domingo, 25 de junho de 2017

O Sapo não pula por boniteza, mas porém por precisão


         O convite do primo Jerônimo foi quase uma intimação:
--Tu vai passar uma semana comigo na Cruz das Dores. Tem juriti, capivara, raposa e tamanduá bandeira, quando dava sopa dava até pena.
         Jerônimo queria consolar-me com a carabina. A pontaria. O disparo certeiro. Ou a cartucheira esparramando chumbo em cima das codornas. Os perdigueiros na amarração. O cheiro do capim molambo. A reiva orvalhada. A lama. Os mosquitos. Carrapatos. Esterco de gado. O curral exalando a farelo de cana. O Quinca, o vaqueiro velho, contador de histórias. Eu não precisava de melhores argumentos. Aqui é ar condicionado. Poltrona reclinável. Gás carbônico. Papelório. Tapetes, Elevador, Reuniões, Poluição. Horários. Computador eletrônico. Gravata. E coisas piores. Acusam meu filho, meu herdeiro, de furto e corrupção. Estou curtindo a desonra. Sinto fortes dores na nuca, queimação no estômago, taquicardia, só de remover estas misérias. Na rua ando cabisbaixo, uma carga de chumbo. Um molambo de pernas. Arrasto amargamente a maledicência, os risos mal disfarçados e a ironia dos amigos.
         --Vou. Mas quero sair daqui a cavalo, bem montado, de bota, panamá e espora.
         Jerônimo redargüiu “que o trato estava feito”. “Que se o amigo ia montado, ele próprio não se furtava ao dever de ir também montado”. Dois dias depois, mal nascia o sol os dois cavaleiros cortavam a cidade de ponta a ponta. Os transeuntes paravam e julgavam-nos dementes. Bang-bang. Gary e Roy Rodgers. Um deles gritou:
--Que boniteza, hein, seu Guilherme!
--Não é boniteza, não, caramba, é precisão!
II

Meu avó, ao falecer recomendou que a bengala dele não podia ser vendida, nem doada, nem emprestada, nem colocada atrás da porta. Era uma linda bengala de marfim, marchetada com pedras semi-preciosas. No cabo havia inscrições misteriosas. Mas ninguém ligava importância a tal relíquia. Depois da morte do velho, ela andava jogada nos cantos, nas mãos dos meninos e até no lixo já estivera,

III

O cavalo trotava. Quando o pelo começou a se molhar debaixo dos arreios, avistamos, na encosta da montanha, um casarão. Era a fazenda. Jerônimo esticou o dedo e informou:
--Ei-la. Foi construída ainda no século XVII.
Depois mostrou-me antigas dragas, bateias e montes de cascalho, abrigos de pedra semi-destruídos. Apontando para o riacho borbulhante:

--Já saiu muito diamante desses entulhos...

Subimos pela vereda que serpenteava, em volteios alucinantes e perambeiras. A passarada punha-se em pânico. Canários. Curiós. Sabiás. Pica-paus. Vencíamos sem dificuldade a erva cidreira que orlava o caminho. Um homem veio correndo. Reconheci seu porte ereto, o nariz adunco avermelhado. Chapéu de couro quebrado na testa. Dispôs-se a abrir-nos a porteira:

De meu avô tivesse razão de ser. Recusava-me a crer nos poderes sobrenaturais da bengala. Por isso, vi quando a empregada colocou a bengala atrás da porta. Não a repreendi. Afinal, Teresa estava bem intencionada. Ela transgredia um preceito de meu avô, mas era por precisão e não por boniteza.
--Deixa que eu mesmo abro, Quinca!
--Só por boniteza, seu Guilherme?
--Não. Por precisão, meu velho!

IV

Minha nova serviçal, a Teresa, tinha mania de ordem e limpeza. Arranjou um lugar para tudo. A máquina de escrever. Os sapatos. Os vidros de remédio. Até o gato se acomodou num canto determinado. Vi quando Teresa colocou a bengala atrás da porta. Eu não queria acreditar que a recomendação.
         Assim que apeei, pedi ao Quinca para contar um caso dos bons, um caso qualquer, mas de boa intriga e bom desfecho.
--Assim, de supetão não tem jeito não, uai. O caso vai saindo é no meio da conversa. Desfila que nem novelo. Palavra puxa palavra.
         Com uma das mãos no montante da porteira, Quinca quebrou o chapéu de couro. Depois refestelou-se no mourão da cerca e começou a contar.
--Essa porteira, para servir de exemplo, vosmecê acha que esta porteira cerca marruco? Perguntou o contador.
--Cerca sim, uai.
--Vosmecê acha que esta porteira cerca um cardume de elefante?
--Cerca sim, uai, isso é pau-ferro no cerne, um esteio grosso desse jeito cerca até o diabo.
--Pois é adonde eu queria chegar. Isso aí não cercou o alazão do Coronel Pereira não. O Coronel passou por aqui sem abrir a porteira. Ninguém sabe se foi por baixo, se foi no meio ou se foi por riba. Eu vi e tem mais gente que viu.
O Coronel Pereira era um homem valente. Que já experimentara a vida em tudo quanto é circunstância. Ponta de faca. Duelo. Espingarda. Sertão. Febre. Cobra. Mulher casada. Tocaia. Veneno. Medo era coisa que nunca sentira, nem sabia de que jeito era, se fazia cócegas ou se doía.
--Nesse mundo não tem nada para me fazer frente. E quem vai me provar muito bem provado que fora do mundo tem essas asneiras que o vigário fica ensinando? Será que o Padre Nazário já viu o tal de São Tomé? Eu cá queria topar uma parada era com o diabo em pessoa.
         A mulher, muito beata, tremia e benzia-se, pedindo perdão pelas blasfêmias do marido.
--Sossega Felisbina. Tu tá com maleita, peste?
Coronel Pereira tangia mil cabeças de gado, duas mil e até mais, por este sertão sem eira nem beira. E ia só com três peões. Saía de Cuiabá, passava em Tabatinga e varava o Sertão da Farinha Podre, sem nenhuma rês de baixa, sem nenhum arranhão.
--Quero topar paradas mesmo é com esse tal de diabo. Vou provar que esse bicho, se existe, não dá pro começo.

VII

O Coronel tinha uma bengala. Aqui ninguém nunca viu, mas dizem que era uma linda bengala de marfim, marchetada com pedras precisosas. No cabo havia inscrições misteriosas. Quando saía, recomendava muito a Filisbina:

--Tá vendo essa bengala aqui, mulher?
--Tô sim, sinhô!
--Pois é. Não vende, não dá, não empresta e nem coloca ela atrás da porta.
--Sim sinhô, meu sinhô!
Só então montava e saía.

VIII

Fazia já uma semana que o Coronel conduzia mil e quinhentas cabeças para Cuiabá. Assim que atravessou o Paranaíba morreu fulminado um peão. Caiu do cavalo gemendo e fedendo chifre queimado. Depois sumiu o peão e o cavalo. O Coronel prometeu:

--Se a maldição desse pobre aparece, eu toro no tiro. Se for macho, mesmo, que apareça!

Seguiu viagem. Duas léguas adiante arranchou. A noite ia alta, quando um fogaréu lambeu os dois peões de resto. O Coronel ainda achou natural. Carregou a carabina e esperou, todavia, desesperou e dormiu.

IX

No raiar do dia, continuou a marcha sozinho, sem espanto. “E só esta peste aparecer que toro no tiro”. Foi ai que ele viu que estava no meio de um brejo e a boiada desaparecia no barro. Mourejou três dias em seguida. E conseguiu colocar a boiada em terra firme sem perder uma novilha sequer. Mas, quando ele próprio foi atravessar o lodaçal, o alazão começou a afundar. E quanto mais mexia, mais o pangaré chafurdava. O coronel viu então um preto, forte e rijo, fumando sossegadamente no meio da boiada. Berrou, pois, o Pereira:

--Ô negro diabo, vem me ajudar aqui!!!

Mal pronunciou o nome diabo, foi trovão, pólvora queimada, enxofre, cobras, labaredas, chifre queimado. O Coronel estava frente a frente com o demo. A carabina negou fogo. Ele então percebeu que só havia uma explicação: a bengala devia estar atrás da porta, e mugiu:

_Filisbina, tira a bengala detrás da porta, peste miserável!

O Pereira olhou e não viu mais ninguém. Entretanto, o alazão estourou que não havia brida, nem freio, nem chibata, nem espora, nem diabo que o fizesse parar. Passou pela porteira de pau-ferro com o Coronel por cima, ninguém sabe como. Um peão viu aquilo, gritou:

--Tá fazendo boniteza, hein, Coronel?
--Boniteza não, cabra. Isso é precisão.
E o cavalo só estacou quando pôs os bofes para fora. Estrompou e morreu.

X

--Escuta, Quinca, você falou em bengala atrás da porta? Será que entendi bem? Você falou que a Felisbina escutou o grito do Coronel, quando ele estava lá na divisa de Goiás?

--É sim, doutor.

Fiquei pensativo e nervoso. Então me veio uma súbita vontade de gritar e, com efeito, gritei:

--Teresa, tira a bengala de trás da porta, peste miserável!

XI

Voltei para a cidade. Dei ao Jerônimo uma desculpa qualquer: “Não estou passando bem”. “Preciso ver uns negócios”. Quando entrei a bengala estava sobre a mesa. Teresa veio chegando:

--Patrão, fiz como o senhor mandou, mas acho que esta bengala não tem nenhuma precisão de ficar em cima da mesa.

--Se não tem precisão, deve ficar por boniteza.

         Na mesma noite os amigos vieram me dizer que meu filho fora julgado inocente. Erro do computador e da contabilidade. Que, como reparo de danos, eu fora promovido a Diretor Presidente.
         Quanto à bengala, ainda fico em dúvida, mas não saio de casa sem recomendar:

--Não venda, não dê, não empreste e nem coloque a bengala atrás da porta. Sapo quando não pula por boniteza, pula por precaução.


Lúcio Emílio do Espírito Santo



Vivas Lembranças

Lúcio Emílio do Espírito Santo

Abriu o porta-jóias, tirou dali uma aliança e levou-a aos lábios, bem perto. Embaçou-a com o hálito e esfregou-a na toalha em que se achava envolvida.
A seu lado, a filha escovava os cabelos muito finos, que rebrilhavam à luz filtrada pela vidraça.
--Anda, Cláudia, não podemos nos atrasar.
Na verdade era ela que atrasava. A filha quase pronta e ela nem se enxugara ainda.
Andava preocupada ultimamente com os objetos que a cercavam, como se nunca os tivera visto, mirava demoradamente as paredes, o teto, os quadros tentando decifrar seu interior. E que tudo agora lhe chamava a atenção. Os objetos pareciam falar.Principalmente os objetos dele. O aparelho de barbear, os óculos, o gato, o toco de cigarro. Ela se surpreendia ouvindo a voz desses seres, que de repente se tornavam alegres palradores. Às vezes, perdia assim horas e horas.
Mexeu numas cartas amareladas. Não queria que Cláudia visse. Por isso quase entrou no guarda-roupas. “Onde está a minha bolsa?” Perguntou de mentira. Só para que a filha não se preocupasse com a sua demora. Fingia procurar alguma coisa, enquanto lia a carta mil vezes lida, o papel já em frangalhos.
            Observava mais a letra. Ligeiramente tombada para a esquerda. Denotava talvez timidez. E ele era tímido. O era assim, tinha um rabinho puxado para cima, desligado da letra seguinte. Como seus olhos amendoados.
            O T maiúsculo era bem trabalhado. Aliás todas as maiúsculas. Lembravam as iniciais de capítulos nos livros antigos.
            Não escrevia na pauta. Engraçado! Como só agora observara isto? Era realmente a milésima leitura. Todas, sim, diferentes, reveladoras. A última, porém, lhe dava a certeza de não haver no mundo homem igual. Achava, então, incrível sua aventura. Uma lufada de felicidade varreu-lhe o espírito. A letra acima da pauta. Era indício não sabia de quê. Era um sinal que a reconfortava muito. Um dia ainda levaria aquelas cartas a um grafólogo. Descobriria muito mais coisas. Uma pontinha de orgulho ela teve. “O que vim fazer aqui mesmo?” –pensou. Ah! Já sei. O vestido estampado.
            Agora ela já estava diante do espelho. Pediu o batom:
            --Mamãe, você não precisa de pintura. É muito mais bonita sem ela. Depois, no vestido estampado estão todas as cores da primavera...
            Ela sorriu, acatando plenamente a sugestão de Cláudia.
            Perfumou a ponta dos dedos. Ele gostava assim. Mãos perfumadas.  Porque depois que ela ia para casa e ficava com o aroma. “Perfume é o que ficava com o aroma. “Perfume é o que fica. Sua presença é enorme. Mais que quando estamos juntos. “—Disse certa vez.
            Conferiu o espelho. De cá. De lá. Os cabelos negros esvoaçantes. O decote. O filete de rímel no azul dos olhos.
            --Estou pronta. Vamos! –avisou ela depositando o pente na bolsa.
            Na rua o sábado fervilhava. Passaram na esquina e deram sinal ao primeiro táxi que surgiu. Estava lotado. Continuaram a olhar fixamente par os carros que iam e vinham. Não pressentiam a aproximação de Genoveva, a vizinha do apartamento, que voltava das compras com os braços abarrotados de embrulhos multicores.
            --Vocês parecem duas irmãs. Dois cromos. Ninguém diz que são mãe e filha.
            Ela agradeceu a bondade da amiga, abaixando-se logo em seguida para apanhar o embrulho que deixara cair Genoveva.
--Olha o táxi, mãe!
            Despediu-se de Genu e entrou no
--Praça do Museu, por favor
            Tinah consciência de sua semelhança com a mãe e ficava feliz com isso. Ela havia sido a sua melhor amiga. Compreendia melhor que ninguém o seu modo de ser.
            Se a solidão em que viviam não lhes deixava marcas nem revolta, o fato só deixava marcas nem revolta, o fato só se devia às habilidades de sua mãe, no bom relacionamento que sempre cultivou. As dores por que passaram, as dificuldades que tiveram, em qualquer outra circunstância, teriam provocado traumas. Entre as duas entretanto, não havia apenas semelhança física. Eram também almas irmãs, como duas gotas d´água.
            O sol de dezembro, mesmo no ocaso, ainda lhes abrasava o coração. Desceram do taxi. Claudia não sabia ainda o que iam fazer. Estranhou um pouco a idéia da mãe, mas a confiança que sempre lhe devotou impediu-a de especular. Deixava-se levar como folha seca.
            Nunca fizera um passeio destes antes. Gostavam muito de cinema, às vezes, teatro, visitas a amigos ou parentes, mais raramente bailes e praça de esportes. Quando viu as levas de crianças brincando sob o olhar distraído das babás, começou a achar beleza naquilo tudo.
            Andavam agora tão devagar que Cláudia se impacientava:
            --Vamos, mamãe. Quero ver o chafariz.
            Era um grande leão, a água jorrava-lhe pela boca. A mãe parecia não querer adentrar profundamente aquele jardim. Talvez não persistisse, a emoção lhe dava tonturas. Perdia-se na contemplação dos canteiros repletos de  boninas, cheio de agapantos ali.
            O meio fio sinuoso levava ao coreto central no alto de uma pequena colina. Era para lá que a mãe levava a filha.
            O sol emitia raios enfraquecidos colorindo o colorido, banhando de vermelho mortiço o roseiral. Aqui e ali, pardais serviam os estertores do dia. Quando chegaram ao coreto, Cláudia lhe deu um puxão no braço.
            --Mamãe, aquela retrato seu e de papai foi aqui, não foi?
            Ela não pretendia chorar. Porque isso significa deixar-se vencer. Podia parecer também fraqueza diante da dor. Durante a viuvez, chorara pouquíssimas vezes. Reprimia sempre a vontade. Olhou em volta. Por um momento julgou que ele surgiria por detrás do coreto, como costumava fazer. Concluiu depois que isto não tinha importância. Nenhuma importância. Reconquistara aquela faculdade de falar com os objetos. E iniciou seu diálogo.
            O sol agonizava. Cláudia sentou-se num banco com dois lugares.
            --Senta aqui, mamãe.
            --Não, Cláudia, ali adiante –murmurou ela, encaminhando-se para perto de um fotógrafo ambulante, que recolhia seu equipamento. Indicou um banco de três lugares. E sentaram-se.
            O fotógrafo voltou-se de repente e ela verificou que ainda era o mesmo de vinte anos atrás. Estava bastante alquebrado. Como olhasse insistentemente no afã de reviver emoções antigas, o velho se aproximou com solicitude, com um brilho misterioso nos olhos:

            --Outro retrato, senhora.