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segunda-feira, 6 de abril de 2009

Um Comentário no Obra em Progresso

A diferença na ausência do artigo na primeira pessoa do plural no último verso de Sampa é fundamental!
# Caetano Veloso disse:
Março 27th, 2009 at 4:40 am

Maria João Brasil: Luis Caldas acaba de fazer um CD todo de rock. Pronto. Acabou o problema.

Maria: quando eu era novo, os pernambucanos diziam “ricife”. Era igual a “cibola”. Hoje, que muitos dispensaram o artigo, ouço mais “rê”. Baiano diz “ré-cife”. Quanto a vogais abertas ou fechadas em música cantada, isso não vale. Todo o mundo cresceu ouvindo canções em pronúncia vocálica carioca (os erres eram tipo italiano). E “moçada” é sempre “mô”, pelo menos na Bahia. Vem de “moço/moça” e a gente não esquece. Já “pessoal” na Bahia é sempre “péssoal”. A não ser que se esteja cantando (aí varia: ou se faz como cantores do Rio ou se faz como a Simone - eu já fiz os dois; o gozado é que João Gilberto elegeu a pronúncia das vogais breves cariocas, exceto NUM disco: o branco, gravado em Nova Iorque, no estúdio de Wendy Carlos, que era Walter Carlos mas fez operação e virou mulher: ele/ela é músico erudito e fez a trilha de Laranja Mecânica, de Stanley Kubrik; ese disco branco de João é o meu preferido da discografia dele, se tirarmos os 3 primeiros, com arranjos de Tom).

Lucio Junior: boa lembrança o debate na FAU/USP em 68. Eu não tinha relacionado minhas ironias agressivas à USP a esse episódio. Você é um psicanalista. Vou pensar.

A capa do Zii e Zie tem foto (lomografia: é a câmera “russa” mesmo, tipo “Lomo”) de Pedro Sá, projeto gráfico meu (escolhi a foto, os tipos e onde iriam as palavras) e realização gráfica de Pedro Einloft.

Neyde L: pensei que já tivesse respondido a algum comentário seu. Talvez tenha feito isso e depois não postei. Mas lembro de ler você sobre a Barra e o carnaval. Nunca deixaria de falar com você por você ser mulher: minha misoginia não vai tão longe.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Rudolph Steiner sobre Nietzsche

"Mais tarde entrei em sérios conflitos com Elisabeth Foster-Nietzsche. Naquele tempo, seu espírito amável e ágil angariava minha profunda simpatia. Esses conflitos me causaram indizíveis sofrimentos, tendo sido suscitados por uma complicada situação; fui obrigado a defender-me de acusações. Sei que tudo isso foi necessário e que um véu de amargura veio encobrir a recordação de belas horas passadas no Arquivo Nietzsche em Naumburg e em Weimar; mesmo assim, sou grato à senhora Foster-Nietzsche por ter-me conduzido ao quarto de Friedrich Nietzsche na primeira das numerosas visitas que iria fazer a ela.

Totalmente alienado, lá estava ele – com sua testa maravilhosamente bela, que era ao mesmo tempo a de um pensador e de um artista – estendido num sofá. Eram as primeiras horas da tarde. Aqueles olhos, que apesar de ausentes ainda pareciam preenchidos de alma, captavam do ambiente apenas uma imagem que não tinha acesso algum à alma. Estando alguém lá, Nietzsche nada sabia a respeito. Mesmo assim, ainda se podia acreditar que seu rosto, impregnado de espírito, fosse a expressão de uma alma que tivesse formado pensamentos durante toda a manhã e apenas quisesse repousar um pouco.

Uma íntima comoção que se apoderou de minha alma levou-me a pensar que ela se transformaria em compreensão pelo gênio, cujo olhar me fitava mas não me atingia. A passividade desse demorado olhar provocou a compreensão do meu, que pôde entregar-se ao poder anímico da visão sem que algo se interpusesse em sua mira. E assim vi diante de minha alma: a alma de Nietzsche como que pairando acima de sua cabeça, infinitamente bela em sua luz espiritual, livremente entregue aos mundos espirituais que buscara antes da demência e não encontrara; porém ainda acorrentada ao corpo, que só soubera daquele mundo enquanto o mesmo ainda era anseio nostálgico. A alma de Nietzsche ainda estava presente, mas só podia segurar de fora aquele corpo, que lhe oferecera oposição para desabrochar em sua plena luz enquanto ela estava em seu interior.

Antes eu lera o Nietzsche que havia escrito; agora eu estava contemplando o Nietzsche que havia introduzido em seu corpo idéias trazidas de longínquas regiões espirituais, e que ainda reluziam em beleza, embora tivessem perdido no caminho seu fulgor original. Uma alma que trouxera de existências terrestres anteriores um tesouro dourado de luz, mas incapaz de fazer com que ele brilhasse plenamente nesta vida. Eu admirava o que Nietzsche escrevera; mas agora via, por detrás de minha admiração, uma imagem resplandecente.

Em meus pensamentos eu só era capaz de balbuciar a respeito do que vira; e esse balbuciar é o conteúdo de meu livro “Nietzsche, um lutador contra seu tempo”. Não passando de um balbuciar, esse livro encobre o verdadeiro fato de a imagem de Nietzsche tê-lo inspirado a mim.(…)

Para mim estava claro, naquele tempo: Nietzsche, com certos pensamentos que aspiravam ao mundo espiritual, era um prisioneiro da mentalidade naturalista. Por isso eu me opus fortemente à interpretação mística da sua idéia do eterno retorno; e concordei com Peter Gast, que em sua edição das obras de Nietzsche a conceituou como “a doutrina – a ser entendida de modo puramente mecanicista – da esgotabilidade, isto é, da repetição, das combinações moleculares cósmicas”. Nietzsche acreditava ter de buscar uma idéia das Alturas nos princípios básicos da visão naturalista. Essa foi maneira como teve de sofrer por causa de sua época.
Era assim que se me apresentava, na contemplação da alma de Nietzsche em 1896, o que uma pessoa tinha de padecer, em seu anseio pelo espírito, junto à mentalidade naturalista do final do século XIX”.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Carnaval (post de Caetano sobre linguistica)

CARNAVAL
21/02/2009 5:00 am

Um dia escrevi aqui: “Os linguistas contribuem com sugestões utilizáveis quando se fizer um bom projeto de educação básica no Brasil. Mas no momento esses militantes fazem também um pouco de demagogia nociva, provavelmente sem o saber.” Heloisa comentou desta maneira: “Caetano, gostei da forma cuidadosa e moderada desse comentário. Isso me basta, por enquanto”. Lembro que em outro lugar ela pediu paciência a Luedy, que ele esperasse eu ler Bagno diretamente. Algo assim. Pois bem. Li “A norma oculta” e não mudei um milímetro. Ali ainda pesavam mais os vícios da esquerda autocongratulatória.

Encontrei Luedy pessoalmente. Ele veio com uma professora de linguística irresistível. Ela falava bem e era paciente quando eu a interrompia. Luedy quase não falava. Paquito, o amigo músico que nos apresentou, às vezes puxava o assunto para longe do tema central. Quase nunca concordávamos mas todos gostávamos de ouvir uns aos outros. Eu tinha apenas olhado as primeiras páginas de “Preconceito linguístico“. Depois que Luedy, Paquito e Tânia (esse é o nome da moça) foram embora, fui lê-lo. Heloísa tinha sido profética. A leitura realmente mudou minha disposição em relação ao combativo professor da UnB.

Não sei se o texto que Bagno publicou na Caros Amigos em resposta a minhas opiniões é mais ou menos agressivo do que o que ele mandou aqui para o blog (e depois pediu a Hermano para não publicar: Hermano, que, sendo antropólogo, está mais pros Bagnos do que pros Cipros, tinha me mandado o irado comment, perguntando se não seria o caso de evitarmos publicação de texto tão aguerrido e vulnerável - e eu tinha respondido optando pela publicação: não queria me proteger nem facilitar a vida de Bagno). Seja como for, o texto que li era violento o suficiente para aumentar minha má vontade. Não foi sem má vontade que li “A norma oculta”; não foi sem má vontade que comecei a leitura de “Preconceito linguístico”. Não foi sem alegria que vi minha disposição mudar. Viva Heloisa.

“A norma oculta” me deixou com as mesmas más impressões da entrevista à Caros Amigos: demagogia, ar de quem descobriu a pólvora, malevolência em relação aos consultores de gramática dos meios de comunicação, sobretudo um argumento central que não me balança: a tese do nascimento da gramática normativa há cerca de 2.000 anos como um mal do qual só o heróicos sociolingüistas do século 20 nos salvariam. Mas em “Preconceito linguístico” encontrei o que já nem buscava: razão, alguns argumentos sólidos, apreciações justas. Será que nada disso havia no outro livro – nem na entrevista? Será que nada havia no eco da campanha dos lingüistas? Claro que há coerência entre essas fontes e “Preconceito lingüístico.” Mas ao ler este fui posto em condição de ver o que há de bom mesmo onde eu não tinha visto antes.

Seria preciso contar a história da minha vida. Não posso fazê-lo aqui. Mas o fato é que sempre me excitaram observações como a do Padre Antenor, diretor do Colégio Estadual Teodoro Sampaio, de Santo Amaro, que dizia não podermos considerar errado o “entonce” do matuto do recôncavo, que é português correto mas antigo e não atual e errado. Comentários como esse me prometiam mais do que as nomenclaturas das análises lexicais e sintáticas. É verdade que tive mais sorte do que Luedy: me ensinaram as “categorias gramaticais” no curso primário; a análise sintática só começou no ginásio – e começou devagar: primeiro as orações simples, só mais tarde estudamos períodos compostos. Primeiro os “por coordenação” e depois os “por subordinação”. Se havia quem achasse chato, esses não eram em maior número do que os que não agüentavam história ou geografia – sem falar em matemática. Mas a mera insinuação da etimologia feita pelo padre me acenava com um mundo maravilhoso. Eu queria entender mais o que era a língua que falávamos, como se formara, como continuaria em sua trajetória. Em suma, eu tenderia mais para um linguista do que para um gramático. Embora as sutilezas das regras de concordância me apaixonassem. E até hoje eu ame o entendimento da crase e sofra com o mito de que ela é difícil, um fenômeno inescrutável, um capricho desarrazoado dos professores e da própria língua portuguesa.

Entre a faculdade de filosofia e a música popular, minha admiração por Godard, pelos Beatles, pelos pintores pop e pelos poetas concretos me aproximou de Saussure e Jakobson, dos estruturalistas e pós, não dos gramáticos e filólogos. Entre 67 e 68 eu, além de já estar careca de saber que a língua muda, li “Tristes Trópicos”, Saussure, Jakobson, “As palavras e as coisas”, McLuhan, Oswald de Andrade (“a contribuição milionária de todos os erros”) – e nada de Napoelão Mendes de Almeida. De Antonio Houaiss, só a tradução do Ulisses de Joyce.

O artigo de Antonio Cicero na Ilustrada de 8/2/2009 expõe claramente a natureza de minha atitude contra a euforia dos lingüistas ao “desmascararem” o desejo de manter privilégios escondido por trás de toda paixão pela gramática. Leiam-no em http://antoniocicero.blogspot.com/. Chama-se Os Estudos Literários e o Cânone. Cicero diz, basicamente, que o cânone não é, como quer Eagleton, uma suspeita seleção feita a partir de interesses particulares, mas, ao contrario, algo que foi construído na luta das idéias e cuja força reside em não parar de ser qüestionado. A reação de certa esquerda ao cânone é semelhante à reação dos sociolingüistas à norma culta. Não que eles sejam a mesma coisa. Apenas, naquilo que têm em comum, suscitam reações parecidas nos meios que sonham com a revolução. Em ambos os casos essas reações me parecem tolas. A criação de um “paideuma”, de um recorte do cânone que nos obriga a revê-lo, é, explícita ou implicitamente, necessária à criação de algo relevante na história de uma arte e mesmo na construção de um estilo individual. Agusto de Campos pode dizer que John Donne e Sá de Miranda estão acima de Shakespeare e Camões. Ezra Pound detestava Gertrud Stein. John Cage queria livrar-se de Beethoven. Bergman detestava Orson Welles e Godard. Marcelo Nova pode desprezar João Gilberto. João ostentou gostar tão pouco de Noel que isso era uma espécie de escândalo silencioso. Mas tudo isso é diferente de querer-se desautorizar todo cânone. Muitas vezes em nome de reinvidicações de raça, gênero, classe e “orientação sexual”. Os panfletos de Bagno sempre me pareceram mais aparentados a essa tendência do que à decisão de contribuir para a vitalização da educação no Brasil. Além disso, me causa repugnância a facilidade com que se quer descartar mesmo a mais remota possibilidade de haver algo aproveitável na particularidade da história brasileira. Bagno vocifera contra a baixa estima que resulta de dizer-se que os brasileiros não falam certo ou que não sabem português. Mas faz coro com Marilena Chaui contra a celebração do descobrimento e não vê senão vergonha no fato de a nossa independência ter sido proclamada pelo príncipe da metrópole.

Claro, ninguém “não sabe” a língua que ouve desde que começou a viver. E nenhuma língua é incapaz de resolver os problemas de comunicação que seus falantes enfrentam. Mas, se esse aspecto da questão é evidente, o mesmo não se pode dizer da confusão que causa afirmar ao mesmo tempo esse grau de independência do fenômeno lingüístico e denunciar como mitológica a língua “ideal” dos gramáticos. De novo, sei que não se trata da mesma instância, mas se temos de definir como projetaremos o ensino da língua no Brasil precisamos ser claros justamente quanto ao que transcende (gostou, Heloisa?) a matéria bruta da fala diária e o corpo dos textos escritos existentes. Se seguimos a Marilena do panfletinho contra a celebração do descobrimento, como podemos clamar pela elevação da autoestima de uma nação tão monstruosamente formada – e apenas através da ligüística? Vê-se que há uma lacuna no pensamento. E vê-se que ela é aterrada com o entulho das variedades mais ingênuas das crenças em vanguardas revolucionárias.

O que, então, é bom em “Preconceito lingüístico”? Em primeiro lugar, aqui Bagno freqüentemente mira os alvos certos. O livro de Josué Machado não precisa ser lido por inteiro: as citações escolhidas por Bagno justificam a crítica que este lhe faz. O verbete do “Dicionário Sacconi da língua portuguesa” é tão grosseiro quanto as explicações dadas por Bagno sobre rotacismo e vocalização do “lh” são claras e bem articuladas. Os erros que este aponta nos livros daqueles merecem ser destacados. E a vulgaridade agressiva do estilo deles deve ser combatida. O projeto de lei de Aldo Rebelo é ridículo. Sou amigo de Pasquale Cipro Neto (e admirador confesso do trabalho que ele faz), mas das palavras depreciativas que ele usou contra os lingüistas apenas “deslumbrados” é de fato adequada.

Além disso, Bagno aqui dá um esboço de programa que já é contribuição efetiva para um plano inteligente de educação de massa no Brasil. Ele não está sendo simplesmente o militante de um comando antigramatical. Na verdade, as propostas concretas que ele apresenta soam muito menos demagógicas do que os “Parâmetros curriculares nacionais”. Esse documento oficial (surgido, não se sabe como, no supostamente horrendo governo Fernando Henrique) parece mais um brado de protesto contra humilhações sofridas por falantes pobres, enquanto o próprio Bagno propõe “acionar nosso senso crítico toda vez que nos depararmos com um comando paragramatical e saber filtrar as informações realmente úteis, deixando de lado (e denunciando, de preferência) as afirmações preconceituosas, autoritárias e intolerantes”. Aí ele está elevando o nível de exigência em relação aos que desejam ensinar a norma a tanta gente que tem sede de ter acesso a uma. E o mesmo texto em que ele diz essas coisas é o exemplo da língua culta padrão, da norma – que não está no texto dos grandes ficcionistas nem dos poetas, muito menos na fala coloquial: é o português que Bagno usa (e as regras de que se vale para criticar o conhecimento de gramática de jornalistas e professores, com maior ou menor razão), o português das argumentações teóricas, do texto oficial, da produção acadêmica, e não o dos poetas e ficcionistas, que está mais perto dessa entidade que não pode ser reduzida à materialidade da língua móvel dos usuários: a língua ideal. O fato de Bagno usar pronomes no caso reto em função de objeto direto é mais do uma exceção que confirma a regra: é a exemplificação de uma proposta de regra nova que ele já põe, a sério, em prática (ele não usaria “menas”, “nós vai”, “três pastel” etc.: haveria o risco do texto ficar menos inteligível – e (o que é crucial) menos respeitável. Nenhum padrão é idêntico à pluralidade de entes reais que ele representa. Por que a língua teria de se resumir às falas concretas dos falantes? Mas é o Bagno que sabe disso que diz que ensinar português é ensinar a ler e escrever - numa norma padrão.

A distinção entre ensinar a língua e ensinar sobre a língua procede. Mas isso não pode ir além de meramente enfatizar o treino do uso em vez da análise do funcionamento. As comparações com a diferença entre dirigir automóvel e entender a mecânica do motor é simplista demais. Ainda bem que ele reconhece que numa certa altura tem-se que aprender algo sobre a mecânica da língua: afinal, de onde sairiam os gramáticos, os lingüistas, os técnicos? Há um continuum entre o aluno e o professor, não há uma linha igual à que separa o motorista amador do mecânico de oficina. Claro que Possenti está certo, no trecho citado por Bagno, quando diz que “saber usar as regras é uma coisa e saber explicitamente quais são as regras é outra”. Mas há grande alegria em ver revelado o processo que se dá dentro da gente quando efetivamos o uso da regra. Essa alegria não é igual à alegria do motorista que descobre o que é que faz o carro andar. Justamente por no caso da língua revelar-se algo que está dentro de nós. Não é tudo (acredito que há pensamento sem palavras) mas é muito, é mesmo quase tudo o que somos.

É essa alegria genuína que levou Pasquale a reverenciar Napoleão quando este morreu, não o pedantismo que fazia dele uma figura cômica. Porque uma coisa é certa: se há uma esfumaçada miragem de norma culta, português correto, reverência à maneira lusitana de falar e escrever – essa miragem é pisoteada alegremente pelos brasileiros de todas as classes – e bem possivelmente pelas classes mais remediadas e urbanas. Os jornalistas riem dos gramáticos e da Academia, toda a gente ri de Portugal. A defesa quixotesca da língua culta é um cachorro morto nas ruas do Brasil. Temo que os sociolingüistas o chutem com demasiado prazer. O ódio aos Pasquales se deve a eles representarem um surpreendente sinal de vida no cadáver desse cão. Suspeito que Luedy adivinha que Bagno e Possenti não gostariam do Psirico porque o que correspondente ao Márcio Victor não é o “menas” mas o Pasquale: os “comandos paragramaticais” é que são brega. Se há um país onde regras de gramática são tradicionalmente (e mesmo saudavelmente) desprezadas é o Brasil. Comparemos o que se passa entre nós e o que se passa na França, na Espanha. Os argentinos têm o “vos” e resquícios de uma conjugação referente a esse pronome. Mas quem for filho de alguém que saiba ao menos ler, saberá todas as regras de uso de pronomes que há no castelhano. A rigidez normativa da língua francesa não tem igual. Já disse que sou contra o projeto de lei de Aldo Rebelo. Mas na França, onde a Academia realmente dita a moda (com a contribuição de ninguém menos que Lévy-Strauss, que foi de quem primeiro ouvi que não há línguas mais capazes que outras, que não há línguas primitivas, que não há hierarquia possível entre línguas), as ações de defesa da língua têm muito mais peso do que aqui. Vivi na Inglaterra: na cidade de Londres, as diferenças de pronúncia, vocabulário, sintaxe e tom entre as classes sociais (e a importância que é institivamente dada a elas por todos os ingleses) é maior do que entre as regiões do Brasil, por mais distantes que sejam umas das outras, por maior que seja a disparidade de poder aquisitivo. Dizia-se em Londres que o inglês da BBC era a melhor tentativa de padrão. O mito da homogeneidade do português brasileiro não é meramente um mito: é também a realidade de uma língua transplantada, língua de colônia, em que grupos diferentes de pessoas tiveram de passar a falar uma língua só.

Os lingüistas deveriam ficar felizes pela oportunidade. Na verdade acho que estão felizes. Não apenas o livro do Bagno está na 50a edição: a própria ciência lingüística encontra terreno tão fértil aqui quanto a psicanálise na Argentina. Bagno prefere repetir Marilena na cantilena da formação que não pode ser festejada, mas a colônia em que o príncipe da metrópole declarou a independência é tão original que, mesmo tendo ficado séculos atrasada em relação às outras colônias ibéricas quanto à instituição de universidades – e que exibe ainda a cicatriz desses descompassos e esquisitices nos resultados dos exames de aprendizado dos seus estudantes – produziu o maior romancista latinoamericano do século 19 (Machado) e o maior romancista latinoamericano no século 20 (Rosa) – pelo menos no dizer de Rodrigues Monegal, o grande teórico hispanoamericano de literatura.

Uma empreitada de familiarização da maioria dos brasileiros com as letras já agradece a contribuição que lingüistas como Bagno e Possenti vêm dando. Eu teria preferido me manter como o espírito de porco que, mesmo sem ser estudioso formal da matéria, toma a defesa dos comandos paragramaticais e escarnece dos esquerdismos triunfantes. Mas a leitura de “Preconceito lingüístico” mudou meu mood. Agora prefiro festejar o sucesso desse grupo tão intolerante quanto generoso. Acompanhar o aproveitamento das contribuições que ele traz. Claro que eles podem, como Tom Zé, recusar minha aprovação. Não faz mal. Seguem podendo ser bons para o que interessa.

Minha adesão aos lingüistas tem preço. É preciso que eles ouçam este leigo com a mesma isenção que ele os ouviu e pensem ao menos nas questões seguintes. 1) O cientificismo é, em muitos meios, considerado um preconceito. 2) As regras são sim filhas do uso real da língua pelos falantes e, tal como os próprios lingüistas detectam agora, sempre vieram de “baixo” para “cima”. 3) O fato de a gramática normativa poder datar de cerca de 2.000 anos atrás não diz nem que gramáticos tenham imposto os caminhos seguidos pelas línguas nem que eles não entrem na história da formação destas. 4) Os resultados de uma bem sucedida ação de letramento da massa brasileira poderão supreender esses seus proponentes: “tendências” poderão mudar porque 5) A escrita influencia a fala.

Continuo gostando do sucesso de Bagno, Pasquale, Maria de Lourdes, Possenti e Psirico.
149 comentários » | Assuntos: antonio cicero, Bagno, cânone, carnaval

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Carta para o Obra em Progresso

Oi, pessoal.

Claro que Caetano também é escritor. Não vejo problema nisso. Fiz um trabalho analisando Verdade Tropical como antropofágico e um colega do mestrado me disse: mas vc tem certeza de que Caetano é antropofágico? Ser escritor, ser antropofágico em si é visto como elogio. Já vi gente culta dizendo isso, como por exemplo um colunista do Digestivo Cultural (uma espécie de altar do Paulo Francis na web), o baiano de Feira de Santana Rafael Rodrigues. Ele se diz um escrevinhador...pfui!

Lícia: quanto a aprender um idioma estrangeiro, vc pode aprender ouvindo, mas sua fala e seu entendimento da forma escrita dele precisarão ser aprimorados. São 4 habilidades: ouvir, falar, ler e escrever. Qual a relação disso com o português padrão? Ele ajuda a vc entender na hora de estudar a gramática do outro idioma, estruturas, principalmente. Sem elas, mesmo vc sabendo seu inglês ou francês pode soar surreal para eles.

Espero não ter "fundido a cuca de Lícia" com essa explicação...

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Nota Sobre Caetano e a Imprensa

Um comentário sobre a polêmica abaixo, que rende comentários em outros blogs. Já encontrei blogueiro dizendo que Nelson Motta foi demitido da Folha por causa dessa história: ele teria defendido Caetano contra os críticos e a Folha teria descoberto que ele produziu o show de Caetano e Roberto. Fico triste de dar essa notícia. Tomara que isso seja um equívoco e Nelson Motta esteja apenas sem escrever temporariamente, pois é bom jornalista musical; acho que ele está sempre mais por dentro da música do que da política. Realmente ele fala mais bem das pessoas que mal e faz carreira assim, o que é também minha inclinação.

Talvez por isso, Caetano voltou à carga em seu blog, agora contra Cláudio Tognolli, que o acusou em entrevista da Caros Amigos de ter, na excursão oficial a Londres em 94, chantageado um jornalista da Folha: ele supostamente teria dito algo como, te dou entrevista se você der para mim uma outra coisa. Tognolli dá a entender que era "a rosa pequenina". Caetano diz que a entrevista saiu e nada rolou. Ele protestou também contra o difamatório termo "máfia do dendê". Tudo isso seria muito justo se não fosse por um detalhe: como vocês podem ver na postagem abaixo, Caetano omitiu o nome do Tognolli como omitira antes o do Marcos Bagno. No Verdade Tropical, Caetano também evita citar nomes e datas de críticos, pois teme promovê-los. Lá também há algo como que uma constante polêmica com a esquerda. Fidel errou feio ao referir-se à canção que criticou, que na verdade expressa o contrário do que ele visava. Mas em Verdade Tropical, sim, Caetano de certa forma pede desculpas por ter se oposto à ditadura militar, mas ao mesmo tempo o faz sempre com o vocabulário político da esquerda, etc e tal. Talvez seja aí que o Fidel identificou o tal pedido de perdão ao imperialismo americano... Em Verdade, Caetano não omite Contardo Calligaris, mas me deu um trabalhão procurar pelo livro onde ele é citado (Hello Brasil), assim como o artigo do Roberto Schwarz sobre ele não foi lançado em 68 e sim em 69 na Temps Modernes...Ninguém pode censurar Caetano por não querer dizer o nome de seus críticos. Talvez seja superstição neomística. Em muitos lugares, evita-se falar o nome do demônio, pois julgam que isso o evoca.

Outra questão que Caetano omite, mas é importante tocar: ele teve apoio de grupos que estavam rompidos com o PC e faziam apologia da luta armada nos festivais. Isso segundo o depoimento de Vladimir Palmeira no livro Abaixo a Ditadura. É claro que ele não vai falar sobre isso agora, pois não ganharia nada com isso. Soube que Caetano brigou com Zuenir Ventura devido a esse assunto: Zuenir defendeu que os grupos no tempos dos festivais se equilibravam. Caetano passou a não mais falar com ele. Pelo que li de Luiz Carlos Maciel em Anos 60, em 68 o partidão não tinha mais prestígio entre a juventude universitária. O partidão apoiava Chico, Sérgio Ricardo e Vandré, identificados com o projeto nacional e popular que ele propunha desde o Manifesto do CPC da UNE.

Citar nomes na internet, agora que existe o google, é encrenca na certa. Todo mundo rastreia e cobra o que foi dito. Caetano é um grande artista e, com sua crítica da crítica, passei a achar que o comentário de Jotabê foi subjetivo demais. Jotabê curte Broken Social Science, banda que meu irmão mais novo curte. Se meu irmão mais novo, que toca na Dead Lover´s, fosse ao show de Roberto e Caetano também acharia o show chato, quadrado. Só não vejo essa mistura de hiper-erudição e ignorância na crítica de rock da Rolling Stone. Meu irmão saiu numa matéria lá e me contou que deu uma entrevista de três horas, da qual eles aproveitaram só um pouco. Mas a matéria foi muito boa e os comentários da Rolling são mais equilibrados que o da finada Bizz, que tinham muito daquilo que Caetano um dia criticou: o Pepe Escobar vê uma banda numa garagem inglesa e diz que aquilo é bem melhor que nós, no Brasil, escutamos (mas isso é Pepe via Caetas). Não vejo também hiper-erudição em meu xará Lúcio Ribeiro nem em Álvaro Pereira Júnior. Nesse último há algo de Paulo Francis. O Ribeiro me pareceu simpático quando eu e meu amigo Rodrigo Soares Camargos deixamos para ele um disco da banda Horta lá na Folha. Ele respondeu meus e-mails com secura, mas simpatia. Lúcio Ribeiro acertou ao elogiar Belle and Sebastian (de cabeça, pelo menos um bom acerto e pontos para ele!)

A questão toda dessa polêmica talvez não seja Caetano e sim Roberto Carlos, esse sim, inimigo da imprensa (nunca li entrevista dele) e que acaba de fogar literalmente no fogo uma biografia não-autorizada. Mas, como Roberto é, esse sim, medalhão nacional, com enorme popularidade, apoio da Globo, fãs fanáticos e transatlânticos. Nihil obstat, Rogério Duarte já disse que ele encaretou como ninguém: do rock aos bolerões e canções que viraram trilha sonora da ditadura militar no tempo do Médici, como Jesus Cristo. Roberto Carlos não foi tocado na polêmica. Gerald Thomas lançou a pergunta em seu blog: mas, como pode, Caetano fez tanto pela cultura nacional, não era para estar acima da crítica? Concordo que sim, Gerald, mas a crítica quer mesmo é atacar Roberto; como não pode, ataca Caetano com virulência redobrada. Aí, para mim, é que está o x da questão.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Ai, Que Preguiça!

O brado de macunaíma continua muito atual. Esse sentimento do Macunaíma é mais que atual: é tédio diante das coisas que, embora barulhentas, são ocas. E a viúva de Cobain quer explorar Caetano, diz uma manchete. Mas, sinceramente, Guilherme Habacuc me parece brilhante. Vou postar uma entrevista dele aqui.

Meu amigo e maestro Nivaldo Santiago me disse: cuidado com Nietzsche, tudo o que ele diz é num tom professoral.

Eu estou achando muito divertida a polêmica lá no Obra em Progresso, do Caetano. Ele tem uma obsessão pelo Diogo Mainardi, que contrapõe ao Sérgio Bianchi, classificando um de direita e o outro de esquerda. No entanto, Caetano e Francis abriram para posições como a de Diogo. No tempo da ditadura militar, uma pessoa como ele seria rejeitada pela esquerda e pela direita e jamais teria tanta importância. Caetano e Francis criticaram o nacional e o popular e Francis, principalmente, explicitou antipatia pelo País e foi aceito assim mesmo.

A coisa deriva para o choque com os linguistas. Foi de longe o post mais comentado dele até hoje no blog, pelo que pude ver. E tem uma disposição para mexer em ninho de vespas. Ele emprega largamente a expressão esnobe há algum tempo. Disse que o neo-rock and roll inglês (The Smiths) seria um esnobismo de massa, ou seja, mania de querer estar na moda e desejo de subir a uma classe superior partilhado pelas massas. Não vejo muito sentido nesse tipo de crítica. Ou é elogio? Ou não! O fato é que Caetano repassa críticas aos outros, muitas vezes de outra geração, sem embasamento para se defender delas. Um exemplo é o MV Bill.

Até o professor Sírio Possenti apareceu lá, a propósito, numa postagem até moderada, dadas conclusões tradicionalistas de Caê. Uma amiga minha uma vez chamou Caetano de Caê nos bastidores de um show e ele esbravejou: Caê não, é muito comercial! A posição de Caetano é: ele conhece as novas teorias (são diferentes de moda, em ciência há avanço e não moda), mas retorna tranquilamente a posições conservadoras. Em termos de linguística, em termos de política. E ele passou de uma coisa a outra tranquilamente! Sobre Lula, ele não tratou de linguística, mas de suas posições políticas. Resumo da ópera: a opinião de Caetano é que Lula pode ser atacado com proveito por não falar português padrão. São ataques políticos que levam em conta, justamente, o preconceito que se tem com quem não fala a variedade padrão num discurso público. E Lula aparenta dominar tanto a norma culta quanto a padrão, vide entrevista para a Folha em 2002, onde ele atirou "concomitantementes" como quem atira rosas para os fãs. A moderação do Obra em Progresso é antipática e necessária, além de um pouquinho obscura, mesmo explicada em seus mistérios. Mistérios do samba de Hermano Viana.

O livro Mistério do Samba, do Hermano, teve momentos bons, como quando disse que os frankfurtianos teriam de falar na raiz negra do jazz. Eu destaco como momento infeliz um em que ele fala que a Axé Music é "cartão postal" (?) e escreve em nota de rodapé: não tenho nada contra cartão postal...

E eu ainda vou escrever um livro: "À Sombra das Piriguetes em Flor", explicando Proust para os jovens. Não, pessoal, não é o Alain Prost da Fórmula 1. Pois rapariga é mais pesado que moça, rapariga é piriguete, que eu saiba, aqui e na Bahia. Se Caetano for realmente seguir a norma culta, deve cantar "Eu sei que vou amar-te" ou "eu sei que te vou amar" quando for cantar a famosa canção. Será que José Saramago aprovará? Há chances de sucesso em Portugal e de pontos com o Pasquale.

Finalmente: usar uma metáfora onde a norma culta vira "sistema de esgoto das elites" e o português não-padrão é associado a "favelas" foi um lance digno não de Valdick Soriano, mas de Frankito López, o índio apaixonado...

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Linguistas


LINGÜISTAS
2/09/2008 1:51 am

Peço perdão a C por interromper o que quer que seja que estávamos falando (o que era mesmo? sobre críticas e a imprensa? alguém pensou que era contra São Paulo? jamais: estou muito no Rio mas gosto muito mais de São Paulo sob vários pontos de vista - um dia volto a esse antigo tema): preciso dizer a Lucas Matos que eu nunca escrevi que lingüistas não amam a língua portuguesa - e que quando falei em demagogia eu me referia a determinados argumentos que vi publicados, não a todos os lingüistas. Não preciso ser especialista na disciplina para me manifestar. O que escrevi foi: “Sou apaixonado pela língua portuguesa e por gramática (ao contrário de lingüistas e demagogos em geral, acho o sucesso público de figuras como o professor Pasquali um bom sintoma).” Já li e ouvi de diversos demagogos (alguns eram lingüistas) reações enraivadas à presença pública de Pasquali e outros gramáticos que dão dicas em revistas ou na TV. Diferentemente deles, acho um bom sinal que tal fenômeno tenha surgido e crescido. Não há nenhum charme de falar sobre o que não sei aí. Sei muito bem de tudo isso. Quanto à lingüística propriamente dita, li Saussure (aquelas aulas) no início dos anos 70. Li somente porque os poetas concretos falavam dele, Lévi-Strauss (cujo “Tristes trópicos” me apaixonou em 1968) falava dele, todos falavam de Jacobson, que falava dele. Fiquei maravilhado com a afirmação de que a língua é viva e mutante na práxis dos falantes: a língua é falada, a escrita seria apenas uma notação convencionada a posteriori, como as pautas musicais. Nunca vou esquecer sua observação de que o francês é a única língua ocidental que tem uma palavra cuja grafia não guarda nem um só dos valores fonéticos originais das letras que a compõem: “oiseaux”. Depois, entre muitas outras conversas, observações e leituras, fui nuançando essa visão. Para meu governo (tenho uma vida mental íntima, como todo o mundo, que não se desenvolve para publicar-se: aqui no blog naturalmente essa vida íntima se expõe mais, mas é só uma tênue película - como sói acontecer.). Há já um bom número de anos, fui fazer show em Campinas e um professor da Unicamp me entregou um presente: o livro de uma lingüista, com uma dedicatória bonita (”Para Caetano, com as palavras que me faltam”). O livro era sobre português europeu e português brasileiro. Talvez surjam aqui imprecisões, já que perdi o livro numa das mudanças que se seguiram à minha separação - e muitas vezes o confundo com um outro, de autoria coletiva, chamado “Português brasileiro” (título e expressão que adoro). O da professora era escrito num português excelente e tudo nele me interessava. Mas havia coisas que me ficaram como questões numa discussão que nunca se deu. Por exemplo: ela assumia de uma vez por todas que a segunda pessoa do singular não existe no Brasil. É “você” e acabou. A segunda do plural, então, já tinha morrido antes de o Império terminar. Considerava também como inexorável o desaparecimento futuro das conjugações reflexivas (os verbos pronominais). Ora, eu acho que os gaúchos dizem “tu” a torto e a direito (talvez mais a torto do que a direito); os cariocas conjugam, com muita ginga, verbos na segunda pessoa para enfatizar ironia ou agressividade (”tás me estranhando!”, “tás por fora”, “tens cara de veado” etc.) e usam o “tu” para mostrar informalidade (”tu é gay, tu é gay que eu sei”, o Maracanã grita para alguns jogadores; meu filho de 16 anos diz a seus amigos - e ouve deles - coisas como “tu vai lá e chega na mina.”); os pernambucanos perguntam sempre “viste?” - que muitas vezes eles suavizam para “visse?”; os paraenses conjugam o verbo na segunda pessoa, quando escolhem “tu” em vez de “você” - e muitos deles usam o possessivo na segunda do plural (a um casal ou grupo de amigos perguntam: “esses livros aqui são vossos?”). E, seja como for, todos os brasileiros, inclusive (talvez mesmo principalmente) as crianças entendem as letras das canções de Orestes Barbosa ou de Chico Buarque em que o cantor se dirige à amada na segunda do singular. Não se pode dizer que todas essas pessoas não possuam esses recursos da língua. Muito menos que as estará oprimindo quem lhes explicar como funcionam. Por outro lado, meus amigos baianos e cariocas (inclusive muitos semi-analfabetos) riem dos mineiros (e de alguns falantes do interior de São Paulo) quando eles omitem o pronome dos verbos reflexivos: “paixonei com ela” (em vez de “me apaixonei por ela”), “espera eu aprontar” (em vez de “espera eu me aprontar”), “assustou” (em vez de “se assustou”) etc. Lembro que, no livro, a professora indicava tratar-se de tendências. Mas, além de ela dar valor normativo a essas tendências, o argumento de que qualquer transmissão de conhecimento relativo à tecnologia da língua é opressão era recorrente. Essas eram questões que gostaria de discutir com ela. Mas meu tempo foi sempre escasso - e temi importuná-la e tomar seu tempo. Depois perdi o livro. Volto a pensar nessas coisas (e em outras que encontrei, nascidas das descobertas de Noam Chomsky) sempre que vejo reações públicas de lingüistas a qualquer exposição de paradigma culto. Finalmente, li uma entrevista na Caros Amigos, que me foi enviada por Tuzé de Abreu, de um lingüista que escreveu “A norma oculta”, defendendo o português de Lula contra os preconceitos da “elite”. Eu tenho idéias políticas a respeito. E não preciso me formar em ligüística na Sorbonne para expô-lo. Claro que são argumentos para se discutir. Mas são fortes. Na entrevista do autor de “Norma oculta” (não estou evitando escrever seu nome: simplesmente esqueci, mas faço questão de mencionar o nome do livro, que deve ser lido) há agressões a Pasquali (por parte dele e dos entrevistadores) e a toda idéia de correção ou enriquecimento da fala. E um quase silêncio mórbido sobre a língua escrita. Ora, eu acho que esses arroubos de populismo são em geral um superesnobismo mal disfarçado. Claro que sei que se escrevia “frecha” (até os poetas românticos ainda usavam essa forma) e que , portanto, dizer “TV Grobo” não é exatamente errado. Mas as pessoas que dizem “grobo” são as mesmas que têm vocabulário menor, menos acesso aos conhecimentos, menos poder. Os emergentes brasileiros que, saindo da pobreza para a crescente classe média, desejam aprender com os Pasqualis da vida são os alvos finais da agressão desses lingüistas. Por mais bem intencionados que sejam, estes resultam demagógicos, pois proíbem a troca natural entre os níveis de informação (sendo assim mais contra o dsenvolvimento orgânico da língua do que os gramáticos) e ostentam estar de posse de teorias de ponta. Aliás, naquela longa entrevista de Lévi-Strauss a Didier Eribon, o grande antropólogo diz que começou influenciado pela lingüístca mas que nos últimos anos deixou de interessar-se pelos textos teóricos da disciplina por achá-los muito esnobes e preciosistas. Acho que se tivermos mais brasileiros letrados, melhores escolas, menos pobreza (isto já começa a se dar), o trato com a palavra escrita poderá mudar muitas “tendências”. E é gritante o desleixo pela palavra escrita nesse processo. Sim, me lembro de Saussure. Mas, por exemplo, há “tendências” misteriosas: por que leio hoje nos jornais e nos livros quase sempre “em um” ou “em uma”, em vez de “num” ou “numa”? Será que há uma regra que desconheço? Os falantes que ouço, todos, sempre disseram “o corpo foi encontrado num canto da praça Genral Osório”. Mas os jornais escrevem “em um canto da General Osório”. As moças da TV já dizem preferencialmente “em um”. E já começo a ouvir pessoas de carne e osso dizendo “em uma rua escura” em vez de “numa rua escura”. Será que é regional (como a professora que me mandou o livro toma uma inclinação mineira contra os verbos pronominais como universalmente brasileira, eu estarei tomando uma tendênia baiana a fazer a contração da preposição “em” com o artigo indefinido como regra nacional?)? “Você e tu”, está na minha letra de “Língua”. Odeio ter lido um elogio à decisão do novo traditor de Proust (um Py, aliás bom) de “evitar o lusitanismo “raparigas’” e chamar o título do terceiro volume de “Em busca do tempo perdido” de “À sombra das moças em flor”. Mas quê que é isso? Trata-se de um livro do início do século 20, contando histórias que se passam no século 19, um livro culto, complexo - por que diabos deve-se sacrificar o ritmo e a sonoridade bonita que Mário Quintana encontrou para traduzir “À l’ombre des jeunes filles en fleur” (inclusive mantendo o mesmo número de sílabas e a acentuação no “i” do original)? Só para usar o termo “moça”, vulgar, pesado, e dar a impressão de que escreveu em português brasileiro “natural”, sem “lusitanismo”? Não! Para mim ficou foi sem a beleza de “À sombra das raparigas em flor”. O que isso tem a ver com os lingüistas, a língua falada, a norma culta, a norma oculta, a demagogia e a mania de pensar que o melhor modo de resolver o problema das favelas é destruir o sistema de esgoto de que desfrutam as “elites”? Tudo.

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30/08/2008 5:28 pm

Osias,

Sempre penso em como a crítica de cinema tem sido mais bem servida do que a de música popular. Não quero desmerecer os críticos de música, mas em toda parte há maior seriedade cercando o crítico de cinema. Seriedade editorial, para começar. Embora o cinema seja arte novíssima - e tenha começado como mera atração de feira de novidades - , ele ganhou status de assunto respeitável. Suponho que isso aconteça porque o público de cinema é mais adulto, melhor de vida e mais letrado do que o público da canção. Mas acho gostoso esse desequilíbrio que veio com o upgrade britânico para o rock nos anos 60: os críticos de cinema mantêm seu ambiente tradicionalmente sério, mas os de música misturam ignorância com hiper-erudição e petulância nos julgamentos. Só não deixo passar o uso que se faz disso para manter o mito de que somos cronicamente inviáveis. Acho que se o professor da USP elogia o filme de Sergio Bianchi e desconhece o romance de Diogo Mainardi é só por demarcação de território entre “esquerda” e “direita”. Os dois livros de Mainardi que li (aconselhado por Paulo Francis que dizia, ainda na Folha, que Diogo era o cara) são muito melhor literatura do que “Cronicamente inviável” é bom cinema. O que não é dizer muito. É raro alguém escrever de modo inteligente e equilibrado sobre música popular. Mas a maluquice desproporcional da crítica de rock, feita de elogios extravagantes e desaforos, excita. É sinal de que samba (etc.) não é resguardado, não é coisa de classes dominantes. Me sinto bem nesse lugar. Vai aí abaixo uma leitura/piada do artigo do cara do Estadão. É só para divertimento. Eu mesmo, antes de reler o que escrevi, vi que tinha grafado “trexo” em vez de “trecho” numa das veses em que usei a palavra. Quando, por causa de um bate-boca ridículo sobre um outro show-tributo a Tom Jobim, mandei um texto pro JB chiando com o Xexéo e chamando-o de ignorante, a primeira frase da resposta dele era uma denúncia de que eu escrevera um “z” onde deveria ter escrito um “s”. Sou apaixonado pela língua portuguesa e por gramática (ao contrário de lingüistas e demagogos em geral, acho o sucesso público de figuras como o professor Pasquali um bom sintoma) mas sou muito desarmado em matéria de ortografia. O Jotabê e a Colombo só receberam tanta atenção (de quem não tem tempo para quase nada além da Obra em Progresso para preparar o novo CD) porque sou obsessivo com a afirmação das glórias nacionais (justo eu que escrevi aquele samba para Aracy - e a pedido dela!). Escrevi a “aula” abaixo porque Paulinha adora minhas gramatiquices e só a posto para você ler:

Caetano, o Rei e o show de naftalina

Mais preocupados em lustrar prestígio de Tom Jobim do que em ousar e suplantar-se, totens da MPB fazem noite tediosa

Crítica Jotabê Medeiros

Os melhores momentos do show de Roberto Carlos e Caetano Veloso em homenagem a Tom Jobim acontecem quando o próprio Tom Jobim, no telão, surge cantando suas canções e tocando-as ao piano. É um efeito sintomático: quando a homenagem, ao vivo, é menos vibrante do que a imagem vítrea, a memória, algo vai errado.

Na segunda frase temos logo uma formulação torta: “é um efeito sintomático”. Mas isso é problema de estilo. Já as vírgulas que separam a expressão “ao vivo” são mais do que desnecessárias: constituem erro, uma vez que “ao vivo” tem o mesmo papel de adjetivar “homenagem” que “vítrea” tem de qualificar “imagem”. Trata-se de uma mania de usar vírgulas em excesso, coisa que tem prejudicado tantos textos jornalísticos (e mesmo literários) entre nós. Há também imprecisão (e mau gosto estilístico) em chamar “a memória” de “imagem vítrea” (por quê? porque se tratava de projeção de vídeo? será que alguém pensa que vídeo é vidro? ou apenas quer dizer que imagens na memória são de vidro?).

Roberto e Caetano fizeram de tudo para Tom Jobim: bajularam-no, superlativaram-no, choraram-no.

Como o autor justificaria o uso da preposição “para” com os verbos (seguidos de pronomes átonos) que vêm depois dos dois pontos?

A platéia entendeu, compreendeu, participou, emocionou-se junto - talvez mais pela própria força das canções do que pela grandeza das versões.

“Entendeu, compreendeu” e “participou, emocionou-se junto” formam um par de incômodas redundâncias. E o “talvez mais” diz que a “grandeza das versões” é imensa, já que a “força das canções” em pauta é reconhecidamente extraordinária (apreciação da qual o jornalista nem de longe discorda). Todo o texto (e seu título) gostariam de dizer exatamente o contrário disso.

Mas tudo que Roberto & Caetano não conseguiram foi fazer com que a obra de Tom suplantasse a solenidade, a paródia, o gesto imitador.

Afinal o tom criticado era de solenidade ou de paródia? E “gesto imitador” vem para ilustrar uma ou outra? O período resulta incompreensível.

Aboleraram Tom Jobim, regrediram sua canção à idade da pré-bossa, ao barroquismo da fase Orlando Silva (nem ao menos um Mário Reis pintou ali).

Mas afinal os cantores não conseguiram sair da solenidade ou “aboleraram Tom Jobim”? Sem querer entrar muito nas questões de conteúdo, não se pode deixar aqui de notar que foram cantadas muitas canções do Tom da fase pré-bossa nova, período em que o samba-canção era tido como “abolerado”, com o qual Orlando Silva nada tinha a ver. Orlando Silva, um estilista típico dos anos 30, é o cantor que mais influenciou João Gilberto (João não se cansa de dizer que Orlando era “o maior cantor do mundo”). Com todo o respeito por Mário Reis (e o reconhecimento das afinidades superficiais entre seu canto e o de João), sempre senti que João é mais Ciro Monteiro e Orlando Silva filtrados por Chet Baker do que Mário. Para piorar a confusão, o jornalista qualifica como “barroquismo” as características do canto de Orlando, que nada tem a ver com o sambolero pré-bossa nova, com o qual Tom, sim, tem tudo a ver. E o verbo “regredir” - é transitivo direto?

Naftalínico, o concerto cedeu à nostalgia, à vontade de que o tempo fique congelado, que as coisas sejam imutáveis e polidas ad infinitum.

Que miséria redacional! “Naftalínico”, esse horrendo neologismo (o adjetivo existente é “naftalênico”, referente ao naftaleno, de que “naftalina” é um nome comercial) abre o período, que é confuso em si mesmo e incongruente com o aparente argumento central do artigo. Além de o abandono da preposição “de” na última frase deixar o trecho capenga, surge a pergunta: cedeu-se à vontade de que “o tempo fique congelado” e as coisas sejam “imutáveis” ou que elas sejam polidas “ad infinitum”? Digamos que o jornalista creia que “imutáveis” e “polidas ad infinitum” sejam expressões sinônimas: como ele concilia isso com a afirmação de que se “abolerou” Jobim?

O pianista Daniel Jobim, neto de Tom, usava o chapéu característico do avô, como que para reiterar a onipresença do compositor. Um gesto dispensável, já que o próprio repertório tinha essa função.

Deus do céu! O repertório tinha a função de reiterar a onipresença do compositor? E o chapéu de Daniel (que é um dos elementos constantes na maneira poética e desconcertante de ele incorporar a persona do avô - traço de sua própria personalidade que se salva da estreiteza pelo modo espontâneo com que sua musicalidade abissal se expressa) foi usado “como que” para reiterar essa reiteração?

Foi como num jogral escolar em homenagem ao Duque de Caxias ou coisa parecida, em que as qualidades do homenageado são discorridas de forma artificial, mal ensaiada. Um lustro tedioso num monolito de ouro.

“Um lustro tedioso” faz pensar num qüinqüênio sem novidades. Mas será que o jornalista crê que essa imagem do monolito de ouro (supostamente a obra de Jobim, que, em outros lugares do texto, ele lamenta que se tenha deixado “congelada”) a que se dá um “lustro tedioso” é uma boa imagem literária? E as qualidades do homenageado “são discorridas”? O verbo “dicorrer” aí pode ser tomado como transitivo direto? E o Duque de Caxias, como pôde o autor colocá-lo tão perto desse monolito? É isso que se aprende nos manuais de redação? Jesus de Nazaré!

Caetano (animado com suas sambadinhas à Rubens Barrichello) mostra que é mais eficiente nas versões de clássicos da chamada música brega brasileira (como fez em Moça, de Wando, ou Sozinho, de Peninha). Aí, ele consegue “emprestar” elegância e prestígio à canção e, em contrapartida, revestir-se de sua “sinceridade”. Mas, confrontado com a fineza de Jobim, parece diluir-se, perder lastro ou, então, é apenas reiterativo, com reverência exagerada.

Nunca soube que Rubens Barrichello sambasse. Tenho horror a corridas de automóveis. Comento esse trecho pessoalmente, não como professor. Está mal escrito mas parece conter crítica justa a minhas limitações. Mas o fato é que para mim não há como exagerar a reverência a Tom Jobim.

Há pouca ousadia no repertório: Garota de Ipanema, Samba do Avião, duas vezes Chega de Saudade. Um dos momentos é quando Caetano, em seu set solo, canta Caminho de Pedra. “Essa é uma canção não muito conhecida de Tom Jobim. No disco de Elizeth, que ouvi com Bethânia em Salvador, nos anos 60. Fico feliz em ter a chance de cantá-la aqui, com orquestra. Muito modestamente e muito inseguramente, mas com coração”, avisou, ao finalizar com um “peeeeedra” de doer os ouvidos.

A gente se pergunta: a que exatamente se refere a frase “um dos momentos é quando…”. Aí voltamos e relemos lá em cima que “há pouca ousadia no repertório”. Ah!, um dos momentos em que há alguma ousadia é quando… Ter de fazer força para adivinhar o que um jornalista quer dizer (ou ter que, mentalmente, redigir por ele) - sobretudo sendo algo afinal tão simples - é de lascar.

E a voz de Roberto é tamanha que às vezes ela precisa de controle. Sim, nós já sabemos da extensão de sua voz, ele não precisava exibir-se tanto. E ele ousa muito pouco também, porque não é do seu feitio -mas bem que podia ter algum ás na manga. Apenas um número poderia dizer-se que é surpreendente: Por Causa de Você. Roberto lembra da forma como foi composta - Jobim a deu a Dolores Duran, que a levou ao camarim e fez uma letra para ela escrevendo com “lápis de sobrancelha”.

O número era surpreendente porque Roberto contou que Dolores usou o lápis de sobrancelha? É um tanto ridículo, mas tomara que seja isso que o jornalista quis dizer. De outro modo, o que há de surpreendente em Roberto cantar “Por causa de você”? A identificação dele com Dolores é antiga (e registrada). A história da letra dessa música é folclore conhecidíssimo. Consta que Vinicius já tinha escrito uma letra (ou que Tom já lhe havia entregue a música para que ele o fizesse) mas que, ao ouvi-la ao piano, Dolores escreveu imediatamente as palavras que ficaram coladas para sempre a ela. Teria sido tanta a urgência em fazê-lo que Dolores, sem uma caneta por perto, usou o lápis de maquiagem. Seja como for, Roberto não tem voz muito potente. Tem é musicalidade e naturalidade de emissão, relaxamento no ataque das notas. O “português ruim” do jornalista não dá conta da poesia contida no reinado e na modéstia do autor de Detalhes. O que me soou mais surpreendente na voz de Roberto (embora não necessariamente mais emocionante) foi o “Samba do avião”.

As duas orquestras seguiam caminhos diametralmente opostos. Em Roberto Carlos, sob a regência de Eduardo Lages, a big band servia à música romântica de salão, marca do ?Rei? nas últimas décadas. Com Jaques Morelenbaum, sideman de Caetano, ela ia ao ponto extremo de sofisticação, mas as idas e vindas sugeriam alguma esquizofrenia aos ouvidos.

“Sugeriam alguma esquizofrenia aos ouvidos”????? O que uma frase dessas nos sugere aos ouvidos então? Paranóia? Pânico?

Claro, não seria honesto dizer que foi tudo um porre. Houve bons momentos, especialmente nos números menos solenes, como em Tereza da Praia, que Caetano e Roberto trataram como uma espécie de embolada.

Embolada? Não! Será que ele estava pensando em “desafio” nordestino? Embolada? Muito difícil de entender. Não seria honesto usar a palavra “porre”, nesse sentido, nesse lugar. Mas “Tereza da praia”, da fase do sambolero, foi a única canção tratada de forma abolerada.

A cenografia e a direção do show eram de bom-gosto, com intervenções precisas, procedentes, sem exageros rocambolescos.

Puxa, Felipe Hirsch, Daniela Thomas e Monique Gardenberg adorariam poder dizer algo semelhante do texto do Jotabê, mas é duro ler “intervenções precisas, procedentes, sem exageros rocambolescos”. Rocambolescos? - perguntam-se os pobres Felipe, Daniela e Monique. E: intervenções?

Houve dois concertos cruciais das homenagens à bossa nova nesses últimos dias, os dois do projeto Itaú Brasil: o de João Gilberto, mestre do estilo, e o de Caetano e Roberto, epígonos de João. Por que o de João é mais moderno, menos necrófilo? Talvez porque João é a criatura que se confunde com sua criação - ele parece ter sido engolido pela música, está em uma simbiose doida e sonha com o desaparecimento em pleno palco. Essa condição o salva da armadilha de ser cover de si mesmo.

Aqui, apesar da “simbiose doida” (que diabo é isso?), o escritor do Estadão parece discordar de sua colega da Folha, embora ambos estivessem animados pelo mesmo desejo proviciano da imprensa paulista quando se trata de música popular: soar como os tablóides de rock’n'roll inglês. A Colombo da Folha falou abertamente mal do show de João: ela queria desqualificar a empreitada do Itaú e mostrar que não gosta de bossa nova (então, era o caso de se perguntar, por que a escolheram para escrever sobre o evento?). O Jotabê chama os dois concertos de “cruciais” e parece querer dizer que o de João era bom e o nosso não (o que já cria um problema para a escolha da palavra “crucial”). Mas termina dizendo que o dele era apenas “menos necrófilo” do que o nosso. Que belo elogio! Menos necrófilo! João ia adorar. É no que dá a pessoa não aprender a escrever.

A bossa de Caetano e Roberto, ao menos nesse show, está doente e chamaram dois totens da MPB para fazer a necrópsia.

Suponho que “necropsia” seja uma palavra paroxítona. O acento agudo no “o” que o jornalista pôs não procede. Mas, necrópsia ou necropsia, isso se faz em doentes. E o autor quis florar seu estilo com essa dupla jogada de passar da doença à morte e de separar “Caetano e Roberto” de “dois totens da MPB” numa mesma frase? Seria horrível, mas, dada a debilidade do resto do texto, nem isso parece ser o que está aí. Parece confusão mental e incapacidade redacional a serviço do velho hábito de não permitir que nada brasileiro se afirme. Nos Estados Unidos um texto semelhante poderia significar a perda do emprego por parte de seu autor. Na Inglaterra também - a menos que fosse no New Musical Express ou na revista Mojo (se bem que, do ponto de vista da língua, nem mesmo nessas publicações um artigo desse nível seria admissível).

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domingo, 17 de agosto de 2008

Bahia (texto do Caetano Veloso)


BAHIA
17/08/2008 1:43 am

Caymmi completou sua vida luminosa. Saí do ensaio das músicas de Jobim com Roberto Carlos e fui à Câmara Municipal ver a cara dele pela última vez. Beijei Nana. Rimos. Não pode haver um jingle turístico mais perfeito do que “Você já foi à Bahia?”. E nenhum seria assim puro de toda ansiedade comercial. É que não é para “turistas”. Não tem desprezo nem raiva dos turistas, mas é para quem quer que seja uma “nêga” que mereça ser chamada assim (claro que isso pode ser mulher ou homem: estou falando de algo essencial numa alma humana). Caymmi trouxe a coloquialidade mais natural para os versos e as notas das canções. A melodia inicial de “Você já foi à Bahia?” tem as interrogações no lugar certo, a vírgula no lugar certo, o ponto final no lugar certo. “Você já foi à Bahia, nêga, não? - então vá.” vem em frase melódica que canta a nossa fala natural. E segue assim, na entonação de “Quem vai ao Bonfim, minha nêga”, onde a vírgula entre “Bonfim” e “minha nêga” cai certinho, e esse “minha nêga” vem em notas mais baixas (e ainda descendentes), exatamente como quando alguém (sobretudo um baiano) fala. E a gradação virgulada de “muita sorte teve, muita sorte tem, muita sorte terá”, seguida da volta da pergunta inicial, agora com o ponto final mais definitivo, incidindo sobre a fundamental! E - depois do refrão “então vá” repetir-se ritmicamente seguindo a série “lá tem caruru”, “vatapá”, “mungunzá” - abre-se aquele largo das “sacadas dos sobrados da velha São Salvador…” que eu repeti quase todo (menos o último verso) em “Terra”. Há aí bandeira de que se trata de obra de extração popular, quase iletrada, nas inadeqüações prosódicas de “velha” (que, por força da melodia torna-se - ou tornar-se-ia - “velhá”) e de “tempo” (que vira “tempu” - ou, se você for gaúcho ou paranaense, “tempô”)? Há. É feio? Não. Fica pior quando se tenta “corrigir”? Nem assim. Não fica menos rica essa canção por alguém mudar um pouco a melodia para forçar uma adeqüação prosódica. Nem por alguém entregar-se à deformação popular dos paroxítonos em oxítonos. “Você já foi à Bahia?” é uma jóia perfeita. E, além de ser uma banalidade, é um retrato passadista da cidade. Mas será? Na verdade é um retrato atemporal, um retrato essencial, o retrato de algo que dura mais do que as mudanças que surgem e morrem em pouco tempo. Esse mundo (de aparência passadista mas referido a durações mais profundas - e de extrema naturalidade de dicção) reencontra-se nos sambas todos que Caymmi fez e cantou: “Lá vem a baiana”, “Requebre que eu dou um doce”, “A vizinha do lado”, “Vatapá”, “Vestido de bolero”, “Rosa morena”, tantos. Em todos - e muito claramente na parte repetitiva de “Você já foi à Bahia?” - a exposião consciente do parentesco entre o Brasil e Cuba, a Bahia e Cuba. Jorge Luis Borges, num texto em que lista a contribuição dos negros às culturas americanas - fato que ele credita ao padre Bartolomé de las Casas, por este ter sugerido, por pena dos índios, a importação de escravos africanos - , deplora a existência da “insuportável rumba ‘El Manicero‘”. Nesse texto, típica mas chocantemente, Borges nem sequer alude ao Brasil (imagine alguém escrever um texto sobre a contribuição dos negros na construção das nações americanas e nem citar o Brasil, o maior e mais miscigenado de todos os países da América, o que abriga a maior população negra fora do continente africano!). E justamente o samba que fez Caymmi famoso no Brasil - e o Brasil famoso no mundo, através de Carmen Miranda - é, em larga medida, uma variação sobre “El Manicero”: “O que é que a baiana tem?”. Eu credito à força da língua espanhola a visão desproporcionada de Borges. E Carmen adaptou-se a muitas submissões da música brasileira aos estilos cubanos, mais conhecidos dos norte-americanos (aliás, Exequiela, são poucos no Brasil que, poucas vezes, usam o termo “estadunidense”, e eu entendo: é feia essa palavra: o sumiço do plural de “estados” me causa desconforto, para só dizer o mínimo; e na verdade “americano” quer, no mais das vezes, dizer “relativo aos Estados Unidos da América”, que, indo mais longe do que no caso da África do Sul, é o único país cujos colonizadores não sentiram necessidade de nomear, tomando o nome do continente para si, como se dissessem: “América é onde chegamos, o resto é nada” - e é a partir disso que se comporta a língua ao redor desse conceito; acho natural e saudável que tentemos reagir a isso, mas “estadunidense” não é uma boa solução - nem “estados unidos” é propriamente um nome: o nome é América, “estados unidos” equivale a “república federativa” ou a qualquer outra designação genérica - e, de fato, o México é Estados Unidos do México e o Brasil foi, até pouco tempo, Estados Unidos do Brasil; quando aceitamos o equívoco termo “americano” como significando “dos Estados Unidos”, ou mesmo “norte-americano” (já que este se aplicaria igualmente ao México e ao Canadá), estamos apenas usando uma palavra pelo que ela mais freqüentemente significa: resistirmos a isso não mostra mais nossas forças do que nossas fraquezas). Mas “O que é que a baiana tem?” não ecoa submissão nem humilhação diante da América hispânica: transpira sabedoria no generoso reconhecimento de parentesco. Caymmi surge aqui muito mais alto do que Borges. Mas essa minha volta rebuscada e petulante não deve nos afastar de considerações menos discutíveis. Por exemplo: a combinação reveladora de sutilezas impressionistas com rudeza, tal como se ouve nas “canções praieiras”. A previsão da bossa nova no casamento do coloquialismo natural com a sofisticação composicional, como perceptível nos sambas-canções dos anos 40 e 50. A mescla de canto operístico com intimidade. A contribuição para a criação do autor-cantor (que em língua espanhola e italiana se chama de “cantautor”): Caymmi é o único que conheço que foi, ao mesmo tempo, o Gershwin e o Bing Crosby (ou Al Johlson), uma prefiguração do que seríamos os autores-cantores dos anos 60 em diante, Gilberto Gil, Bob Dylan, João Bosco… Há o caso dos bluesmen, como Robert Johnson, ou dos trovadores franceses, como George Brassens. Mas, sem entrar no mérito da qualidade artística intrínseca de nenhum deles, Caymmi foi algo que eles não foram: um autor como Cole Porter ou Ary Barroso, abrangente, variegado. E foi o que nem Barroso nem Porter puderam ser: o melhor intérprete de suas próprias canções, sobretudo quando sozinho com seu violão. E aquela voz de Caymmi, aquela voz de caverna (que seus três filhos herdaram), voz de caverna marítima, como aquela que, ecoando o ronco das ondas, soa como um rugido de leão, na costa da ilha de Fernando de Noronha, Gruta Azul. A voz de Caymmi é uma Gruta Azul com cantos napolitanos de barqueiros dentro, barqueiros que pensam que enganam os turistas. Caymmi era uma rocha e um anjo. Demasiado material, demasiado espiritual. Caymmi é um núcleo do Brasil. Caymmi será o Mundo. Quem disse melhor sobre suas canções foi Arnaldo Antunes: Não parece coisa feita por gente.

O prefeito de Salvador cometeu um crime ao substituir a calçada portuguesa do Porto da Barra por cimento e granito polido. Aliás, está cometendo. Obra em preogresso. Estamos em posição de apanhá-lo em flagrante e impedir o assassinato. O estilo cafona deve ser semelhante ao do que foi feito na Praça da Sé pelo governo municipal anterior. E o prefeito então era Imabssahy, que é, até segunda ordem, meu candidato para as eleições que vêm aí. Mas a Praça da Sé era, havia muito, um lugar destruído. Talvez tivesse sido desmoralizada quando se derrubou a Sé para facilitar o trânsito dos bondes, bem antes de eu nascer. O que ficou tinha se transformado num terminal de linhas de ônibus muito feio. A arrumação luzidia que Imbassahy admitiu que lhe dessem é vulgar e perua, mas sobressai a impressão de que alguém limpou a sala. Foi uma madame tola e inculta, mas cuidou. No Porto da Barra, pode ser que qualquer trato dê a impressão de ser melhor do que nada a algum comerciante austríaco que tenha um barzinho lá. Mas o Porto da Barra é um ponto nobre do urbanismo de Salvador. Precisa ser cuidado. Jamais desfigurado. A calçada portuguesa é tesouro nosso, de povos que falam português: são parte de nossa estrutura anímica. Em São Luís se mostrou que a recuperação de calçamentos com pedras portuguesas (que não precisam ser portuguesas, como o desvisado prefeito chegou a julgar) pode ser feito com firmeza e precisão. No Rossio, em Lisboa, também. Sei que em Copacabana (não na praia, claro, porque aí até a Dysney ia protestar) mas na Nossa Senhora) fez-se algo parecido. Resolveram atribuir ao tipo de calçamento os desconfortos que advêm de descuido e maus tratos. Rua com chão que parece shopping center também esburaca se não se não há cuidado. O Porto da Barra é uma enseada pequena e parece um anfiteatro perfeito para se ver o pôr do sol, ladeada pelos fortes de Santa Maria e de São Diogo. A balaustrada e as pedras portuguesas (ensombradas por árvores) complementam o equlíbrio estético de um lugar que é a praia do povo da Bahia. Um luxo cool e popular. Pois o prefeito está retirando as pedras portuguesas e já derrubou oito árvores! No dia em que morreu Dorival Caymmi, protesto (e conclamo baianos natos e opcionais a protestarem) contra essa ação estúpida. Vamos repor as pedras portuguesas.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Caetano X Fidel

Caetano está com um novo disco e um blog em www.obraemprogresso.com.br
que traz a polêmica Caetano X Fidel. A história é assim: Fidel criticou a Caetano e a uma blogueira cubana num prefácio para um livro lançado recentemente. No blog a história está toda explicada.
Que Fidel resolva debater com Caetano e uma blogueira é ótimo. Um dia, quem sabe, ele terá um blog e virá até ao penetrália, quem sabe? Será um hombre nuevo, o hombre nuevo que meu amigo Laerte Braga espera.
Nem o governo Bush nem o Fidel são 100% em termos de direitos humanos. Caetano também não é cem por cento humanista, pois tem leituras de Nietzsche e Heidegger e vai no sentido contrário daquele humanismo tradicional, desconstruindo-o.
Ele repetiu uma afirmação ao estilo de Glauber quando disse que a CIA introduziu a idéia de que nosso racismo cordial é pior do que o apartheid. Então já pensou em como deve ser quente a agenda da CIA para a Venezuela, Equador e Bolívia? Caetano falou essa da CIA numa entrevista na Áustria. Caetas mistura muitas coisas. Sou a favor da política de cotas somente a curto prazo e quem me convenceu foi o depoimento de uma estudante de Filosofia. Ela, como negra, deu grande contribuição ao curso com suas críticas e vou transcrever o depoimento dela, que achei na Fundação Palmares, por aqui. Não sei o que as cotas têm a ver com a mística do rap. Acho que o discurso do hip hop e do rap têm todo sentido aqui, ou seja, o protesto. Isso foi bem antropofagizado por gente como Mv Bill. É algo orgânico e não vontade de ser americano. E outra: é preciso esclarecer que o papo de black power chegou via tropicália, na bagagem de Gilberto Gil. Caetas não compra, mas abriu para quem quiser devorar o discurso do rap. Ele força um pouco a barra repassando para os mais novos um certo discurso que foi feito contra ele na época da Jovem Guarda. Muita gente também não queria comprar as versões estilo baby talking que se fazia então. Até Adorno falou contra o baby talking a propósito da audição regressiva...
O apartheid força o sentimento de identidade: estão todos juntos no gueto. Já aqui no Brasil, fazendo uma pesquisa num bairro que foi supostamente um quilombo aqui em Bom Despacho, todos dizem: "sou moreno". É o discurso do conformismo e da indiferenciação. Na minha boca era algo muito positivo e eu não comprava o discurso afro-americano, afro-descendente. Cheguei a criticar duramente o Ric Aleixo, do blog Jaguardarte, por causa disso e ele teve a honestidade de publicar a carta em sua coluna Blequitude do jornal O Tempo. A coluna, na verdade, me influenciou: tinha ótimos comentários sobre Oswald de Andrade, tendo acompanhado o lançamento de uns recitais dele pela Funarte, disco que hoje eu gostaria MUITO de ter. E sobravam toques sobre gente bacana lá, tais como Jards Macalé. Desculpe, Ric, pela rudeza de imitar Glauber e te "patrulhar". Foi um transbordamento de amor e inveja criativa. Quero você sempre tangendo sua LIRA. Mas eu uso afro-descendente e usei para definir a origem da cidade: Bom Despacho Afro-descendente foi um artigo que publiquei na imprensa aqui. Foi melhor do que escrever BOM DESPACHO NEGRA. BOM DESPACHO PRETA. Já pensaram. Certos termos são moda, mas tem seu uso.
Caetano mistura as coisas e é natural que um dos lados reaja negativamente ou se aborreça, pois ele não fecha com um lado, não compra o "pacote".