domingo, 25 de junho de 2017


Vivas Lembranças

Lúcio Emílio do Espírito Santo

Abriu o porta-jóias, tirou dali uma aliança e levou-a aos lábios, bem perto. Embaçou-a com o hálito e esfregou-a na toalha em que se achava envolvida.
A seu lado, a filha escovava os cabelos muito finos, que rebrilhavam à luz filtrada pela vidraça.
--Anda, Cláudia, não podemos nos atrasar.
Na verdade era ela que atrasava. A filha quase pronta e ela nem se enxugara ainda.
Andava preocupada ultimamente com os objetos que a cercavam, como se nunca os tivera visto, mirava demoradamente as paredes, o teto, os quadros tentando decifrar seu interior. E que tudo agora lhe chamava a atenção. Os objetos pareciam falar.Principalmente os objetos dele. O aparelho de barbear, os óculos, o gato, o toco de cigarro. Ela se surpreendia ouvindo a voz desses seres, que de repente se tornavam alegres palradores. Às vezes, perdia assim horas e horas.
Mexeu numas cartas amareladas. Não queria que Cláudia visse. Por isso quase entrou no guarda-roupas. “Onde está a minha bolsa?” Perguntou de mentira. Só para que a filha não se preocupasse com a sua demora. Fingia procurar alguma coisa, enquanto lia a carta mil vezes lida, o papel já em frangalhos.
            Observava mais a letra. Ligeiramente tombada para a esquerda. Denotava talvez timidez. E ele era tímido. O era assim, tinha um rabinho puxado para cima, desligado da letra seguinte. Como seus olhos amendoados.
            O T maiúsculo era bem trabalhado. Aliás todas as maiúsculas. Lembravam as iniciais de capítulos nos livros antigos.
            Não escrevia na pauta. Engraçado! Como só agora observara isto? Era realmente a milésima leitura. Todas, sim, diferentes, reveladoras. A última, porém, lhe dava a certeza de não haver no mundo homem igual. Achava, então, incrível sua aventura. Uma lufada de felicidade varreu-lhe o espírito. A letra acima da pauta. Era indício não sabia de quê. Era um sinal que a reconfortava muito. Um dia ainda levaria aquelas cartas a um grafólogo. Descobriria muito mais coisas. Uma pontinha de orgulho ela teve. “O que vim fazer aqui mesmo?” –pensou. Ah! Já sei. O vestido estampado.
            Agora ela já estava diante do espelho. Pediu o batom:
            --Mamãe, você não precisa de pintura. É muito mais bonita sem ela. Depois, no vestido estampado estão todas as cores da primavera...
            Ela sorriu, acatando plenamente a sugestão de Cláudia.
            Perfumou a ponta dos dedos. Ele gostava assim. Mãos perfumadas.  Porque depois que ela ia para casa e ficava com o aroma. “Perfume é o que ficava com o aroma. “Perfume é o que fica. Sua presença é enorme. Mais que quando estamos juntos. “—Disse certa vez.
            Conferiu o espelho. De cá. De lá. Os cabelos negros esvoaçantes. O decote. O filete de rímel no azul dos olhos.
            --Estou pronta. Vamos! –avisou ela depositando o pente na bolsa.
            Na rua o sábado fervilhava. Passaram na esquina e deram sinal ao primeiro táxi que surgiu. Estava lotado. Continuaram a olhar fixamente par os carros que iam e vinham. Não pressentiam a aproximação de Genoveva, a vizinha do apartamento, que voltava das compras com os braços abarrotados de embrulhos multicores.
            --Vocês parecem duas irmãs. Dois cromos. Ninguém diz que são mãe e filha.
            Ela agradeceu a bondade da amiga, abaixando-se logo em seguida para apanhar o embrulho que deixara cair Genoveva.
--Olha o táxi, mãe!
            Despediu-se de Genu e entrou no
--Praça do Museu, por favor
            Tinah consciência de sua semelhança com a mãe e ficava feliz com isso. Ela havia sido a sua melhor amiga. Compreendia melhor que ninguém o seu modo de ser.
            Se a solidão em que viviam não lhes deixava marcas nem revolta, o fato só deixava marcas nem revolta, o fato só se devia às habilidades de sua mãe, no bom relacionamento que sempre cultivou. As dores por que passaram, as dificuldades que tiveram, em qualquer outra circunstância, teriam provocado traumas. Entre as duas entretanto, não havia apenas semelhança física. Eram também almas irmãs, como duas gotas d´água.
            O sol de dezembro, mesmo no ocaso, ainda lhes abrasava o coração. Desceram do taxi. Claudia não sabia ainda o que iam fazer. Estranhou um pouco a idéia da mãe, mas a confiança que sempre lhe devotou impediu-a de especular. Deixava-se levar como folha seca.
            Nunca fizera um passeio destes antes. Gostavam muito de cinema, às vezes, teatro, visitas a amigos ou parentes, mais raramente bailes e praça de esportes. Quando viu as levas de crianças brincando sob o olhar distraído das babás, começou a achar beleza naquilo tudo.
            Andavam agora tão devagar que Cláudia se impacientava:
            --Vamos, mamãe. Quero ver o chafariz.
            Era um grande leão, a água jorrava-lhe pela boca. A mãe parecia não querer adentrar profundamente aquele jardim. Talvez não persistisse, a emoção lhe dava tonturas. Perdia-se na contemplação dos canteiros repletos de  boninas, cheio de agapantos ali.
            O meio fio sinuoso levava ao coreto central no alto de uma pequena colina. Era para lá que a mãe levava a filha.
            O sol emitia raios enfraquecidos colorindo o colorido, banhando de vermelho mortiço o roseiral. Aqui e ali, pardais serviam os estertores do dia. Quando chegaram ao coreto, Cláudia lhe deu um puxão no braço.
            --Mamãe, aquela retrato seu e de papai foi aqui, não foi?
            Ela não pretendia chorar. Porque isso significa deixar-se vencer. Podia parecer também fraqueza diante da dor. Durante a viuvez, chorara pouquíssimas vezes. Reprimia sempre a vontade. Olhou em volta. Por um momento julgou que ele surgiria por detrás do coreto, como costumava fazer. Concluiu depois que isto não tinha importância. Nenhuma importância. Reconquistara aquela faculdade de falar com os objetos. E iniciou seu diálogo.
            O sol agonizava. Cláudia sentou-se num banco com dois lugares.
            --Senta aqui, mamãe.
            --Não, Cláudia, ali adiante –murmurou ela, encaminhando-se para perto de um fotógrafo ambulante, que recolhia seu equipamento. Indicou um banco de três lugares. E sentaram-se.
            O fotógrafo voltou-se de repente e ela verificou que ainda era o mesmo de vinte anos atrás. Estava bastante alquebrado. Como olhasse insistentemente no afã de reviver emoções antigas, o velho se aproximou com solicitude, com um brilho misterioso nos olhos:

            --Outro retrato, senhora.

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