quarta-feira, 28 de abril de 2021

Elementos Metateatrais no Teatro Oswaldiano: A Morta

 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS – UNICAMP


INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

































ELEMENTOS METATEATRAIS NO TEATRO OSWALDIANO: A MORTA





















LÚCIO EMÍLIO DO ESPÍRITO SANTO JÚNIOR



PROFESSOR:ERIC MITCHELL SABINSON

DISCIPLINA: TEXTO TEATRAL













AGOSTO/ 2005

Este trabalho versou sobre o teatro oswaldiano, especialmente a obra A Morta, obra na qual encontramos elementos uma corrosiva reflexão sobre o próprio teatro e sobre a poesia que aqui vamos explicitar.

A obra teatral de Oswald teve de esperar trinta e quatros anos para ser encenada pela primeira vez com o grupo Oficina, liderado por José Celso Martinez Corrêa, numa montagem que marcou não só sua geração, mas também associou a obra teatral de Oswald de Andrade com essa montagem de maneira muito marcante. Devemos notar que, passados mais trinta e sete anos, novas montagens continuem fora dos palcos. Oswald foi profético a respeito das dificuldades do país em lidar com seu teatro de vanguarda (dificuldades que, supomos, até hoje não foram sanadas, e quem sabe, agravaram-se com o triunfo do realismo reacionário das telenovelas):



Quando escrevi teatro, tendo contra mim, além de tudo, a hostilidade trazida pela militância comunista, tentei inutilmente me fazer representar. O primeiro intento que foi montar O Homem e O Cavalo pelo Teatro de Experiência, de Flávio de Carvalho, deu no resultado conhecido. A polícia não se contentou em proibir a representação, mas fechou o próprio teatro. Depois disso vi com esperança que Álvaro Moreyra pretendia representar a mais viável das minhas peças O Rei da Vela, que chegou a ser anunciada nos cartazes do teatro Boa Vista, em São Paulo. Mas Álvaro foi adiando o espetáculo e afinal o retirou completamente de qualquer cogitação de montagem. Soube mais tarde que a ilustre Itália Fausta, que exercia grande infuência na companhia ameaçou retirar-se da mesma, caso minha peça fosse somente encenada. Doutra feita deu-se caso curioso com Procópio. Este fez a leitura da peça perante um grupo, afirmando que ia representá-la. Em meio do segundo ato teve um ataque de histeria e jogou os originais para o alto berrando: _ isto também é demais!

Esses dois episódios talvez venham apoiar a sua tese de que minhas peças são irrepresentáveis. Ou é Brasil que não está maduro para elas? (ANDRADE, apud: LEVIN, 1995, p. 89).



Oswald inaugurou o primeiro ato de A Morta subvertendo o palco. Colocou sobre ele quatro gigantescas marionetes que se movimentam "fantasmaticamente", e as quatro personagens que correspondem a elas no meio do público, dando através de microfones as falas das mesmas. Esse primeiro ato (intitulado "o país do indivíduo") foi uma grande autópsia do ser humano. Comentando a "Divina Comédia" de Dante, a personagem Poeta tentou salvar sua musa Beatriz da morte, encontrando também a Outra de Beatriz, como um duplo negro de sua imagem.

Podemos dizer que A Morta foi a mais hermética das peças de Oswald de Andrade. Ela seria também aquela que mais intensamente realizou o projeto desmistificador e de auto-reflexão da vanguarda. A peça não deixou de querer intervir na realidade e se inseriu, definitivamente, como uma crítica da sociedade através da subversão da linguagem. Oswald fez da obra literária e da literatura seu próprio tema, para decretar a falência do clássico e eleger o vigor do novo. Desta forma, constituiu-se num ato reflexivo sobre a própria literatura e sobre toda a obra e postura estética do autor. Foi, enfim, um pensar sobre os caminhos do artista no tempo poético, irreversivelmente ligado ao tempo histórico, mas rebelde a todas as leis.

Em sua estruturação global, a peça integrou a suma dos procedimentos anteriores, esboçados em O Rei da Vela e O Homem e o Cavalo, sintetizando-os e fazendo-os incidirem sobre si mesmos. Foi, portanto, uma contestação da linguagem dentro da própria linguagem, do teatro no teatro, do poema através da destruição de um certo fazer poético. Seu tema central _ o Poeta em busca da expressão perfeita, a descoberta da inutilidade da experiência acumulada no caminho percorrido e a súbita coragem incendiária para destruir todo o suor e sangue da frágil trajetória. Foi uma confissão de culpa, uma purgação e a confissão da mais absoluta fé na potência revolucionária da arte. Anos mais tarde, na década de 60, época que representou uma retomada oswaldiana com o teatro de Zé Celso e o proclamado antropofagismo tropicalista, Glauber Rocha tematizou em seu filme Terra em Transe (que forneceu inspiração para a montagem de Rei da Vela) um poeta que proclamou a “impotência da fé”, em meio ao confronto com a morte, a derrota e outras experiências negativas.

Desta forma, pode-se entender a Carta-prefácio que antecedeu ao texto da peça:



É o drama do poeta, do coordenador de toda a ação humana, a quem a hostilidade de um século reacionário afastou pouco a pouco da linguagem útil e corrente. Do romantismo ao simbolismo, a justificativa da poesia perdeu-se em sons e protestos ininteligíveis e parou no balbuciamento e na telepatia. Bem longe dos chamados populares. Agora, os soterrados, através da análise, voltam à luz e, através da ação, chegam às barricadas. São os que têm a coragem incendiária de destruir a própria alma desvairada a que acoitaram. As catacumbas líricas, ou se esgotam, ou desembocam nas catacumbas políticas (ANDRADE, 1990, p. 23).



Eis um reflexo nítido do dilema em que se encontra o artista da vanguarda: por um lado, o apelo da realidade e a ânsia de atingir a massa _ enfim, de construir uma arte produtiva _; do outro, a necessidade inovadora, que, por si só, carrega em si a grande carga não-codificada, reduzindo, portanto, a capacidade de apreensão total pelo receptor. O reconhecimento do desgaste das formas já assimiladas e a consciência da força transformadora do novo, não se constituem em processo simples, pois o afirmar e o negar não se desprendem, nunca, das lembranças anteriores.

A personagem Beatriz, identificada com todas as tentações de fuga à realidade e de cujo amálgama se constrói a matéria da torre de marfim em que se refugia o Poeta, contrapõe-se à missão de “coordenação da ação humana” que o artista tenta recuperar. E do fundo das novas catacumbas que se abrem, desponta o “ato lírico em três quadros” que é A Morta, cujo texto inicial é um misto de prólogo e manifesto do teatro de vanguarda, posto que explica o teor da obra, mas, sobretudo, desvenda-lhe os procedimentos e discorre sobre suas intenções de ruptura. Por isto, mais do que com concessões a uma compreensão de classe, para garantir a continuidade da seqüência cênica, podemos dizer que A Morta já se abriu com elementos metateatrais:



O Hierofante (surgindo na avant-scène, senta-se sobre a caixa do ponto.) _ senhoras, senhores, eu sou um pedaço de personagem, perdido no teatro. Sou a moral. Antigamente a moralidade aparecia no fim das fábulas. Hoje ela precisa se destacar no princípio, a fim de que a polícia garanta o espetáculo. Esse estiole o ríctus imperdoável das galerias. Permanecerei fiel aos meus propósitos até o fim da peça. E solidário com a vossa compreensão de classe. Coisas importantes nesta farsa ficam a cargo do cenário de que fazeis parte. Estamos nas ruínas misturadas de um mundo. Os personagens não são unidos quando isolados. Em ação são coletivos. Como nos terremotos de vosso próprio domicílio ou em vastas penitenciárias, assistireis o indivíduo em fatias ou vê-lo-eis social ou telúrico. Vossa imaginação terá de quebrar tumultos para satisfazer as exigências da bilheteria. Nosso bando precatório é esfomeado e humano como uma trupo de Shakespeare. Precisa de vossa corte. Não vos retireis das cadeiras horrorizados com a vossa autópsia. Consolai-vos em ter dentro de vós um pequeno poeta e uma grande alma! Sede alinhados e cínicos quando atingirdes o fim do vosso próprio banquete desagradável. Como os loucos, nos comoveremos por vossas controvérsias. Vamos, começai! (ANDRADE, 1990, p. 29).



Neste discurso distanciado sobre o teatro, encontram-se o desvelamento pirandelliano dos bastidores e a crítica que nasce, brechtianamente, da conjugação entre a realidade do mundo e a realidade da obra teatral. É o instalar-se do teatro popular, onde a platéia integra o espetáculo, faz-se personagem e cúmplice da trama. Didaticamente, as inovações são explicitadas: o fracionamento das personagens e da trama; a vigência do teatro total, com os espectadores compondo um cenário que é ruína e se declara microcosmo da sociedade, tal como o é o público; tempo e espaço múltiplos; interior e exterior em tensão e, finalmente, o apelo irônico ao beneplácito da “bilheteria”, enfim, a revelação da obra como autópsia.

O personagem do Hierofante nem sequer se define como tal, ele estaria “perdido no teatro”, ou seja, à deriva, à procura de uma peça e de um autor. Hierofante falou sobre o próprio teatro. As frases que se seguem também dizem respeito que transcende os limites da peça, ou seja, a própria recepção política da peça. Hierofante afirmou que, se a recepção política da peça fosse desfavorável, ela poderia ser interditada, ou seja, seria considerada danosa para os poderes constituídos, para o Establishment. Essa afirmação do dilacerado personagem a respeito da moralidade foi curiosa. Parece-nos que, se a “moralidade” exprimisse francamente uma “moral da história” inconformista, a peça não poderia nem sequer ser apresentada, seria interditada antes de começar. O personagem deveria, portanto, dar garantias políticas para a ordem constituída (simbolizada pela polícia e pela platéia): “permanecerei fiel aos meus princípios até o final da peça. E solidário com vossa compreensão de classe” (ANDRADE, 1990, p. 29). Assim sendo, o que o Hierofante fez foi, pelo menos aparentemente, uma concessão à compreensão burguesa da peça, compreensão essa que foi desmentida por sua frase final. O sentido das frases implicou também na fusão da vida com a arte e a própria platéia foi incluída no cenário. Nessa apresentação comparou os atores (e não a obra) a uma companhia teatral de Shakespeare: “Nosso bando precatório é esfomeado e humano como uma trupe de Shakespeare” (ANDRADE, 1990, p. 29).

Desta forma encontramos: distanciamento crítico, agressão, ruptura da separação palco/platéia, teatro de massa, desmembramento e associação, realismo social e realismo mágico, simbolismo e expressionismo em conjunção, enfim, a dissolução de qualquer limite. Toda a hibridez da vanguarda está postulada e é proclamada por uma personagem anacrônica: O Hierofante _ sacerdote encarregado da iniciação dos neófitos, ou, sarcasticamente, aquele que assumiu o tom doutoral. Coube, então, ao espectador decidir e escolher o que quiser.

O que se presenciou, pois, em A Morta foi o dilaceramento doloroso e grotesco de tudo. Foi o debate constante do discurso que se questiona, mas que, nem por isto, deixou de se mostrar, com toda a incoerência de seu estatuto supérfluo, frente às grandes lutas da humanidade contra as quais o artista se viu impotente.

Escrita em 1937, última incursão de Oswald de Andrade pelo teatro que, seguramente, no momento em que se propõe à militância política, deve ter lhe parecido o melhor veículo para fazer circular sua mensagem, A Morta resgata o tom confessional e a auto-flagelação de O Rei da Vela, que também muitas vezes rompeu com o ilusionismo da estética aristotélica e stanislaviskiana, como escreveu Magaldi:



Depois de dialogar com um cliente, no início do primeiro ato, Abelardo I diz a Abelardo II que não quer receber mais ninguém, porque ‘esta cena basta para nos identificar perante o público. Não preciso mais falar com nenhum dos meus clientes. São todos iguais.’ Adiante, quando Abelardo I pergunta se Abelardo II é socialista, ele responde: ‘Sou o primeiro socialista que aparece no teatro brasileiro’. No terceiro ato, Abelardo I grita para o Maquinista que feche o pano e se dirige aos espectadores, dialogando por fim com um Ponto (naquele tempo não era possível imaginar representação sem seu auxílio, desaparecido desde que se exigiu que os intérpretes decorassem seus papéis). Embora Abelardo I ofereça ao Ponto um revólver, o que se ouve é uma salva de sete tiros de canhão, recurso que remete às práticas das sínteses futuristas italianas ou mesmo do surrealismo (MAGALDI, 2000, p. 14).



Se o Rei da Vela recorreu a uma postura que ele chamou de “espinafração”, ou seja, uma crítica social potencializada violentamente pelo deboche e por um vocabulário que remetia ao sexo, A Morta mostrou todo o conflito interior do intelectual afastado do mundo real, sua luta contra as imposições formais e, finalmente, a consciência da Academia e da glória imortal como o cemitério das prateleiras empoeiradas e anestesiadas. Descobrindo-se como função social e conscientizando-se do desvio que foi toda a caminhada, o Poeta purga pelo fogo, queimando a própria obra e deixando em aberto a via para o portador da linguagem da metralha.

Ainda que considerada uma de suas obras mais herméticas, A Morta, na realidade, apenas assume, formal e tematicamente, a ruptura absoluta. E, se Um Homem Sem Profissão ; Sob as Ordens de Mamãe, o livro de memórias de Oswald de Andrade, é apontado como obra essencial para a perfeita compreensão de seu universo estético, poderíamos dizer o mesmo, e relação a A Morta em cujo trançado se encontram todos os valores que o autor contesta e aqueles que assume.

A peça foi repleta de personagens tirados de outras obras literárias (a Beatriz remete à amada de Dante; há um outro personagem chamado Horácio, tal como o poeta da Antigüidade; há a Dama das Camélias e há Caronte, figura da mitologia grega; apareceu também um satírico “Urubu de Edgar”, que é uma referência simultânea ao poeta Edgar Allan Poe e seu mais famoso poema, The Raven). A Morta revelou-se agudamente crítica com relação ao Poeta, inclusive caracterizando-o com “extrema vulgaridade”, a mesma caracterização do doutoral sacerdote Hierofante. A peça de Oswald aboliu o afastamento público/platéia, utilizando-se dessa possibilidade aberta por essa arte e inexistente em outras, como o cinema.

A ruptura estrutural da peça deve-se, primordialmente, a dois fatores: a multiplicidade referencial e a colagem paródica. Do referente literário paródico central _ A Divina Comédia, de Dante Aligheiri, que serve de fio condutor para a personagem central _ o Poeta_ e sua musa fracionada _ Beatriz/A Outra de Beatriz_, o texto retoma um feixe intertextual diversificado, mas bem organizado internamente. Assim, no Primeiro Quadro_ O país do indivíduo_, o significado corre por conta da conjugação de dois motivos amplamente explorados nas peças anteriores: o sexo e a revolução (ou a evolução); no Segundo Quadro_ o país da Gramática, a linguagem é o grande referente que se apresenta como sucedâneo do social; finalmente, no Terceiro Quadro_ o país da Anestesia_, atinge-se, propriamente, o desvelamento do referente (obra literária) numa contestação definitiva à legitimação acadêmica e às obras clássicas. E, mergulhadas no mesmo caldeirão, contesta-se as estruturas sociais sedimentadas pela legitimação oficial. O teatro foi definido pejorativamente, no país do Indivíduo, pela Outra de Beatriz: “Praticamente este edifício só tem forros fechados. Habitamos uma cidade sem luz direta_ o teatro” (ANDRADE, 1990, p. 37). O teatro foi comentado como sendo um lugar subterrâneo, uma cidade obscura. A própria peça rompeu com qualquer apresentação realista ou naturalista, apresentando diálogos surreais:



O Hierofante: _onde estamos, em que capítulo?

O Poeta: _ hospital? Óvulo? Teia de Aranha?

Beatriz: _Navegamos num rio preso! (ANDRADE, 1990, p. 37)



Por outro lado, o elemento mais característico de A Morta é o extremo fracionamento do discurso, com diálogos interrompidos, cenas justapostas, personagens desdobrados em seus duplos e alegorizados. O hermetismo provocado por estes procedimentos, todavia, vai decrescendo à medida que se aproxima do final. Importante salientar que esse final, por sua vez, nada tem de desfecho. É, freqüentemente, interrompido por alusões lineares, ou até mesmo pelo discurso político partidário, ainda que sem o panfletarismo de O Homem e o Cavalo. A justaposição de frases sem lógica, numa certa altura, foi justificada por uma frase: “Só a cicuta de Sócrates salvará o mundo!” (ANDRADE, 1990, p. 39) O intento nessa altura foi fazer a apologia do emersão do sonho, do imaginário e do ilógico como solução para a razão instrumental do sistema capitalista.

Existe, em A Morta, toda uma coragem incendiária impossível de ser domesticada ou compartimentada. Nela sobrevivem associações dialógicas, cuja montagem consiste numa politização anárquica que recria, explodindo de dentro da própria cultura acadêmica, misturando personagens e textos, espaços e linguagens, uma situação caótica e germinadora de novos discursos. A peça se debate como que num penetrar de violação, um estupro cruel e impiedoso da própria literatura, do próprio teatro enquanto conquista inextorquível de um pretenso patrimônio cultural da humanidade.

Se, para Antonin Artaud, a obra de arte nada mais é do que excremento, produto inútil que a vivência despendeu e eliminou, Oswald de Andrade procura transformar essa inutilidade em adubo para fertilizar o solo de uma nova Obra, nascida de muitas outras, e cujo destino é ser consumada e consumida na rua, sem redomas, sob o fogo cruzado dos livre-atiradores. Por isto, precisa, para sobreviver, da linguagem da metralha.

Promovendo a alegoria em sua alusividade irônica e concretizando a realidade como vôo referencial, A Morta adquire a possibilidade de se revelar como um discurso aberto que consegue conjugar, perfeitamente, dois pólos da inventiva oswaldiana: incitação e confissão. Ao se anunciar como ato lírico, já cria o ambiente propício para a confissão, visto que o lirismo consiste na perfeita consonância entre o poeta e o objeto da poesia, no momento supremo da criação poética; ao fazer de si mesma um alvo para seu próprio canhão, incita o espectador a atirar, ele também, as suas pedras.

A paródia da Divina Comédia, na peça, é alusiva e não retoma, passo a passo, o poema italiano, entretanto absorve-lhe o tema e as personagens centrais, sob o signo da inversão irônica carnavalizada. Assim, se Dante atira-se a uma piedosa peregrinação em busca de sua musa beatificada, a Poeta de A Morta persegue, obsessivamente, uma musa esfacelada, em ruínas, prostituída, para cair até o último degrau e descobrir que nada valeu a caminhada, a não ser para certificar-se de que só a destruição o salvará da fogueira acesa do mundo. O fogo infernal, signo negativo em Dante, é, aqui, purificador, enquanto que a luz se torna fria e provoca rigidez cadavérica. Apenas o Purgatório dantesco parece permanecer com seu teor de denúncia social e luta pela justiça. Mas, mesmo assim, fixa-se obstinadamente num presente injusto e conflituoso, no qual se contesta os valores da vida para eleger os da morte.

Como obra metateatral, A Morta parodia também estilos literários fazendo com que o Poeta envergue a toga do Romantismo, mesclado ao Parnasianismo e ao Simbolismo, como forma de ridicularização da personagem, sem deixar impune o próprio autor, enquanto partícipe da produção artística criticada. Por isso, o Inferno é demônio interior do individualismo, revelado logo no Primeiro Quadro; o Purgatório é o beco sem saída do poder opressor, sustentado por uma gramática de regras e leis desgastadas, que cala a voz do presente, sem permitir a instalação do futuro, condenando seus arautos à clandestinidade de um desterro. O Céu não existe: é o tédio supremo, o apodrecimento degenerativo do cadáver gangrenado que sabe que morreu, “a imortalidade estática das prateleiras clássicas”. Assim sendo, é preciso queimá-lo na grande fogueira acesa do mundo.

No final da peça, no país da Anestesia, marcado pela presença da morte e da destruição, personificada em Caronte, barqueiro do Hades, e pelo Urubu de Edgar, novamente emergiram os elementos metateatrais:



O Hierofante: _Formaremos um comício de protesto! O amor quer fazê-la voltar ao país ordenado e terrível da rua.

O Radiopatrulha: _ Onde nos reuniremos?

A Dama das Camélias: _ Vamos para a platéia, assim não perderemos a grande cena.

O Radiopatrulha: _ Vamos!

A Senhora Ministra: _ Que curiosidade...eu sinto! (ANDRADE, 1990, p. 69)



No fragmento acima, os personagens manifestaram o desejo de abandonar o palco para se tornarem platéia e não perder a grande cena. O final de A Morta foi apocalíptico, tudo terminou num grande incêndio. No final, Hierofante provocou a platéia com uma fala com subitamente rompeu com todos os compromissos burgueses:



Respeitável público! Não vos pedimos palmas, pedimos bombeiros! Se quiserdes salvar as vossas tradições e a vossa moral, ide chamar os bombeiros ou se preferirdes a polícia! Somos como vós mesmos, um imenso cadáver gangrenado! Salvai nossas podridões e talvez vos salvareis da fogueira acesa do mundo! (ANDRADE, 1990, p. 70)





Esta fala do Hierofante rompeu qualquer identificação entre público e platéia. Destrói também a moralidade e as tradições, que fingiu poupar para poder descerrar o enredo de A Morta. Só a experiência do negativo poderia redimir o público, que passará passar pela fratura lautreamontiana da modernidade.















BIBLIOGRAFIA:





ANDRADE, Oswald. A Morta. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1990.

________________. O Rei da Vela. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 2000.

________________. Ponta de Lança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.



LEVIN, Orna Messer. Pequena Taboada do Teatro Oswaldiano. Dissertação de Doutorado. Campinas: 1995.



MAGALDI, Sábato. O País Desmascarado. IN: O Rei da Vela. São Paulo: Globo, 2004.



RIBEIRO, Maria Lúcia Campanha da Rocha. Oswald de Andrade, Um Teatro Por-Fazer. São Paulo: Ed. Diadorim/ed. da UFJF.

Nenhum comentário: