quarta-feira, 28 de abril de 2021

Utopia & Antropofagia

  Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior*




Ainda nos anos 2000, muitos não sabem que Oswald de Andrade, além de escritor, jornalista e dramaturgo, possuía um projeto filosófico. Essa dimensão do autor não foi, até hoje, levada a sério entre os que estudam Filosofia. Nos anos 20, Oswald escreveu duas influentes exposições de idéias, configurando um pensamento altamente moderno: o Manifesto Pau-Brasil e o Manifesto Antropófago. Seus textos filosóficos dos anos 40 e 50 (reunidos em dois volumes: Estética e Política e A Utopia Antropofágica) foram uma tentativa de sistematizar e fundamentar as idéias outrora esboçadas em uma forma fragmentária, ou seja, na breve e agressiva exposição de motivos que pediam os Manifestos.

Vejamos um exemplo da revisão de suas idéias. Primeiramente, Oswald escreveu no Manifesto Antropófago: “Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem” (ANDRADE, 1990, p. 101). Mais tarde, na Crise da Filosofia Messiânica, explicou esse ponto de vista, defendendo a Antropofagia da acusação inquisitorial de amoralidade: “A operação metafísica que se liga ao rito antropofágico é a da transformação do tabu em totem. Do valor oposto ao valor favorável. A vida é devoração pura (…). Antes pertence como ato religioso ao rico mundo espiritual do homem primitivo” (ANDRADE, 1990, p. 101).

Pode-se dizer que sempre pulsou, em Oswald, um componente romântico, no sentido da busca de ideais. Mas, para Oswald, essas eram idéias que devoravam. O conceito de Antropofagia foi aquele que teve a melhor recepção em toda sua obra. Ele foi pensado, originalmente, como um diálogo com Montaigne, especialmente seu ensaio Os Canibais. Montaigne viu, naqueles índios brasileiros que visitavam a França, homens “recém-saídos das mãos de Deus”, revertendo a acusação que se fazia de serem bárbaros.

Em Filosofia, Oswald resolveu ir além de Montaigne, aproveitando a senda aberta para a revisão da cultura européia a partir do olhar dos “selvagens” do Novo Mundo. Na maturidade de seus ensaios filosóficos, Oswald misturou, a esse sonho de um homem antes da corrupção social, a consciência da luta de classe, deu a esse homem utópico a vontade de potência, temperada com a dialética de Hegel, separando sempre o caldo das liberdades individuais; a sobremesa foram os dilemas existenciais e “odontológicos”, afirmados por ele como mais importantes do que os “ontológicos”. “Le cannibal c´est moi”, poderia ter escrito a partir da leitura desse ensaio. Oswald passou a falar a partir do lugar desse habitante da América que vivia num mundo onde não existiam as palavras para “pecado” e “perdão”. O inventor da Antropofagia profetizou que o Brasil ficaria marcado por ter sido “um grilo de oito milhões de quilômetros quadrados” e que os conflitos entre a posse (o posseiro efetivamente instalado, o índio dono da terra) e a propriedade (o dono do título, a grande empresa detentora do capital) continuariam a se reproduzir, mesmo na atualidade, entre índios e colonos, sem-terra e latifundiários, etc.

Antropofagia era, em relação ao que veio antes, uma resposta somente cultural ao problema de identidade brasileiro, mas acabou indo além. A partir da Semana de Arte Moderna, não se trata mais de rejeitar o estrangeiro, é preciso incorporar o outro e ver o que há de si nele, além do que há de outro em si mesmo. Há uma convergência entre o Oswald dos anos 50 e o Ricoeur da maturidade: ambos tratam do “Le soi-même comme un autre”. Como foi explicado no Manifesto Antropofágico: “Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu” (ANDRADE, 1990, p. 49).

Assim, enquanto princípio organizador de uma apropriação seletiva, a partir da Antropofagia pode-se organizar uma Bienal: a Antropofagia seria útil para brasileiros e estrangeiros, seria um conceito já exportado, indo além das condições e tempo de sua criação, um princípio transcendente. Será que a cultura brasileira conheceu algo semelhante antes?

Antes de Oswald, Machado de Assis tinha apresentado, satiricamente apenas, o conceito de Humanitas através de seu personagem Quincas Borba. A busca de um princípio universal para todas as coisas foi um dos fundamentos a partir dos quais nasceu a filosofia entre os sofistas. A Humanitas em Quincas Borba era a sátira de uma filosofia do século XIX que acabava justificando a lei do mais forte. Mesmo que muitas outras interpretações possam ser realizadas, a Antropofagia é sempre uma seleção crítica. O princípio funciona agregando valores: as idéias que servem são assimiladas, o que não interessa é descartado. Para além da dialética do senhor e do escravo, surge uma do “devorador” e do “devorado”.

Para refletirmos sobre a Humanitas, tomemos a palestra Sobre o Humanismo, de Martin Heidegger. Machado de Assis, ao escrever sobre esse termo, provavelmente sabia que, ao tempo da república romana, Humanitas foi pela primeira vez expressamente pensada e vista sob esse nome. O homo humanus só surgiu em comparação ao homo barbarus. A Paidéia era então traduzida por Humanitas. O primeiro humanismo era o encontro da romanidade com a cultura do helenismo. A Antropofagia seria, então, produto do encontro das civilizações indígena e africana com a latinidade européia.

Em Machado de Assis, Humanitas permanece a preocupação original de reconduzir o homem novamente à sua essência. E essa apareceu em Quincas Borba como sendo a devoração do mais fraco, o triunfo dos fortes. Na Antropofagia, essa essência é, como no primeiro humanismo, a necessidade do homem de encontrar a si mesmo no outro, assim como as culturas humanas se revigoram encontrando-se umas nas outras. Machado transformou, com sua ironia distanciada, a norma civilizatória (Paidéia) naquilo que deveria ser desvio, mas prosseguiu sendo a lei oculta da sociedade (lei da selva). Assim, em Quincas Borba, o Humanitas deixou de ser uma bagagem civilizatória para tornar-se desvio determinista na compreensão da complexidade da vida.

Quem sabe moldada a partir do Humanitas, a Antropofagia também propõe que a humanidade vive uma devoração universal, mas se opõe a simplesmente chancelar a lei da selva: é contestadora do poder e propõe superá-lo através da razão que devora a si mesma na dialética, assim como na síntese.

O marco temporal da Antropofagia foi a devoração do corrupto Bispo Sardinha, ou seja, a rebeldia sadia e pagã contra o colonialismo corruptor. Oswald também fez oposição a Sócrates, afirmando que foi um parasita ao mesmo tempo moralista e libertino, vivendo às custas das famílias ricas de Atenas. Ao contrário de moralizar, buscando esconder a contradição interna, Oswald propôs que as contradições fossem assumidas em vista de gerarem sínteses e superações futuras. Ele praticou ativamente esse programa: manifestou-se contra e favor de Getúlio Vargas e de Villa-Lobos. Porém, quando Oswald assim agia, não era por gosto de “virar a casaca”; com esse tipo de atitude, assumia que era um “homem em movimento”. Sobre Freud, observou de maneira arguta que aquilo que o fundador da psicanálise designou como ações dominadas pelo inconsciente eram atividades que apelavam fortemente à consciência: comer e fazer sexo (e chamou-as “consciente antropofágico”).

Pelo motivo mesmo de assumir a contradição interna e não ocultá-la, propondo sua própria contínua atualização, a Antropofagia possibilitou, por exemplo, prever o surgimento dos boêmios hippies e beatniks (jovens que queriam fruir o ócio possibilitado pela sociedade tecnológica e a liberdade de costumes trazida pela emancipação feminina, junto com o divórcio e a pílula): do choque entre o matriarcado primitivo, ainda que imaginário, com o patriarcalismo, surgiria um novo matriarcado, onde o ócio criativo seria possibilitado pela tecnologia. Os jovens boêmios de hoje, depois do surgimento dos beatniks e hippies, (e, na atualidade, dos ciberpunks e hackers), passaram a ser novos bárbaros, ou seja, desviantes das normas e convenções que usam a tecnologia contra elas.

Portanto, é preciso superar o dilema posto na abertura do Serafim, recolocado nos seguintes termos na contemporaneidade: entre os intelectuais e os brasileiros cultos, a opção ainda está entre dizer piadas e paradoxos em Nova York para encantar as elites vegetais ou tornar-se apresentador do circo mambembe da revolução (o que equivale a mitificar o operário).

Assim, encerrando essa reflexão que seguiu na trilha de Oswald, façamos uma última consideração: um verdadeiro socialista não pode mais confundir humildade com grosseria, hábitos de higiene e sofisticação com meras convenções burguesas; precisa conscientizar-se (e aos demais) de que o objetivo é que melhoremos todos como seres humanos.

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