curioso Arnaldo Carrilho virar esquerdista modelo! Na biografia do João Carlos Teixeira Gomes, ele é extremamente crítico em relação a todo mundo que aparecia no enterro de Glauber. Ele os chama de esquerda festiva em espetáculo de mau gosto, ressaltando a solidão de Glauber no ato de montar Idade da Terra. E eles são Jabor, Zé Celso, Barreto, etc. Insinua mesmo que todos estavam, como se diz na gíria estudantil, "trepando no cadáver". E na biografia está escrito que Glauber ria do azedume de Carrilho com relação a Roland Barthes e Foucault.

Claro que o Sarney e quem é amigo dele tem direito a dizer que o filme é favorável a quem o financiou. Mas esse foi um caso anômalo de documentário encomendado que virou obra de arte. O choque entre o discurso floreado e as imagens de miséria no sertão é crítico em 66 e hoje com a miséria provocada pelo aquecimento global. Porém, acho salutar o Diogo comentar o Glauber. Ele tá de parabéns. Ele precisa mesmo se digladiar com um adversário de verdade.

DO PERSONAGEM
“Tomava eu posse no Governo do Maranhão e fiz uma ousadia que não deveria ter feito com um amigo da estatura de Glauber Rocha. Eu lhe pedira que documentasse a minha posse. Glauber fez o documentário que foi passado numa sala de cinema de arte, há 15 anos. E quando o público viu que numa sessão de cinema de arte ia ser passado um documentário que podia ter o sentido de uma promoção publicitária, reagiu como tinha que reagir. Mas aí, o documentário começou a ser passado, e quando terminaram os 12 minutos o público levantou-se e aplaudiu de pé, não o tema do documentário mas a maneira pela qual um grande artista pôde transformar um simples documentário numa obra de arte: ele não filmou a minha posse, ele filmou a miséria do Maranhão, a pobreza, filmou as esperanças que nasciam do Maranhão, dos casebres, dos hospitais, dos tipos de ruas, e no meio de tudo aquilo ele colocou a minha voz, mas não a voz do governador. Ele modificou a ciclagem para que a minha voz parecesse, dentro daquele documentário, como se fosse a voz de um fantasma diante daquelas coisas quase irreais, que era a miséria do Estado”.

Senador José Sarney, no Jornal do Brasil, (Rio de Janeiro, 25 de Agosto de 1981).



Vejam o filme e tirem suas próprias conclusões.





Se Glauber estivesse vivo, acho que seria direto: diria algo como: fazer filme no Brasil é mais difícil que escrever na Veja: Mainardi, sua coluna é uma MERDA!

terça-feira, 26 de maio de 2009

O Itamaraty de Celso Amorim

O Itamaraty de Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães

por Gilberto Felisberto Vasconcellos



Itamaratizão... ironizava Darcy Ribeiro. No período Collor foi um puteiro pop; em seguida lobby de privatização internacional do território para FHC descolar prendas honoris causa no exterior. Agora o presidente Lula acertou na escolha de um patriota, nacionalista, culto, idôneo, intelectual conhecedor da história do Brasil não só do ponto de vista econômico, mas estético.

A ALCA não passará! Los gringos no passaron com a ALCA!

Tiremos o chapéu para o chanceler Celso Amorim. Nascido em Santos, a cidade do patriarca José Bonifácio de Andrade e Silva que viu cinema, estudou e meditou sobre o bom, recusando o “bad movie” pornochique. O jovem Amorim fez a cabeça lendo o filósofo húngaro marxista, Georg Lukàcs, sendo mais tarde influenciado por Glauber Rocha, de quem foi amigo e sobre quem escreveu coisas profundas, tal qual João Carlos Texeira Gomes, o biógrafo do cineasta na versão barroca revolucionária que o diferencia de outros cineastas. Para Celso Amorim, o cineasta queria “abarcar a totalidade do universo”. Essa é a bela ambição estética de cada filme seu a refletir o que é o Brasil dentro do cosmos. É isso o que tece o diálogo glauberamorim na "nova new geopolítica” materializada em A Idade da Terra (1980), o filme da fotossíntese vegetal, assim como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) indigitava onde havia petróleo na Bahia. Cinematograficamente ele experimentou todas as etapas energéticas. Barravento. Montagem nuclear. A estesia cinematográfica da biomassa energética. Em A Idade da Terra Celso Amorim teve participação criativa na montagem. Eu lembro seu artigo de 1980 destinado aos intelectuais. Glauber insistiu para que Lula visse A Idade da Terra, a obra prima do século XX sobre o imperialismo, “a tirania decorrente da dominação estrangeira”, segundo Amorim. O nacionalismo do cinema novo repercutirá no Itamaraty de 2003 com Samuel Pinheiro, para quem a periferia é o centro do mundo, insurgindo contra a peste resignada da sociologia cepalina até o Cebrap, a justificação ideológica do inexorável domínio anglosaxônico, no qual o eminente Celso Furtado foi tragado por Wall Street: a história começou na Grécia e acabou nos Estados Unidos!

Samuel Pinheiro consignou o verdadeiro desígnio da política externa: “A América do sul é a circunstância inevitável, histórica e geográfica do Estado e da sociedade brasileira”. Como dizia Oswald de Andrade, é a América do sol situada no trópico úmido. A política externa com uma matriz energética e tecnológica adequada à natureza física do país, a qual ainda não foi dimensionada pelo governo Lula, pois este recusa o ideário da escola da biomassa energética preferindo repercutir a melancólica alienação da Cepal, ou seja, a concepção equivocada da tecnologia como variável externa, pacotes tecnológicos agregados fora do país, o que hoje corresponde ao truque de substituir o desenvolvimento social e econômico pelo combate assistencial à pobreza e à fome com teologias caridosas da má consciência.

Samuel Pinheiro mostrou o ardil sociológico feagaceano - “país injusto” e não “país subdesenvolvido” - que colocou em nosso peito a culpa exclusiva pela miséria. Os brasileiros somos culpados. A culpa mora é dentro de casa. Triste é a substituição do príncipe da moeda pelo príncipe da esmola. A esmola como o antídoto do desenvolvimento. A substituição da miséria da filosofia pela filosofia da miséria. O sacolão da caridade foi criticado pela “estética da fome” glauberiana desde 1965. O grande lance é erradicar a pobreza, e não governar para pobres.


http://onacional.zip.net/arch2005-09-01_2005-09-30.html


Gilberto Felisberto Vasconcellos é doutor em sociologia pela USP e professor na Universidade Federal de Juiz de Fora.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Blackout

Blackout (Magazine, O Tempo, 17/11/99)

Estou compilando alguns textos e encontrei esse recorte de jornal intitulado Blackout (2). Foi uma participação minha na seção blequitude, coluna do poeta e jornalista Ricardo Aleixo.
Ele transcreveu uma carta minha, mandada por e-mail, numa fase em que eu estava particularmente tomado pela influência dos filmes e textos de Glauber Rocha. Ele reproduziu, com muita honestidade, a carta na íntegra, o que me deixou muito feliz:

Meu caro Rick: Pra começo de conversa, que papo é esse de brankolandya? Tomara que você não diga, como o autor de ´From Coal to Cream´, que no Brasil não há democracia racial, pois os EUA é que são um ´melting pot´...um cadinho de raças...Que coisa! Mas se o afro-norte-americano protege os valores nacionais, por que você não faz o mesmo? Por que segue a lógica do mazombismo? Mais respeito com o mestre de Apipucos! Ele realizou o primeiro congresso afro-brasileiro e sua visão incluía a todos. Por falar em exclusão, por que você nunca combateu Paulo Francis, que escrevia aí no jornal? Medo de se indispor com a Casa Grande de Toninho Siúves? Pelo contrário, você se referiu a Paulo Francis como um interlocutor ameno, que confirma o que você diz...Bem que o Glauber dizia que essa coisa de Black Power é o programa do departamento cultural da CIA para o Brasil. Na sua coluna só cabem Caetano, Haroldão, a patota,o ambivalente “Gargalito” e os medalhões de sempre. Cadê os índios e seus festivais na Serra do Cipó, companheiro? Bem que o professor Fábio Lucas falou que essa moda de separar tudo em guetos é só modismo estrangeiro, segmentação de público consumidor...Olha, tá reclamando do Brasil? Tou achando que és agente da ´Blekland Yankee!´.

Logo em seguida, tentei manter contato com o Ricardo, mas ele disse preferir manter distância (entendo suas razões, essa carta foi mesmo agressiva). Em seguida, também, ele citou o professor Fábio Lucas aprovando sua coluna (o Fábio deve ter entrado em contato para dizer que não tinha nada a ver com o ataque e que aprovava o Rick).

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Gênio da Raça

IstoÉ, 2/9/1981

ZUENIR VENTURA

Histórias de Glauber Rocha, o artista das metáforas. De sua infância inquieta às turbulências políticas, do desencanto estético à morte patética, inexplicada

Quando subiu ao céu, no sábado, dia 22, Glauber Rocha com certeza terá gritado: "Foi um complô da CIA e da KGB. Me mataram, São Pedro!" Todos devem ter rido, como se ria sempre que o cineasta repetia acusações desse tipo. Ou quando garantia que ia morrer aos 42 anos. Ou quando advertia a mulher contra agosto, "mês das grandes tragédias brasileiras, vide Getúlio". Ou quando acreditou na abertura porque o ex-presidente Geisel era, como ele, protestante. Polêmico e escandaloso, Glauber, que filmava, escrevia e falava por metáfora, além de lançar nas telas as desvairadas, geniais imagens que costumava criar, podia ter visões ampliadas da realidade – o que, no cinema, lhe dava a merecida fama de gênio e, na vida, a lenda de louco.

Supersticioso e profético, Glauber Rocha mais uma vez pode ter enganado as aparências: morreu aos 42 anos, foi enterrado um dia antes do dia da morte de Vargas e dois dias após o aniversário de Golbery, o "gênio da raça", como dizia. E, ao que tudo indica, não há tanto absurdo no que teria dito a São Pedro. Se é improvável que tenha havido um complô, é possível que o cineasta tenha morrido em conseqüência de uma conjugação de imperícia e negligência médica. Glauber pode ter chegado ao Rio praticamente morto por falta de um tratamento adequado em Lisboa.

Ás 19 horas da última quinta-feira, dia 27, o médico Pedro Henrique de Paiva, que uma semana antes recebera Glauber desenganado, no Aeroporto do Galeão, reuniu uma centena de colegas na Clínica Bambina, no Rio, para formalizar uma denúncia: o relatório "estritamente confidencial" dos dois médicos que o trataram no Hospital CUF, de Lisboa, comprovaria que "houve imperícia, mais do que negligência", no tratamento de Glauber. Amigo do cineasta, e seu médico nos últimos quatro anos, Paiva baseou-se nos seguintes pontos:

Apesar de três dias de internação em Sintra e dezoito em Lisboa, com vários exames e radiografias feitas, "não houve formação de diagnóstico de certeza", isto é: não se soube nunca ao certo o que Glauber tinha. Foi tratado a princípio como tendo pericardite, depois tuberculoso, depois câncer. Enquanto isso, germinava um processo infeccioso que nos últimos cinco dias devastou o organismo do doente.

Glauber viajou doze horas sem acompanhamento de um médico – só de um enfermeiro – e, mais grave, sem tomar soro ou oxigênio. Ao chegar, às 7h20m de sexta-feira, dia 21, teve que ser levado para o posto de atendimento do próprio aeroporto, onde lhe foi aplicado soro e uma dose de cortisona. "Seus lábios eram uma crosta", informa Paiva. "Ele estava completamente desidratado. Se não aplicasse aquela medicação de emergência, ele não chegaria ao hospital – ou chegaria morto. Aliás, ele chegou ao aeroporto praticamente morto."

Parco em certezas médicas, o relatório dos médicos portugueses não economiza insinuações. Por exemplo: o agravamento da doença é atribuído à ingestão de drogas no hospital. Paiva acha que a alegação, classificada de "infamante" e "policial" pelos amigos do cineasta, pretende desviar a atenção do que importa. "Os médicos que o atenderam não conseguiram descobrir o que Glauber tinha".

Glauber deveria voltar ao Brasil na sexta-feira, dia 21, mas sua mulher, a colombiana Paula Gaetán, conseguiu antecipar de um dia o embarque. É ela quem conta: "Às 3 da tarde de quarta-feira, 19, cheguei ao hospital e vi o olhar de Glauber estranho, apagando, como se não estivesse me vendo. Resolvi que ele deveria vir naquela mesma noite. Telefonei para o cônsul Félix Faria, mas ele soube que o avião de quarta-feira não tinha os equipamentos médicos necessários. Marcou então a viagem para o dia seguinte, quinta. Os médicos continuavam insistindo em que ele deveria ficar lá porque faltavam ainda algumas análises, mas não conseguiam explicar aquele olhar estranho. Diziam que era 'prostração'. Quando pedi que viesse um médico conosco, disseram que não havia necessidade e indicaram um enfermeiro. Ninguém sabia que ele tinha septicemia".

Já no domingo anterior, dia 16, quando o cantor e compositor Fagner, que também se encontrava em Portugal, retornou ao Brasil, Paula tentou convencer Glauber a vir junto. "Mas ele estava muito feliz", conta ela. Tinha muitos projetos e convites: de Nova York, Londres, Escócia, San Sebastian, Biarritz e Marrocos. Entre os projetos estava um filme sobre Napoleão, através de uma leitura, se assim se pode dizer, de Lampião. Outro projeto era a ópera "O Guarani". "Ele pensava tirar todas as cadeiras do Municipal e fazer ali uma floresta cheia de índios. Fagner seria o Peri", diz Paula.

Da hora da chegada até a hora da "morte cerebral", às 4 horas madrugada de sábado, dia 22, Glauber não chegou a ter momentos de lucidez: teve apenas, como diz seu médico, "percepções de realidade". Gozou a elegância do produtor Luís Carlos Barreto. Estranhou quando Paula, para testar o seu grau de consciência, informou que Cacá Diegues estava com Nara Leão no quarto. "Mas se eles estão separados...", disse. E às 7 horas da noite, antes de entrar em coma, perguntou: "Pedro Henrique, eu vou morrer?" O médico mentiu.

A primeira providência de Paula Gaetán, viúva, foi recomendar que o caixão ficasse aberto. "Quero que todo mundo olhe o Glauber morto. Ele vai ser velado como um dos maiores homens do Brasil". (Depois ela me diria: "Vi muita gente olhando o corpo com grande complexo de culpa".) Outra recomendação transmitida por Cacá Diegues era que as coisas não se tornassem "morbidamente tristes". Não foram. Houve até momentos engraçados, como o início do enterro. Ao ver o caixão sendo levado por uma Kombi preta, fechada, Luís Carlos Barreto correu e gritou: " Pára aí, Glauber vai ficar p... da vida". Gustavo Dahl, outro dos numerosos cineastas presentes, apoiou: Deixa ele ir pegando sol". O caixão foi então passado para uma caminhonete aberta.

Nas 24 horas entre a morte e o enterro, três imagens impressionavam: a contida serenidade de Paula Gaetán, a mulher, a inconsolável dedicação de Norma Bengell, a atriz, e o dilaceramento desespero de Lúcia Andrade, a mãe – que orava, cantava e chorava o último dos seus três filhos. O velório de Glauber Rocha foi o derradeiro espetáculo dirigido por Glauber Rocha. Como num filme dele, tudo foi improvisado. O Museu de Arte Moderna, escolhido a princípio para a exposição do corpo, foi logo abandonado porque ia parecer reedição. Lá Glauber filmara, com grande escândalo para a família do morto, o seu premiado "Di", sobre o velório de Di Cavalcanti.

O Parque Lage, sugerido em seguida por Aloísio Magalhães, secretário da Cultura do Ministério da Educação, pareceu o lugar ideal. Ali Glauber filmara, em 1967, "Terra em transe", transformando o pátio interno neoclássico em Palácio Alecrim, sede do governo de um país chamado Eldorado. Na noite do velório o pátio virou cinema e até as 3 horas da madrugada pôde-se ver vários filmes de Glauber, inclusive uma incrível entrevista filmada. Na tela o Glauber vivo – incômodo, corajoso, provocador – girava a sua metralhadora contra tudo e todos: "Todos os diretores do Cinema Novo me traíram". Na platéia, chorando ou segurando o choro, encontravam-se todos os diretores do Cinema Novo. Atrás, a poucas metros, o Glauber morto, com uma serenidade no rosto jamais vista. Não havia dúvida: era tudo um filme de Glauber Rocha. Aquela confusão de ficção e realidade não podia existir de outra maneira.

Com a morte de Glauber, o Brasil perde o maior agitador cultural depois de Oswald de Andrade e possivelmente um gênio. Há um ano, quando seria mais fácil falar mal dele, houve um jantar na casa de Maria Clara Mariani, filha do banqueiro Clemente Mariani, em homenagem a Violeta Arraes, irmã do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes. Glauber não compareceu, mas foi servido como tema na mesa em que estavam Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gustavo Dahl, Hélio Pellegrino, Arnaldo Jabor. Discutiu-se, e na sobremesa saboreou-se um amplo e irrestrito acordo: se existia algum gênio no Brasil, ele era Glauber Rocha. "Ele é", proclamou Dahl, "maior que Villa-Lobos, maior que Portinari, só comparável ao Aleijadinho". Jabor completou: "Ele nos resgata a todos". Pellegrino surpreendeu: "Ele é um provocador. É um parteiro da verdade". Caetano apoiou. "Ele está certo. Quem tem que ser moderado é político. Até para que nós, artistas, possamos ser radicais". E no entanto, todos daquela mesa, como de resto de muitas outras onde se sentam intelectuais ou artistas, já tinham sido criticados, denunciados ou acusados publicamente por Glauber.

Já em fins da década de 50, quando Glauber ainda não tinha nenhum filme importante – seu primeiro longa-metragem, "Barravento", é de 1962 – e quando o Cinema Novo dava os primeiros passos, seu criador, Nelson Pereira dos Santos, dizia que o movimento na verdade não existia. "O Cinema Novo só existe quando o Glauber está no Rio." Daí até a morte, muitas coisas na cultura brasileira só existiram quando Glauber estava por perto. Com um filme como "Deus e o diabo na terra do sol", que está sempre entre os dez melhores de todos os tempos, numa seleção feita pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, outro como "Terra em transe", que tem treze prêmios no estrangeiro, e um carisma que transformou em seus fãs monstros sagrados como Buñuel, Godard, Pasolini, Rosselini, Bertollucci, Orson Welles ou Fritz Lang, Glauber foi até a morte o nosso artista mais importante - e o mais irritante.

"Mantenho essa espécie de chama para não aceitar o conformismo como lei", justificava-se. E admitia que não queria que a razão interviesse. "É uma forma de liberar Deus e o Diabo ao mesmo tempo. Solto os meus demônios interiores para cima do mundo. Não quero que eles habitem em mim". Se essa língua solta ou – para usar o seu psicanalês – essa "desrepressão das pulsões interiores" pôde, no plano da arte, criar obras-primas, no plano da convivência política atraiu para ele mais inimigos à esquerda do que à direita.

Graças ao mais famoso de seus pronunciamentos – ou prenunciamento -, Glauber acrescentou à fama de louca a de profeta. Na área da cultura foi o primeiro a enxergar a luz no fim do túnel, como se dizia na época. Em 1974, ainda na Europa, mandou para mim, na revista "Visão", uma entrevista apostando na abertura do general Geisel, apoiando os militares e classificando o general Golbery de "gênio da raça", ao lado de Darcy Ribeiro. Quando recebi a carta-entrevista, relutei em publicá-la. Achei que Glauber estava realmente louco e ia ser linchado, politicamente. Foi Cacá Diegues quem me convenceu da publicação, contra a opinião dos que, muitos, achavam, para variar, que não era a hora.

As reações a essa declaração correram o mundo através de moções e manifestos de repúdio distribuídos em congressos e festivais internacionais. Em várias línguas, Glauber foi acusado de ter aderido ao sistema e ter-se vendido ao governo. Houve até quem anunciasse o preço: "O Jaguar", queixava-se Glauber, "chegou a publicar no 'Pasquim' que eu tinha recebido 6 milhões de cruzeiros do Ney Braga (então ministro da Educação) para filmar passeatas para a polícia". Darcy Ribeiro acha que, da mesma maneira que a esquerda brasileira foi incapaz de compreender a obra de Gilberto Freyre – "dez vezes mais importante do que a de Euclides da Cunha" – não teve sensibilidade para perceber que Glauber nunca foi um cínico. "Ele não tinha pele, só carne exposta."

Um dos exemplos dessa capacidade de sofrer fisicamente os males do país ocorreu quando morreu o ministro Petrônio Portella. Vendo na morte do articulador da abertura uma metáfora do fim da distensão, Glauber adoeceu. "Civicamente deprimido", como alegou, internou-se numa casa de repouso em Itatiaia durante duas semanas.

Apesar de dizer que seus filmes eram sempre de esquerda – "A esquerda sou eu", costumava gritar – suas relações com os comunistas oscilavam muito. O primeiro prêmio que recebeu, por "Barravento", foi da Checoslováquia, e um dos maiores elogios, por "Deus e o Diabo", foi de Che Guevara, que classificou o filme de "tão importante para a América Latina quanto o 'Dom Quixote' é para a Espanha". Em compensação, em 1964, esse mesmo filme, candidato mais forte ao grande prêmio do Festival de Cannes, perdeu para o saltitante "Guarda-chuva de Cherburgo". A escolha foi decidida pelo presidente do júri, um soviético que ficou chocado com a violência do filme, "muito subversivo".

Quatro anos depois, "Terra em transe" obteria um prêmio em Cannes, mas provocaria grande reação na esquerda carioca. O filme escapou das mãos da polícia, que tentou apreendê-lo, mas não das ferozes patrulhas culturais da época. Fernando Gabeira, em debate público, chegou a sugerir que o filme, por ser "fascista", fosse queimado, pois um personagem dizia que tinha "fome de absoluto". Glauber não tinha queixas de Gabeira por isso. Mas acusava o ex-guerrilheiro de, quando estava em Cuba, tê-lo denunciado ao governo de Fidel como maconheiro e de, em seguida, tê-lo convidado para uma expedição suicida ao Brasil.

"Chegamos a Havana às 3 horas da tarde", contava Glauber, "e às 7 da noite Marcos Medeiros e eu recebíamos no hotel a informação, trazida por um agente cubano, de que Gabeira, cujo codinome era Inácio e o apelido Gabería, tinha-nos entregado como maconheiros". Em seguida, e sem saber do vazamento da informação, Gabeira teria marcado um encontro para propor que Glauber voltasse ao Brasil para assaltar um banco. O cineasta levou um susto: "Essa não é a minha e, além do mais, eu seria morto". Glauber recordava que custou a compreender – até que Gabeira disse, com todas as letras: "É isso aí. A revolução precisa do cineasta Glauber Rocha morto".

Mas atenção. Como costumava advertir Darcy Ribeiro, lembrando o protestantismo de Glauber: "Ele é a Bíblia. Fala por profecia e por parábola. Não vamos interpretá-lo ao pé da letra". Paulo Emílio Salles Gomes, o mais respeitado teórico do Cinema Novo, não teve dúvidas em garantir: "Glauber Rocha é profeta alado. Profeta não tem obrigação de acertar, sua função é profetizar". Glauber não fez outra coisa. A pelo menos duas pessoas – a Paulo César Saraceni em 1961 e a Paula mais recentemente – ele avisou que morreria aos 42 anos de idade. Orlando Senna, um de seus grandes amigos, acha que "essa premonição era tão real que ele se preparou para isso: seu último livro é um testamento". Aliás, a mesma impressão teve Mário Carneiro, o diretor de fotografia de "Di". Quem conta é sua amiga Vivi Nabuco: "Há quatro meses, quando acabou de ler o livro, Mário me disse chorando: Glauber vai morrer".

São intermináveis as histórias de premonição em Glauber. Entretanto a declaração pela qual foi chamado de profeta não era uma premonição. Era do conhecimento de alguns dirigentes cubanos, se não do próprio Fidel Castro. E todos, inclusive o ex-guerrilheiro Régis Debray, teriam concordado com a sua análise que considerava irreversível a abertura política iniciada por Geisel. "Evitei contato pessoal com Fidel", dizia ele, "porque não queria assumir compromissos políticos, mas enviei-lhe um relatório em que explicava a complexidade do quadro brasileiro e o papel que estava reservado a Geisel. Acho que esse relatório contribuiu inclusive para a desmobilização guerrilheira".

Glauber nessa época custava 950 dólares ao governo cubano, que o convidara para realizar um documentário. Hospedado na suíte 1925 do Hotel Habana Libre, com regalias diplomáticas, o cineasta tinha à sua disposição uma grande biblioteca sobre o Brasil. Ali ele encontrou o livro "Geopolítica do Brasil", do general Golbery. "No começo não gostei", me contou ele, "mas logo depois percebi que havia uma questão lingüística: o que ali figurava como anticomunista não era uma crítica ao socialismo, mas ao modelo soviético. E mais: existia ali dentro um projeto de Brasil terceiro-mundista. Era uma carta de navegação para o futuro". Segundo Glauber, os cubanos a princípio ficaram surpresos, mas acabaram convencidos, o mesmo ocorrendo com Arraes e João Goulart. "Por isso", surpreendia-se, "é que não entendi a reação. Quando dei aquela declaração, achei que estava declarando o óbvio".

Quase sempre ampliadas por hipérboles, as imagens de Glauber costumavam ser encobertas por um humor que, quando levado a sério, produzia curiosos curtos-circuitos na comunicação. Antes de embarcar para Veneza, no ano passado, em cujo festival apresentaria "A idade da Terra", estava empenhado numa campanha de Constituinte com Figueiredo, "mas contanto que Figueiredo seja coroado imperador". Seu projeto político previa, além do mais, que a solução para o país só viria quando Golbery e Darcy, os dois "gênios da raça" da entrevista a "Visão", se juntassem: "Eles são a cara e a coroa do mesmo país. Falta ao Darcy a visão militar e ao Golbery a visão antropológica. Além do mais, os dois nomes terminam em y".

Uma piada, mas também uma crença. Glauber não brincava com coincidências. Em 1974, durante o movimento dos capitães portugueses, viajou 50 quilômetros à noite para consultar um vidente. Queria saber se o que estava acontecendo lá não poderia acontecer no Brasil. Mais recentemente, visitou, em Brasília, outra vidente, Tia Neiva, e os dois chegaram à conclusão de que Figueiredo estava montando pouco, daí a crise. "O cavalo de Figueiredo é diferente do Incitatus de Calígula, do Bucéfalo de Alexandre e do famoso cavalo branco de Napoleão", explicava Glauber. "Só ele é capaz de dar o salto tríplice que salvará o Brasil: o salto da saúde, da educação e do trabalho. Se ele der esse salto tríplice, será coroado imperador."

O maior cineasta brasileiro gostava mesmo era de política. Ele esperava fazer 50 anos (havia momentos em que acreditava poder chegar a essa idade) para se dedicar inteiramente à atividade político-partidária. "Se eu quisesse ganhar dinheiro, eu ia ser empresário ou me dedicaria inteiramente à indústria de comunicação", dizia. "Mas eu não quero ter as doenças da burguesia: senilidade sexual e câncer." Às vezes se lamentava por não ter sido lembrado: "É incrível como ninguém me descobriu para a política". Se vivo, ele se surpreenderia mais ao ver que políticos como Golbery, por quem tanto apanhou, não se lembraram de telegrafar lamentando a sua morte.

"A política e a poesia", disse um personagem, "são demais para um só homem". Ainda bem. Fica o poeta. Como ele mesmo costumava dizer, "vão se esquecer do Lênin, mas não do Maiakovski". Exatamente. Da mesma maneira como um dia, talvez, vão lembrar-se de Golbery como uma metáfora, ou melhor, como uma hipérbole do maior cineasta brasileiro – esse, sim, um gênio da raça.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

A Arte Que Cura

A ARTE QUE CURA

Os Últimos Meses de Vida de Glauber Rocha

por Antonio Júnior

Aos que nunca viram nada de Glauber Rocha há que adverti-los duas coisas: por uma parte, que ninguém pode aspirar a compreender o cinema brasileiro se não viu duas ou três obras deste cineasta extraordinário, injustamente etiquetado de “difícil”, “incompreensível”. E, por outro lado, que talvez seja um dos últimos expoentes de uma maneira de filmar personalíssima, irreverente, quiçá “difícil” – note a contradição -, chama esta ainda encontrada em um Jean-Luc Godard ou um Raoul Ruiz. “O problema do espectador na obra de arte é um problema que eu não considero, digo-lhe isto com a maior sinceridade. Porque eu acredito que a obra de arte é um produto da loucura, no sentido em que fala o Fernando Pessoa, que fala o Erasmo, quer dizer, a loucura como a lucidez, a libertação do inconsciente. É por isso que eu não me considero um cineasta profissional, porque se fosse teria que atuar segundo o ritual da indústria cinematográfica. Considero-me um amador, como o Buñuel, alguém que ama o cinema”, declarou pouco antes de morrer, num dos seus arroubos verbais de poderosa vitalidade.

O MUNDO AOS SEUS PÉS

De todos os cineastas brasileiros surgidos no Cinema Novo – Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirzman, Carlos Diegues, Roberto Santos -, possivelmente o mais influente foi o baiano Glauber de Andrade Rocha (1939-1981), especialmente depois da aparição do seu segundo longa-metragem, “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), filmado no mesmo ano do Golpe Militar e considerado um dos dez melhores filmes de todos os tempos pela revista francesa Cahiers du Cinema. Ele eclipsou a todos com sua rutilante celebridade, poesia agreste e personalidade contraditória, ganhando visibilidade internacional com sua aura desordenada e trágica, e abrindo mais recentemente caminho a novos realizadores do cinema brasileiro, como Walter Salles (“Abril Despedaçado”), Fernando Meirelles (“Cidade de Deus”) ou Karim Ainouz (“Madame Satã”). Em poucos anos filma vários curtas - “Amazonas, Amazonas” (1965), “Maranhão 66”(1966) -, publica livros, viaja por inúmeros países, e realiza duas obras fundamentais, “Terra em Transe” (1967) – classificado de “ópera metralhadora” por Jean-Louis Bory, do Le Nouvel Observateur - e “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (de 1969, conhecida na Europa como “António das Mortes”), apresentadas no Festival de Cannes, recebendo com a segunda o prêmio de melhor diretor. Foi o seu auge, e parecia ter o mundo aos seus pés. Na década seguinte, entretanto, sua estrela decaiu como consequência da emergência e triunfo do cinema comercial.

glauber por paula gaitán

A ESTÉTICA DO CAOS

A personalidade particularmente dotada de Glauber para perceber o cinema - ou seja, o próprio mundo -, em toda sua complexidade, se diluiu numa estética alarmante e desconcertante. Radicalizou a idéia de narrar o caos, sustentando que só o caótico sustenta a obra de arte, em um efeito artístico ambíguo que reflete esse mesmo caos iluminado ao fim por uma poética misteriosa, quase redentora. Exilado voluntariamente do Brasil, filma na África (“O Leão de 7 Cabeças”, 1969), Espanha (“Cabezas Cortadas”, 1970), Cuba (“História do Brasil”, 1972) e Itália (“Claro”, 1975). Ele que havia bebido em fontes diversas (Eisenstein, Bergman, Fellini, Visconti) para compor sua lógica, tentando decifrar o Brasil ao filmar o seu avesso, mergulhava de cabeça numa utopia cinematográfica estranha e marcada por contradições, ideológica, política, espiritual e mitológica. “Criticar – teorizar – praticar um cinema revolucionário, histórico – dialéctico e poético (o homem livre de seus fantasmas burgueses) é a única saída”, escreveu em 1975.

A QUEDA

Recusando uma carreira internacional convencional, passa por graves dificuldades financeiras, é ridicularizado no Brasil por seus próprios colegas, escreve para o irreverente semanário “O Pasquim” – num idioma particular com y e k no lugar de i e c – e para vários outros jornais, provocando polêmicas e reações furiosas. Em 1979, no programa “Abertura”, da TV Tupi, na época a mais popular do Brasil, faz entrevistas com grande repercussão. Torna-se uma espécie de profeta, de intelectual que perdeu a razão, e mesquinhamente contam-se casos reais dele caminhando na praia de Ipanema, enrolado num cobertor como mendigo, falando sozinho; conversando com as paredes do hotel, em Santiago do Chile, com um microfone na mão: “Aqui é Glauber Rocha, eu sei que a Cia está gravando, e a KGB também”; das brigas irreconciliáveis com diversos amigos. Em 1979, num último esforço para sair das trevas, vende seu único bem, uma casa, para filmar “A Idade da Terra” em Salvador, Brasília e Rio de Janeiro, com um elenco de estrelas (Norma Bengell, Tarcísio Meira, Antonio Pitanga, Danuza Leão). “Esse filme materializa os símbolos mais representativos do Terceiro Mundo, ou seja: o imperialismo, as forças negras, os índios massacrados, o catolicismo popular, o militarismo revolucionário, o terrorismo urbano, a prostituição da alta burguesia, a rebelião das mulheres, as prostitutas que se transformam em santas, das santas em revolucionárias. Tudo isso está no filme dentro do grande cenário da História do Brasil”, diz no seu lançamento. Quebrando com o cinema teatral e ficcional, numa desintregação da sequência narrativa sem a perda do discurso, o filme é um fracasso de público e é vaiado no Festival de Veneza. Glauber, alucinado, magoado, faz passeata, ofende o júri, ataca de reacionário ao vencedor, o francês Eric Rohmer, prometendo nunca mais voltar ao seu país e sempre defendendo a sua obra: “Busco um outro cinema. Um filme que o espectador deverá assistir como se estivesse numa cama, numa festa, numa greve ou numa revolução. É um novo cinema, antiliterário e metateatral, que será gozado, e não visto e ouvido”.

No final de 1980, o maior cineasta brasileiro do século XX, se encontra em Roma, hospedando-se com Luchino Visconti, e por fim, Paris, acompanhando uma retrospectiva de seus filmes. Sua câmara havia revelado a essência de um país, fugindo da beleza defunta tipo cartão-postal, e pousando na loucura e no desespero, na crueza e nas mazelas sociais. Mesmo assim, aos 41 anos, tinha todas as portas fechadas e vivia numa terrível penúria econômica. Havia visitado Portugal pela primeira vez em 1962. Tentando colocar a cabeça em ordem, resolve viver em Sintra, “o lugar mais bonito do mundo”, como dizia. Leva a esposa colombiana, Paula Gaitán, fotógrafa e atriz, e os dois filhos de menos de dois anos de idade, Ava Patria Yndia Yracema Gaitán Rocha e Erik Arouak. Se define como sebastianista e apocalíptico, e é recebido de braços abertos por dois cineastas, Manuel Carvalheiro e José Fonseca e Costa. É um homem amargurado, decepcionado, com problemas políticos e saúde frágil. Se sentia cansado, doente, visitara médicos em Paris, porém os mais íntimos conheciam a antiga mania de doença do diretor, e nunca levaram a sério sua hipocondria.

glauber por paula gaitán

VIVENDO EM SINTRA

Em Sintra desde 1973, num grande casarão acostumado a hospedar intelectuais e artistas de todo o mundo, o engenheiro de som português Carlos Pinto (São Pedro do Estoril, 1950) recebe um telefonema do cineasta brasileiro, pedindo o seu apoio, “talvez pudesse ficar em sua casa por uns tempos”. “Venha quando quiser”, responde Pinto. Profissional dos mais requisitados, com currículo admirável, Carlos Pinto trabalhava basicamente no cinema francês, filmando muito fora de casa, e ainda não conhecia pessoalmente o autor de “Barravento” (1960). Na época da chegada de Glauber, em janeiro de 1981, filma em África, “Música em Moçambique”, de Fonseca e Costa. Terminada as filmagens, encontra Glauber hospedado no Hotel Central, ocupando todo o primeiro andar de um hotel praticamente vazio. Sua esposa, Paula, de família burguesa, não admitia viver numa casa com estranhos, e o casarão de Pinto, além do próprio, era bastante concorrido, habitado por um psicólogo e uma suiça professora de línguas. Só que a família Rocha não tinha condições financeiras para viver num hotel. A solução foi procurar uma casa para alugar. E encontraram a antiga residência de Ferreira de Castro, ao lado da casa de Pinto, e também um dos escritores favoritos de Glauber, que lera boa parte de sua obra e havia feito um documentário em 1974, desaparecido. “Aqui é bonito. Escrevo diante de uma panavisão sobre o Atlântico camoniano e sebastianista do alto de uma montanha antes habitada por Byron numa linda casa onde viveu Ferreira de Castro. As coisas vão bem, estou feliz no meu feudo à beira mar plantado vendo todos os dias naves partindo na construção do IV Império de Sebastião Ressuscitado...”, anotou no seu diário em 26 de abril de 1981. Eles viveram nesta casa durante três meses, depois mudaram para a Estalagem dos Lobos, perto de Montserrate, e terminaram na própria casa de Carlos Pinto, então já um dos melhores amigos e principal confidente de Glauber Rocha.

Quando este espírito independente, conhecido em todo o mundo por sua intransigência e temperamento apaixonado, chegou no Monte da Lua, era um inverno muito rigoroso. As névoas cobriam as ruelas, as montanhas e os jardins; chovia quase sempre. Sintra era conhecido como um reduto de artistas, de pensadores. Era muito mais forte a marca da passagem de Lord Byron, Hans Christian Anderson e William Beckford, entre outros. Importantes escritores, pintores, escultores, atores, músicos, pensadores ou jornalistas passavam por lá, permanecendo longas temporadas. Neste mesmo inverno Wim Wenders rodou parte de “O Estado das Coisas” na Praia Grande, e o chileno Raoul Rouiz e o moçambicano-brasileiro Ruy Guerra, um inimigo de Glauber, também filmavam nas redondezas. Glauber Rocha, sempre reservado, longe do mundo mundano da jet-set, finalizava “Revolução do Cinema Novo”, uma antologia de textos críticos produzidos entre 1958 e 1980, que seria publicado poucos dias antes de sua morte, e escrevia o roteiro para um próximo filme, “O Império de Napoleão”, planejado para um elenco encabeçado por Jack Nicholson e Jane Fonda, e que já tinha confirmado o nome do gênio Orson Welles, que não receberia cachê, apenas pedia hospedagem confortável e garrafas de uísque.

ROTINA INTELECTUAL & VISITAS IMPORTANTES

Diante da paisagem deslumbrante da vila de Sintra, que Eça de Queiroz já dizia que não há um só recanto que não seja um poema, Glauber redescobria o paraíso. “Me sinto reprojetado nas origens”, dizia. Abrindo os pacotes e malas que o acompanhavam em todas as viagens – cartas, roteiros, textos -, partia para a máquina de escrever, como se estivesse numa dessas terríveis batalhas. Muito disciplinado e rigoroso, acordava na mesma hora, tomava o café da manhã e escrevia até as 13 horas seus textos, roteiro e matérias para jornais. Ouvia Villa-Lobos, estava sempre lendo ou escrevendo, e não gostava muito de visitas, sendo praticamente arrastado por colegas para jantares ou eventos em Lisboa. Mesmo assim, recebia muita gente: cineastas brasileiros e portugueses, críticos de cinema, os escritores Jorge Amado e Zélia Gattai, o ator francês Patrick Bauchau, o produtor Luiz Carlos Barreto, o Presidente (do Brasil) Figueiredo e principalmente o autor de “A Casa dos Budas Ditosos”, João Ubaldo Ribeiro, seu grande amigo e companheiro desde a infância. Porém a maior parte do tempo estava sozinho, em casa. Vez ou outra, passeava pela praça do Castelo, caminhava de mãos dadas com os filhos, lia jornais no Café Paris. Parecia bem, tranquilo, ia almoçar nos restaurantes locais, tomava vinho tinto, fumava haxixe. Certa vez, encontrou casualmente uma turista da Bahia, poderosa Mãe-de-Santo, e emocionado convidou-a para almoçar. Tinha grande respeito pelo candomblé.

CRISES

A depressão também era uma constante no seu cotidiano. “Vim para morrer em Portugal”, disse a Pinto. O amigou procurou animá-lo, confortá-lo, ele era jovem, talentoso, as coisas iriam melhorar. “É o meu coração. Não está bem”, confessou. Se preocupava com os problemas financeiros permanentes, com a política e o cinema brasileiros, não conseguia esquecer a morte trágica da irmã, a fabulosa atriz Anecy Rocha (“A Lira do Delírio”), que caíra no poço de um elevador em 1977; se sentia incompreendido e não aceitava a proibição, pela própria família do retratado, do curta-metragem “Di Cavalcanti” (1976), premiado em Cannes. Também tinha saudades da mãe, Lúcia Mendes de Andrade Rocha, escrevendo sempre para ela, numa ligação profunda. O casamento também ia mal das pernas. A simpática Paula, uma loura de grande cabeleira, sofisticada e inteligente, muito mais jovem que ele, desejava voltar para o Brasil, e mesmo admirando o marido, não entendia seus enigmas. Bela e mimada, não se situava completamente na pele de mãe de família, e ainda mais passando dificuldades. Recebia ajuda dos pais ricos, não acreditava numa suposta enfermidade do companheiro e vivia implicando para que ele superasse suas angústias. Uma crise conjugal educada e silenciosa, ficando visível que algo não funcionava muito bem.

O INCÊNDIO DA CINEMATECA PORTUGUESA

A imprensa deu intensa cobertura a temporada de Glauber Rocha em Sintra, com fartas manchetes e longas entrevistas comuns a uma celebridade respeitada. O cineasta, em eterna preocupação com a preservação das cópias de seus filmes, ficou entusiasmado com o ciclo dos seus filmes anunciado pela Cinemateca Portuguesa, em abril de 1981. O catálogo foi editado, a mídia deu bastante destaque à mostra, e na primeira semana de exibição, durante a projeção de um filme do belga René Aiollo, a sala de projeções pegou fogo destruindo totalmente toda a obra de Glauber. Alucinado, viu como um sinal do fim; foi um golpe mortal. A queda foi instantânea. “A doença, a precariedade financeira e as incertezas me levam a pensar que vivo em Portugal meu segundo e último exílio. Foi o preço que paguei no Brasil pela liberdade artística”, disse. Em julho, Carlos Pinto filmava sob a direção de António Reis, em Trás-os-Montes, e ao voltar encontrou o amigo internado no Hospital de Sintra. Esteve três dias sendo tratado, suspeitavam de uma doença broncopulmonar, talvez uma tuberculose. Pinto se assustou com a sua figura esverdeada e abatida, olhos amarelados, e ao apertar a sua mão, ouviu dele: “Estou com uma angústia”. Transferido para o Hospital da CUF, em Lisboa, melhorou a olhos vistos. Lúcido, brincalhão, recebendo visitas, lendo jornais e vendo televisão, criticando as autoridades e políticos que apareciam: “Esses engravatados não me deixam em paz”. Ainda acamado, recebeu os primeiros exemplares de “Revolução do Cinema Novo”, o que o deixou muito contente. Parecia estar bem, como se tudo não passasse de uma elaborada encenação para ajudá-lo a renascer dos mortos. Paula Gaitán havia mudado com os filhos para o Hotel Tivoli, tirava fotos polaroid do companheiro e seus amigos, circulava por Lisboa com o cantor Fagner, e não parecia ter consciência da gravidade da enfermidade de Glauber. Ele próprio não sabia qual era o seu mal. Os médicos não entravam num acordo, contraditórios. Havia rumores não confirmados de um câncer. Carlos Pinto o visitava todos os dias. “Era um personagem adorável, e a nossa ligação muito profunda”, recorda. Na dia 20 de agosto, após uma série de exames rigorosos, Glauber disse que não gostaria de ficar sozinho naquela noite, pediu que Paula o fizesse companhia. Ela negou, não podia deixar os filhos sozinhos no hotel. “Então você fica, Pinto. E a Paula vai”, decidiu. O amigo disse que poderia ficar sem problemas, mas as enfermeiras não permitiram, pois o horário de visitas era rigoroso, restrito. Glauber estava bem, radiante, conversador como nos seus melhores dias, porém havia algo estranho no ar, uma energia muito forte que tomava todo o quarto. Na mesma noite, sozinho, ele entrou em coma.

MORTE NEBULOSA

No dia seguinte foi levado para o Brasil. Carlos Pinto e José Fonseca e Costa acompanharam o parceiro até o aeroporto, dentro do ambulância. O estado era crítico, Paula estava muito nervosa, e Glauber, mesmo todo entubado, tinha bom aspecto. Ficaram algum tempo à espera do avião. Então Glauber falou, algo incompreensível, sussurrante. O que ele queria dizer? Qual seria a sua mensagem final? Será que não desejava morrer no Brasil? No dia 22 de agosto de 1981, o gênio incompreendido, que lia Nietzsche e Schopenhauer aos 13 anos, morre, e é velado no Parque Lage, no Rio de Janeiro, cenário de “Terra em Transe”, em meio a grande comoção e exaltação. Poucos dias após partir para a Eternidade, seus filmes estariam sendo exibidos em mostras retrospectivas em vários países: Inglaterra (National Film Institute), Estados Unidos (American Film Institute) e França (Instituit Nacional d’estudes Cinematographiques). As causas da morte ainda hoje são nebulosas, fala-se inclusive de Aids. O mais provável é que foi contaminada ao fazer biópsia com equipamento não esterilizado. Segundo D. Lúcia, “Meu filho era famosíssimo e paupérrimo. Não morreu da vontade de Deus, morreu de uma doença chamada Brasil”. Já Glauber, dizia: “Prefiro ser um cadáver a um desses mortos-vivos que andam por aí”. Tinha 42 anos, ele que desde adolescente dizia que morreria aos 42 anos, o inverso de 24, idade em que morreu o poeta Castro Alves, que fazia aniversário no mesmo dia e um dos seus favoritos. Foi-se, carregado por sua mensagem exuberante, valente e lúcida. Se continuasse filmando possivelmente ainda estaria vivo. A arte seria sua cura. Mas não deixaram. Incomodava demais aos medíocres.

glauber por paula gaitán

TODA O CINEMA DE GLAUBER:

1957 – O Pátio (CM)

1959 – Cruz na Praça (CM, inacabado)

1960 – Barravento

1964 – Deus e o Diabo na Terra do Sol

1965 – Amazonas Amazonas (CM)

1966 – Maranhão 66 (CM)

1967 – Terra em Transe

l968-72 - O Câncer

l969 – O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro / António das Mortes

l969 – O Leão de Sete Cabeças

1970 – Cabezas Cortadas

1972-74 – História do Brasil

l975 – Claro

l976 – Di Cavalcanti (CM)

l979 – A Idade da Terra

ENQUANTO FALAVAS DE ANDARA

A propósito de “A Asa e a Serpente” e “Terra da Sombra e do Não” de Vicente Franz Cecim

por Antonio Júnior

Um pouco de chá de jasmim, dois livros, a fumaça de um cigarro. Tenho a certeza que viro o corpo do avesso, derramando sobre os olhos a insônia das palavras. Reconheço-te, poeta do invisível, percebo o lume dum coração antigo e simples. Não existe dia e não existe noite. Existem apenas as luzes de todas as cores que acendem e apagam em cada verso. Uma sinfonia de conhecimentos, fundamentada na espiritualidade vivida à margem da religião. Espiritualidade do imaginário, de ser e não-ser, numa mística com raros correspondentes literários. Há uma respiração oculta, impressionante. Como se fosse uma meditação. As palavras oram, num ritmo lento, e o leitor maravilhado sente cada pausa. Respira a literatura que abre portas para outros céus, intransponível numa abordagem superficial. O realismo é pagão, a atmosfera psicológica levada as últimas consequências, a natureza faz-se luz. Acende-se Andara, o vilarejo enigmático, numa cegante luminosidade, soprando os artifícios do mundo. Território do Nada habitado por mulheres que levitam, Anjos, aves, serpentes e insetos. As vozes das coisas. Ao encontro da intensa chama do sonhado e do vivido, ele imagina o leitor, nos vê. Cada vez mais próximo como se avançasse. Por fim, cintilando sobre o indecifrável, Andara enfrenta a crueldade da vida com dignidade e alguns vislumbres de esperança.

“Talvez invente um final para essa história agora, diz. E o homem ouve. Talvez recorde à medida que for inventando. Não se sabe nunca. Há a memória, esta coisa à noite. Não lembro mais também os nomes. De qualquer maneira, nela, imaginação, há coisas que crescem, fogos enormes, e há o que se apaga. Ou vem mudado de volta, na volta, quando se quer lembrar. Na Memória” (“A Asa e a Serpente”, 1979)

O xamã Cecim voa na oceânica noite da zona sagrada, entre a prosa e a poesia. O seu voo é inexorável, invasor e contínuo, em transe, abrindo espaço entre as sombras. Está muito longe de poetas armados com o vocabulário tradicional, desse algo que se limita a participar na obscuridade e na devastação ambientes. Longe, muito longe, de versos gélidos e estereótipos, roubados ao vazio existencial, cujo fluxo hoje devemos categoricamente recusar. Coisa que não significa necessariamente ficarmos em silêncio. Mas que implica escolhermos as vozes a que desejamos juntar-nos. A escolha de um sentido no mundo atual situa-se dentro de cada um de nós. Sejam quais forem as circunstâncias em que nos encontremos, podemos escolher em nós mesmos a verdade que nos convém. Não se trata de uma escolha entre o bem e o mal. O bem e o mal existem em qualquer caminho. A opção a fazer é entre a intensidade que cada indivíduo pode ter por si mesmo e o caos que em si mesmo admite. A literatura de Vicente Franz Cecim, no silêncio ou na agonia, escolhe um mundo de numerosos sésamos da sedução visionária, de assombro metafísico; vem do interior, do invisível, além das tripas do próprio corpo, da desgraça de existir fisicamente. Os seus versos são rochas, raízes, frutos, terra, mel. Uma viagem que questiona o sentido da própria vida, sobretudo quando este sentido é trágico. Cecim escreve sem temor. Ao fazê-lo, contorna obstáculos, arrisca-se, numa legitimidade azulínea que perturba, desnuda e edifica uma cidade invisível: Andara. Cidade recriada pelo espírito, povoada pelo leitor iniciado que sabe ou quer voar; cidade de talvez outros nomes, de outras coisas ainda inexistentes, pintada da essência do fascinante. Ler “A Asa e a Serpente” e “A Terra da Sombra e do Não” – ambos da editora Cejup, 2004 -, é estar na beira do abismo, entre o corpo e o abstrato, estar no pulsar de certas íntimas revelações.

SOB A LUZ DE SINTRA

por Antonio Júnior

01.

Enquanto existir Primavera no mundo

entraremos no dormitório verde-musgo,

onde poetas de olhos brilhantes,

metade paisagem viva metade névoa,

inquietos e jurando por todas pétalas molhadas,

são o próprio silêncio perfumado de Sintra.

02.

Se um homem chora na noite

e ninguém o vê chorar,

será que lágrimas correm

no seu rosto?

Se eu não sei quem sou

e não sei o que quero

como encontrarei

uma maneira de viver de novo

no malabarismo azul das palavras?

Continuo apagando a luz do medo cada noite

para afastar os demônios

Continuo dormindo de olhos abertos

Para esperar.

Noites e mais noites à espera

da transparência que engana.

Cansado, muito cansado.

Do tédio, das normas, da solidão,

de contas a pagar.

E no inverno é pior.

Há uma apatia primitiva mutilando poemas.

Inteiramente vencido

beijo os pés do movimento imóvel.

Ele lê a minha alma numa lentidão de um salmo.

Abençoada fome.

E há calor. E há vida.

E vou para dentro. Para dentro do enigma.

Ardendo na chama do silêncio até o Anjo.

O Anjo ferido.

O Anjo intocável, púrpura,

ardendo num círculo latejante

que tudo une e separa.

Porque nele reside o êxtase.

03.

São vinte e duas e trinta em Lisboa

e entre elétricos, bolas-de-berlim e ruas estreitas

tenho um irmão deste lado, eu que sou do lado de lá.

Os dias a cada amanhã se inclinam em sua direção

como as árvores se inclinam diante do amanhecer

porque eles não se equivocam:

o meu irmão é um visionário

um apostólo da noite lunar

um abrigo na tempestade

uma flor inclassificável

de perfume honesto e irradiante.

São vinte e duas e trinta em Lisboa

de uma noite de primavera

e enquanto sussurro uma canção anônima

fumo um cigarro e tomo um copo de vinho

apoio-me na agradável sensação

de ter um irmão de antes dessa própria vida,

livre e puro.

E com ele, por instantes recupero a alegria

e me encho de poesia e risos animados.

E ergo-me, assim, vivo e sinuoso,

e brindo a sua loucura doce e luminosa!

04.

Se as melhores intenções

não são inocentes, não se assuste,

é que aprendi a aproveitar ao máximo

os relâmpagos do coração

em sombra e luz

Se não sei muito bem o que eu quero dizer

não espere palavras luzindo

me angustia tropeçar nelas

abrigando-me, total, no ser e do ser,

ultrapassando o estado de expectativas

no mistério muito mais latejante

de palavras não ditas

Há em mim, não sei se é evidente,

uma energia animal à flor da pele

um lado selvagem

um fim de inverno

que desliza sinuoso

na irradiação de gestos alheios,

atento, penetrando olhos de fogo

no enigma, na revelação, no inseparável

De toda maneira, entre a boca e o frêmito,

não há nada que fazer,

a suavidade de tal fascínio

é demasiada revigorante e sacia fomes.

E assim vou, contemplando, toda a visão do ser,

rodeando-o em aparições coloridas e silenciosas.

Sente o sortilégio?

05.

Ando cego.

Nada vejo

ou vejo tudo

como um inútil

e velho filme

repetido inúmeras vezes

na tevê.

O céu, teimoso,

berra um silêncio cinzento

os olhares aguados,

talvez mortos

e as palavras não sabem

ser versos

Ando cego

e quem me guia são os sonhos

um mundo irradiante, azul e verde,

de brisas do mar e de mata tropical:

as árvores falam

os dragões existem

o amor feito de fios de seda –

invisíveis fios

a nitidez, a luz, o fascínio!

as montanhas se movem, caminham

a lua beijando meus lábios

e a poeta, sob o signo da generosidade,

num mar de jasmins,

voa em silêncios

Ando cego

atado a um coração desafortunado

e nada me é mais fundamental

que os sonhos vivos

dando-me a alquimia que faz viver

06.

Eu recordo longe,

um fascínio

à deriva

Este vacilante desejo...lento

Faz muito tempo, um céu, um rochedo,

as palavras sob a lua

sendo devoradas aos poucos

Eu recordo

os cristais

de uma mente poética, olhos, tal como ressurreição

e ao meu redor o perfume de Sintra

Serenamente agora

conto estrelas

uma a uma

Para quem?

Qual o alívio?

Quem me olha ao anoitecer?

De quem é a carne

que me arrasta para

lugares esquecidos?

Eu recordo, longe,

a alegria do mundo.

Tudo o mesmo e outro.

Outro vinho e comunhão.

Você me entende?

07.

Tenho andado a olhar:

quando a lua se veste de pálido

seu rosto é de uma candura luminescente

quando a lua é um espelho

cada uma de suas expressões

são tributos à alegria

E assim és, eterna menina da lua,

figura de um conto de fadas

um pouco do claro azul do dia

um pouco do escuro azul da noite

adornada por flutuantes névoas de luz

tornando todo o conjunto bastante belo

Tenho andado a olhar.

DA LUZ. DAS SOMBRAS. DOS CORPOS

por Antonio Júnior

01.

da luz

vou fechar o livro e morder a luminosidade. trincá-la, com vigor, para que a luz escorra prateada pelos lábios, e um fio de audaciosa cintilânca se cristalize na pele, descendo pescoço abaixo e morrendo no peito, no ponto exato da couraça que protege o coração. acompanhando a trajetória do líquido, o estranho sorrirá, surpreendido, mostrando dentes muitos alvos, e depois de suavemente cruzar os olhos grandes com os meus olhos gulosos fingirá observar a paisagem urbana, vista através do vidro embaciado do comboio. então a sua expressão não será a mesma, dando ideia de deserto junto ao mar, e subitamente, escapando um suspiro ambíguo, serão soprados sentimentos de lírios. uma grande publicidade de neón verde-aveludado surge como visão de sonho. estremecendo, sóis na pele pálida, e sobre o infindável silêncio esculpido entre estranhos, verei outra vez os olhos de resignado poema cruzando com os meus olhos.

02.

das sombras

alargo os passos. a escada rolante sepulta a pressa. devo esperá-lo, fingindo que não o espero, alcançar o exterior da estação como quem tem um caminho a seguir. imitar a vida dos outros passageiros. avisto um céu límpido, de uma claridade opressora. sei que ele me segue. ele, o homem com o livro na mão, sentado no banco esquerdo, ao lado de uma das portas de saída. vi sua língua dura, cheia de saliva, e sem que tenha aberto a boca. também sorriu, de forma sublime, algo imune da crueldade. um sorriso secreto, ofertado, mas sem visibilidade facial. talvez inventasse lírios sobre o meu corpo desnudo. assim o imaginei. uma sombra me envolveu, pensei em levantar e cuspir nos seus desejos. recordei as traições, os desgostos, as mentiras que deixei por onde passei. quem ele pensa que é para estar ali, sentado, inocente como uma nesga de luz na noite? a imobilidade absoluta de sua luxúria mascarada me perturbou. a cada estação perdia referências, não sabia mais do meu destino, para onde me dirigia. de vez em quando olhava com o canto dos olhos os seus olhos, anotando na memória uma insuspeita espera. tive ódio. desci na próxima estação, irritado, febril, em um bairro que não é o meu. ele me segue, sinto o seu cheiro de prolongada eternidade.

03.

dos corpos

mantém o corpo em surdina. algo irá acontecer. na parte mais secreta do jardim do museu senta-se num banco, e abre o livro, sem lê-lo. pousa a mão no sexo, e pensa em fechar os olhos, como quem espera um beijo. a tarde estilhaçava-se em feixes de luz. o outro, sem nenhum gesto óbvio, atravessa o jardim e desaparece entre árvores frondosas. paralisado, ouve atentamente o seu coração. o que irá fazer? qual a atitude a tomar? põe-se em chamas, arde, personagem de um sonho alucinógeno. havia seguido-o desde o metrô, feito pássaro num voo precipitado, pronto para projetar o corpo em um carro em movimento. devagar, contempla o horizonte qualhado de prédios feridos, além do jardim delicado sem ninguém. a intenção era ternamente cumprimentar o estranho, deslizar o olhar no seu rosto aflito, enquanto trocariam palavras de açucenas. daria o número do celular, marcariam um encontro amigável para uma noites dessas, - noites de fósforos iluminando ausências -, e voltaria para casa sorvendo alegrias. nada disso acontece, temem o relâmpago das palavras. o estranho o espera no subterrâneo das folhagens, possivelmente latejando de fulgor, o corpo coberto de minúsculos pontos desassossegados. fotografa a espuma animal. não conversarão. dos corpos agarrados, se extinguindo em gemidos e solidão. e ali, no cio, começará o esquecimento. hesitante, fecha o livro e levanta. espia o silêncio. faz-se tarde. parece anoitecer de repente, e dentro dela um vazio sem dimensão. está só, e alguém espera. o ar cheira a anis. zune o silêncio das folhas e dos insetos. um arrepio percorre o seu corpo que não consegue viver sozinho. inacessível e sem consolo, penetra na fecunda vertigem que engana.

enviada por antonio jr

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segunda-feira, 9 de junho de 2008

Padilha X Glauber: Mentirinhas da Cosmética da Fome

BRAVO!: O que você achou de Tropa de Elite, Meirelles? Fernando Meirelles:
É extremamente impactante. Está toda hora nos jornais, nas revistas. Nunca vi isso acontecer com um fi lme brasileiro. Virou uma referência, o que é ótimo. Compreendo perfeitamente essa idéia de o longa tentar ser neutro, de não se aliar ao protagonista, o Capitão Nascimento, mas também de não o condenar. É o anti- Glauber Rocha. O Glauber era um cara que opinava em cada diálogo, em cada plano. E Tropa de Elite é o oposto. Essa estratégia tem muito mais impacto na sociedade do que qualquer filme que o Glauber fez.

Essa aí, pelo menos, eu acho que é mentira. Tropa de Elite não é neutro, leva o espectador de classe média a confraternizar com o perverso policial Capitão Nascimento. Ora, ora, Glauber não era o caótico dessa história? Então agora ele é linear, fácil de entender?

Meirelles atira em Glauber de olho em Ivana Bentes, que chamou seu Cidade de Deus de cosmética da fome.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Glauber Rocha: Um Intelectual Orgânico

Glauber Rocha pretendia, em seus filmes, estabelecer uma relação amorosa entre o cineasta e a cultura popular. Seu modelo-e isto fica claro no estilo de seu único romance, Riverão Sussuarana-era Guimarães Rosa. Ele buscava neste Brasil agrícola e paleoindustrial uma cultura popular enraizada e vigorosa. E a partir deste mundo que amava ele alimentava seu universo interior-e essa seiva criativa se cristalizou em celulóide, livros, teatro, programas de rádio e TV, artigos de jornal e entrevistas.

Além do cinema, amava a política. Produziu uma frase célebre sobre as relações entre estas duas paixões: “A poesia e a política são demais para um só homem”; ela está em Terra em Transe, é falada no seguinte diálogo, que ocorre nos jardins do palácio de Alecrim:

“Paulo e Sara beijam-se longamente. Andam entre os arbustos:

Paulo

A fome do absoluto

Sara

A fome?

Paulo

Eu tenho esta fome. Vem comigo, não fique com os fanáticos à espera de coisas que não acontecem antes que nos acabemos. Vem comigo, Sara! A vida está acima das horas que vivemos, a vida é uma aventura!

Sara

Você não entende...Um homem não pode se dividir assim...A política e a poesia são demais para um só homem...Eu gostaria muito que você ficasse conosco...volte a escrever...

Paulo

Não anuncio cantos de paz/ Nem me interessam as flores do estilo./ Como por dia mil notícias amargas/ Que definem o mundo em que vivo.

Sara

Não me causam os crepúsculos/ A mesma dor da adolescência/ Devolvo tranqüilo à paisagem/ os vômitos da experiência...

Paulo

A poesia não tem sentido...Palavras...As palavras são inúteis...

Abraçam-se, beijam-se.”

Outra das suas frases foi: “Sou um artista, não me exijam coerência.” E era um apreciador de discursos de político, tendo inclusive o dom da oratória. Seus filmes têm vários momentos que nos fazem lembrar desta sua preferência. Maranhão 66, por exemplo, um documentário, confronta os discursos auto-elogiosos de Sarney com imagens da pobreza e da vida dura do sertão. E foi financiado pelo próprio Sarney.

Glauber, influência de tantos no cinema brasileiro, foi um entusiamado fã de John Ford e Sergei Einsestein. Como escreveu José Cândido de Carvalho em seu livro “Ninguém Mata o Arco-Íris”, de 1972, Glauber “não é de riso facilitado; é mais sobre o triste, sobre o pensativo”; não ria ao assistir os filmes de Chaplin; divertia-se assistindo discursos políticos; aí “em Glauber é tempo de riso”, como disse José Cândido no mesmo livro.

Em matéria de literatura, flertou com Bertold Brecht na adolescência e publicou em jornal o conto “Com os Olhos Armados de ódio”, que chamou de “experimento joyciano”. Admirações baianas: Gilberto Gil, Caetano Veloso, Jorge Amado, Castro Alves. Tinha muito em conta o escritor João Ubaldo Ribeiro e o cineasta Nélson Pereira dos Santos. Entravam na lista: Cristo, Freud e Marx. Gostava muito da obra de Heitor Villa-Lobos, cuja obras aparecem em vários de seus filmes.

Sobre a ressonância da música de Villa-Lobos no cinema de Glauber, José Miguel Wisnik comentou, em artigo no folhetim de 20 de Junho de 1982: “(...) O cinema de Glauber(...) um cinema tão estruturalmente musical-basta ver e ouvir a passagem de O Guarani, em Terra em Transe, onde a música imprime sua coreografia dramática à dança Danusa-Autran-Jardel, tem tudo a ver com isso(as apropriações carnavalizantes das culturas da margem). Ele exacerba gritantemente a contradição do intelectual no ciclo nacional-populista(...)O senador de casaca cai no samba em meio aos passistas e à batucada do comício-passeata-carnaval, as massas(estudantes, operários, demagogos e escola de samba) começam a se deslocar e a câmera se aproxima lentamente do intelectual e da militante colocados no olho-do-ciclone populista, no contraponto entre a farsa e a tragédia, quando começam a soar majestosamente os sons iniciais das cordas da ‘fuga’ das ‘bachianas brasileiras”. Disse o próprio Glauber no Folhetim de 16 de Dezembro de 1979: “O Brasil que vem aí é o Brasil de Villa-Lobos. O Brasil para mim é Villa-Lobos. Se não existisse Villa-Lobos eu não seria brasileiro.”

Nos anos 60, quando Glauber e outros como Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirzsman e Cacá Diegues renovavam o cinema brasileiro e despontavam como criadores, Glauber era, apesar de seu vínculo a esta geração de cineastas, um fenômeno paralelo a ela. Ele foi o único a obter projeção internacional, a ganhar com facilidade prêmios no estrangeiro. Mas a partir de 69 o ar ficou irrespirável para os artistas; o esquerdismo da maioria dos cineastas brasileiros incomodava a ditadura da época; Glauber acabou se exilando; ainda em 69 era criada a Embrafilme, estatal que ficou encarregada de fomentar a produção cinematográfica-mas na realidade acabou servindo também para manter sob liberdade vigiada os filmes brasileiros, cuja realização agora era facilitada contanto que a obra passasse pelo crivo da moralista censura do regime. Porém, uma entrevista dada em 1970 fechou definitivamente para Glauber a possibilidade de voltar para o Brasil da ditadura Médici. Seus filmes estavam proibidos em todo o território nacional e não lhe restou outra saída senão tentar uma experiência internacional.

Nos seus anos de exílio (1969-1976) produziu filmes na Itália, na Espanha, no Congo Brazzaville. Mas estava desnorteado; suas produções foram irregulares em comparação com seus grandes filmes anteriores, de Barravento(61) a O Dragão da Maldade(69). Em 1974 visitou o amigo Darcy Ribeiro no Peru, onde este era assessor da ditadura militar peruana. O general Velasco Alvarado naquela época adotara uma posição “nasserista”(inspirado em Gamal Abdel Nasser, militar e presidente do Egito que nacionalizou o canal de Suez em 1956) e aplicara ao país reformas que tendiam a esquerda. Glauber foi apresentado a Alvarado por Darcy e acabou convencido que os militares podiam mudar de orientação. Voltou ao Brasil em 76 chamando Golbery de “gênio da raça”e apoiando a abertura política ainda apenas prometida por Geisel. Vale a pena constatar que já em 75 o general Alvarado fora deposto e muitos de seus correligioários foram forçados a sair do país às pressas. Glauber sofreu ao aproximar-se dos militares: a esquerda o chamou de adesista, a direita continuou desconfiando de seus discursos. Ficou isolado; já chamara a esquerda brasileira de “estalinista”, estivera na Cuba de Fidel e no Peru de Alvarado em busca de respostas para um regime socialista no terceiro mundo e mais especificamente, no Brasil. Comentou sobre Celso Martinez Correa no folhetim de 16 de Dezembro de 1979: “Inclusive o José Celso no Teatro Oficina não consegue ir ao processo brasileiro na sua integridade.(...) porque no fundo ele tem uma visão sexualista da vida, que é uma visão radical. O materialismo sexual na verdade é uma vulgaridade, uma decadência muito grande. Acho que Black Power, ecologia, campanha contra a poluição, gay-power é o repertório do departamento cultural da CIA no Brasil. Não que os pregadores disso sejam agentes da CIA. São ingênuos que destilam as idéias alienantes dentro do país. Eu não quero conversa com esse pessoal. A contracultura e o rock e toda esta história aí de hippies, butiques, de Carnibal Street é uma transação escrota.” Sobre o socialismo, Glauber comenta: “A estratégia agora é lutar pelo socialismo no Brasil. Como chegar ao socialismo no Brasil sem derramamento de sangue, sem violência, sem conflitos insanáveis com as potências desenvolvidas?(...) Como explicar aos comunistas brasileiros que o comunismo é a liberdade e não o catecismo? Que o Brasil precisa deixar de rezar pela União Soviética? (...) Os comunistas brasileiros precisam se modernizar, tirar a roupa, desbundar, ficarem nus. Nesse lance, o Gabeira está numa boa. Brizola devia vestir um camisolão e descer num caondomblé, fumar um charuto, beber uma cachaça com todo o povo brasileiro. Entrar num barato. Não pode ficar fazendo política no Leblon. Ele tem de botar o escritório político numa macumba. Se ele fizer isso pode ser um ayatolá-babalorixá. Ayatolá é uma visão muçulmana e babalorixá é uma visão da umbanda que é uma visão brasileira.”

Isolado estava em 76, ilhado ficou até 81. Não fazia parte de panelinhas, mesmo porque no seu egocentrismo ele achava que em redor dele é que elas deviam gravitar. Na mesma entrevista de 79 disse: “(...) o pessoal tem de me detestar como esculhambam Jorge Amado, Gilberto Freire, esculhambam Villa-Lobos. Eu sou um grande artista. O Brasil não está acostumado com isso. Eu sou um homem do povo, não sou vaidoso. Digo tudo isso a você para enfrentar a burguesia, não é por explosão de vaidade. Eu poderia ser o sistema, poderia dirigir a Embrafilme, a TV Globo. Boni me telefona para pedir conselhos.” Nesta época o o cineasta parecia estar em processo de mudança, num impasse, no final de um ciclo. Aproximara-se do oficialismo e se tornara passível de receber financiamentos de uma estatal; mas sempre esteve ansioso de ser ouvido de igual para igual pelo governo-e o governo lhe pagava para não precisar ouvir. Enfim, mostrou que era muito rebelde para poder ser aceito-e mesmo pelo público: tratando a estrutura linear de um filme como mera convenção, amargou fracassos de bilheteria com seus filmes Cabeças Cortadas (1970, liberado dez anos depois) e Idade da Terra(80). O seu último filme a ter boa bilheteria fora O Dragão da Maldade Contra O Santo Guerreiro, ainda em 1969. Em seguida, fracassou em Veneza ao perder o Leão de Ouro para Atlantic City, filme do francês Louis Malle. Acabou investindo contra o júri do festival e brigando com o próprio Louis num saguão de hotel. Saiu da Itália derrotado e vagou pela Europa com a mulher e dois filhos, em busca de trabalho. Pretendia ter ganho o Leão de Ouro para assim compensar o prejuízo de dezoito milhões de cruzeiros que teve a Embrafilme ao financiar a Idade da Terra, que rendeu somente 2,5 milhões e foi visto por apenas 23.000 pessoas. O filme é uma busca de uma identidade nacional, “o meu retrato em frente ao Brasil”, definia Glauber. O filme é barroco e nele fervilham as “alegorias do subdesenvolvimento”, e de uma “estética da fome”, em imagens delirantes, onde figuram um Cristo índio (Jece Valadão), John Brahms(Maurício do Valle), Um Cristo Militar (Tarcísio Meira), o Cristo Guerrilheiro e intervenções bombásticas da voz do diretor, como demonstram estes excertos:

“Brasília. Cristo Negro com um quadro, a imagem do Cristo Nazareno. Cristo Negro e a Mulher Morena à beira do lago, a cidade ao fundo.

Brahms: Você é muito feio, rapaz! Você... é feio demais! Você é gay? Você é gay?

Cristo Negro: Brahms, chegou a hora de você ouvir a voz do Terceiro Mundo. Você representa as pirâmides. Nós somos os prisioneiros desta pirâmide!(...) Glauber Rocha (off):(...) No dia em que Pasolini, o grande poeta italiano, foi assassinado eu pensei em filmar a vida de Cristo no Terceiro Mundo.(...) Sobre o cadáver de Pasolini eu pensava que o Cristo era um fenômeno novo, primitivo, numa civilização muito primitiva, muito nova.(...) São quinhentos anos de civilização branca, portuguesa, européia misturada com índios e negros. E são milênios além da medida dos tempos aritméticos e da loucura matemática, que não se sabe nem de onde veio a nebulosa do caos, do nada. Se o nada for Deus, então é muito...É muito rápida a história. É um desespero lisérgico. Já não define nas palavras todas que poderiam definir o sentido da pirâmide. Aqui, por exemplo, em Brasília, este palco fantástico no coração do planalto brasileiro, fonte, irradiação, luz do Terceiro Mundo, uma metáfora que não se realiza na história mas preenche um sentimento de grandeza: a visão do paraíso.

Glauber Rocha(off) (...)Você tem fome? Ele pergunta se você tem fome, você olha para a câmera e diz: ‘tenho’.

Cristo Negro

Você tem fome?

Mulher Morena

Tenho.”

Seu curto documentário de 1976, sobre Di Cavalcanti, acabou impedido de ser exibido pelos indignados parentes de Di. O filme dura apenas quinze minutos, tem um narrador apocalíptico e imagens que se contentam em mostrar a si mesmas, simplesmente-e a mostrar o fim de Di Cavalcanti. Este documentário a uma das duas obras cinematográficas produzidas por ele entre 76/81. A Idade da Terra surgira em rascunhos de 1977.

Depois do fracasso em Veneza, viajou pela Europa com a mulher e dois filhos, derrotado e em busca de quem quisesse financiar seus novos projetos. Passou por Paris e se estabeleceu em Portugal, onde sua saúde já frágil piorou. Elaborava, nesta época, uma peça teatral sobre João Goulart e o golpe de 64, e tentava mostrar o momento épico que foi a derrubada de Jango, aquela grande derrota sofrida pelo povo-e mostrar que o Brasil é uma vertigem, um delírio causado por uma febre tropical e que Jango foi um “cavaleiro do caos”. Nunca teria oportunidade de montar esta peça. Foi visitado por Jorge Amado, Fagner e João Ubaldo Ribeiro, estando já internado no hospital; este último escreveu uma crônica para o Globo, publicada em 16 de Agosto de 1981, contando que Glauber delirava, gritando para a enfermeira slogans do Ponto Frio Bonzão.

Numa melhora, da clínica em Lisboa enviou para o jornalista Paulo de Tarso um bilhete onde falava de “uma reportagem nova sobre minha pneumonia, tuberkulose e kanzer. Mas kanzer não mata! Karetas, com Raul Cortez na capa é genial, e devemos seguir por aí...publique meu diagnóstico, feliz!”Na clínica no Brasil, chegou acompanhado de um enfermeiro com um balão de oxigênio, mas sem o soro. Apesar de ter tomado muita àgua na viagem, chegou ao Rio desidratado. Passou a manhã perguntando pelos amigos, agonizou à tarde e morreu na manhã do sábado, dia 22 de Agosto de 1981.

O diagnóstico de “broncopneumonia”como causador da morte de Glauber, segundo os médicos portugueses, foi inexato. Eles garantiam ter indiciado “forte presunção de doença grave subjacente à pneumonia”-e citavam “fatores exógenos” que estariam debilitando o paciente. Suspeitavam de um câncer ou do uso de drogas. Mas ninguém, nem seus parentes ou amigos, preocupou-se em explicar tais suspeitas. E mesmo sua nota de falecimento não falava da septicemia generalizada do sangue, o que de fato o matou.

Este mistério serviu para alimentar o mito. Como dizia Carlos Augusto Calil em 85, quando da publicação dos Roteiros do Terceyro Mundo: “Mais tarde, Glauber viria demonstrar que não era cineasta sertanejo, porque nascido no sertão, e nos reafirmou sua vocação de poeta do político com a Terra em Transe. Assumia, talvez sem o querer, o papel de guru de toda uma mocidade que, imantada pelo poderoso magnetismo glauberiano, elegeu o cinema como meio privilegiado de professar a esperança redencionista no plano social e de alcançar o êxtase estético.(...) Foi difícil a aceitação de nossa maturidade, que nos mostrou o crescente desprestígio social e intelectual do cinema; mais difícil foi a convivência com o profeta, a bradar o seu ‘açoite épico’ para fustigar a nossa má-consciência. Sua morte, aparentemente planejada, representou alívio para todos, inclusive para Glauber que não tinha mais como avançar, sem recuar.” Mas melhor que mitificá-lo é valorizar suas obras, que muitas vezes são esquecidas em função das polêmicas que o genial baiano protagonizou. E assim Glauber acaba virando uma unanimidade de cemitério, um cineasta ilustre, mas autor de filmes que ninguém assiste. Mesmo muitos de seus amigos que o enterraram em 23 de Agosto não tinham assitido Terra em Transe. E enterraram o cineasta reclamando que o país não dava importância à sua obra...E depois a Embrafilme criou o slogan anunciando a exibição de Idade da Terra: “Preste uma homenagem a Glauber, veja seus filmes”. Morto o rebelde, já se podia chamá-lo de gênio sem que ele devolvesse a genialidade e a burrice, como disse uma vez a seus críticos. Morto só tem virtudes, e agora os conformistas podiam render-lhe homenagens à vontade, secretamente aliviados. A morte de Glauber marcou o início do fim de uma era; o cinema nos 80 seria dominado por um cinema em que o produtor tinha às vezes mais importância que o cineasta, colocando para escanteio o cinema de autor e os experimentalismos ainda presentes nos anos 60/70. Hollywood se revigorou com Spielberg, cujos filmes conseguem enormes bilheterias, devolvendo ao cinema uma glória que ele só tivera até nos anos 50. Só que por aqui o cinema nacional foi devastado pela recessão a partir de 1982, pela concorrência com TV e vídeo, o filme estrangeiro entrando no país a baixo custo, a burocracia da Embrafilme e a emergência de um público preconceituoso, deseducado com a enxurrada de pornochanchadas dos anos 70 e pior ainda, o fechamento das salas de projeção. Os cineastas brasileiros, desorientados estética e politicamente, fizeram tentativas de criar filmes diretamente para a TV, tendo resultados pífios. Os diretores ligados ao cinema novo, que faziam filmes sem se preocupar muito com a bilheteria, passaram a ter pouco o que fazer, poucos interessados em suas obras e poucos lugares onde mostrar suas idéias. Para agravar um pouco as coisas, em 1990 Collor acabou acertando a sua “única bala na agulha”no cinema brasileiro-e na cultura brasileira em geral, com a qual praticou uma verdadeira política da terra arrasada. Talvez devido ao apoio maciço da comunidade artística à candidatura petista. Ou, quem sabe, por pura vergonha de ser brasileiro.

A vida e obra de Glauber antes de tudo precisam ser vistas como amostras das grandezas e misérias do Brasil, e principalmente, demonstrações concretas da necessidade de um cinema brasileiro autêntico. Caso contrário o brasileiro continuará a ser um “narciso às avessas”, como dizia Nélson Rodrigues: um cidadão que cospe apaixonadamente na própria imagem.