sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Tânia e Nélio

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TÂNIA E NÉLIO

Drama em 4 atos


Personagens:

Tânia,
Nélio,
Pai de Tânia,
Mãe de Tânia,
Nivaldo, amigo de Nélio
Celinho, Moacir, amigos de Nivaldo
Tia Noeme, tia de Nélio
Estudantes 1 e 2, colegas de Nélio
Policiais 1 e 2
Garoto vendedor de jornal
Passageiros de um ônibus lotado na avenida Antônio Carlos








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Ato Primeiro


Cena 1


Tânia: Mãe!Mãe!Manhê!
Mãe (bocejando): Quêêê...
Tânia: Mãe, por que você fechou a porta do quarto à noite?
Mãe: Você não dormiu, filha?
Tânia: Eu quase não. Mas o quê houve?
Mãe (olhando para a frente, como se olhasse para uma quinta parede): Bom,filha...
(Tânia encara a mãe, mantendo silêncio.)
Mãe (reticente): Tânia, você sabe do teu pai.
Tânia: Então bebeu de novo.
Mãe: Chegou tonto ontem à noite.
Tânia: De novo. E já sei que vocês brigaram.
Mãe: Chegou tonto ontem de novo...ele só sabe ir pros botequins encher a cara, só. E vem aqui avacalhar.
Tânia (ansiosa): E o que é que ele fez com com você, ontem?
Mãe: Ora, comigo, nada.
Tânia: Ué, nada não?


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Mãe (aflita): Pediu dinheiro, né? Ia beber mais.
Tânia: E você deu ?
Mãe: Pois é, Taninha, eu dei.
Tânia: Como deu, se não tinha! Tamos sem dinheiro nenhum, ontem mesmo você me disse...
Mãe (como se sentisse engulhos de vômito): Eu dei teu dinheiro, filha.
(Tânia paralisada, olhando para a mãe)
Tânia: Não é possível, não é possível.
Mãe: Desculpa, teus irmãos não mandam dinheiro, dão duro mas nem prá eles dá.
Tânia (com os olhos marejados): Ah, não. Ah, não.Como é que pode?! (muda de tom) Era meu, tá ouvindo?
Eu é que ganhei trabalhando na casa de dona Laura Pimentel...tá ouvindo? Era meu!Só meu!Meu!
Mãe (suplicando, arrasada): Filhinha, filha do meu coração, tem dó de mim. Ele ia me esfolar. Perdoa...
Tânia (rompendo em prantos): Eu ia voltar a estudar. Faltavam só uns dias, miséria!
Mãe: Perdoa teu pai...Tava tonto, filha...
Tânia: Aquele desgraçado! Vagabundo, bebum.(Numa explosão): Fodido!(sai em prantos do quarto)


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Cena 2


(O pai de Tânia está abancado no sofazinho da sala. Dorme, roncando. Tânia irrompe na sala, em fúria.)

Tânia (em fúria): Pai, faça o favor, levanta.
(O pai nem se move. Ronca mais alto.)
Tânia (impaciente na sua fúria): Pai, levanta daí.Esta sua bunda. Pai!
(O pai se vira para o outro lado.)
Pai: Ahh...Hummm...O que é!?
Tânia: Pai, preciso falar com você. Você pegou meu dinheiro. Dinheiro que eu economizei, trabalhando
de diarista na casa de dona Laura Pimentel. Eu quero de volta, tá?
Pai (irritado):Não sei não. ( Vira-se e olha para Tânia, incomodado.)
Tânia (frenética):Eu trabalhei para ganhar aquele dinheiro, eu dei duro e você. Pegou meu dinheiro lá e
sumiu com ele, foi beber tudo e isso não vai ficar assim, entendeu, né? Me devolve, vim cobrar.









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Pai (fazendo-se de desentendido): Mas que falação. O quê você está papagaiando aí ? Não me enche.
Tânia (ainda mais furiosa): Você pode estar desempregado, mas eu não vou te sustentar. A mãe anda trabalhando de faxineira e vendendo uns docinhos. E você aí, gastando o dinheiro que eu custei a ganhar.
Pai: Eu precisei e cala tua boca.
Tânia (frenética, revoltada): Pai, com que cara de pau. Seu cara de pau!
Pai: Você tem que me ajudar, afinal eu é que te pus nesta bosta de mundo. E tem mais. Eu não crio porcos para os outros comerem.
Tânia (chorosa): Mas era meu. O dinheiro era meu.
Pai (cínico):Eu precisei. Cala a boca, já.
Tânia: Não calo não.
Pai (rude, ameaçador, ergue-se do sofá e fala num tom ameaçador): Cala, que eu já mandei.
Tânia (histérica):Ladrão! Sem-vergonha! Cara de pau!
Pai: Já disse pra calar a boca! ( dá uma bofetada na boca de Tânia e se encolhe no sofá)
Tânia: Ai! Desgraçado! (investe contra o pai aos tapas e socos)
Pai: Piranha! Putinha! (Dá emTânia um empurrão que a derruba)
( A mãe entra na sala, atraída pelos gritos, vê Tânia no chão e o marido encolhido no sofá.)
Mãe (desesperada): Virgem santíssima, isso é briga de pai e filha! Cosme, essa aí é a sua filha! (gritando) Nossa filha !
Pai (bestial): Essa piranha aí veio me azucrinar e olha. Olha aí, ela tomou prá ver o que é bom!
Mãe: Nossa senhora do perpétuo socorro! Mas ela é uma menina.O quê que você tá fazendo, Cosme, com a nossa menina! Pelo amor de Deus!(abaixa-se sobre a filha, protegendo-a) Filhinha, o que ele te fez?

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Tânia (soluçando, queimando de indignação): Me deu um tapa na boca. Me mandou calar a boca. Desgraçado! Vai ver, desgraçado! Ladrão!(Afasta-se da mãe e sai correndo de casa.)


Cena 3


(Tânia perambula pela praça, simbolizada por um banco. Soluça alto.)


Nivaldo (sentado num banco, indolente):Olá, Taninha.
Tânia (acelerando o passo): Oi, Nivaldo
Nivaldo: Qualé? Tá com cara de choro, menina. Vem cá. (Tânia pára de costas para ele.)
Nivaldo (insistente): Taninha, vem cá. Quem sabe eu te ajudo? Me conta qual é o teu galho.(mudando de tom, irônico):Só não pode ser grana. Eu não tenho e se tivesse, não emprestava.
Tânia (soluçando alto e sentando-se no banco, ao lado dele): Pois é. Pior é que é.(Soluça de novo.)
Nivaldo: Oh, Taninha, perdão. A gente arranja um jeito de descolar a grana. Benzinho, é só me contar o que te aconteceu.
Tânia: Meu pai. Meu pai me roubou.
Nivaldo (assustado): Quanto, benzinho.
Tânia: Todo o dinheiro que eu ganhei tabalhando de doméstica.


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Nivaldo: Não esquenta, Taninha. Logo a turma chega aí, a gente arruma um jeito.(irônico) Sacumé?
( Tânia pára de soluçar e encara Nivaldo, olhando nos olhos dele.)
Tânia: Eu tava me preparando para voltar a estudar, eu já tenho dezessete anos. Não terminei nem a oitava série ainda.
Nivaldo (malicioso): Até que você tá adiantada, Taninha. Você está numa idade bacana. Tem um corpinho
bacaninha.
Tânia: Mas eu preciso da grana. Senão vou ter que trabalhar em casa de família. E eu detesto. Tudo culpa do cachorro do meu pai. Cachorro.
Nivaldo (com malícia cortante):Taninha, tá afins de fazer o quê para arrumar a bufunfa, hein?
Tânia (explosiva): Qualquer coisa.(Tânia olha o céu, sem olhar o rosto de Nivaldo.)
Nivaldo: Mas...qualquer coisa que pintar, você topa?
Tânia (convicta): Topo.
Nivaldo (rindo com satisfação maldosa): Tudinho mesmo?
Tânia: Mesmo. Juro. Juro pela minha alma.
Nivaldo: Então tudo certinho. Quando os caras chegarem, eu falo com eles. E te aviso.
Tânia (levantando-se e se afastando): Então até.
Nivaldo: Até logo.
(Tânia se afasta, nas nuvens.)
Tânia (falando sozinha): Ah. Se eles me arrumarem um trabalho de florista. Que bom ia ser! Eu ia ficar dias mexendo com dálias, rosas, cravos, eu que sempre adorei flores. E eu gostaria de ser costureira, ou então manicure. Ia fazer vestidos lindos. Ia ter umas unhas vermelhas enormes.(Tânia fala dirigindo-se à platéia. Quando termina, fica parada, com olhar sonhador.)

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Ato Segundo

Cena 4

(Nivaldo e outros rapazes na praça à noite.)

Nivaldo: Ô gente boa...Essa turma é da pesada.
Celinho: Que que você conta, Vado?
Moacir: Ficou o dia todo vagabundando, Vado?
Nivaldo: Vagabundo não. Olha o respeito. Ficam espertos vocês dois.
Moacir (recuando): Não. Brincadeira, sô.
Celinho:Olha o Nélio aí.
(Todos olham para fora da cena.)
Nivaldo: Cala a boca, Moacir.
Moacir (irritado): Não vou com a cara dele.Um bebê, isto é que ele é. E o quê temos a ver com ele?
Nivaldo: Ele é bacana, Moacir. Vê se não enche...
(Nélio entra em cena, vestido bem melhor que os demais garotos.)
Nélio:Vado! Tá beleza?
Nivaldo: Tudo nos conforme. Senta aí, cara.
Nélio: E você, Celinho? (Dirigindo-se para Celinho)
Celinho: Tudo limpo.
Nëlio: E o Moacir, por que tá com essa cara? Tá beleza, Moacir?
Moacir(encarando Nivaldo com desprezo):Estou ótimo.
Nélio: ( Mudando de tom, para Vado):Vado, você tem umas bolas aí? Eu estava afins de dar um tapinha.

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Nivaldo: Não topo não. Sujeira. Tem uns canas rodando aí. Pegaram uns caras fumando ontem de madrugada no matagal.
Nélio: (Desapontado): Saquei. Deixa prá lá.
Celinho: E as morenas?
Nélio: Ah, eu vi uma gostosinha aqui na praça hoje, quando estava vindo com meu irmão, de carro.
Celinho: Daqui do bairrro? Falou com ela?
Nélio: Não, não, falei não.
Nivaldo: E como ela é? Uma morena magrinha?
Nélio: Morena, magra, cabelo encaracolado até os ombros.
Nivaldo: Sei, sei quem é.
Moacir: Então, quem é? Quem é? Você não sabe de nada.
Nivaldo: O nome dela é Tânia.
Moacir: Mentira.
Nivaldo (perdendo a paciência): Hoje você tá com a macaca, Moacir! Mas que aborrecimento!
Moacir: Já tô indo embora, seus trolhas!
Nivaldo: Vai com Deus. E o diabo atrás tocando viola.
( Moacir se afasta, em passos rápidos, visivelmente irritado.)
Celinho: O Moá ficou assim é que ele. Ele já foi afins da Tânia, gente.
Nivaldo (irônico):Já deu uns amassos, já.
Nélio (curioso e excitado): Já transou, então?
Nivaldo (encarando Nélio): Não. Mas ela é de transa.
Celinho: Acho que não é...
Nivaldo (enfático): rola sim. Ela tá afim de começar a dar.
Nélio (excitado):Nivaldo, dá pra você arranjar ela prá mim?
Nivaldo: Tá afins, né?

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Celinho: Duvido.
Nélio (incrédulo): Então, você consegue?
Nivaldo: Mas, olha aqui. Vai ter que rolar uma grana. Para ela,está precisada, coitadinha.
Celinho (cruel): Coitadinha, tão putinha.
Nëlio: Ela está dando assim?
Nivaldo: Não. Nada disso. Ela vai começar com isso só agora. Só agora. Deve ser virgem, aposto.
Nélio (curioso): E fica em quanto?
Nivaldo: Vou ver com ela. Eu quero uns cinco mil paus.
Nélio (satisfeito):Tá, tá OK. Amanhã, aqui mesmo. Na pracinha. Vou estar esperando ali no banco da esquerda, sacou?
Nivaldo: Vou ter que falar muito com ela, entende?
Nélio: Tá, amanhã eu vejo se de perto ela é tão gostosa mesmo. Então valeu,Nivaldo, valeu, Celinho.Tá beleza, até amanhã.
Nivaldo: Até mais, então. Então tá combinado, hein?
(Nélio se despede, visivelmente satisfeito.)


Cena 5


(Casa da tia de Nélio, próxima à pracinha, no bairro Betânia.)
Tia Nô: Quem é?
Nélio: Sou eu!
Tia Nô: Ah, Nelinho. Espere aí. Já vou abrir.
Nélio (beijando a tia na testa): Tia, está boa?
Tia Nô: Estou como sempre.

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Nélio: Vou dormir aqui hoje. Trouxe as coisas. (Coloca uma mochila sobre o sofá.)
Nô: Ah, Nélio, você não passou naquela pracinha, né?
Nélio (disfarçando a surpresa ): Ah, tia. Só conheço uns caras lá. Uns idiotas. Não gosto deles.
Tia Nô: Ainda bem, Nelinho, porque ontem pegaram uns meninos fumando lá. Fumando maconha. Mas é claro que nem pensei. Imagina.
Nélio (cortando o assunto): Tia, tem alguma coisa para comer?
Tia Nô (maternal): Claro, Nelinho. Tem pudim. Já vou trazer para você.
Nélio: Ah, claro, tia. Quero sim. Traz lá.
Tia Nô (retirando-se): Já vou.
Nélio(aproximando-se do som, grita em voz alta): Tia, vou colocar uma música para nós, tá?
Tia Nô:Tudo bem, Nelinho (voz em off)
(Nélio coloca uma fita no som e aumenta até o último volume.)
(A tia entra com o pudim): Nelinho! Dá para abaixar a música? (Nélio finge não escutar.
A tia grita):Nélio!Nélio, querido. Abaixa o som um pouquinho.
(Nélio se levanta, incomodado. Abaixa o volume.)
Nélio: Ah, tia. Que pudim lindo. Deve estar ótimo. Traz para mim os talheres.
Tia Nô: Nelinho, já vou. (E corre para a cozinha.)
(Tia Nô volta para a sala com garfos e pratinhos.)
Nélio: Mas tia, como é que foi esta história dos maconheiros?
Nô: Foi a vizinha aqui quem me contou. Disse que a polícia pegou e eles são uns coitados, devem ter dormido em cana.
Nélio: Sabe quem eram eles?
Nô: Não, mas sei que um deles é filho daquela loira lá da padaria.
Nélio: Coitada, deve estar louca.


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Nô: Que nada, não soube nem se desta vez ela foi buscar ele na delegacia. E o filho dela já é de maior. Os outros garotos são menores.
Nélio: Ahhh...sortudos.
Nô: Agora vou dormir, tá Nélio? (ela fala enquanto recolhe pratos e colheres.)
Nélio: Vou para o quarto assistir televisão. Boa noite, tia.
Tia Nô: Boa noite, rapaz.


Cena 6


(Nélio enconta Tânia. Ela é apresentada por Nivaldo a Nélio. Nélio chega bem vestido como sempre.)

Nélio: Vado!
Nivaldo: Beleza, rapaz? Olha só quem está aqui, Tânia. Meu amigo Nélio, conhece?
Tânia (entediada):não.
Nivaldo (malicioso):O Nelinho é um sujeito bacana. (Olhando sucessivamente para Tânia e para Nélio)Bacana até.
Tânia: Onde você mora, Nélio?
Nélio: No São Bento.
Tânia: Lá só tem madame. Gente rica.
Nélio: Pois é.
Tânia: Eu trabalhei para uma madame lá no São Bento. Chamada Laura, Laura Pimentel, conhece?
Nélio:Não, não sei quem é. Agora já vou indo, até mais...

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Tânia (indiferante): Tchau.
( Nélio se afasta, sentando num banco próximo. Nélio permanece ao lado de Tânia.)
Tânia: Ô Nivaldo, você não estava andando por aí com ele? Deixou ele sozinho?
Nivaldo: Sim, deixei, e daí ?(Pausa, olha nos olhos de Tânia.)Tânia, preciso te falar de um negócio. Preciso
mesmo.
Tânia: Negócio?
Nivaldo: Olha, o menino aí, o Nelinho, está afins de você.
Tânia (espantada): Como assim?
Nivaldo: Ah, não te preocupa, não. Ele paga bem. Uma boa graninha?
Tânia: E é para fazer o quê ?
Nivaldo(forçando naturalidade): Dar uma voltinha com ele ali no matagal.
Tânia (indignada):Mas o quê que é isso, Vado.Vê se isto é emprego! Então é isso que você me arrumou, hein?
Nivaldo: Pois é. Ele quer saber. Você topa?
Tânia: Ah, não, Nivaldo.
Nivaldo (seco): São quinze reais para você. E cinco paus prá mim. Ele topou pagar vinte, Tânia, vinte.
Tânia (surpresa): Quinze...Para uma voltinha...Não sei.
Nivaldo: Topa ou não? dondoca, que diferença faz, um nabo a mais ou a menos, sai tudo pelas cachoeiras mesmo!
Tânia: Não sei.
Nivaldo: Daí você vai poder comprar material escolar, vai ser uma bimbada só, ele nem mora por aqui, ninguém vai ficar sabendo aqui no bairro.
Tânia: E a turma? Vai tudo ficar sabendo! Vou ficar com uma fama!



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Nivaldo: Quem faz a fama deita na cama! Ou você acha que vai chover nota de dez mil prá você? E você não tem problema, ele vai usar redinha. Você tem é sorte, que buceta é uma das melhores coisas que existe, é só lavar que já pode usar de novo.
Tânia: Olha... você tem certeza? Ele não está me confundindo com outra menina, não?
Nivaldo: Não, sai que é sua, Taninha!
Tânia (atormentada): Tá, tá bom. Mas avisa ele que não sou mais virgem.
Nivaldo (esfregando as mãos de satisfação): Então, negócio fechado, amanhã no matagal, às três da tarde.
Tânia: Ah, Nivaldo, você é quem vai resolver tudo? Eu vou ter que fazer é com você, por acaso? ‘Tou com medo de topar com você lá no matagal e não com o fresco filho de puta madama.
Nivaldo( Rindo): O mundo é dos mais espertos, putinha!
(Nivaldo se afasta, risonho, enquanto Tânia se encolhe no banco, choramingando.)


Ato Terceiro


Cena 7

(Nélio encontra Tânia, no lugar marcado, no dia seguinte. Junto com ela está Celinho e Nivaldo)
Nélio: Ô Vado! Tudo jóia?
Nivaldo: ‘Tá tudo indo bem.
Nivaldo: Pode falar.
Nélio(ansioso ainda): A sós.


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Nivaldo: Tá bom, tá bom. (Dirigindo-se à Tânia e aos outros da turma:) Olha, a gente vai bater um papo. Esperem aí.
Nélio: Olha, Vado. Quero conversar com a menina antes. Saber se ela já fez isso. Se já fez isso antes, sabe? Ouvir a voz dela, olhar nos olhos.
Nivaldo (sarcástico): Vai ser frouxo! Bebezão!
Nëlio: Desgraçado! Olha que eu desisto agora!
Nivaldo (rindo): Tá, como quiser.
Nëlio: Diz para ela que quero falar. Bater um papo com ela, sabe? Vai lá!
Nivaldo: Tá, vou lá. Mas que prá mim isso é coisa de frouxo, isso é!
(Tânia se aproxima, trazida por Nivaldo)
Tânia: Qual é o problema? O quê quer agora?
Nélio: Er...Você já...você é virgem?
Tânia: Não sou virgem não. Foi com o filho da minha ex-patroa.
Nélio: E como foi...Para você?
Tânia: Preciso falar nisso?
Nélio (irritando-se): Precisa falar sim. Senão pago a metade.
Tânia: Então te conto. Bebi com umas amigas lá num botequim, na barragem Santa Lúcia. Bebi feito uma égua. E quando cheguei na casa da patroa desabei no sofá. Aí eu vi o filho da dona Laura, o Maurício, chegando da rua...Ele enfiou as mãos na minha saia. Me deu um tremendo beijo de língua ali no sofá. E me carregou com ele pro quarto. A partir daí não lembro direito...Lembro dos pôsteres do quarto dele...Uns roqueiros cabeludos...Surfistas...Tinha um enorme, da cabine de um avião... Aí, enquanto o Maurício me beijava, gemia e falava palavrão, eu me imaginava voando num avião...Vendo tudo assim bonito...Quando eu vi, o Maurício já tinha acabado. Daí ele acordou no meio da noite e me mandou cair fora do quarto dele, senão dona Laurinha ia descobrir. Eu fui pensando: “Ah, então é só isso...”

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Nélio: Só isso! Tão sem graça!
Tânia(furiosa): Olha. Não sou obrigada a isso, tanto que hoje não vou fazer nada!
Nélio: Tá, deixa prá amanhã...
Tânia: Você tá é fazendo hora com minha cara, palhaço!
(Tânia se afasta, choramingando. Nélio fica silencioso, olhando para o chão.)

Cena 8

(Nélio conversa com amigos do colégio.)
Nélio(sentado em sua cadeira. Aproximam-se alguns rapazes. Todos vestem uniformes.)
Estudante número 1: Nélio, e as namoradas?
Nélio: Vão bem, obrigado.
Estudante número 2: São mais de uma, Nelinho?
Nélio(irritado): Não. São mais de nenhuma, panaca.
Estudante número 1: E aquela turminha lá do bairro Betânia, te arranjou uma neguinha, como você me disse que ia rolar?
Nélio: Pois é...
Estudante número 2(bestial, gritando de satisfação): Arranjou!
Estudante número 1: E como é que foi? Botou nela na frente ou atrás? Rolou um boquete?
Nélio(seco): Não foi.
Estudante número 2: Seu frouxo! Não come feijão? Não é macho, Nelinho?
Esrudante número 1: Você ia pagar. Para conversar. Assim você pode pagar para a gente, Nelinho. A gente ouve teus grilos.
(Estouram em risadas sarcásticas)
Estudante número 2: Paga! Paga! Paga, frangote, paga!


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Nélio (atormentado): Ora, vão se foder! O quê que vocês têm com a minha vida? Vão se danar.
Estudantes 1 e 2 (em uníssono): Frangote! Frangote!
Nélio (furioso): Com amigos assim, ninguém precisa de inimigos. (Mudando de tom, saindo de cena.)Mas
vocês vão ver. Vão sim. Eu vou contar para vocês.

Cena 9

(No dia seguinte, Nélio reaparece no lugar marcado por Nivaldo.)
Nélio (seco): Ô Vado. Eu trouxe o dinheiro.
Nivaldo (provocativo): Hoje o bacana tá diferente. Você é outro, Nélio.
Nélio (gélido, distante): Verdade, estou diferente.
Nivaldo (ansioso): E as verdinha?
Nélio (tirando a carteira do bolso): Tó aqui. Teus cinco mangos.
Nivaldo (submisso): Ô...Certinho, bacana. Certíssimo. Vamos indo, Celinho e eu vamos até ali...
Celinho (rindo): Não se preocupa, Nélio, nós vamos vigiar tudo bem de pertinho, o bom é que é o mesmo que assistir um filme pornô de graça!
Nivaldo: Cai fora, imbecil! Trata de ficar longe, tá?
Celinho: ‘Tá bom, ‘ tá, ‘tá...
(Celinho e Nivaldo se aproximam de Tânia )
Nivaldo: Hoje não se preocupa, que o cara tá com jeito de quem vai fazer o troço de uma vez só. ‘ Tá meio diferente.
Tânia (atormentada): Vamos logo com isso, Vado. Não agüento mais. E o dinheiro, Vado?
Nivaldo: Vou fiscalizar o troço, Taninha. Depois do serviço te passo a grana.

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(Nélio se aproxima lentamente de Tânia, enquanto os outros dois os conduzem para o matagal. Algumas folhagens e pedras dão a idéia do matagal.)

Ato Quarto

Cena 10

Nivaldo (contando o dinheiro): Foi uma boa idéia minha, se foi.
Celinho: Ô Vado, tem uns canas ali na praça.
Nivaldo: E daí, Célio?
Celinho: Tão subindo a rua...Será que...
Nivaldo (com desprezo, cospe no chão): Ah, que nada.
Celinho (em pânico): Olha lá, cara, eles tão vindo prá cá! CASCA FORA!
Nivaldo: PUTA QUE PARIU!!!
(Todos fogem rapidamente.)

Cena 11

(No matagal, Tânia e Nélio se preparam para o ato.)
Nélio: Tira! TIRA TUDO! (Tânia deita e levanta a saia.)
Nélio (bestial): Assim é que eu te quero, putinha!
(Nélio desabotoa a braguilha, mas os policiais entram em cena.)
Policial 1(afobado, chega e Nélio está levantando as calças, enquanto Tânia ajeita a saia.): Vamos parar com esta putaria aqui!
Policial 2: Vocês vão já para a delegacia de menores. Podem levantar daí!
Policial 1:(puxando Nélio pelo braço): Você ouviu, rapaz!


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Policial 2(levando Tânia pelo braço): Vocês vão dar um pulinho ali na delegacia. Isso que estavam fazendo não se faz por aí, em público? Vocês não têm vergonha?
Policial 1: Menores não podem sair por aí trepando em qualquer esquina não, entenderam? Está no estatuto da criança e do adolescente.
Tânia: Eu só queria comprar meu material escolar! Eu juro! Meu material escolar...
Policial 2: Mas que coisa! (ri )
Policial 1: Ora vejam só! (indignado) Mas hoje só me faltava essa!

Cena 12


Garotinho (ou adulto vestido de criança, dirigindo-se à platéia ): Boa noite, senhoras e senhores. Vai começar o jornal nacional! (Pausa. Depois recomeça, numa ladainha:) Eu não ‘tou na rua para roubar . Estou aqui vendendo jornal, ganhando meu dinheirinho honestamente, enquanto muitos da minha idade estão aí cheirando cola e roubando eu tô só pedindo para os senhores comprar um jornal. (Toma um jornal) e agora vamos às notícias do dia.(As notícias serão mudadas a cada apresentação, de acordo com as manchetes do dia, mas sempre irão culminar nesta:) Foi presa ontem no bairro Betânia a menor T. C. S. , pega em flagrante se prostituindo. O menor N.L.A. foi pego junto com a moça, uma doméstica desempregada. Ele, que cursa o terceiro ano científico num colégio de classe média alta na capital mineira, foi logo tirado da delegacia de menores pelos pais, mas T.C.S. foi detida para responder mais alguns detalhes. A menor insistia que se prostituía para comprar seu material escolar. Os policiais que a prenderam desconfiam que ela também é viciada em maconha, cocaína e heroína e se prostituía para obter as drogas, um procedimento comum nestes casos.



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(Em seguida o garotinho se dirige à platéia, após ter simulado ler tal notícia no jornal):senhoras e senhores,obrigado por terem comprado meu jornalzinho. Deus os abençoe e boa noite!

TREVAS






















A Xuxa África: Um Mito Profanador?
“To whirl the old woman from Bahia”
Millôr Fernandes, em The Cow Went To The Swamp

A Xuxa afro-brasileira, criação do músico e ator Geovanne Sassá, pode ser analisada como sendo uma tentativa de atualização do mito do andrógino de Platão:
“andrógino era então um gênero distinto, tanto na forma como no nome comum ao dois, ao masculino e ao feminino(...)inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os flancos em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas e o mesmo tanto das mãos(...) Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral”.
A Xuxa Àfrica busca mimeticamente homenagear/parodiar sua cara-metade, Xuxa Meneghel, uma gaúcha de clara ascendência européia e corpo escultural. A “rainha dos baixinhos” exerce seu reinado submetendo seus súditos a seu otimismo Kitsch e a sorrisos pré-fabricados. A Xuxa Negra se autoproclama “rainha dos neguinhos”, constituindo-se num mito dessacralizador. Xuxa, como personagem do músico e ator Carlos Geovane Nunes, se cristaliza absorvendo elementos do belo grotesco e do belo cômico que:
“São duas formas do belo que se tocam, que se enlaçam até se confundirem numa única emoção.
De comum, têem o elemento do ridículo, que nunca pode faltar nelas; de diferente, têm um grau diverso da deformidade ou da caricatura da verdade.
Assim como as cócegas e certas formas de volúpia confundem as fronteiras do prazer e da dor (demonstrando-nos pela centésima vez que as nossas classificações são brinquedos infantis, fios de seda tecido entre os granitos da natureza);assim como o grotesco e o cômico parecem folgar nos confins do belo e do feio, confundindo-os um com o outro, com mão travessa.”
A personagem de Geovane Sassá o engloba, possuindo seu corpo numa trasmutação exuberante e esdrúxula; é como uma pomba-gira. A Medusa de Ébano possui uma força que se assemelha a um grito primal, telúrico, dionisíaco. A Xuxa “Noir” dá à sua homônima um espelho circense: a loirosa narcísica e ariana, ao tentar vender o mito da supremacia branca num país mestiço, é subitamente colocada frente a frente com uma imagem caricata e deformante de si mesma, mas que mostra a modelo e dublê de artista na sua verdadeira face; a modelo semigringa é tornada deusa pagã. Fechou-se o círculo. A divindade africana lança uma luz desmistificante sobre a face da Eva Braun brasileira e petrifica a megera. Aquilo que na moçoila gaúcha era pura empulhação, sorriso de propaganda de creme dental, manipulação mercadológica e ingenuidade calculada ganha um contraponto de impulsos vitalistas, convites indecorosos à fruição imediata dos sentidos e volúpia das sensações mais lúbricas.
Exibindo seu corpo de ninfa multicolorida, cortesã apocalíptica e sensual, nossa personagem remete a obras palpitantes de vida e vigor como os quadros de Jackson Pollock; ela é, como as telas do referido pintor americano, uma rede intrincada de gotas, redemoinhos e salpicos. “A pintura tem vida própria”-disse ele uma vez-“eu tento deixá-la acontecer”. Geovane também poderia dizer o mesmo com respeito às suas criaturas.
E a criatura em questão usa, não obstante, um óculos de armação antiga e demodeé. São óculos de velha encarquilhada que escondem olhinhos brilhantes de moça. Talvez fosse a um olhar como esse que Nietzsche se referia neste seu poema Da Pobreza do Riquíssimo:
“-Quietos!
É minha verdade!-
De olhos esquivos,
de arrepios aveludados
me atinge seu olhar,
amável, mau, um olhar de moça...
Ela adivinha o fundo de minha felicidade,
ela me adivinha-ah! o que ela inventa?-
Purpúreo espreita um dragão
no sem-fundo de um olhar de moça.”
Sendo assim, a Xuxa Preta bota ao avesso a democracia racial brasileira, rodando a baiana da europeizada e etnocêntrica vedete da TV. Santa e prostituta, homem e mulher, frágil e sedutora, a personagem tem um pouco de Marilyn Monroe e Benedita da Silva, e parece ter nascido da conjunção carnal de Sassá Mutema e Hebe Camargo.
Ao apresentar-se a Xuxa Preta evoca um clima de confraternização que também está presente, por exemplo, no rito do vodu, no Haiti. “O vodu é, basicamente, a religião e o culto aos espíritos ou divindades chamados loa. A classificação dos loas é muito complexa, não somente por causa da grande diversidade de origem geográfica e étnica dos africanos trazidos ao Haiti, mas também pela existência de uma infinidade de divindades regionais ou locais.(...)Cada loa tem sua morada particular: no mar, num rio, numa montanha ou árvore, de onde vem para ajudar seus servidores fiéis, quando ouve suas orações ou o som dos tambores sagrados pedindo a sua presença. Cada loa tem também seu dia ou dias próprios durante a semana.(...) As cerimônias do vodu são executadas em locais abertos ao público.” Igualmente são feitos às claras os rituais lúdicos de Xuxa Àfrica.
Quando achamos que já temos a situação dominada e já rimos da piada, Xuxa nos dá uma bofetada de veludo, numa reviravolta semiótica. Transcendendo o reacionarismo e o machismo de Minas Gerais, ela rebola e nos remete ao momossexualismo baiano. Algo como ver o padre Lima Vaz saindo na Banda Mole no carnaval, tropicalizantemente conectado no “zeitgeist”. Ela digere Minas e silencia impávida como se quisesse nos devorar, nos colocar de volta para o útero. Um toque picante e, sarapatética, ela espargirá energia como se fosse um lança-perfume cintilante.
Só mesmo uma Xuxa de Cor para nascer nos trópicos e afugentar a tristeza destas plagas com uma descarga de alegria tão vulcânica!
Uma Xuxa Preta está, é claro, ligada ao espírito dionisíaco do carnaval, pois ela é brasileira, afinal. Lembra do carnaval do passado, expressão espontânea da vontade coletiva de libertar-se, divertindo-se. Ela está ligada ao caráter dionisíaco e mesmo histérico da festa (no sentido grego de rito coletivo uterino e afrodisíaco) que imprimia à diversão um forte sentido de contestação psicossocial. A personagem também estaria ligada à escatologia e ao grotesco, no sentido que explicita Muniz Sodré:
“A Escatologia implica numa atitude cultural com relação à história. A cultura oral brasileira foi marcada, desde as suas origens afro-indiano-portuguesas, por uma Escatologia naturalista-que vê o homem como parte de uma natureza manifesta em ritmos cíclicos, recorrentes. Como o homem estaria integrado organicamente na natureza, qualquer desacerto, injustiça, aberração do estado natural, remediável pelo culto ou pela magia.(...) Essas Escatologias influem poderosamente na imaginação coletiva. O portador de deformação física, por exemplo, é percebido historicamente como um desvio da organicidade natural, como monstro (Teratos). Isto gerou em nossa mitologia figuras como o lobisomem, o mão-de-cabelo, etc. Ainda hoje, em cidades do interior do Brasil, o deformado físico( a mulher macaco, o menino com cara de jumento, etc.) é vivido como um fenômeno de origem sobrenatural-castigo dos céus-e, às vezes, como espetáculo, já que pode ser exibido, a dinheiro, em feiras, ou simplesmente vendido como história na literatura de cordel. (...) O ethos da cultura de massa brasileira, tão perto quanto ainda se acha da cultura oral, é fortemente marcado pelas influências escatológicas da tradição popular. O fascínio pelo extraordinário, pela aberração, é evidente nos programas de variedades ( fatos mediúnicos, aberrações físicas como as irmãs siamesas, aleijões, flagelações morais, etc.) . A esta altura a Escatologia consegue juntar os dois sentidos: o místico e o coprológico.(...) Em Medicina, o termo(Escatologia) tem sentido coprológico-é o estudo dos excrementos”
É desta tradição popular que a Xuxa Preta, vista como bizarra ou aberrante, se alimenta e se insere.
Encerro citando certo trecho de um poema de Baudelaire onde ele tece uma homenagem “A Un Dame Creóle” como nossa Xuxa d’Afrique:
“No inebriante país que o sol acaricia/ Sob um dossel de agreste púrpura bordado/ E a cuja sombra nosso olhar se delicia/ Conheci uma crioula de encanto ignorado./ A graciosa morena, cálida e arredia,/ Tem na postura um ar nobremente afetado;/ Soberba e esbelta quando o bosque a desafia,/ Seu sorriso é tranqüilo e seu olhar ousado.”
Bibliografia:
-Baudelaire, Charles: As Flores do Mal.
-Grondim, Marcelo: Haiti, Cultura, Poder e Desenvolvimento.
-Platão, O Banquete: Coleção Os Pensadores.
-Mantegazza, Paulo: A Fisiologia do Belo.
-Sodré, Muniz: A Comunicação doGrotesco