Vivas Lembranças
Lúcio
Emílio do Espírito Santo
Abriu
o porta-jóias, tirou dali uma aliança e levou-a aos lábios, bem perto. Embaçou-a
com o hálito e esfregou-a na toalha em que se achava envolvida.
A
seu lado, a filha escovava os cabelos muito finos, que rebrilhavam à luz
filtrada pela vidraça.
--Anda,
Cláudia, não podemos nos atrasar.
Na
verdade era ela que atrasava. A filha quase pronta e ela nem se enxugara ainda.
Andava
preocupada ultimamente com os objetos que a cercavam, como se nunca os tivera visto,
mirava demoradamente as paredes, o teto, os quadros tentando decifrar seu
interior. E que tudo agora lhe chamava a atenção. Os objetos pareciam
falar.Principalmente os objetos dele. O aparelho de barbear, os óculos, o gato,
o toco de cigarro. Ela se surpreendia ouvindo a voz desses seres, que de
repente se tornavam alegres palradores. Às vezes, perdia assim horas e horas.
Mexeu
numas cartas amareladas. Não queria que Cláudia visse. Por isso quase entrou no
guarda-roupas. “Onde está a minha bolsa?” Perguntou de mentira. Só para que a
filha não se preocupasse com a sua demora. Fingia procurar alguma coisa,
enquanto lia a carta mil vezes lida, o papel já em frangalhos.
Observava mais a letra. Ligeiramente tombada para a
esquerda. Denotava talvez timidez. E ele era tímido. O era assim, tinha um
rabinho puxado para cima, desligado da letra seguinte. Como seus olhos
amendoados.
O T maiúsculo era bem trabalhado. Aliás todas as
maiúsculas. Lembravam as iniciais de capítulos nos livros antigos.
Não escrevia na pauta. Engraçado! Como só agora observara
isto? Era realmente a milésima leitura. Todas, sim, diferentes, reveladoras. A
última, porém, lhe dava a certeza de não haver no mundo homem igual. Achava,
então, incrível sua aventura. Uma lufada de felicidade varreu-lhe o espírito. A
letra acima da pauta. Era indício não sabia de quê. Era um sinal que a
reconfortava muito. Um dia ainda levaria aquelas cartas a um grafólogo.
Descobriria muito mais coisas. Uma pontinha de orgulho ela teve. “O que vim
fazer aqui mesmo?” –pensou. Ah! Já sei. O vestido estampado.
Agora ela já estava diante do espelho. Pediu o batom:
--Mamãe, você não precisa de pintura. É muito mais bonita
sem ela. Depois, no vestido estampado estão todas as cores da primavera...
Ela sorriu, acatando plenamente a sugestão de Cláudia.
Perfumou a ponta dos dedos. Ele gostava assim. Mãos
perfumadas. Porque depois que ela ia
para casa e ficava com o aroma. “Perfume é o que ficava com o aroma. “Perfume é
o que fica. Sua presença é enorme. Mais que quando estamos juntos. “—Disse
certa vez.
Conferiu o espelho. De cá. De lá. Os cabelos negros
esvoaçantes. O decote. O filete de rímel no azul dos olhos.
--Estou pronta. Vamos! –avisou ela depositando o pente na
bolsa.
Na rua o sábado fervilhava. Passaram na esquina e deram
sinal ao primeiro táxi que surgiu. Estava lotado. Continuaram a olhar fixamente
par os carros que iam e vinham. Não pressentiam a aproximação de Genoveva, a
vizinha do apartamento, que voltava das compras com os braços abarrotados de embrulhos
multicores.
--Vocês parecem duas irmãs. Dois cromos. Ninguém diz que
são mãe e filha.
Ela agradeceu a bondade da amiga, abaixando-se logo em
seguida para apanhar o embrulho que deixara cair Genoveva.
--Olha o táxi, mãe!
Despediu-se de Genu e entrou no
--Praça do Museu, por favor
Tinah consciência de sua semelhança com a mãe e ficava
feliz com isso. Ela havia sido a sua melhor amiga. Compreendia melhor que
ninguém o seu modo de ser.
Se a solidão em que viviam não lhes deixava marcas nem revolta,
o fato só deixava marcas nem revolta, o fato só se devia às habilidades de sua
mãe, no bom relacionamento que sempre cultivou. As dores por que passaram, as
dificuldades que tiveram, em qualquer outra circunstância, teriam provocado
traumas. Entre as duas entretanto, não havia apenas semelhança física. Eram
também almas irmãs, como duas gotas d´água.
O sol de dezembro, mesmo no ocaso, ainda lhes abrasava o
coração. Desceram do taxi. Claudia não sabia ainda o que iam fazer. Estranhou
um pouco a idéia da mãe, mas a confiança que sempre lhe devotou impediu-a de
especular. Deixava-se levar como folha seca.
Nunca fizera um passeio destes antes. Gostavam muito de
cinema, às vezes, teatro, visitas a amigos ou parentes, mais raramente bailes e
praça de esportes. Quando viu as levas de crianças brincando sob o olhar
distraído das babás, começou a achar beleza naquilo tudo.
Andavam agora tão devagar que Cláudia se impacientava:
--Vamos, mamãe. Quero ver o chafariz.
Era um grande leão, a água jorrava-lhe pela boca. A mãe
parecia não querer adentrar profundamente aquele jardim. Talvez não
persistisse, a emoção lhe dava tonturas. Perdia-se na contemplação dos
canteiros repletos de boninas, cheio de
agapantos ali.
O meio fio sinuoso levava ao coreto central no alto de
uma pequena colina. Era para lá que a mãe levava a filha.
O sol emitia raios enfraquecidos colorindo o colorido,
banhando de vermelho mortiço o roseiral. Aqui e ali, pardais serviam os
estertores do dia. Quando chegaram ao coreto, Cláudia lhe deu um puxão no
braço.
--Mamãe, aquela retrato seu e de papai foi aqui, não foi?
Ela não pretendia chorar. Porque isso significa deixar-se
vencer. Podia parecer também fraqueza diante da dor. Durante a viuvez, chorara
pouquíssimas vezes. Reprimia sempre a vontade. Olhou em volta. Por um momento
julgou que ele surgiria por detrás do coreto, como costumava fazer. Concluiu
depois que isto não tinha importância. Nenhuma importância. Reconquistara aquela
faculdade de falar com os objetos. E iniciou seu diálogo.
O sol agonizava. Cláudia sentou-se num banco com dois
lugares.
--Senta aqui, mamãe.
--Não, Cláudia, ali adiante –murmurou ela,
encaminhando-se para perto de um fotógrafo ambulante, que recolhia seu
equipamento. Indicou um banco de três lugares. E sentaram-se.
O fotógrafo voltou-se de repente e ela verificou que
ainda era o mesmo de vinte anos atrás. Estava bastante alquebrado. Como olhasse
insistentemente no afã de reviver emoções antigas, o velho se aproximou com
solicitude, com um brilho misterioso nos olhos:
--Outro retrato, senhora.
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