quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Observações Sobre a Carta Sobre o Stalinismo: Lukács e a Metamorfose Ambulante

 

Observações Sobre a Carta Sobre o Stalinismo: Lukács e a Metamorfose Ambulante

Lúcio Jr.

 

            Em primeiro, o termo stalinismo. O termo é usado por Trotsky para dissociar bolchevismo e a pessoa de Stálin. Usá-lo já é tomar partido de Trotsky.

Ele fala em culto da personalidade como se Lênin também não dissesse que se deve promover os líderes. Stálin aceitou ser símbolo do poder soviético, o que não quer dizer que tivesse o poder absoluto e fosse um ditador. Suas decisões eram sempre coletivas, dependiam da aprovação do Comitê Central. Ao menos, Lukács vê o problema como do sistema, sistêmico, não ligado a um indivíduo.

Em geral, a partir daí, quando essa expressão culto da personalidade surge, é para decapitar os líderes do partido revolucionário. Ela teve esse uso na China de Deng Siaoping.

Lukács comenta que o problema é, em grande parte, da historiografia. Para ele, Kruschev tratou corretamente a questão de Trotsky e Stálin no XX Congresso. Nem isso parece-me tão bem resolvido. Ele despertou o velho fantasma do trotsquismo. Há muito favorável a Trotsky nessa carta, bem como há muito favorável a Kruschev.

Primeiramente Lukács esclarece que Trotsky colocou, nos anos 20, o dilema entre exportar a revolução militarmente ou retornar ao que havia antes de outubro de 1917, ou seja, uma democracia liberal. O húngaro dá razão a Stálin, comenta que a história refutou essa teoria. Mas logo em seguida, mais uma mancada: afirma que Stálin, na realidade, teria continuado na linha de Trotsky, roubando seu programa, ao militarizar os sindicatos, opondo-se, então, a Lênin. Esta foi uma das poucas passagens em que Lukács deu razão a Stálin nessa Carta.

 E ainda assim, logo em seguida sai-se com algo bastante duvidoso: Stálin seguia muito Lênin e dificilmente retornaria nesse ponto onde Lênin já tinha exposto seu ponto de vista.

Trotsky teria razão ao dizer que Stálin tomou o seu programa, o georgiano estaria realizando “o que havia de despótico e antidemocrático na linha de Trotsky”. Stálin é acusado de ser trotsquista, contra o leninismo!

Ele foge da questão de Bukharin, dando a entender que o problema é apenas teórico e não político. Ele, a seguir, considera os processos supérfluos, uma vez que as oposições não tinham mais força no partido. Logo, ele toma partido a favor de Bukharin: seria vítima de um processo falso, supérfluo, que representou um ataque a uma oposição que já não tinha mais poder. Mas o sentido dos Processos de Moscou não foi mera luta do poder, havia evidências de colaboração com nazistas e japoneses. Lukács nunca menciona isso.

Nos anos 30, Stálin estaria defendendo Lênin apenas da boca para fora. Ele estabeleceu ligações muito imediatas entre teoria e prática, abolindo as mediações. Que mediações seriam essas?

Como fica evidente desde o uso do termo stalinismo, Lukács separa o que há de específico no stalinismo do marxismo-leninismo.

Stálin não teria grandes ações (sic) e nem realizações teóricas a ele devidas (hein?). “Não dispunha da mesma autoridade de Lênin” (como assim? Depois de derrotar Hitler?). As categorias de Lênin desaparecem do horizonte de Stálin. Mas ele não é acusado de citar demais? Ou cita demais, como mania, ou desaparece com as categorias, das duas, uma. 

Lukács entra na questão chinesa, de início dá razão a Stálin, “na ocasião, do ponto de vista tático, estava com toda razão”. Logo a seguir, acusa-o de inventar um feudalismo asiático. Se ele não chama Stálin de culpado pela derrota de 1927 para Chiang Kai Shek, ele acusa de outra coisa, de inventar um feudalismo –conceito falso-- para justificar a idéia da etapa, bem como mobilizar forças em torno de um conceito falso. Mas se a reovlução não é socialista, é que a contradição no país não é entre proletariado e burguesia e há uma etapa anterior a vencer: há o imperialismo, há o latifúndio no papel do feudalismo asiático.

Lukács concorda que Stálin esteve certo ao afastar a idéia da revolução proletária imediata, sem etapas, idéia de Trotsky, mas ridiculariza e destrói o edifício conceitual que refutou os trotsquistas, o que repõe a porta aberta para a volta do mesmo fantasma para nos assombrar.

 As vitórias da revolução chinesa graças a esse arcabouço de reflexões de Stálin são totalmente descontextualizadas, assim com as denúncias de que os trotsquistas se aliaram aos japoneses, realizadas pelos maoístas, não são levadas em conta.

Mesmo o Pacto Ribbentrop-Molotov, que permitiu ganhar a guerra, é visto fora do contexto histórico. É acentuado o erro de entender que essa deveria ser a estratégia internacional do proletariado, a aliança com Hitler. A importância história e estratégia do Pacto, historicamente um acerto, é obscurecida.

Kruschev é chamado de herdeiro das idéias do stalinismo, única crítica a Kruschev nessa carta, mas a Carta parece ir também no sentido contrário, de que no XX Congresso, Kruschev refutou essas teses falsas.  Stálin e suas justificações teóricas seriam agradáveis para os pensadores burgueses. Quais? Ele fala que Salvador Madariga (liberal espanhol anticomunista) e Hoxha convergem no elogio a Stálin. Talvez esteja ocultando justamente o contrário: o entusiasmo de ideólogos burgueses a ataques a obras de Stálin tanto no campo teórico quanto às suas ações.

É preciso liquidar a metodologia staliniana. Lukács não faz isso? Faz tábula rasa da obra econômica staliniana e seu ensaio sobre Linguística nessa Carta, com poucos argumentos, apenas argumenta que Stálin cria “leis fundamentais” que seriam levianas, falsas, bem como analisa que a decadência da estrutura não seria a decadência da ideologia (superestrutura). É saber se para o teórico húngaro a estrutura ainda determinada a superestrutura ou isso é subjetivismo staliniano. Lukács não menciona ter elogiado esse ensaio sobre Linguística anos antes.

Para Lukács, Stálin era subjetivista em economia, isso faria parte de seu método. Ele transformou um texto de Lênin de 1905 em “Bíblia”. Stálin deformou textos de Lênin. A continuidade entre Lênin e Stálin era “citacional”, ou seja, Stálin tentou sempre fundamentar tudo o que dizia citando Lênin. Lukács não contesta, mas a seguir afirma que Kruschev já deixou isso de lado, afirmando que Lênin não se preocuparia com isso. Disso resulta que Stálin está sempre muito bem fundamentado em seu líder.

Lukács denuncia que Hegel, durante a II Guerra, virou opositor da Revolução Francesa, que teria defendido a vida inteira, enquanto o general Suvorov virou um revolucionário. Como Lukács escreveu durante a II Guerra um livro sobre o jovem Hegel, é possível que ele tenha abordado esse tipo de questão enquanto os outros lutavam nos campos de batalha. Ao invés de encomendar a ele uma análise da situação das classes na Hungria, que serviria ao pós-guerra, Lukács teve liberdade para escrever e pesquisar o que lhe interessava, embora a URSS vivesse as condições mais precárias e terríveis.

Segundo Lukács, na História do Partido Comunista da URSS, só Lênin e Stálin teriam existência concreta, outros nomes não são citados. Ao verificar, notei que Lukács errou, outros nomes são extensamente citados. Lukács faz tábula rasa do período Stálin, afirmando que Historiografia, Filosofia e Economia ficaram estagnadas. Reconhece como obras importantes apenas as de Lênin de 1915-16 sobre esses assuntos. Lukács deixa para estudiosos do assunto decidirem se as lutas de classes agravam-se durante o socialismo. Stálin teria transformado isso em lei fundamental. Essa tese falsa teria sido desmascarada no XX Congresso. Possivelmente é parte do “falso sistema de idéias gradualmente montado” por Stálin.

            O marxismo de Stálin tem atração sobre ideólogos burgueses. Em que sentido? Adesão? Logo a seguir, ele diz que o marxismo reduzido tem menos atração sobre as massas que o marxismo genuíno. Não seria, nos ambos os casos, justamente o contrário? Os burgueses com repulsa a Stálin, as massas com simpatia por textos didáticos, “reduzidos”.

            Lukács conta que, no período Stálin, se uma enciclopédia ia rodar (ser publicada), logo a seguir passava a ter erros e mentiras, era preciso rodar de novo. Muito bizarro o que acontecia. Questão de Historiografia, realmente. Afinal, tudo converge no sentido de incompetência da “burocracia cultural stalinista” (termo que ele usa e que mais uma vez remete e valida Trotsky).

Enfim, a carta: 1) reintroduz Trotsky, reavivando seus debates e terminologia; 2) toma partido de Kruschev, criticando-o muito pouco e louvando o XX Congresso com suas reflexões, sem voltar às análises anteriores de Lukács louvando Stálin, o que dá a entender que Lukács acusa Stálin daquilo que ele mesmo faz, mudar de posição de forma oportunista, sempre em metamorfoses oportunistas, para acolher decisões do poder, sem voltar ao que foi dito antes e explicar como foi possível dizer justamente.

 

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

O pensamento Primitivo e Stálin como bode expiatório

 

O pensamento primitivo e Stalin como bode expiatório

 Por Domenico Losurdo

Neste artigo, Domenico Losurdo responde ao historiador trotskista Jean-Jacques Marie, que publicou recentemente uma resenha do seu livro “Stalin – História crítica de uma lenda negra”. O texto se intitulava “O socialismo do Gulag!”. O polêmico e instigante livro de Losurdo foi publicado no Brasil pela Editora Revan em 2010

Jamais se poderá avaliar de modo satisfatório a sabedoria da frase atribuída a Georges Clemenceau: a guerra é uma coisa muito séria para que seja entregue aos generais! Na verdade, em seu ardente chauvinismo e anticomunismo, o primeiro-ministro francês mantinha uma consciência bastante lúcida em relação ao fato de os especialistas (neste caso, os especialistas da guerra) frequentemente serem capazes de ver as árvores, mas não a floresta, eles se deixam absorver pelos detalhes perdendo de vista o global; neste caso eles sabem tudo, menos o que é essencial. À afirmação de Clemenceau se é rapidamente levado a pensar quando se lê a crítica intransigente que Jean-Jacques Marie queria destinar a meu livro sobre Stalin. Pelo que parece, o autor é um dos maiores especialistas sobre “trotskismo-logia” e se põe a demonstrá-lo em qualquer circunstância.

1- Stalin liquidado pelo Relatório secreto, o Relatório secreto liquidado pelos historiadores

Ele começa imediatamente a contestar minha afirmação segundo a qual Kruschev “se propõe derrotar Stalin em todos os aspectos”. Ainda assim, é o grande intelectual trotskista Isaac Deutscher que destaca que o Relatório secreto menciona Stalin como um “enorme, tenebroso, extravagante, degenerado monstro humano”. No entano, esse retrato não é suficientemente monstruoso aos olhos de Marie! O meu livro assim continua: na arguição pronunciada por Kruschev, “por ser responsável por crimes horrendos, era um indivíduo desprezível seja no plano moral seja no plano intelectual.

Além de desumano, o ditador era também risível”. Basta pensar no pormenor sobre o qual se detém Kruschev: “é preciso ter presente que Stalin preparava os seus planos em cima de um mapamundi. Sim, companheiros, ele marcava a linha da frente de batalha sobre o mapamundi” (p. 27-29 da edição francesa). O quadro aqui traçado sobre Stalin é claramente caricatural: como fez para derrotar Hitler a URSS que era dirigida por um líder criminoso e imbecil ao mesmo tempo? E como chegou esse líder criminoso e imbecil ao mesmo tempo a reger pelo “mapamundi” uma batalha épica como aquela de Stalingrado, combatida de bairro a bairro, de rua a rua, de terreno a terreno, de porta a porta? Ao invés de responder a essas contestações, Marie se preocupa em demonstrar que – enquanto maior especialista de “trotskismo-logia” – conhece de memória também o Relatório Kruschev e se põe a citá-lo por toda parte, em aspectos que não têm nada a ver com o problema em discussão!

Como demonstração do fato de essa total aniquilação de Stalin (no plano intelectual além do moral) não subsistir à investigação histórica, chamo a atenção para dois pontos: historiadores eminentes (de nenhum dos quais se pode suspeitar ser filo-stalinista) falam de Stalin como o “maior líder militar do século XX”. E vão ainda além: atribuem-lhe um “talento político excepcional” e o consideram um político “super competente” que salva a nação russa da dizimação e escravização a que é destinada pelo Terceiro Reich, graças não apenas a sua astuta estratégia militar, mas também aos “magistrais” discursos de guerra, por vezes verdadeiros e apropriados “atos de bravura” que, em momentos trágicos e decisivos, chegam a estimular a resistência nacional. E ainda não é tudo: historiadores ardorosamente antistalinistas reconhecem a “perspicácia” com que ele trata a questão nacional no escrito de 1913 e o “efeito positivo” de sua “contribuição” para a linguística (p. 409).

Em segundo lugar, faço notar que já em 1966 Deutscher demonstrava sérias dúvidas sobre a credibilidade do Relatório secreto: “não o considero a ponto de aceitar sem reservas as assim ditas “revelações” de Kruschev, particularmente sua afirmação de na Segunda Guerra Mundial (e na vitória sobre o Terceiro Reich) Stalin apenas ter desempenhado um papel praticamente insignificante” (p. 407). Hoje, à luz de novo material à disposição, não são poucos os estudiosos que acusam Kruschev de ter recorrido à mentira. E, portanto: se Kruschev realiza a aniquilação total de Stalin a historiografia mais recente anula a credibilidade do assim dito Relatório secreto.

De que maneira Marie responde a tudo isso? Resume o ponto de vista não apenas o meu como também o dos autores citados por mim (inclusive o trotskista Deuscher) com o clichê: “Vade retro, Kruschev!”. Ou seja, o grande especialista de “trotskismo-logia” acredita poder exorcizar as dificuldades insuperáveis com que se depara pronunciando duas palavras em latim (eclesiástico)!

Vejamos um segundo exemplo. No início do segundo capítulo (“Os bolcheviques: do conflito ideológico à guerra civil”), eu analiso o conflito que se desenvolve por ocasião da paz de Brest-Litowsky. Bukharin denuncia o “declínio camponês em nosso partido e no poder soviético”; outros bolcheviques se desligam do partido; outros até declaram já desprovido de valor o próprio poder soviético. Em sentido oposto, Lênin expressa sua indignação por essas “palavras esquivas e monstruosas”. Já em seus primeiros meses de vida, a Rússia soviética vê se desenvolver um conflito ideológico de extrema rispidez e a ponto de se transformar em guerra civil.

E tão mais facilmente se transformará em guerra civil – observo em meu livro – já que, com a morte de Lênin, “vem a desaparecer uma indiscutível autoridade”. Antes – acrescento -, segundo um ilustre historiador burguês (Conquest), já naquela ocasião Bukharin havia acalentado a ideia de um golpe de Estado (p. 71). Como Marie responde a tudo isso? Novamente, ele exibe toda a sua erudição de grande, e talvez máximo, especialista de “trotskismo-logia”, mas não faz nenhum esforço para responder às questões que se impõem: se o conflito mortal que sucessivamente aflige o grupo dirigente bolchevista é culpa apenas de Stalin (o pensamento primitivo não pode passar sem o bode expiatório), como explicar a dura troca de acusações que Lênin condena como “monstruosas”, as frases pronunciadas por aqueles que estimulam a “degeneração” do partido comunista e do poder soviético? E como explicar o fato de Robert Conquest – que dedicou toda a sua existência a demonstrar a sordidez de Stalin e dos processos de Moscou – falar de um projeto de golpe de Estado contra Lênin, cultivado ou acalentado por Bukharin?

Não sabendo o que responder, Marie me acusa de manipulador e escreve até que – no que se refere à ideia de golpe de Estado acalentada por Bukharin – eu cito apenas a mim mesmo. Não tenho tempo a perder com insultos. Limito-me a fazer notar que à página 71, nota 137, cito um historiador (Conquest) que não é inferior a Marie nem em erudição nem no zelo antistalinista.

2- De que maneira os trotskistas para Marie insultam Trotsky

Com a morte de Lênin e a consolidação do poder de Stalin, o conflito ideológico se torna cada vez mais uma guerra civil: a dialética de Saturno que, de um modo ou de outro, se manifesta em todas as grandes revoluções, desgraçadamente não poupa nem mesmo os bolcheviques. Desenvolvo essa tese na segunda parte do segundo capítulo, citando uma série de personalidades entre as muitas diferentes (que revelam a existência de um aparato clandestino e militar criado pela oposição) e citando, sobretudo, Trotsky. Sim, Trotsky em pessoa declara que a luta contra “a oligarquia burocrática” stalinista “não comporta solução pacífica”. É sempre ele que declara que “o país se dirige notoriamente em direção à revolução”, em direção a uma guerra civil, e que, “no âmbito de uma guerra civil, o assassinato de alguns opressores não diz respeito mais ao terrorismo individual”, mas é parte integrante da “luta mortal” entre os alinhamentos opostos (p. 104). Como se vê, pelo menos neste caso, o próprio Trotsky coloca em dificuldade a mitologia do bode expiatório.

Compreende-se o embaraço totalmente particular de Marie. E então? Conhecemos já a ostentação de erudição como cortina de fumaça. Vamos à substância. Entre as inúmeras e muito diferentes personalidades por mim citadas, Marie escolhe duas: a uma (Malaparte) considera incompetente, à outra (Feuchtwanger) tacha como agente mercenário a serviço do crime e imbecil que se encontra no Kremlim. E assim o jogo é feito: a guerra civil desaparece e novamente o primitivismo do bode expiatório pode festejar seus êxitos. Mas recusar-se a levar em consideração os argumentos utilizados por um grande intelectual, como Feuchtwanger, para limitar-se a tachá-lo como agente mercenário a serviço do inimigo: geralmente não é esse o modo de proceder considerado “stalinista”? E, sobretudo: o que devemos pensar do testemunho de Trotsky que fala de “guerra civil” e de “luta mortal”? Não é um paradoxo o grande especialista e sumo sacerdote da “trotskismo-logia” constranger ao silêncio a divindade por ele venerada? Sim, mas não é o único paradoxo e nem mesmo o mais ressonante. Vejamos: Trotsky não apenas compara Stalin a Nicolau II (p. 104) como vai além: no Kremlim se encontra um “provocador a serviço de Hitler”, ou “a marionete de Hitler” (p. 126 e 401). E Trotsky, que se gabava de ter muitos partidários na União Soviética e que, antes, segundo Broué (biógrafo e hagiógrafo de Trotsky), tinha conseguido infiltrar seus “fiéis” até no interior da GPU, não havia feito nada para destruir o poder contrarrevolucionário do novo czar ou do escravo do Terceiro Reich? Marie termina retratando Trotsky como um simples tagarela que se limita a uma basófia verbal de taberna, ou como um revolucionário desprovido de coerência e até medroso e vil. O paradoxo mais gritante é que sou de fato constrangido a defender Trotsky contra alguns de seus apologetas!

Digo “alguns de seus apologetas” pelo fato de nem todos serem tão despreparados como Marie. A propósito da impiedosa “guerra civil” que se desenvolve entre os bolcheviques o meu livro observa: “Estamos diante de uma categoria que constitui o fio condutor da pesquisa de um historiador russo (Rogovin), de firme e declarada fé trotskista, autor de uma obra em vários volumes, dedicada a registrar a reconstrução minuciosa dessa guerra civil. Nela se fala, a propósito da Rússia soviética, de “uma guerra civil preventiva” desencadeada por Stalin contra aqueles que se organizam para derrotá-lo. Também aos de fora da URSS, essa guerra civil se manifesta e em partes arrebenta na frente de combate contra Franco; e, com efeito, em referência à Espanha de 1936-39, se fala não de uma, mas de “duas guerras civis”. Com grande honestidade intelectual e tirando proveito do novo e rico material documentário disponível, graças à abertura dos arquivos russos, o autor aqui citado chega à conclusão: “Os processos de Moscou não foram um crime imotivado e a sangue frio, mas a reação de Stalin ao longo de uma arguta luta política”.

Polemizando com Alexander Soljenítsin, que menciona as vítimas das purgações como um bando de “coelhos”, o historiador trotskista russo cita um folhetinho que nos anos 1930 chamava a varrer do Kremlim “o ditador fascista e sua camarilha”. Depois, comenta: “Mesmo do ponto de vista da legislação russa hoje em vigor esse folhetinho deve ser analisado como um apelo a uma violenta derrocada do poder (mais exatamente do estrato superior dominante)”. Em conclusão, bem longe de ser expressão de “um ataque de violência irracional e insensata”, o sanguinário terror desencadeado por Stalin é, na realidade, o único modo com que ele consegue dobrar a “resistência das verdadeiras forças comunistas” (p. 117-118).

Assim se expressa o historiador trotskista russo. Mas Marie – para não renunciar ao seu primitivismo e à procura de um bode expiatório (Stalin) sobre o qual concentrar todos os pecados do Terror e da União Soviética em seu conjunto – prefere seguir os passos de Soljenítsin e apresentar Trotsky como um “coelho”.

3- Traição ou contradição objetiva? A lição de Hegel

No âmbito do quadro por mim traçado, permanecem firmes os méritos de Stalin: ele compreendeu uma série de pontos essenciais: a nova fase histórica que se abria com a falência da revolução no Ocidente; o período de colonização escravista que ameaçava a Rússia soviética; a urgência de recuperação do atraso em relação ao Ocidente; a necessidade de conquista de ciência e tecnologia mais avançadas e a consciência de que a luta por tal conquista pode ser, em determinadas circunstâncias, um aspecto essencial, e mesmo decisivo, para a luta de classe; a necessidade de coordenar patriotismo e internacionalismo e a compreensão do fato de uma vitoriosa luta de resistência e de libertação nacional (como foi a Grande guerra patriótica) constituir-se na mesma época uma contribuição de primeiríssimo plano à causa internacionalista da luta contra o imperialismo e o capitalismo.

Stalingrado lançou os requisitos para a crise do sistema colonial em escala planetária. O mundo de hoje caracteriza-se por crescentes dificuldades do mesmo neocolonialismo; pela prosperação de países como China e Índia e, mais no geral, da civilização na mesma época subjugada ou humilhada pelo Ocidente; pela crise da doutrina Monroe e pelo esforço de certos países latino-americanos de unir luta contra o imperialismo com a construção de uma sociedade pós-capitalista. Pois bem, este mundo não é presumível sem Stalingrado.

E, no entanto, uma vez dito isso, é possível compreender a tragédia de Trotsky. Depois de ter reconhecido o grande papel por ele desempenhado no curso da Revolução de Outubro, o meu livro assim descreve o conflito que vem a se formar com a morte de Lênin: “Na medida em que um poder carismático era ainda possível isso tendia a tomar corpo na figura de Trotsky, o genial organizador do Exército vermelho e brilhante orador e prosador que pretendia encarnar as esperanças de triunfo da revolução mundial e que para isso fazia avançar a legitimidade de sua aspiração a governar o partido e o Estado.

Stalin, porém, era a encarnação do poder legal-tradicional que procurava penosamente tomar forma: ao contrário de Trotsky – ligado tardiamente ao bolchevismo – ele representava a continuidade histórica do partido protagonista da revolução e, em seguida, detentor de nova legalidade; para além disso afirmando a realizabilidade do socialismo mesmo em um único (grande) país, Stalin infundia uma nova dignidade e identidade à nação russa que, assim, superava a crise assustadora – fictícia mais do que concreta – irrompida a partir da derrota e do caos da Primeira Guerra Mundial, e reencontrava a sua continuidade histórica.

Mas exatamente por isso os adversários gritavam “traição”, enquanto traidores aos olhos de Stalin e de seus partidários surgiam todos com seu aventurismo facilitando a intervenção de potências estrangeiras, colocavam em perigo, em última análise, a sobrevivência da nação russa – que era na mesma época o destacamento de vanguarda da causa revolucionária. O choque entre Stalin e Trotsky é um conflito não apenas entre dois programas políticos, mas também entre dois princípios de legitimação” (p. 150).

Em certo ponto, diante da radical novidade do quadro nacional e internacional, Trotsky se convence (sem razão) de que em Moscou havia uma contrarrevolução e age em conformidade a isso. No quadro traçado por Marie, ao contrário, Trotsky e seus partidários – apesar de terem conseguido se infiltrar na GPU e em outros setores vitais do aparato estatal – sem lutar deixaram-se vencer e massacrar pela contrarrevolução criminosa e idiota que foi instalada no Kremlim. Não há dúvida, é essa a leitura – para ridicularizar particularmente Trotsky, apequenando e para tornar medíocres e irreconhecíveis todos os protagonistas da grande tragédia histórica que se desenvolveu na esteira da Revolução Russa (como em todas as grandes revoluções).

Com o objetivo de compreender de modo adequado tal tragédia, é preciso fazer apelo a uma categoria de contradição objetiva estimada por Hegel (e por Marx). Desgraçadamente, porém – adverte o meu livro -, Stalin como Trotsky compartilham a mesma pobreza filosófica: não conseguem avançar para além dessa troca recíproca de acusação de traição: “De uma parte e de outra, mais do que se empenhar na análise laboriosa das contradições objetivas, e das opostas opções e dos conflitos políticos que se desenvolvem sobre tal base, prefere-se recorrer com ligeireza à categoria de traição e, em sua configuração extrema, o traidor se torna agente consciente e corrompido pelo inimigo. Trotsky não se cansa de denunciar “a conspiração da burocracia stalinista contra a classe operária”, e a conspiração é tão mais abjeta pelo fato de a “burocracia stalinista” não ser nada além do que “um aparato de transmissão do imperialismo”. É apenas o caso de dizer que Trotsky vem generosamente recebendo o troco na mesma moeda. Ele se lamenta de ter sido tachado como “agente de uma potência estrangeira”, mas, por sua vez, tacha Stalin como “agente provocador a serviço de Hitler” (p. 126).

Menos que nunca, Marie – que efetivamente ironiza minha frequente citação de Hegel – dispôs-se a problematizar a categoria de “traição”. No debate ora em curso quem é, pois, o “stalinista”?

4- O comparativismo como instrumento de luta contra as fraudes da ideologia dominante

Até aqui vimos no grande especialista de “trotskismo-logia” um esforço de erudição com fim em si mesma ou utilizada como cortina de fumaça. E, no entanto, em Marie é preciso reconhecer um raciocínio, ou melhor, uma tentativa de raciocínio. No momento em que faço uma comparação entre os crimes de Stalin – ou a ele atribuídos – e aqueles cometidos pelo Ocidente liberal e seus aliados, Marie contesta: “Então, na pátria triunfante do socialismo (porque para Losurdo o socialismo surgiu na URSS) e que concretizou a unidade dos povos é normal que sejam utilizados os mesmos procedimentos dos chefes de países capitalistas ou de um obscurantista feudal e até do czar Nicolau II”. Examinemos essa refutação. Até deixamos de lado as imprecisões, os exageros ou os verdadeiros e próprios mal-entendidos. Em nenhuma parte falo da URSS ou de outro país como “a pátria triunfante do socialismo”; em meus livros escrevi, pelo contrário, que o socialismo é um “processo de aprendizado” difícil e de maneira nenhuma concluído. Mas concentremo-nos no essencial. Da Revolução de Outubro até nossos dias constante é a tendência de a ideologia dominante demonizar tudo aquilo que tem alguma relação com a história do comunismo. Como fiz notar em meu livro, por algum tempo Trotsky foi tachado de ser (a exemplo de Goebbels) aquele que “talvez em sua consciência tenha o número de crimes mais alto que nunca antes pesou sobre um homem” (p. 343); sucessivamente essa obscura primazia foi atribuída a Stalin e hoje a Mao Tsetung; estão por ser igualmente criminalizados Tito, Ho Chi Minh, Castro etc. Devemos suportar essa “demonização” que – como sustento no último capítulo de meu livro – é apenas a outra face da “agiografia” do capitalismo e do imperialismo? Vejamos de que maneira a essa manipulação maniqueísta reage Marx. Quando a burguesia do seu tempo – aceitando motivo para o assassinato dos reféns e para o incêndio espalhado pelos Communards – denuncia a Comuna de Paris como sinônimo de infame barbárie Marx responde que as práticas de tomada (e de eventuais assassinatos) de reféns e de ateamento de incêndios foram inventadas pelas classes dominantes e que, de qualquer modo, pelo que diz respeito a incêndios, seria preciso distinguir entre “vandalismo por uma defesa desesperada” (aquele dos communards) e “vandalismo por prazer”. Marie me faz muita honra quando polemiza comigo sobre esse ponto: ele faria bem em fazer o mesmo diretamente com Marx. Ou, se pudesse, com Trotsky, que age também do mesmo modo com que fui censurado: no libreto A sua moral e a nossa, Trotsky se refere a Marx, já citado por mim, e – para rebater a acusação segundo a qual os bolcheviques, e apenas eles, se inspiram no princípio segundo o qual “o fim justifica os meios” (violentos e brutais) – chama em causa o comportamento não apenas da burguesia do século XIX e XX, como também (…) o de Lutero, protagonista da guerra de extermínio contra Müntzer e os camponeses. Mas, agarrado como está ao culto à erudição, Marie não reflete nem mesmo sobre textos dos autores por ele mais estimados. E, na verdade, me ironiza dando à sua intervenção o título “O socialismo de Gulag!”. Naturalmente, com essa mesma ironia por aí poderiam ser feitas chacotas da Rússia soviética de Lênin (e de Trotsky): “O socialismo (ou a revolução socialista) da Ceka”, ou “o socialismo (ou a revolução socialista) da tomada de reféns” (tenha-se presente que, em A sua moral e a nossa, Trotsky é obrigado a defender-se até da acusação de ter recorrido a essa prática). Na realidade, com a ironia cara a Marie pode-se liquidar qualquer revolução. Temos então: “A Comuna dos reféns fuzilados”, “a liberdade e a igualdade da guilhotina” etc. De outra parte, não se trata de exemplos imaginários: foi assim que a tradição de pensamento reacionária liquidou a Revolução Francesa (e, sobretudo, o jacobinismo), a Comuna de Paris, a Revolução Russa etc. Marx resumiu a metodologia do materialismo histórico na afirmação segundo a qual “os homens fazem sua história sozinhos, mas não em circunstâncias escolhidas por eles”. Ao invés de pegar os gestos dessas lições para investigar os erros, os dilemas morais, os crimes dos protagonistas de cada grande crise histórica, Marie indica essa simples alternativa: ou os movimentos revolucionários são soberanamente superiores – e, antes, milagrosamente transcendentes em relação ao mundo histórico, e às contradições e aos conflitos do mundo histórico – no âmbito em que eles se desenvolvem, ou aqueles movimentos revolucionários são uma completa ruína e um engano completo. E assim a história dos revolucionários em seu conjunto se configura como a história de uma única, ininterrupta e miserável ruína e engano. E mais uma vez Marie se coloca na vala da tradição do pensamento reacionário.

5- O socialismo como processo de aprendizado trabalhoso e incompleto

Eu disse que a construção do socialismo é um processo de aprendizado trabalhoso e incompleto. Mas exatamente por isso é preciso empenhar-se em dar respostas: o socialismo e o comunismo comportam a total eliminação de identidades e até de idiomas nacionais, ou tem razão Castro quando diz que os comunistas tiveram culpa por subestimar o peso que a questão nacional continua a exercer mesmo depois da revolução anti-imperialista e anticapitalista?

Na sociedade do futuro previsível não haverá mais lugar para nenhum tipo de mercado e nem para o dinheiro, ou devemos tirar proveito da lição de Gramsci, segundo a qual é preciso ter presente o caráter “determinado” do “mercado”? Em relação ao comunismo Marx fala algumas vezes de “extinção do Estado”, e outras de “extinção do Estado no atual sentido político”: são duas fórmulas entre si sensivelmente diferentes; em qual das duas pode-se inspirar? São esses problemas a provocar entre os bolcheviques, primeiro um ríspido conflito ideológico e depois a guerra civil; e a esses problemas é preciso responder se se quiser restituir credibilidade ao projeto revolucionário comunista, evitando as tragédias do passado. Com esse espírito é que escrevi primeiro Fuga da história? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa hoje e, depois, Stalin.

História e crítica de uma lenda negra. Sem confrontar tais problemas não se poderá nem compreender o passado nem projetar o futuro. Sem confrontar tais problemas, aprender de memória até os mínimos detalhes da biografia (ou da agiografia) deste ou daquele protagonista de Outubro de 1917 servirá apenas para confirmar a profundidade do lema caro a Clemenceau: como a guerra é uma coisa muito séria para ser entregue a generais e especialistas da guerra, também a história da própria tragédia de Trotsky (para não falar da grande e trágica história do movimento comunista em seu conjunto) é uma coisa muito séria para ser entregue a especialistas e generais da trotskismo-logia.

Tradução: Lucilia Ruy

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Um Trotsquista Assassina Trotsky

 Um Trotskista Assassina Trotsky


No fim da tarde de 20 de agosto de 1940,em uma vila altamente fortificada em Coyoacán(México),Fank Jacson ,um dos seguidores de Trotsky , assassinou seu líder esmagando sua cabeça com uma picareta alpina.O assassinato de Trotsky por um dos seus próprios discípulos tornou-se ocasião para os trotskistas atribuírem ainda outro crime imaginário aos agentes de Stalin - O assassino de Trotsky.Como sempre,a realidade é muito diferente de seu retrato pelo trotskismo.

Eis os fatos:
Em setembro de 1939,um agente trotskista europeu viajando sob o nome suposto de Frank Jacson(seu nome real era Jacques Monard Van den Dresche)chegou aos Estados Unidos.Jacson tinha sido recrutado no movimento trotskista ,enquanto estudante na Sobornne de Paris, Por Sylvia Ageloff,uma trotskista americana.Em 1939,ele foi contatado em Paris por um representante da denominada Quarta Internacional,que chamou para ir para o México servir como um dos "secretários"de Trotsky . Jcason foi recebido em sua chegada por Sylvia Ageloff e outros trotskistas e levado a Coyoacán,onde ele passou a trabalhar para Trotsky . Após sua prisão,Jacson disse à polícia mexicana:

"Trotsky estava querendo mandar-me para a Rússia,com o objetivo de organizar um novo estado de coisas na URSS...Nossa missão era produzir a desmoralização no Exército Vermelho,cometendo diferentes atos de sabotagem em indústria de armamentos e outras fábricas."

Jacson nunca foi para a sua missão terrorista à União Soviética.Em lugar disso, cumpriu outra missão em Villa Coyoacán. que Sayers e Kahn contem a história:

"preso pela policia mexicana,Jcason disse que ele tinha desejado casar-se com Sylvia Ageloff ee que Trotsky tinha proibido o casamento.Uma rixa violenta,envolvendo a moça,surgiu entre dois homens'por causa' disse Jacson,'eu resolvi sacrificar-me inteiramente.'

Em uma declaração posterior,Jacson afirmou:
'...em lugar de encontrar-me frente a frente com um chefe político que estava dirigindo e luta pela libertação da classe operária.,vi-me diante de um homem que desejava nada mais do que satisfazer suas necessidades e desejo de vingança e de ódio e que não utilizava a luta dos operários para nada mais do que um meio de esconder sua própria ligação insignificância e seus cálculos desprezíveis...em relação a sua casa,que ele me disse muito acertadamente ter sido convertida em um fortaleza.Eu me perguntei muitas vezes de onde tinha vindo o dinheiro para tal trabalho...Talvez o Cônsul de uma grande nação estrangeira que muitas vezes visitou-o nos possa responder essa pergunta...
Foi Trotsky que destruiu minha natureza,meu futuro e todas as minhas afeições.Ele converteu-me em uma homem sem nome,em um instrumento de Trotsky - Trotsky esmagou-me em suas mãos como se eu fosse de papel."

"A morte de Leon Trotsky deixou apenas um candidato vivo para o papel napoleônico na Rússia: Adolf Hitler"(The Conspiracy,pp. 3355-336).

Brar,Harpal, Trotskismo X Leninismo - Lições da História.Editora Caravansarai.

Fonte: site Comunistas Brasileiros

«O “Holodomor” e o filme “Bitter Harvest” são mentiras fascistas»

 



Com a subida ao poder de fascistas e anticomunistas na Ucrânia, regressaram velhas mentiras históricas. Como a do alegado genocídio de ucranianos por fome alegadamente imposta pelos “estalinistas” em 1932-33: o alegado “Holodomor” retratado no filme “Bitter Harvest” (Colheita Amarga) a circular brevemente em Portugal.
   
Mentiras apoiadas pelos serviços secretos imperiais. Para branquear, saudar e legitimar o poder pró-imperial extremamente reaccionário, imposto na Ucrânia para servir os interesses do grande capital. E também para alimentar a campanha contra Estaline e o socialismo soviético.
   
Esta campanha chegou a Portugal. Em 3 de Março, duas semanas depois de a AR ter condenado a ilegalização do PC da Ucrânia, o PSD propôs um voto de “condenação pelo Holodomor”. O PS – que não gosta de deixar créditos direitistas em mãos alheias, ainda que escondidos por detrás de belas palavras como “homenagem” e “vítimas” – também propôs um voto de «homenagem às vítimas da grande fome na Ucrânia». Ambos os votos foram aprovados. O do PSD, com o apoio do CDS, PAN e um deputado do PS, a abstenção do PS e votos contra do PCP, BE, PEV e três deputados do PS. O do PS, com os votos do CDS, PAN e BE, a abstenção do PSD e votos contra do PCP e PEV. Note-se (mais uma vez!) o alinhamento do BE com o PS.
   
O PCP desmascarou, em certa medida, a «exumação do cadáver de uma campanha lançada há vários anos pela extrema-direita ucraniana». É uma campanha que desde a Guerra Fria tem sido desmascarada. É claro que muitos cidadãos honestos não têm conhecimento disso. No PSD, PS, etc., também há os desconhecedores; mas, mais do que isso, abundam os desonestos lambe-botas do grande capital e do império.
  
Para os cidadãos desconhecedores mas honestos aqui deixamos ficar a tradução de um excelente artigo de Grover Furr, Professor e especialista em história da URSS da Universidade de Montclair, EUA, publicado na revista Counterpunch em 3 de Março.

*   *   *

O “Holodomor” e o filme “Bitter Harvest” são mentiras fascistas
 
   
(Nota do autor: Neste artigo baseio-me em grande medida em evidência citada na investigação de Mark Tauger da Universidade da Virgínia Ocidental. Tauger dedicou a sua vida profissional a estudar as fomes e agricultura russa e soviética. É uma autoridade mundial nestes temas e alvo do desagrado vigoroso dos nacionalistas e anticomunistas ucranianos porque a sua investigação explode as falsidades deles.)
   
O filme nacionalista ucraniano “Bitter Harvest” propaga mentiras inventadas pelos nacionalistas ucranianos. Na sua análise Louis Proyect propaga essas mentiras.
   
Proyect cita o artigo de Jeff Coplon “Em busca do Holocausto Soviético: Uma Fome de Há 55 Anos Atrás Alimenta a Direita” publicado em Village Voice, 1988. Nele, Coplon mostra que os mais destacados peritos ocidentais na versão dominante e anticomunista da história soviética, rejeitaram qualquer noção de uma fome deliberada imposta aos ucranianos. E continuam a rejeitá-la. Proyect omite a menção deste facto.
   
Houve uma fome muito séria na USSR, incluindo na (mas não limitada à) RSS da Ucrânia em 1932-33. Mas nunca existiu qualquer evidência de um “Holodomor” ou “fome deliberada” e não existe nenhuma hoje.
   
A ficção do “Holodomor” foi inventada por ucranianos colaboradores dos nazis, que encontraram depois da guerra portos de abrigo na Europa Ocidental, Canadá e EUA. Uma narrativa inaugural é a de Yuri Tchumatski, Porque Razão Um Holocausto Vale Mais Do Que Outros? publicada na Austrália em 1986 pelos “Veteranos do Exército Insurgente Ucraniano”; este trabalho constitui um ataque alargado aos “Judeus” por serem demasiado pró-comunistas.
   
A apreciação de Proyect perpetua as seguintes falsidades sobre a colectivização soviética da agricultura e sobre a fome de 1932-33:
   
* Que, em geral, os camponeses resistiram à colectivização porque era uma “segunda servidão”.
   
* Que a fome foi causada pela colectivização forçada. Na realidade a fome teve causas ambientais.
   
* Que “Estaline” – a liderança soviética – criou deliberadamente a fome.
   
* Que ela tinha como objectivo destruir o nacionalismo ucraniano.
   
* Que “Estaline” (o governo soviético) pôs um fim à política de “ucranização”, à promoção de uma política de encorajamento da língua e cultura ucranianas.
   
Nenhuma destas alegações é verdadeira. Nenhuma delas é apoiada por evidências. São simplesmente afirmadas pelas fontes nacionalistas ucranianas com o objectivo de justificar ideologicamente a sua aliança com os nazis e a sua participação no Holocausto Judaico, o genocídio dos polacos ucranianos (os massacre 1943-44 na Volínia) e o assassinato de judeus, comunistas, e muitos camponeses ucranianos depois da guerra.
   
O objectivo final é igualar o comunismo ao nazismo (o comunismo foi posto fora da lei na actual “Ucrânia democrática”), a USSR à Alemanha nazi, e Estaline a Hitler.
   
Colectivização da Agricultura – A Realidade
   
A Rússia e a Ucrânia sofreram fomes graves em ciclos de poucos anos durante mais de um milénio. A fome acompanhou a revolução de 1917, tornando-se mais séria em 1918-1920. Outra fome grave, incorrectamente chamada “fome do Volga”, surgiu em 1920-21. Houve fomes em 1924 e de novo em 1928-29, esta última especialmente severa na RSS da Ucrânia. Todas estas fomes tiveram causas ambientais. O método medieval de “campo aberto” da agricultura camponesa tornava impossível uma agricultura eficiente e inevitáveis as fomes.
   
Os líderes soviéticos, entre eles Estaline, decidiram que a única solução seria reorganizar a agricultura na base de grandes herdades como se fossem fábricas, tais como as que existem no Midwest Americano, que foram deliberadamente adoptadas como modelo. Quando os sovkozes  ou “herdades soviéticas” pareceram funcionar bem, a liderança soviética tomou a decisão de colectivizar a agricultura.
   
Contrariamente à propaganda anticomunista, a maioria dos camponeses aceitou a colectivização. A resistência foi modesta; os actos de rebelião aberta foram raros. Em 1932 a agricultura soviética, incluindo a da RSS da Ucrânia, estava largamente colectivizada.
   
Em 1932 a agricultura soviética foi atingida por uma combinação de catástrofes ambientais: seca em algumas áreas; demasiada chuva, noutras; ataques de “ferrugem”-puccinia e de “carvão” (doenças fungais); infestações de insectos e ratos. A erradicação de ervas daninhas foi negligenciada por fraqueza dos camponeses, reduzindo ainda mais a produção.
   
A reacção do governo soviético mudou quando a escala da falência das colheitas se tornou clara no Outono e Inverno de 1932. Acreditando inicialmente que a má gestão e sabotagem eram as principais causas de colheitas pobres, o governo removeu muitos líderes do partido e das herdades colectivas (não há qualquer evidência de que tenha havido “execuções” como a de Mykola no filme).  No início de Fevereiro de 1933, o governo soviético começou a fornecer ajudas massivas de cereais a áreas de fome.
   
O governo soviético também organizou rusgas em herdades camponesas para confiscar excessos de cereais a fim de alimentar as cidades, que não produziam a sua própria alimentação. Fizeram-no também para impedir o açambarcamento; numa fome os cereais poderiam ser revendidos a preços inflacionados. Em condições de fome um mercado livre de cereais não poderia ser permitido, a não ser que se deixassem os pobres morrer à fome como tinha sido a prática no regime dos Czares.
   
O governo soviético organizou departamentos políticos (politotdely) para ajudar os camponeses nos trabalhos agrícolas. Tauger conclui: “O facto de que a colheita de 1933 foi muito maior do que as de 1931-1932 significa que os politotdely por todo o país ajudaram uniformemente as herdades a trabalhar melhor.” (Modernização, 100)
   
A boa colheita de 1933 foi conseguida por uma população consideravelmente menor, já que muitos morreram durante a fome, outros estavam doentes ou fracos, e ainda outros tinham fugido para outras regiões ou para as cidades. Isto reflecte o facto de que a fome não foi causada nem pela colectivização, nem pela interferência do governo, nem ainda por resistência dos camponeses, mas sim por causas ambientais que já não estavam presentes em 1933.
   
A colectivização da agricultura foi uma verdadeira reforma, um marco na mudança revolucionária da agricultura soviética. Ainda houve anos de colheitas pobres; o clima da URSS não se alterou. Mas, graças à colectivização, só houve mais uma fome devastadora na URSS, a de 1946-1947. O mais recente estudioso desta fome, Stephen Wheatcroft, concluiu que a fome foi causada por condições ambientais e pelas devastações da guerra.
   
As Falsas Alegações de Proyect
   
Proyect repete acriticamente a inqualificável versão da história dos fascistas ucranianos cozinhada para benefício próprio.
   
* Não houve nenhuma “máquina estalinista da morte”.
   
* Funcionários dedicados do partido não foram “expurgados e executados”.
   
* “Milhões de ucranianos” não foram “forçados a entrar em herdades estatais e colectivas”. Tauger conclui que a maior parte dos camponeses aceitou as herdades colectivas e trabalhou bem nelas.
   
* Proyect aceita a alegação nacionalista ucraniana de “3 a 5 milhões de mortes prematuras”. Isto é falso.
Alguns nacionalistas ucranianos citam números de 7 a 10 milhões, para igualar ou ultrapassar os seis milhões do Holocausto Judaico (vide o Porque Razão Um Holocausto Vale Mais Do Que Outros? de Tchumatski). O próprio termo “Holodomor” (“holod” = “fome”, “mor” do polaco “mord” = “assassínio”, ucraniano “morduvati” = “assassinar”) foi deliberadamente construído para soar de forma semelhante a “Holocausto”.
O mais recente estudo académico das mortes pela fome avalia-as em 2,6 milhões (Jacques Vallin, France Meslé, Serguei Adamets, and Serhii Pirojkov, “A New Estimate of Ukrainian Population Losses during the Crises of the 1930s and 1940s” [Uma Nova Estimativa das Perdas Populacionais Ucranianas durante as Crises dos anos de 1930 e de 1940] Population Studies 56, 3 (2002): 249-64).
   
* Jeff Coplon não é um “sindicalista canadiano” mas sim um jornalista e escritor de Nova Iorque. O livro do falecido Douglas Tottle, Fraud, Famine and Fascism [Fraude, Fome e Fascismo], uma resposta razoável ao fraudulento livro de Robert Conquest Harvest of Sorrow [Colheita de Dor], foi escrito (tal como o livro de Conquest) antes da torrente de fontes primárias dos antigos arquivos soviéticos tornados públicos desde o fim da URSS em 1991, estando portanto muito desactualizado.
   
* A afirmação de Walter Duranty acerca de “omeletas” e “ovos” não foi feita “em defesa de Estaline” como alega Proyect mas como crítica da política do governo soviético:
Mas — para pôr as coisas nuas e cruas — não se pode fazer uma omeleta sem partir ovos, e os líderes bolcheviques eram tão indiferentes às vítimas que pudessem estar envolvidas na sua acção dirigida para a socialização como qualquer General que durante a Guerra Mundial ordenou um ataque custoso para mostrar aos superiores que ele e a sua divisão possuíam o espírito militar apropriado. De facto, os bolcheviques eram mais indiferentes, porque estavam animados por uma convicção fanática. (The New York Times March 31, 1933)
É evidente que Proyect simplesmente copiou esta falsidade proveniente de alguma fonte nacionalista ucraniana. “Garbage In, Garbage Out” [Entra Lixo e Sai Lixo].
   
* Andrea Graziosi, citado por Proyect, não é um estudioso da agricultura soviética ou da fome de 1932-33, mas um anticomunista ideológico que concorda com qualquer e toda a falsidade anti-soviética. O artigo citado por Proyect provém do Harvard Ukrainian Studies, uma revista vazia de qualquer investigação objectiva, editada e financiada pelos nacionalistas ucranianos.
   
* Proyect menciona “dois decretos secretos” do Politburo soviético de Dezembro de 1932 que claramente não leu. Estes punham um fim à “ucranização” fora da RSS da Ucrânia.  Dentro da RSS da Ucrânia a “ucranização”continuou inalterada. Não foi “terminada” como alega Proyect.
   
* Proyect, relativamente à União Soviética, não cita qualquer evidência de uma “política de destruição física na nação ucraniana, especialmente da sua intelligentsia” porque uma tal política não existiu.
   
O Triunfo do Socialismo
   
A colectivização soviética da agricultura constituiu um dos maiores feitos de reforma social do século XX, se não o maior deles todos, a par da “Revolução Verde”, do “arroz milagroso”, e dos empreendimentos da China e EUA no controlo da água. Se houvesse Prémio Nobel para proezas comunistas, a colectivização soviética seria um forte candidato.
   
A verdade histórica sobre a União Soviética não é só intragável para os colaboradores dos Nazis; ela é-o para os anticomunistas de todas as cores. Muitos que se consideram da Esquerda, tais como os Sociais-Democratas e os Trotskistas, repetem as mentiras dos fascistas confessos e dos escritores abertamente pró-capitalistas. Estudiosos objectivos da história soviética, como Tauger, determinados a dizer a verdade mesmo quando essa verdade é impopular, são demasiado raros e estão frequentemente soterrados pelo coro dos falsificadores anticomunistas.
   
Fontes: Trabalhos de investigação de Mark Tauger, especialmente “Modernization in Soviet Agriculture” [Modernização da Agricultura Soviética] (2006); “Stalin, Soviet Agriculture, and Collectivization” [Estaline, Agricultura Soviética e Colectivização] (2006); e “Soviet Peasants and Collectivization, 1930-39: Resistance and Adaptation.”  [Camponeses Soviéticos e Colectivização, 1930-1939: Resistência e Adaptação] (2005), todos disponíveis na Internet. Outros artigos de Tauger estão disponíveis nesta página: https://www.newcoldwar.org/archive-of-writings-of-professor-mark-tauger-on-the-famine-scourges-of-the-early-years-of-the-soviet-union/
Ver também o Capítulo I do meu livro Blood Lies; The Evidence that Every Accusation against Joseph Stalin and the Soviet Union in Timothy Snyder’s Bloodlands Is False [Mentiras Sangrentas: A Evidência de que Toda a Acusação contra José Estaline e a União Soviética em Terras-Sangrentas de Timothy Snyder É Falsa (New York: Red Star Press, 2013), em http://msuweb.montclair.edu/~furrg/research/furr_bloodliesch1.pdf
Sobre a fome de 1946-47 ver Stephen G. Wheatcroft, “The Soviet Famine of 1946–1947, the Weather and Human Agency in Historical Perspective.” [A Fome Soviética de 1946-1947, o Clima e Acção Humana em Perspectiva HistóricaEurope-Asia Studies, 64:6, 987-1005.


 Disponível em: <<http://revolucaoedemocracia.blogspot.com/2017/03/o-holodomor-e-o-filme-bitter-harvest.html>>

domingo, 20 de setembro de 2020

O personagem trotsquista em os subterrâneos da liberdade: uma polêmica

 

O PERSONAGEM TROTSQUISTA EM OS SUBTERRÂNEOS DA LIBERDADE: uma polêmica

 

 

Cássio Caetano Braga [1]

RA: 2265541

Sálua Bueno Almeida[2]

RA: 2257301

 

RESUMO

 

 

Esse artigo trata da polêmica desencadeada, por ocasião da passagem do centenário de Jorge Amado, a respeito do personagem Abelardo Saquila em seu romance Subterrâneos da Liberdade. Críticos como Celso Lungaretti e a filha de Sachetta afirmam que o personagem Abelardo Saquila representa, de forma injusta e deturpada, o ex-militante comunista Hermínio Sachetta. Nossa hipótese é que o personagem de Saquila é apresentado de forma que mantém laços com o real, ou senão, sob um prisma que mantém relações com os fatos históricos reais. A própria polêmica, que leva pouco em questão o fato de que o livro é uma obra de ficção, deixa a entender que o fato do romance ser inspirado em personagens reais provoca ainda, tantos anos passados, relações passionais nas pessoas reais.

 

 

Palavras-chave: Jorge Amado, literatura, polêmica, Trotsky, Sachetta, PCB, militância

 

 

1 INTRODUÇÃO

 

 

 

Nos anos 30, Jorge Amado dedicou-se a escrever um romance bastante extenso a respeito de sua militância comunista em meio à Era Vargas. Mais do que um romance de um escritor engajado, ou seja, que adere a alguns dos interesses da esquerda, Jorge Amado escreveu literatura partidária, ou seja, escreveu sobre o contexto nacional de um ponto de vista militante, com claras intenções didáticas. Esse tipo de proposta é bem o que Lênin propunha para os escritores que desejassem aderir à causa proletária. Pode-se dizer, a favor dessa vertente, inclusive, que toda produção literária também é, direta ou indiretamente, envolvida por um sentido político. Assim, pode-se dizer que nos anos 30 Jorge Amado foi militante, ou seja, organizou sua literatura numa proposta política, mais do que simplesmente um literato engajado. Antes, porém, Jorge Amado percorreu uma determinada trajetória que vamos sumarizar aqui.

Inicialmente, simpatizou com o Modernismo de 22, mas não foi propriamente um modernista como Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Jorge Amado foi um autor muito atento à cultura popular baiana, foi muito ligado ao Candomblé e à cultura afro de sua região, trazendo-a para sua literatura de uma forma muito orgânica, o que não era comum na literatura brasileira. Sua literatura tem, portanto, uma forte cor local, um diálogo com o modernismo e também um engajamento político que, bastante claro inicialmente, diminuiu depois do impacto do Relatório Kruschev em 1956.

No início dos anos 30, quando seus livros fizeram sucesso, Jorge Amado foi classificado como autor “regionalista”. Juntamente com Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida e Graciliano Ramos, era considerado da “geração de 30”. Como tal, foi hostilizado por Oswald de Andrade em artigo em que chamou a esses escritores de “búfalos do nordeste”. E ainda escreveu, sempre muito irônico, que se tratava do “Ciclo da Bagaceira”, deixando claro um duplo sentido: os romances eram vistos como ruins, grosseiros.

Pode-se supor que, embora tivessem elementos modernistas em comum, esses não eram suficientes para dirimir as diferenças que existiam entre os modernistas paulistas e a chamada geração de 30. Os romancistas nordestinos acima citados obtiveram aceitação muito grande devido à temática social que despontava nos anos 30. A realidade da fome no Nordeste não despertava tanto interesse do público, nem tivera ampla aceitação como tema desde que Euclides da Cunha escreveu Os Sertões. No entanto, agora não era um intelectual do Sudeste que escrevia a respeito, mas sim escritores nordestinos que aspiravam à grandeza literária. E em boa parte a conquistaram. Antonio Candido, para grande irritação de Oswald, proclamou, sobre os romances de 30, que “agora começa a literatura brasileira”.

Um fator que influenciou foi o interesse que a esquerda em geral, e em especial o partido comunista brasileiro, teve em tal temática, que atendia bastante ao gosto da esquerda, em seu interesse em temas nacionais e populares que representassem denúncia da realidade social. Outro fator que atraiu foi seu pouco experimentalismo com a forma, sua linguagem naturalista e realista, o que tornava os romances muito mais didáticos e aceitáveis, mas alienava, de cara, a simpatia de Oswald de Andrade, autor de romances bem mais experimentais e que demonstravam preocupação em subverter o enredo e a forma tradicionais. Quando surgiram os romances de 30, incorporando a língua mais solta e mais coloquial do modernismo e “redescobrindo o Brasil”, sob a forma de vivências nordestinas ainda pouco tematizadas, avançava em temáticas ainda pouco conhecidas, mas que dentro em pouco passaram a ser debatidas em todo o país.

Inicialmente, Jorge Amado escreveu O País do Carnaval, onde o personagem principal, Paulo Rigger, faz o contrário do protagonista de João Miramar, romance de Oswald de Andrade: o retorno depois de um período morando na Europa. Rigger demonstra ceticismo e elitismo em relação ao país, falando em chicotear o povo, além de pouca simpatia em relação aos comunistas e fascistas, aos quais chegava a igualar, repudiando ambos. A relação com o modernismo é clara, mas Amado, ao verificar que esse romance destoava dos demais, afirmou que esse era único que teve um protagonista que não refletia suas posições, não tinha a ver com ele.

Nos romances posteriores, Cacau, Jubiabá e Suor, a literatura de Amado evoluiu num sentido sociológico e terminou por suplantar os dois escritores paulistas em aceitação por parte do público e da crítica. Obteve, inclusive, consagração internacional, algo até então incomum entre os escritores brasileiros. Boa parte de seu sucesso internacional se deu em função da difusão de seus textos por parte dos partidos comunistas de todo o mundo. Os romances acima citados, junto com outros, como Capitães de Areia e Subterrâneos da Liberdade, encaixavam-se muito bem às premissas do realismo socialista então em voga na União Soviética. A idéia era criar romances em que o povo, as massas, eram os principais heróis, desmontando a narrativa individualista burguesa e transmitindo um conteúdo aproveitável aos socialistas. Pode-se dizer que mesmo Oswald de Andrade, que chegou a chamar Jubiabá de “Ilíada Negra”, foi influenciado por Jorge Amado em seu romance cíclico Marco Zero, texto onde buscou conciliar experimentalismo formal com engajamento político comunista. Sendo assim, não procede a acusação trotsquista de que Jorge Amado e o realismo socialista não lidavam com as questões formais.

No início da carreira, Jorge Amado, frequentou um ambiente onde havia antipatia ao coronelismo nordestino e às antigas oligarquias atrasadas. O primeiro livro de Jorge Amado, O País do Carnaval, relaciona-se claramente com a problemática modernista, ao narrar a volta do rapaz Paulo Rigger, depois de uma temporada de vários anos na Europa, em sua volta ao Brasil. O livro lembra um pouco as Memórias Sentimentais de Miramar, mas no sentido contrário: ao invés de ser o brasileiro que sai para a Europa, o tema de Amado é o retorno e a readaptação ao ambiente local. Esse livro celebrizou-se pela famosa frase de Rigger, que comentou que só se sentiu brasileiro quando dançou o carnaval e bateu em sua mulher, Julie. No entanto, vale a pena registrar que a geração de 30 atritou com os modernistas paulistas. Em determinados momentos, Oswald de Andrade referiu-se a eles sarcasticamente como os "búfalos do Nordeste". Igualmente, Jorge Amado também chegou a afirmar que o modernismo de 22 era um movimento que compreendia pouco a vida do povo, não reconhecendo seus laços com ele.

Depois de sua ruptura com o partido comunista, Jorge Amado desenvolveu, em seus romances posteriores, uma linguagem mais carnavalesca e personagens tais como Quincas Berro D´ Água e Gabriela, sendo ambos, respectivamente, um senhor já idoso que volta ao universo da prostituição e da boemia e uma mulher que rompe com o que é esperado para o comportamento de uma mulher em sua sociedade. Assim, Jorge Amado passa a elaborar personagem que questionam a moral, que são boêmios ou fanfarrões.

Ele alegava que, enquanto uma vez ligado ao partido, se sentia tolhido em sua arte e que precisou romper com o partido para ser mais livre enquanto escritor. Amado dizia que não foi o relato dos supostos crimes de Stálin (hoje duramente questionado pelo professor norte-americano Grover Furr em seu livro Kruschev Lied, ainda sem tradução no Brasil) que o fez afastar-se do partido comunista brasileiro, e sim a necessidade de ser menos militante e adquirir maior liberdade artística. Gabriela, Cravo e Canela, romance com grande aceitação nos Estados Unidos quando foi publicado, obtendo crítica favorável no New York Times e elogiado por escritores como Mario Vargas Lhosa, foi considerado o primeiro romance de uma nova fase de Jorge Amado. Sobre Stálin, Amado afirmava não ter sido surpreendido pelo relatório de 1956, mas dizia já saber de tudo desde 1954, quando discussões a respeito estavam em curso na União Soviética. Ele falou que lá havia um “degelo”.

Curiosamente, esse é o título de um romance publicado na época por Ilya Erehmburg, também um romancista na linha do realismo socialista que fez a crônica da revolução de outubro de 1917 e dos tempos subsequentes.

 

 

2 JORGE AMADO E O ROMANCE PROLETÁRIO SUBTERRÂNEOS DA LIBERDADE

 

 

O romance focaliza a atividade clandestina do partido comunista, em meio a greves, atos e manifestações operárias e populares. O partido vivia um dos piores momentos de sua história, amargando a dura derrota após a tentativa de tomar o poder em 1935. Seu maior líder, Prestes, estava preso, assim como boa parte de sua militância. Posteriormente, com as denúncias de Kruschev contra Stálin, Jorge Amado afastou-se do partido e publicou Gabriela, Cravo e Canela, obtendo grande repercussão nos Estados Unidos. Hoje a crítica considera que esse romance marcou uma nova fase, distinta da literatura partidária. O que estamos chamando de "literatura partidária" poderia ser chamado de realismo socialista. Esse termo em geral é muito pejorativo. No entanto, não para um cineasta de vanguarda como Glauber Rocha, que elogiou Jorge Amado nos seguintes termos:

 

Nenhum crítico lukacsiano, tipo Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, que são os representantes aqui do pensamento aqui do pensamento de Lukács, Gramsci, escreveu um ensaio sobre Jorge Amado. A crítica de esquerda só escreve sobre Graciliano Ramos, que é um velho artigo do Antonio Candido que é repetido, mas sobre Jorge Amado ninguém escreve, não têm coragem de entrar no assunto. Escrevem sobre a literatura soviética. Literatura e humanismo, livro do Nelson Coutinho, é o maior absurdo. Um cara, no Brasil, escreve um livro sobre o romance realista socialista e não escreve sobre Jorge Amado que é o maior romancista realista socialista do mundo. Jorge Amado é tão importante quanto Brecht, é o romanceiro popular, fez o que o Brecht fez no teatro. Reverteu as operações dramáticas, colocou o proletariado como personagem principal, subverteu a língua e subverteu a estrutura do romance. Criou uma coisa popular e revolucionária (ROCHA, 1980, p. 32).

 

            Assim, pode-se dizer que Jorge Amado, mesmo fazendo romance militante, inova tão radicalmente como Brecht, como comenta acima Glauber Rocha, ou seja, experimenta não só novos temas, mas também em termos formais. O grande argumento dos formalistas e surrealistas, usado até mesmo pelos concretistas para condenar o realismo socialista seria que ele não pensa uma forma revolucionária para um conteúdo revolucionário. O romance de Jorge Amado é polifônico no sentido em que rompe com o ponto de vista de um herói somente. Os heróis são as massas. Mesmo os personagens do povo, mais simples e humildes, participam da narrativa, ou seja, fazem a história.

 

 

3 SUBTERRÂNEOS DA LIBERDADE X PORÕES DA DECÊNCIA

 

 

            No ano de 2012 se deu o ano de centenário de Jorge Amado. Essa data comemorativa ativou uma polêmica dos trotsquistas com relação à obra de Jorge Amado. Sobressaiu uma questão polêmica, objeto de vários artigos: a narrativa de Subterrâneos da Liberdade teria sido injusta com um personagem histórico real, o trotsquista Hermínio Sachetta, transformado, no romance, em Abelardo Saquila. Quando o romance foi publicado, Hermínio Sachetta publicou um artigo chamado Porões da Decência, onde busca desqualificar e diminuir em geral o romance, mas não aborda diretamente o fato de ter sido retratado como Abelardo Saquila.

Em artigos recentes, o jornalista e militante do PSOL Celso Lungaretti e a filha de Sachetta (Paula Sachetta) exigiram, em artigos, afirmaram que Subterrâneos tem um retrato falso de um comunista por parte de Jorge Amado. O máximo que Amado fez foi afirmar que no tempo de Subterrâneos da Liberdade ele via tudo muito em preto e branco. Nesse ponto vou abordar algumas das aparições do personagem Saquila no romance e debater as posições apresentadas, que associam o personagem a um personagem histórico real e pedem uma autocrítica, não ficcional, mas sim real. Lungaretti e os outros se esquecem que Subterrâneos da Liberdade é um texto ficcional, não pretende ser um relato real, histórico. Nossa hipótese é não que existe, então, sentido em cobrar uma autocrítica de Jorge Amado. Outro fato é que têm surgido evidências da colaboração de Trotsky com os nazistas e os japoneses. Esse fato histórico é muito importante para debater a obra Subterrâneos da Liberdade, pois o principal argumento dos críticos de Jorge Amado é que a narrativa histórica à qual se refere o romance, ou seja, os fatos reais, estariam sendo deturpados.

            Primeiro argumento dos adeptos do trotsquismo é que Hermínio Sachetta foi acusado de fracionismo trotsquista. Ora, o Sachetta histórico era de fato um trotsquista, tanto que foi expulso do partido comunista brasileiro em 1937 e participou, a seguir, da IV Internacional e escreveu, posteriormente, textos teóricos trotsquistas. Assim, não existe uma "acusação" de trotsquismo - e sim uma evidência. Nossa hipótese nesse trabalho é que Saquila é realmente apresentado de forma negativa no romance, mas existem, dentro do romance, algumas nuances, como quando se debate arte moderna - o debate tende a dar razão a Saquila. Isso possivelmente não foi levado em conta. O que de fato irrita é a acusação de que Saquila foi um informante da polícia. Essa acusação possivelmente pode ser atribuída ao Sachetta histórico. Abordaremos essa e outras questões ligadas ao personagem do trotsquista Abelardo Saquila em Subterrâneos da Liberdade, buscando trazer luz a esse debate que parece continuar até mesmo depois da morte de Jorge Amado, prosseguindo em seu centenário.

 

 

4 ENTRE ABELARDO E HERMÍNIO: um personagem se rebela contra o seu autor

 

 

Atualmente, é praticamente um consenso que os comunistas ao tempo de Stálin era conservadores em termos de arte, desejavam arte acadêmica e os trotsquistas eram a favor da experimentação e da liberdade artística. Essa é a posição predominante que tem a crítica a respeito de Subterrâneos da Liberdade, considerado seu romance mais "stalinista", ou seja, mais politicamente dirigido.

No entanto, pode-se contra-argumentar que Jorge Amado também inova: ele cria um romance polifônico, com várias vozes e posições ideológicas diferentes, sem um narrador que didatize tudo e produza, a todo momento, juízos de valor que facilitem o entendimento do romance. Diante de Subterrâneos, o leitor também precisa sair da passividade, precisa ser ativo e buscar o sentido dos diálogos e situações políticas. Pessoas comuns, gente do povo, distantes das classes dominantes, ganham o primeiro plano do romance, seguindo o ensinamento de que são as massas que fazem a história.

Curiosamente, no artigo chamado Jorge Amado e os Porões da Decência, publicado em 1954, o jornalista Sachetta, curiosamente, assume ter sido retratado - ou melhor, detratado, no romance Subterrâneos da Liberdade. Assim, Sachetta julga ter sido o modelo do personagem e se rebela violentamente contra o retrato que foi feito:

 

O semianalfabeto ilustre, hoje traduzido em várias línguas da órbita russa e, por força do aparelho kominformista, mesmo no ocidente, se me apresenta sob pseudônimo - Saquila - preocupa-se em fazer com que o leitor me identifique, referindo-se, de passagem, a meu nome partidário da época (SACHETTA, 2012).

 

O leitor, no entanto, dificilmente teria como identificá-lo apenas por um nome partidário, a não ser que fosse ligado ao partido na época. De fato, pode-se notar que as opiniões do autor sobre o personagem Abelardo Saquila em Subterrâneos confirmam são posições trotsquistas (portanto, próximas, em algum grau, daquelas professadas por Sachetta na vida real):

 

O jornalista achava que nos países semicoloniais o movimento comunista se encontra ante um impasse: não podia nem vencer nem mesmo progredir, dependia por inteiro do fim do capitalismo nos países imperialistas, naqueles que os dominavam política e economicamente. Dizia tudo aquilo tirando baforadas de fumo de um cachimbo, numa voz doutoral que não admitia discussões (AMADO, 1982, P. 86).

 

            Ora, como não ver nas palavras acima, de Abelardo Saquila, a teoria da revolução permanente de Trotsky, que colocava a vitória da revolução russa na dependência da revolução na Europa? A solução, para Trotsky, era disseminar a revolução para o resto da Europa ou retornar ao que havia antes de outubro de 1917.

            Não é o narrador de Subterrâneos e sim um personagem, Rui, quem acusa Saquila de uma posição não comunista em política, ou seja, de preferir a aliança com o político paulista Armando de Salles Oliveira e sua proposta de golpe contra Getúlio ao movimento organizado das massas. A acusação, portanto, não é exatamente de trotsquismo, mas sim do seguinte:

 

Acusou Saquila de atividades divisionistas, de agir de forma antipartidária, levantando uma campanha contra a direção no seio das bases, criando dificuldades para o bom cumprimento das tarefas, sabotando-as em última instância, já que criava a confusão entre os companheiros. A linha política tinha sido amplamente discutida antes de ser aprovada pela direção nacional do Partido. Aprovada que fora, cumpria aos militantes leva-la à execução. E se tinha algum ainda o que discutir, devia fazê-lo nos organismos próprios e não sair numa atividade grupista a recrutar opositores, em cochichos, em reuniõezinhas privadas, onde até a vida particular dos camaradas era objeto de intrigas e infâmias. E agora, nesse primeiros dias após o golpe, sentia-se um recrudescimento da atividade desse grupo. Em vez de ajudarem os companheiros a levantar a luta necessária contra o Estado Novo, estavam apontando o golpe como o resultado de uma linha política falsa do Partido, dificultando a pesada tarefa dos companheiros da direção, alastrando um pessimismo perigoso entre certas bases do Partido. E tudo indicava que Saquila era o centro de todo esse grupo, sua figura dirigente (AMADO, 1982, p. 198).

 

            No entanto, diante dessas palavras, mesmo assim Saquila negou com veemência a acusação de trotsquista. Sachetta, em seu artigo Porões da Decência, ataca com virulência Jorge Amado, não negando totalmente as posições defendidas pelo personagem Saquila. No romance de Jorge Amado, Saquila defendia, contra a linha adotada pelo partido, o golpe de estado dos paulistas, ou seja, o putsch ao invés do movimento de massas. Depois de afirmar intempestivamente que Jorge Amado não mantinha contato com o PC e sim com o jornal Meio Dia dos nazistas, Sachetta afirma que era, na verdade, contra os dois candidatos que disputavam o cargo de presidente:

 

Não cabe ora recapitular as teses que, àquele tempo, constituíram linhas de cristalização das duas alas dos comunistas do Brasil em divergência. Limitamo-nos a lembrar que nós e nossos amigos políticos preconizávamos, então, equidistância pelo PC dos dois candidatos que disputavam o Catete (Armando de Salles Oliveira e José Américo de Almeida) e frente única das forças democráticas para evitar o golpe de Estado que Getúlio preparava e, ao cabo, desfechou. A ala que seria apoiada por Moscou encarniçava-se para que simplesmente fosse dado apoio a José Américo, rojando-se-lhe, em pânico, aos pés. Confirme o Sr. J. A. - refutando, à luz de provas documentais, o que acabamos de dizer - a despudorada série de invencionices que contrabandeia em seu Rocambole zdanovista de mais de mil páginas (SACHETTA, 2012).

 

De qualquer forma, é certo que Sachetta está contra o candidato José Américo, que a linha do partido tinha consensualmente apoiado. Ele não estava numa posição diametralmente oposta à do personagem retratado em Subterrâneos; há pontos de contato entre a ficção e a história. A crítica a Saquila em Subterrâneos foi feita nos seguintes termos pelo militante João:

Compreende, Ruivo. Putsch e não luta de massas, direção de burguesia e não de proletariado...Não há diferença entre o que ele pensa em política e o que ele pensa em arte. Ao contrário, há uma perfeita harmonia: trotsquismo e surrealismo são formas de luta da burguesia em planos diferentes (AMADO, 1982, p. 202).

 

            O próprio romance apresenta, também, a defesa que Sachetta faz do surrealismo e afirma que as críticas de Ruivo à arte surrealista, que ele acusa de possuírem sentimentos sujos, são chamadas de primárias, o que demonstra tolerância à diversidade de opiniões:

 

O Ruivo interrompia a longa resposta que Saquila iniciava com um gesto onde revelava todo o desprezo que lhe mereciam as considerações de João:

--Essas são afirmações primárias... (AMADO, p. 197).

 

Curiosamente, esse romance não é, portanto, um romance que excluiu os debates e as posições contrárias a ele mesmo (pois é evidente que esse romance é favorável a Stálin e é um romance tido como realista socialista). Isso depõe a favor de Jorge Amado, que, mais do que mero militante, é um grande artista, produz um texto literário que tem múltiplas interpretações.

Quanto ao realismo socialista, o fato dessa linha ter sido escolhido é o fato de que o estado socialista precisava fazer um trabalho ideológico junto às massas. Noutro plano, a política cultural foi de valorizar as minorias. Toda etnia tinha direito a seu território, seus jornais e meios para poder preservar sua cultura. O programa de Trotsky e Breton para a cultura, que prevê anarquismo, direção alguma, não pode ser adotado nem por uma secretaria de cultura. Ele denuncia um elemento já há muito comentado: o trotsquismo guarda elementos de anarquismo, ou seja, individualismo exacerbado.

A hipótese de Sachetta e Lungaretti, assim, não procede. Cobrar de uma ficção que apresenta um mundo possível uma atitude diversa em relação à personalidade histórica de Abelardo Saquila é ignorar que o livro não é história e sim ficção. O que Lungaretti está fazendo é justamente querer tolher a liberdade do artista. Já a manifestação de Sachetta e de sua filha denunciam justamente que o personagem ainda provoca e inquieta, provocando debates e discussões, o que provavelmente foi o objetivo do texto que, embora didático, de fato é construído de uma forma dialógica, ou seja, ao se construir em meio a diálogos, quer possivelmente promover novos diálogos, ou seja, o debate, a discussão, a polêmica.

 

 

CONCLUSÃO

 

 

O romance Subterrâneos da Liberdade foi acusado, quando da passagem do centenário de Jorge Amado, de fazer um retrato deturpado de Hermínio Sachetta, jornalista que estaria retratado na figura de Abelardo Saquila. O que pudemos verificar é que o romance não tem um narrador didático, que dá opiniões definitivas sobre todos os assuntos. Em dados momentos, Saquila é apresentado como vaidoso, possível agente da polícia, mas por outros ele critica a opinião dos companheiros a respeito de obras de arte e chama suas opiniões de primárias, ou seja, a palavra lhe é dada. Mostramos também que as posições políticas do personagem têm pontos em comum com as do Hermínio Sachetta histórico, a partir de um artigo onde Sachetta discute, de forma ácida e hostil, o romance de Jorge Amado. Se existe, portanto, um retrato, essa hipótese passa a ter fundamento a partir das palavras do próprio possível retratado, que estabeleceu uma ligação com o personagem, vendo-se ali retratado e tendo sentido necessidade de fazer correções ao retrato pintado por Jorge Amado. Mas a questão era justamente o fato de que o personagem não era Sachetta. A ingenuidade de Sachetta e Lungaretti fazem com que eles deixem de lado o fato de que romance é uma obra de arte e se atenham somente aos aspectos históricos, como se Subterrâneos fosse uma obra do historiador Eric Hobsbawn, por exemplo, e não uma obra de arte, que trata de um mundo possível.

Nos anos 30, Jorge Amado ligou-se à chamada "geração de 30" e caminhou paulatinamente para uma literatura partidária, a partir da repercussão intensa dos temas sociais que abordava. Os Subterrâneos da Liberdade é a crônica da era Vargas do ponto de vista dos militantes do partido comunista. O romance foi publicado em três volumes: Os Ásperos Tempos, a Agonia da Noite e a Luz no Túnel. É um romance que não tem um protagonista somente, mas sim um romance constituído, em grande parte, de diálogos, incorporando, inclusive, a voz dos oligarcas, criando um painel social que funciona com finalidades didáticas. O romance fazendo a crônica do partido também foi experimentado na União Soviética e foi preconizado pelo leninista Andrei Jdanov, que afirmava que era preciso que essa estética estimulasse o entusiasmo revolucionário e fizesse, em favor do partido, um trabalho ideológico. Pode-se objetar inúmeros argumentos contra Jdanov, mas o fato é que em seu tempo (anos 20) uma estética marxista praticamente não existia. Hoje em dia pode-se dizer que a estética marxista são Brecht, Einsenstein e o Cinema Novo brasileiro, mas há muita controvérsia a respeito. O tema tem sido deixado de lado após a queda do Muro de Berlim em 1989 e ainda demanda maiores estudos.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

AMADO, Jorge. Os Subterrâneos da Liberdade. Rio de Janeiro: Editora Record, 1978.

 

 

LUNGARETTI, Celso. A lição de moral que Jorge Amado recebeu de Jacob Gorender. Disponível em: <http://naufrago-da-utopia.blogspot.com.br/2012/05/ devido-minha-proximidade-com-varios.html>. Acesso em 20 de dezembro de 2012.

 

 

PONTES, Mateus de Mesquita e. Jorge Amado e a literatura de combate. Da literatura engajada à literatura militante de partido. REVELLI Revista de Educação, Linguagem e Literatura da UEG-Inhumas. ISSN 1984-6576 - v. 1, n. 2, outubro de 2009.

 

 

RUY, José Carlos. Debate: a Controvérsia de Jorge Amado e Hermínio Sachetta. Disponível em: <http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=168282&id_ secao=11>. Acesso em 20 de dezembro de 2012.

 

 

SACHETTA, Hermínio. Jorge Amado e os porões da decência. Disponível em: <http://www.marxists.org/portugues/sachetta/1954/mes/poroes.htm>. Acesso em 20 de dezembro de 2012.



[1] Aluno do Curso de Letras, da FASF/UNISA, Polo Luz/MG.

[2] Aluna do Curso de Letras, da FASF/UNISA, Polo Luz/MG.