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domingo, 31 de janeiro de 2010

Q para mim sê pré

quinta, 28 de janeiro de 2010, 08h15
Q pra mim sê pré...

Sírio Possenti
De Campinas (SP)

Uma amiga perguntou se eu tinha visto comentários sobre uma frase da Dilma Roussef (Pra mim sê pré, tenho que passar pela convenção do PT). Indicava um endereço, que fui visitar (http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/direto-ao-ponto/dilma-o-eu-e-o-mim/ ). Lá encontrei o seguinte comentário, logo após a citação do começo da fala da ministra:

Para por aí. Não interessa o que vem depois ("...tenho que passar pela convenção do PT"). Esse "Pra mim sê pré" poderia ser, quando nada, a mais curta e cruel (contra seu autor) frase internada no Sanatório. E, se eu tivesse tempo e interesse, seria o título, o mote e o resumo de uma longa tese de mestrado sobre o mais absoluto e chocante equívoco político da história de nossa República.

Imaginei que o "comentarista" diria que o equívoco político consistia no fato de Dilma ter dito que, para ser pré (candidata), teria que passar pela convenção. Ora, depois da convenção, ela não será mais "pré" - será candidata ou não. É "pré" exatamente antes da convenção. Isso mostraria que ela não conhece o jogo eleitoral, as etapas de uma candidatura etc. Mas logo vi que não era isso. A questão era mesmo gramatical. E que, portanto, eu estava diante de um gênio... Vejamos a continuação:

"Pra mim sê pré": quatro monossílabos, cada qual contendo um erro essencial ou uma corruptela vulgar. Mas o "pra mim ser" ultrapassa qualquer barreira da desarticulação linguística. Eu, se sou RH, desclassifico na hora o candidato a vaga de assistente administrativo que diga "pra mim fazer" - mesmo que tenha quase mestrado e quase doutorado no currículo. Porque é erro incorrigível - já integra a estrutura mental de quem acha que mim conjuga verbo.

Ele acerta ao classificar as palavras como monossílabos. Só isso. Mas erra em tudo o que vem depois: a) não consegue copiar a fala criticada e a substitui por "pra mim ser"; b) escreve "eu, se sou RH" (uma pessoa um pouco rigorosa em relação a questões gramaticais escreveria "Eu, se fosse diretor / chefe de RH"); c) muda o exemplo para "pra mim fazer"; d) declara que internaria uma frase ("... frase internada no Sanatório"). E) conclui com uma análise neuropsicológica e linguística bem burra: a frase "integra estrutura mental de quem acha que mim conjuga verbo". Aliás, não é só "mim" que não conjuga. Nada conjuga, nem "eu", nem "nós", nem pronome ou nome algum. Quem conjuga é aluno de escola antiga. Verbo se flexiona (ou não) e segue regras de concordância.

Observe-se, além do mais, que o verbo nem está conjugado!!

O único comentário que tem alguma luz está na alusão irônica aos quase títulos de mestrado e doutorado.

Mas esse é o tipo de discussão que não rende nada. Parece briga de torcedor de futebol que endeusa seu time e demoniza o adversário. Não é que não seja útil. Mas deveria ser feita com calma e com algum apoio nos saberes envolvidos. No caso, psicologia e neurologia, pelo menos. Mais que isso, seria preciso poder responder a perguntas como qual será o papel da ideologia na produção de discursos como este, que, de uma questão de variação lingüística passa para hipóteses sobre estruturas mentais. Pior: faz isso cometendo erros crassos no que se refere ao padrão linguístico que ele defende (seria possível ser "piedoso" com sua gramática, mas, para isso, seria necessário conhecer teorias que explicam o que ele escreveu, mas também explicariam "pra mim sê". E erra feio ao chutar uma análise da relação entre estruturas linguísticas e estruturas mentais (campo no qual só os muito ignorantes têm certezas).

Mas, como disse, essa é uma discussão de torcedores.

Vejamos o que interessa, o material linguístico. Diz o comentador que se trata de corruptelas. Mais que corruptelas, são variantes informais, orais, faladas. E não só faladas por pessoas quase tituladas na academia, mas mesmo pelas tituladas nas melhores academias, tanto por defensores quanto por adversários da ministra. É só ouvir mesas redondas com políticos, sociólogos, jornalistas: "pra" e "sê" (fazê, analisá etc) estão em todas as falas, e mesmo na leitura de textos escritos, como em jornais de TV. Não em 100% dos casos, mas em muitos; na maior parte, quando se trata de fala. O teste é ouvir.

"Pré" é um monossílabo, mas não tem nada a ver com corruptela, nem com variação. É um prefixo proferido isoladamente. O efeito é de informalidade (-Você é pósmoderno? - Eu não! Eu sou pré. Pós é o meu vizinho.)

O verdadeiro problema do comentador está no pronome "mim" antes de verbo no infinitivo. Todos os manuais repetem que não se deve usar essa estrutura. Tanto repetem que até o cidadão em questão, que claramente não domina a modalidade escrita padrão, se dá conta disso (e papagueia o exemplo tirado não se sabe de onde "pra mim fazer").

Digo - não que tenha descoberto, pois é um lugar comum para quem estuda línguas - que há boas explicações para o mim nestes casos: 1) só ocorre depois de "para" (ninguém diz "mim vou" ou "mim vai"); é que "para" rege pronome oblíquo; 2) quando o pronome é regido pela preposição "para", não é mais sujeito do verbo que o segue; na frase citada, "sê" é uma reduzida de infinitivo. Ou seja: "para eu ser" e "para mim ser" são duas estruturas sintáticas diferentes. Seu valor "social" depende exatamente da sociedade (para dizer um truísmo): muitos usam, alguns condenam. Na nossa, é curioso que alguém escreva "eu, se sou RH" e condene "pra mim sê" em uma fala.

Um desafio ao leitor, se de fato quiser entender a questão: que encontre, ouvindo quem quiser pelo tempo que quiser, uma estrutura como "para que mim seja / para que mim ser). Não encontrará: com esse "que", todos dirão "para / pra que eu seja". Inserindo "que" entre "para" e o pronome, a forma "mim" perde condições de aparecer, já que sua condição é ser regida por "para".

A estrutura de "para mim fazer" é do mesmo tipo da que ocorre em "mandei-o sair", plenamente aceitável no português padrão. Se alguém disser que "mim" é sujeito, terá que dizer que "o" também é... Aceito apostas!

***

Leitores escrevem, manifestam suas opiniões. Às vezes, é bem claro que eles não têm, a rigor, uma opinião sua: repetem a mais próxima, a mais simples, a mais grossa. É claro que eu gostaria que todo mundo considerasse óbvias certas demandas sociais, como as ligadas aos direitos humanos. Também gostaria que as pessoas lessem melhor... Confesso que fico satisfeito quando discorda de mim um cara que escreve "vá de retro, PTtralha", porque fica bem claro que o único fundamento dessa crítica é a mais crassa ignorância.

***

Piada antiga, sempre atual, com personagens do dia: Fidel Castro e o Papa passeiam de iate no mar em frente a Havana. De repente, o solidéu do Papa cai no mar, arrastado pelo vento. Sem pensar duas vezes, Castro se lança à água para resgatá-lo e comprova, surpreso, que pode caminhar sobre as ondas sem afundar. Versões jornalísticas do fato:

Manchete do GRAMMA: Fidel es Diós

Manchete do L´OSSERVATORE ROMANO: Milagro del Papa

Manchete de EL NUEVO HERALD / THE MIAMI HERALD: Castro no sabe nadar

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Metáforas e Metonímias Oficiais

O segredo de Lula é usar terno e macacão ao mesmo tempo. Às vezes, um aparece no lugar do outro

Sírio Possenti* - O Estado de S.Paulo

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- Quase ao final do Roda Viva de 30/03/2009, um entrevistador perguntou ao vice-presidente, José Alencar, se é possível que ele e Lula apoiem candidatos diferentes em 2010. Em resposta, Alencar contou uma longa história que envolvia quatro antigos jornalistas esportivos do Rio, torcedores do Flamengo, do Fluminense e do Botafogo. Haveria um jogo entre Vasco e Bangu, nos dias seguintes e a única chance de um dos três clubes ser campeão era a derrota do Vasco. Discutiram longamente a possibilidade de isso acontecer e, não tendo chegado a um acordo, foram ouvir Neném Prancha. Expuseram-lhe o "problema". Ele pensou, pensou, pensou e, finalmente, disse: "Em sendo a bola redonda, tudo é possível". O vice riu, a bancada gargalhou.

Se a história tivesse sido contada por Lula em resposta a pergunta análoga, não faltaria quem dissesse que ele só fala por metáforas (análise errada, consagrada desde as menções ao tempo que jabuticabeira leva para produzir jabuticabas) e em geral as busca no futebol. Mas, sendo Alencar, louvar-se-á a habilidade mineira diante de uma pergunta incômoda.

Uns podem, outros não. É uma velha regra, que permite a Obama dizer "esse é meu chapa" e a Michelle abraçar a rainha, mas não vale para Lula. Lula erra, Obama faz estilo. Lula é ignorante, Obama é informal. A mesma coisa é outra, conforme se trate de um ou de outro cidadão. Levada ao extremo, a regra se enuncia todos os dias e está em música (imperdível) de Ary Toledo: rico correndo é atleta, pobre correndo é ladrão.

Que Lula não é letrado já sabemos. Não há razão para esperar que cite Montaigne ou Weber. Mas é bom analisar um pouco melhor o que diz e o estilo de que se vale, se se quiser entender melhor - se interessar, para combatê-lo - se o conjunto revela suas posições, estratégias diversas para públicos diferentes, possíveis contradições, se são eleitoreiras ou uma forma de governar, se isso é bom para a democracia, etc. Mas esqueçam um pouco a gramática (aliás, o Manual de Redação), por favor!

A questão do ajuste às diversas plateias, aparentemente um bom problema, é hoje menos relevante, já que falas de governantes, sejam proferidas onde forem, se destinam à mídia. Uma coisa é o repórter ou o cidadão que o ouve nos palanques. Bem outra é o verdadeiro destinatário, que o verá e ouvirá nos jornais.

Suas metáforas são insuportáveis? Pode ser. Eu posso não gostar, frequentemente não gosto, posso achar repetitivas ou simplórias, mas quem disse que ele fala para mim? A queixa esconde duas expectativas: a) ele deveria falar conosco, mas prefere falar com eles; b) um presidente deveria ser mais fino. Nos tempos de Collor x Lula, uma jornalista declarou preferência por Collor porque não envergonharia o Brasil em recepções oficiais. Referia-se ao uso de guardanapos!

Mas há algo de insuportável nesse assunto, que se repete há anos: as falas de Lula são genericamente classificadas como metáforas. Até Alencar fez isso, na mesma entrevista. Claro, deve haver muitas (o linguista Roman Jakobson mostrou que metáfora e metonímia são as leis básicas da língua), mas o que se classifica aqui de metáfora quase sempre foi outra coisa.

Talvez se devesse começar por um esboço de classificação das falas de Lula. Simplificando muito: há pequenas "parábolas", gafes, quebras de etiqueta (ou sinceridade inusitada) e passagens que podem lembrar metáforas, mas são mais propriamente comparações (como agora mesmo, no G-20, quando disse, pela enésima vez, que estamos num barco que faz água e temos que jogar a água fora e consertar o barco, senão afundamos). É bem menos chique do que febre de consumo e economia sadia... E, sim, eventuais metáforas.

As repetidas explicações de Lula para o que não acontecia em seus primeiros meses de governo - sobre o tempo que uma jabuticabeira leva pra dar jabuticabas ou uma mulher para dar à luz - não são metáforas. São comparações. Ambas têm efeitos parecidos, mas uma coisa é dizer "o país acaba de engravidar" e outra é dizer "um governo é como uma gravidez". Gente sábia deveria saber... Exigir um pouco de precisão de nós mesmos - não só dele (s) - seria um bom começo.

Dizer da capital da Namíbia que é uma cidade limpinha é uma enorme gafe, e revela uma representação absolutamente estereotipada da África, mesmo que fosse verdade, como disseram alguns auxiliares, que ele queria combater o estereótipo. De qualquer forma, uma análise mais fina não faria mal.

Há expressões que estão no limite entre um discurso e outro. Quando disse que d. Marisa engravidou na primeira noite porque pernambucano não deixa por menos, foi pura gabolice besta. Ver aí machismo é superinterpretação. Só foi pouco fino. Pelo menos, ninguém falou em metáfora (embora "primeira noite" seja uma). É um ganho.

Chegou-se a ver racismo na declaração de Lula culpando brancos de olhos azuis pela atual crise. Não há um discurso racista, uma memória racista, que pretenda basear-se na suposta incapacidade de brancos, por serem brancos, de gerir instituições financeiras. O sentido da declaração é "parem de acusar os habitantes do Hemisfério Sul (ou "não os culpem pelo menos desta vez"), ora por causa do clima, ora por causa "das raças", de serem, por isso, incapazes de se governar, ou de serem, por isso, mais corruptos. E, definitivamente, "brancos de olhos azuis" não é uma metáfora. É uma metonímia - parte pelo todo, já que nem todos os de lá são brancos de olhos azuis.

"Tsunami" e "marolinha" são metáforas (enfim!): uma palavra por outra, melhor ainda, uma palavra de um campo por outra de outro campo. Dita por um francês ou por um acadêmico, é uma figura de linguagem. Por um brasileiro, ex-operário, é vício de linguagem. Ah, as gramáticas e os manuais!

Certamente, as falas de Lula são "populares" - em mais de um sentido. Nos palanques, lembra os animadores de auditório. Profere comparações e expressões do dia a dia, avaliadas negativamente em função da imagem que temos da figura presidencial. "Sifu", forma destinada a evitar um palavrão, foi analisada como se fosse um. Sua última fala "chocante" desapareceu, soterrada por Obama falando de Lula como se fosse um companheiro de quadra. Caso contrário, teria alcançado repercussão bem maior e negativa sua declaração de que, numa reunião como a do G-20, "você não faz negociação com o pé na parede, dá ou desce, existe uma negociação". Expressão informal? Grosseira? Pode achar. Mas não é uma metáfora.

Acho que o segredo de Lula é que usa terno e macacão ao mesmo tempo. Ora sua roupa de baixo é o terno, ora o macacão. Às vezes, o macacão aparece quando está de terno. E vice-versa.

Creio que isso seja uma metáfora.

*Professor do Departamento de Linguística/Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Caetano escreveu sobre linguística; análise de Possenti

Ele, Caetano, falou de lingüística

Sírio Possenti
De Campinas

Há algumas semanas, em seu blog, Caetano Veloso falou de lingüística. O título do texto do dia era "lingüistas" (o tom parecia com os associados usualmente a expressões negativas, como quem diz "mulheres" ou "petistas" para ressaltar características que um homem ou um tucano acham típicas, e que lhes soam negativas).

É difícil discutir todos os aspectos do texto. E sei que destacar algumas passagens de certa forma descaracteriza o pronunciamento. Mas vou fazer isso, apesar dos riscos, porque há aspectos claramente destacáveis (pelo menos do ponto de vista de um lingüista; de um tipo de lingüista, pelo menos).

Primeiro, registre-se que as opiniões de Caetano têm algum lustro: leu certos textos e freqüentou certos meios (os concretistas, que liam Jakobson, que citava e era citado etc.). E, obviamente, ele não é bobo. Nem totalmente preconceituoso... Mas esse tipo lustro nem sempre favorece.

Vamos, pois, aos comentários de algumas passagens do post dele.

Quanto à lingüística propriamente dita, li Saussure (aquelas aulas) no início dos anos 70. Li somente porque os poetas concretos falavam dele... todos falavam de Jakobson, que falava dele.

Aquelas aulas? Pois é. Aulas sobre Saussure têm sido pequenos desastres. Em geral, ele passou para a história (em cursos de letras e de comunicação) como o cara da dupla face do signo, o significante e o significado. Mas, de fato, isso não é próprio do Saussure. Nem a arbitrariedade dessa relação. Saussure é o pensador do sistema, dos valores, da diferença (ler sobre as entidades lingüísticas, por favor). E foi assim que ele passou para a história da lingüística.

O que disse sobre o significante ser a imagem acústica é certamente relevante, porque põe o fonema, por exemplo, num espaço psicológico específico (se tivesse sido compreendido nesse particular, não leríamos os Sacconi da vida dizendo que fonemas são os sons da língua, nem haveria ditados fonêmicos em escolas de medicina ou de fonoaudiologia). É mais ou menos como achar que a relatividade é o relativismo. Pessoalmente, prefiro os "erros" da tradição às achegas parciais a propostas novas. Um bom Newton é melhor que um Planck mal digerido.

Fiquei maravilhado com a afirmação de que a língua é viva e mutante na práxis dos falantes: a língua é falada, a escrita seria apenas uma notação convencionada a posteriori, como as pautas musicais.

"Práxis dos falantes", obviamente, não é Saussure. O tempo é, para ele, a categoria fundamental para explicar a mudança. Vago? Acho que sim, mas esse é Saussure. Práxis é marxismo ("sério" ou de boteco, pouco importa). Importante: se essa tese de Saussure chamou tanto a atenção de Caetano, aposto que foi porque tinha sido levado a pensar, ou porque talvez estivesse pensando, que as línguas são mais ou menos imutáveis (o que, de fato, de vez em quando, volta com força no post dele, não à toa, eu achei. Gostou da idéia, mas não "conseguiu" incorporar).

Nunca vou esquecer sua observação de que o francês é a única língua ocidental que tem uma palavra cuja grafia não guarda nem um só dos valores fonéticos originais das letras que a compõem: "oiseaux".

A afirmação acima fecha seus comentários sobre o que Saussure teria dito sobre a escrita. Ficou a anedota, como freqüentemente ocorre. E o exagero (a única língua ocidental: ou o professor "acrescentou", ou foi no bar; sempre um bom lugar, aliás). As poucas páginas de Saussure sobre a escrita são extremamente lúcidas e seriam revolucionárias ainda hoje (se fossem lidas). Continua válida inclusive sua reclamação de que os lingüistas "não têm vez em capítulo" - quando as questões de escrita são discutidas - e por isso, ele acha, "a forma escrita tem, quase sempre, superioridade" (Curso, pg. 36). "Oiseau" (singular, no Curso) é um excelente exemplo, claro (como a pronúncia é wazô, nenhum dos sons é representado na escrita), mas é do tipo que fica na memória por seu caráter anedótico, não pelo efeito que deveria produzir como exemplo crucial das teses de Saussure sobre o tema.

Caetano conta que, quando veio a Campinas para um show, ganhou um livro de uma professora sobre diferenças entre português do Brasil e de Portugal. Comentários postados garantem que se trata de um livro de Charlotte Galves. Se for, quase todos os comentários de Caetano estão errados. Ele deve ter esquecido também de algum outro livro que leu. Mas, mesmo que tenha lido outro, duvido (mas essa é uma aposta) que alguém tenha escrito o que ele diz que recorda - sobre tu/você etc. Ah, acrescenta que o livro "era escrito num português excelente". O que ele esperava?

Depois ele discute uma entrevista de Marcos Bagno à revista Caros amigos. O que escreve sobre isso exigiria longas considerações, porque tanto há mal-entendidos, se, de fato, o que Saussure teria dito o impressionou, quanto discordâncias ideológicas a serem discutidas em detalhe.

Na semana seguinte, comentando mensagens de leitores, acrescentou, por exemplo, que "as pessoas que dizem 'grobo' são as mesmas que têm vocabulário menor, menos acesso aos conhecimentos, menos poder". Menos poder, sim. Vocabulário menor é coisa que se pode discutir. Já que citou Lévi-Strauss, ouso sugerir que leia O pensamento selvagem. Talvez mude de opinião. Pensando bem, acho que não mudaria, porque a questão é fortemente atravessada por ideologia, que argumentos "objetivos" dificilmente afetam.

Mais: diz, por exemplo, a propósito de conjugações como "tu vai":

... a resposta racional é que se conjugo o verbo sempre na terceira perco o direito de prescindir do pronome sujeito (é verdade: se a conjugação se "simplifica", isso afeta a sintaxe; o inglês funciona assim: algum problema? Mas por que essa é uma resposta racional?); ouço com prazer os "tu é" dos cariocas e os "tu vai" dos gaúchos, mas sei que há um empobrecimento de possibilidades do uso da língua (empobrecimento? É difícil de demonstrar: perde-se aqui, ganha-se lá, como se verifica se não houvesse possibilidades como as mencionadas, que são enriquecedoras, porque novas, diferentes das outras); de todo modo, não há porque não ensinar às pessoas como funcionam as conjugações, tendo em vista o pronome pessoal escolhido (mas as conjugações funcionam assim, exatamente como funcionam; ou ele quer dizer "como funcionavam", com "vós" e tudo? Nada contra, se fossem assim, mas por que não as de hoje?).

Aliás, amei ler no texto "medieval" de Maira "aa" em lugar de "à". Isso porque há anos digo que seria legal se escrevêssemos "aa", como feminino de "ao": ficaria bonito e não teríamos esse rolo da crase (que adoro mas vejo que é um sofrimento para muitos).

Sei que é uma bobagem, que pode parecer picuinha, mas duvido que Caetano cometa em música um erro tão banal quanto dizer que aa é o feminino de ao. Ou que, em espanhol, al é o masculino de a la. Puxa! O Pasquale lhe diria o que é isso!

Depois de discutir - a meu ver com alguns equívocos, a partir da entrevista de Bagno à Caros amigos - questões de norma culta versus variedades menos valorizadas, e de comentar criticamente a tradução de um título de Proust (no que concordo com ele), dispara:

O que isso tem a ver com os lingüistas, a língua falada, a norma culta, a norma oculta, a demagogia e a mania de pensar que o melhor modo de resolver o problema das favelas é destruir o sistema de esgoto de que desfrutam as "elites"? Tudo.

Bem, se ele entendeu que "defender" variedades lingüísticas populares, mesmo que sejam aceitas como "corretas", por serem empregadas em textos "cultos", determinadas construções ainda condenadas (como vende-se flores etc.) equivale a defender que não se leiam textos "clássicos" ou que se critiquem formas em franco desuso, então, de fato ele não entendeu nada (ou não pode entender). E não se trata de deficiência mental, que disso ninguém pode acusar Caetano. Trata-se mesmo de ideologia. Da qual, aliás, não é difícil descobrir traços em outros domínios sobre os quais Caetano opina como cidadão e também como artista ou homem-show.

Também acho que ele podia ter se poupado de gravar "Ou você me ama, ou não está madura", mas e daí? Dizendo isso, acho que estou elogiando Caetano. Mas concedo que não entendo nada de música, nem do circuito empresarial.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Caetano X Sírio Possenti

"Sifu", de novo

Sírio Possenti
De Campinas (SP)

Parafraseando um narrador machadiano, aconselho ao leitor pudico que não leia a coluna de hoje. Vá a algum livro de pensamentos edificantes, que aqui ele vai encontrar palavras da pesada. O projeto é nobre (nobilíssimo, diria uma personagem também machadiana, que andou recentemente pela TV): trata-se da relação entre sons e letras, mas os dados não são do gosto de muitos.

Aviso dado, vamos aos fatos.

Estão discutindo a grafia de "sifu". Uma leitora me contou que Caetano e Sacconi disseram que não se deveria escrever "sifu", nem "sífu". Respondi-lhe, apressadamente, sem pensar muito, que, se ambos discordam dessa grafia, então ela deve estar correta. Reafirmo: de onde menos se espera, daí mesmo é que não sai nada.

Leia também:
» Diarréia, Sifu

Dei uma espiada na "Obra em progresso" (blog do Caetano) e está lá sua tese de que se deve escrever "sifo" e não "sifu". Seu argumento é que a segunda sílaba dessa palavra é a primeira do verbo "foder", cuja vogal, embora seja pronunciada "u" /fuder/, se escreve "o". Dá outros exemplos para sustentar sua tese. Critica as grafias "culhão", "buceta", "viado", que, acha, devem ser mesmo "colhão", "boceta", "veado" (se o leitor chegou até aqui, pode prosseguir).

Tudo bem, Caetano, mas leve seu raciocínio e sua análise até o fim. Pergunte-se de onde vem a primeira sílaba de "sifu". Verá que vem de "se fodeu". Ou seja, "se" pronuncia-se "si" (na maior parte do país), mas se escreve mesmo "se". Conclusão: argumento que vale para combater "fu" deveria valer para combater "si". Se Caetano levasse a "análise" (concedamos que seja uma) até o fim, se considerasse todos os fatos envolvidos e mantivesse o mesmo princípio (a origem da palavra), deveria propor que a grafia fosse "sefo". E não "sifo".

Sacconi propõe a mesma grafia, "sifo". Repito: por que "fo" em vez de "fu", e não "se" em vez de "si"? Discordam sobre a sílaba tônica: Sacconi acha que "sifo" é paroxítona. Aliás, um dos argumentos dele em defesa de "sifo" é que não há em português nenhuma palavra paroxítona terminada em "u". Já Caetano acha que é paroxítona. Diz que "sifu" é uma indecência oxítona que a imprensa consagrou.

Se a escrita fosse baseada na origem da palavra (sefo), a pronúncia não seria nem /sífu/ nem /sifú/ . Não haveria, não poderia haver duas vogais alçadas. Se o resultado da abreviação de "se fodeu" for "sefo", essa é a "palavra" à qual se aplicam as regras "fonéticas". Pode-se discutir qual das duas sílabas será átona. Somente ela terá sua vogal alçada: ou "e" vira /i/ ou "o" vira /u/. Mas uma das duas será tônica: e a pronúncia teria que ser ou /sêfu/ ou /sifô/. A vogal da sílaba tônica permaneceria inalterada.

Não estou considerando a pronúncia que não alçasse as vogais "e" e "o", porque algo assim não ocorre. Mas, se ocorresse, a pronúncia teria que ser /sêfo/ ou /sefô/. Se sua origem fosse mesmo respeitada.

Assim, ambos estão errados. Independentemente de ser oxítona ou paroxítona, do ponto de vista gramatical (em todos os sentidos), essa nova palavra "esquece" sua origem. Exceto pelo fato de que, ao lado de "sífu" também ocorre (não saberia dizer nada sobre sua freqüência) a forma "mífu". Ao que os humoristas podem acrescentar "nosfu", escrito assim, ou escrito "nusfu"...

A "palavra" tem relações sociolingüísticas - e outras - com "se fodeu", mas sua certidão de "palavra" não precisa registrar essa ascendência, especialmente a escrita. Nasceu "sifu" (acho que no Pasquim) e será "sifu" para sempre. A única questão pendente é a variação de sílaba tônica. Em conseqüência, de sua grafia: sífu ou sifu.

Eu disse "questão". Não disse "problema". Porque variação não é problema.

Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Lingüística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua e de Os limites do discurso.

Fale com Sírio Possenti: siriopossenti@terra.com.br

Opiniões expressas aqui são de exclusiva responsabilidade do autor e não necessariamente estão de acordo com os parâmetros editoriais de Terra Magazine.

Terra Magazine

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Cujo, de Novo

Quinta, 4 de setembro de 2008, 08h01 Atualizada às 08h25

"Cujo", de novo

Sírio Possenti
De Campinas (SP)

Sempre que é o caso, digo com a maior franqueza que não conheço nada sobre o tema (o que às vezes é exagero). Direi, então, de novo, que pouco ou nada sei de lingüística histórica, embora tenha lido coisinhas aqui e ali sobre o amplíssimo tema (até livros inteiros e bons artigos, mas insuficientes para que eu possa opinar com bons fundamentos sobre a maioria dos casos).

Repito isso porque vou falar de novo, um pouco, do pronome "cujo", questão mencionada aqui recentemente, a propósito de um texto do prof. Pasquale. É que deparei com dois casos interessantes.

Parte de uma notícia de jornal informando que autoridades mudaram o status de parentes nomeados para o serviço público (César Maia criou uma sub-secretaria para manter uma irmã servindo ao município do Rio de Janeiro e Roberto Requião duas secretarias extraordinárias, salvo engano, para que o Paraná progrida cada vez mais com o concurso de sua esposa e de um irmão...) dizia:

Maristela, cujo nome da nova pasta não foi definido, foi nomeada por decreto na quarta-feira... (Folha de S. Paulo de 27/8/2008, p. A 11)

Num texto de Authier-Revuz ("Palavras mantidas à distância", trad. de Heloisa Monteiro Rosário, em Entre a opacidade e a transparência, Porto Alegre: Edipucrs) que estamos lendo em um curso neste semestre, encontrei

... X pode tomar os valores e "dizer" as modalidades mais diversas, as glosas veladas cujas aspas podem ser o indicador

O pronome "cujas" do segundo exemplo deve claramente ser substituído por "das quais" ("das quais as aspas podem ser um indicador"). É que o texto significa que as aspas podem ser o indicador das glosas veladas. "Das quais" deve referir-se, ou retomar, às "glosas veladas", para fazer sentido. Não pode haver aspas em glosas veladas, por definição. Glosas veladas equivalem a glosas implícitas, ou seja, não expressas, e não há como haver aspas em um implícito. Ou seja: as aspas indicam glosas veladas, são indicações de glosas veladas (delas, das quais).

Se lemos o primeiro exemplo ao pé da letra, "cujo" parece que deve referir-se a Maristela. Mas é claro que isso não faz sentido, porque não é Maristela que não tem ainda seu nome definido, e sim a Secretaria que ela vai ocupar. O jornalista deveria ter escrito algo como "Maristela, cuja secretaria ainda não tem nome definido" etc.

O que esses dois casos indicam? São um sintoma, um indício, de que o emprego de "cujo" está se tornando difícil. As tentativas de usar essa forma já rara podem dar com os burros n'água. Como está sendo cada vez menos usada, os falantes têm um domínio efetivo cada vez menor da regra. Estudam o caso na escola, fazem alguns exercícios, mas isso dificilmente faz com que o domínio da construção seja eficaz. Mal comparando, é como tentar escrever em inglês depois de algumas aulinhas de the book is on the table.

Comecei dizendo que não tenho pudor em confessar que não conheço determinados assuntos. Um é a história exata do cujo em português. Andei buscando algumas fontes e encontrei exemplos antigos no Google, do tipo "Cujas sõ estas coroas tã esplandecentes?" e "Cujo filho és?"

Duvido que os defensores do ensino de "cujo" na escola, os que acham que sem ele a língua perde muito, defendam o ensino do uso exemplificado por essas duas ocorrências, nas quais "cujo" significa "de quem", como hoje, mas é empregado em contextos sintáticos em que não ocorre mais, nem nas páginas dos que ainda o usam abundantemente e sem problemas.

A pergunta óbvia é: se podemos viver e falar sem esse emprego de "cujo", por que teríamos problemas se e quando ele fosse abandonado de vez?

PS - Por indicação, li um post de Caetano Veloso sobre lingüistas. É mais ou menos como se eu falasse de música. Atesta usos que todos conhecemos e que, segundo ele, teriam sido considerados inexistentes pela autora de um livro que ganhou quando fez um show na Unicamp, mas que depois perdeu (queria ver, pois duvido que esse livro exista, tal como ele o recorda) etc. Atira em todas as direções, sempre impreciso. Defende a escrita, como se precisasse, e considera positivos fenômenos como o sucesso do prof. Pasquale. Cujo nome grafa Pasquali. O que resume o post.


Sírio Possenti