terça-feira, 24 de maio de 2011

Risque o meu nome do seu caderno...

Maria Eugênia Boaventura



Como está na moda fazer carta de exoneração, farei também a minha: quero ser exonerado do papel de orientando de Maria Eugênia Boaventura, conforme ainda (apesar de meus apelos desesperados) consta no site dessa professora da UNICAMP:



Orientandos Doutorado:


1. Roberval Pereira – “Campos de Carvalho: o desertor no deserto”.
PICD, defesa realizada em 06 abril de 2000.

2. Mirhiane Mendes de Abreu – “Notas de rodapé: um toque de verossimilhança aos romances indianistas alencarianos”,
FAPESP. Defesa realizada em Outubro/2002.

3. Eloesio Paulo dos Reis – “A loucura como alegoria em três romances dos anos 70”,
FAPESP. Defesa realizada em fevereiro de 2004.

4. Pascoal Farinaccio – “A questão da representação e o romance brasileiro contemporâneo”.
FAPESP. Defesa realizada em abril de 2004.

5. Antonia Maria Nunes – "Manuel Bandeira, gênese e memória: revelação de uma poética". CNPq. Exame de qualificação realizado em abril de 2004.

6. Sebastião Marques – “A construção dos personagens na Trilogia do Exílio de Oswald de Andrade”.

7. Lúcio Júnior – "A trilogia de Plínio Salgado e o Marco Zero de Oswald". Em andamento. Defesa realizada em abril de 2004.

8. Benilton Lobato Cruz . “Expressionismo alemão e a poesia do modernismo. Iniciada em 2006


http://www.unicamp.br/~boaventu/page1.htm


Minhas divergências com Maria Eugênia são inúmeras, mas ressalto as de natureza política. Sou simpatizante do comunismo e Maria Eugênia é a favor de privatizações. A professora me disse que não se pode garantir se Oswald de Andrade foi comunista, embora seja evidente em seus textos entre 1930-45 e isso conste até da biografia de Oswald escrita pela própria Maria Eugênia (O Salão e a Selva). Sinto muito, mas esse tipo de coisa enche o saco. E meu trabalho era justamente sobre a fase comunista do Oswald de Andrade, fase do romance Marco Zero.

Por isso, fica difícil escutar tolices tais como "Não sei porque o Oswald não participou da revolução de 32..." Ora, ora, minha cara, não só Oswaldão não participou como chamou os estudantes que a puxaram de "cânceres" de São Paulo e achou muito bom que a classe trabalhadora paulista não tenha lutado, em peso, ao lado do que chamou de tubarões feudais. As tais elites, "zelites", que vc tanto repete, porque provavelmente quer ser dessas "elites"...são isso, minha cara!!! Mas lembre-se de que essas elites não gostam de baianos. Eles dizem que os baianos vieram para o sul cantar: "ó que saudade da Bahia. Se é por falta de adeus." E lembremos que Oswald ridicularizou 32 em MZ.

Guardei também e-mails da professora prometendo que em fevereiro de 2010 eu defenderia minha dissertação...tou esperando até hoje!

É isso, que não seja por falta de adeus: RISQUE O MEU NOME DO SEU CADERNO, JÁ NÃO SUPORTO O INFERNO!!!!!!!!!!

sábado, 21 de maio de 2011

Os comunistas: cizânia em quartéis de Minas

Esse livro do coronel Sant´Clair levanta, com base em pesquisa histórica na própria PMMG, as prisões ocorridas na PM entre 1947 e 1953, em grande parte vitimando militares que de fato não eram envolvidos com o partido comunista, mas que foram vítimas do arbítrio a que podiam recorrer, nesse período, as instituições militares. Assim, algumas centenas de homens foram postos incomunicáveis e presos durante vários anos, sem nunca terem passado por um julgamento.

O autor critica bastante o comunismo, mas mesmo assim ele reconhece as inúmeras injustiças cometidas no período em que o partido foi posto na ilegalidade e, como resultado da Guerra Fria, desencadeou-se uma campanha anticomunista dentro do exército e da polícia, numa onda semelhante ao macartismo nos Estados Unidos. No entanto, a pesquisa do autor não se dá ao trabalho de pesquisar aquilo que os próprios comunistas pensavam no período, o que faz com que o livro perca foco e se confunda.

Um grande equívoco do autor é imaginar que imaginar que, entre 1947 e 1952, o partido comunista pretendesse repetir o levante comunista de 1935, infiltrando militantes na polícia e no exército. A pesquisa não recorre a entrevistas com os militares sobreviventes, o que não permite esclarecer esse fato, assim como as fontes buscadas (Hobsbawn, João Quartim de Moraes) não foram suficientes. Seria preciso ouvir registros do outro lado, porque no período, embora ilegal, o partido apoiava as criações das estatais tais como a Petrobrás, assim como se opunha a mandar tropas para participar na guerra que então se travava na península coreana. O papel de Vargas no período e a hipótese de que alguns dos condenados fossem varguistas e não comunistas fica totalmente relegada. Vargas é o grande ausente desse livro -- e é o grande protagonista político do período.

Ainda assim, o livro constitui de uma pesquisa muito interessante, com registros da própria instituição, o que joga luz sobre um episódio pouco conhecido e debatido.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

A Chinesa, ou à moda chinesa: notas sobre o conceito de texto em um filme de Jean-Luc Godard

Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior

Escola, digamos, é o lugar bom (onde você faz progresso e do qual você acaba saindo) e é oposto ao cinema (o lugar ruim ao qual você regressa e nunca sai).

Serge Daney, Pedadogia Godardiana

Resumo

O artigo busca aplicar um conceito ampliado de texto ao filme A Chinesa, de Jean-Luc Godard. Supõe também que o filme, além de ampliar o conceito de texto abrangendo várias formas de escrita, utiliza e experimenta, como parte de seu tecido narrativo, várias formas, tais como frases, fragmentos de livros que são lidos, encenação teatral, citação de inúmeros livros, autores e filmes, assim como imagens pop de Batman, fotos e recortes de jornais e revistas.

Palavras-chave: filme, texto, intertextualidade, dialética, citação, experimentação, Brecht, Mao, Godard

Summary

This article intends to apply a expanded concept of text to a
Jean-Luc Godard´s film called The Chinese. We also assume that the film, in addition to expanding the concept of text covering various forms of writing, uses and experiences, as part of its narrative tissue, various forms, such as phrases, fragments of books that are read, sometimes looking directly to the camera, and countless quotes, books, authors and films, as well as pop images of Batman, photos and newspaper clippings.

Keywords: movie, text, intertextuality, dialectics, quote, experimentation, Brecht, Mao, Godard

Introdução

Nesse artigo será analisado o filme A Chinesa, de autoria de Jean-Luc Godard. O filme permite um olhar sobre a recepção, na França de 1967, da revolução cultural da China, país cada vez mais importante culturalmente e economicamente no início do século XXI. Se à primeira vista parece que o filme A Chinesa é uma gozação com Mao Tsé Tung e os estudantes rebeldes de 67 são vistos como um bando de loucos, observando com cuidado, pode-se notar que se trata de uma obra de arte bastante diferente e séria: é a busca de uma forma revolucionária para um conteúdo revolucionário, tal como dizia Maiakóvski (que, aliás, é citado no filme). A bibliografia sobre o filme enfoca, em geral, toda a obra de Godard, obra essa que é bastante extensa. No mesmo período, o diretor realizou vários outros filmes na mesma linha. A bibliografia a respeito de A Chinesa, em português, mesmo na internet, é ainda escassa e inexata; em outros idiomas existe material que é citado aqui no decorrer do trabalho, mas nunca definindo um conceito de texto e analisando o filme a partir disso, como esse artigo buscou fazer. A produção acadêmica na área de literatura a respeito existe como mostrou a consulta à tese Escrever com a Câmera, de Mário Alves Coutinho. No entanto, as análises voltam-se para a vasta obra de Godard e não focam especialmente esse filme. Outro dado é que ele foi editado em DVD apenas em 2008. Supomos pertinente, então, fazer uma análise utilizando um conceito mais amplo de texto para aplicar a esse filme, que claramente faz uso de vários tipos de textos para alimentar sua narrativa: fotos, recortes de jornal, frases na parede, canção popular, texto teatral, citações direta ou indireta de autores. Nesse artigo, portanto, será realizado um ato de leitura do filme A Chinesa.

1. Em A Chinesa, tudo é texto

O conceito de texto que se está usando é o seguinte: nesse artigo, texto é toda a escrita de nível artístico ou não, recheada de conteúdos que têm inúmeros significados, ou seja, que são polissêmicos. O filme de Godard se apresenta como um quê de documentário ou estudo etnológico sobre um pequeno grupo de estudantes da universidade suburbana de Nanterre, em Paris (FERREIRA, 2010, p. 4).
O filme acontece em um verão, num apartamento em Paris onde os cinco principais personagens vivem. Os cinco são: Veronique (Anne Wiazemsky), Guillaume (Jean-Pierre Léaud), Yvonne (Juliet Berto), Henri (Michel Semeniako), Kirilov (Lex Di Bruijin). Veronique e Guillaume estão namorando, Yvonne é uma garota provinciana que se prostitui para comprar um carro novo e é aprendiz de maoísta, Henri é um rapaz estudioso que defende o filme Johnny Guitar (Nicolas Ray, 1954) e finalmente Kirilov é um estudante perturbado e de tendências suicidas. Como diz Mário Alves Coutinho:

Esta tese examina a obra cinematográfica de Jean-Luc Godard, com o propósito de evidenciar como ele, ao fazer cinema, concomitantemente, fez literatura, através de todo um processo de “experimentação dos ‘possíveis da linguagem”. No caso, uma experimentação com a linguagem e com a literatura no interior do próprio cinema que realizava, com imagens e sons, e todos os outros recursos cinematográficos de que o cineasta francês dispunha (enquadramentos, cores, montagem), para compor suas obras. Nestas a literatura aparece não somente usada intertextualmente e discutida a quase todo instante, mas, propriamente, escrita (ou falada). O uso da palavra, nos seus filmes – portanto, o uso da imagem e do som – nunca foi somente um recurso a mais para exprimir-se numa arte cujo elemento de linguagem mais importante teria sido sempre a imagem (COUTINHO, 2005, p. 11).

A tese de Mário Alves Coutinho, realizada em 2005, mostrou que Godard faz literatura através do cinema e enfoca a totalidade da obra de Godard. Esse artigo fará um recorte bastante específico a partir do filme A Chinesa, mas utilizando o pressuposto de Coutinho, de que existe intertextualidade em seu cinema, tomando como base um filme específico e analisando-o. Godard, em A Chinesa, reafirma um aspecto muito constante em toda a sua obra: o brincar com as palavras, com a escritura, jogando e brincando com as palavras e questionando a linguagem.

1.1. O mosaico de citações: primeiro movimento do filme

A intertextualidade é muito importante para analisar bem o filme. Godard parece saber que nenhum texto é puro. A Chinesa é formado por muitas vozes, é polissêmico e polifônico. Kristeva e Bakhtin afirmavam que todo texto se constrói como um mosaico de citações e é assim que Godard constrói sua obra. O filme dialoga com outros filmes, livros, etc (REINER, 2010, p. 30).
O filme A Chinesa abre-se com a frase, escrita diante de duas cadeiras vazias e o diálogo em off do casal principal: “é preciso confrontar as idéias vagas com as imagens claras”. Expõe três passagens intituladas “um filme em vias de ser feito” (que é o diálogo 1 de Guillaume), “diálogo 2: Yvonne”, “diálogo 3: Veronique”, “encontro com Francis Jeanson” e “diálogo 4: Henri excluído da célula Aden Arábia”.
O filme é apresentado como um filme “em vias de ser realizado”, ou seja, que está se fazendo. A idéia é mostrar que o filme é uma obra de arte que está sendo feita diante dos olhos do espectador, mostrando as engrenagens, os bastidores da própria filmagem. Atende, então, ao pressuposto de Brecht de que a obra de arte política e conscientizadora não pode aproveitar-se das emoções, deve dar tempo para analisá-las e lembrar o espectador de que está vendo algo distinto do real, uma obra de arte, não iludi-lo.
Em A Chinesa, Godard experimenta intensamente com a estrutura narrativa, mistura vida real e ficção, cita muito e ousa bastante. A Chinesa é um filme para o qual esse conceito de texto acima é muito útil, pois nele existem muitas formas de narrar e produzir sentido. Ele se inicia com o texto “um filme em vias de ser feito” e o artigo “os”. Logo a seguir, apresenta seus dois primeiros personagens: Guillaume e Veronique. Logo a seguir é focalizado o texto escrito na parede: “é preciso confrontar as idéias vagas com as imagens claras”. Então, ouve-se o áudio da Rádio Pequim contando como foi criada a Guarda Vermelha.
É apresentado, então, o texto sobre teatro de Guillaume; ouve-se a voz do próprio Godard em off, colocando questões que ao espectador são difíceis de entender, mas que são compreensíveis porque o ator responde a elas. Aparece a imagem de cartaz da União da Juventude Marxista-leninista, assim como o jornal Guarda Vermelha, que o grupo vende para se sustentar.
Eles transformam o apartamento num local de estudo do marxismo-leninismo onde debatem o dia inteiro, muitas vezes se revezando em sessões de estudo. O apartamento é todo decorado com cores primárias, com ênfase na cor vermelha. Pelas paredes, eles escrevem frases e citações, assim como muitas imagens que têm muito de arte pop, dentre elas imagens em preto e branco que eles coloriram com pincéis. A câmera focaliza, então, a frase “uma minoria numa linha revolucionária correta não é uma minoria”, numa outra parede.
Esse é um filme bastante ligado aos textos do líder chinês Mao Tsé Tung, mas de forma alguma é panfletário, trata-se de uma busca por revolucionar a linguagem. É sempre um filme imprevisto, notavelmente realizado com recursos claramente reduzidos, mas muito boas idéias. Não é à toa que ele cita inúmeros artistas: Eisenstein e Brecht são citados de forma positiva. André Malraux, ministro da cultura de De Gaulle, é criticado inúmeras vezes, sempre diretamente, com a personagem de Veronique dirigindo-se a Malraux para criticá-lo, como se ele fosse o espectador, num exercício brechtiano de distanciamento crítico.
Guillaume e Veronique, que formam um casal, são os maoístas mais convictos. O pai de Guillaume dirige um clube de veraneio e é veterano de guerra. Além disso, trabalhou com Artaud no teatro do absurdo. Veronique é filha de banqueiros, Henri estuda Química e namora a única personagem de origem operária, a desentendida Yvonne, camponesa originária de Grenoble e que é faxineira, mas também se prostitui ocasionalmente para ajudar a sustentar o grupo, que vive das aulas de Filosofia de Veronique e da venda dos livrinhos vermelhos de Mao. Serge Dimitri Kirilov parece ser inspirado no personagem Kirilov, de Os Demônios de Dostoiévski, um fanático que se suicida para provar a inexistência de Deus.
A seguir, Veronique escreve na parede a respeito das mentes perversas que eles combatem: “revisão + yankees” (ou seja, o comunismo russo e o capitalismo norte-americano); enquanto isso, Guillaume lê um fragmento do livro de pensamentos de Mao a respeito de que um comunista não pode ser arrogante e que deve ser franco. Na cena subseqüente, Henri escreve no quadro: “17 horas, terça (Henri), a estranha história dos Quantas; 17 hs sábado (Serge), a arte socialista está morta em Brest-Litovsk” (DANEY, 2010, p. 3).
De início, os personagens se apresentam para a câmera como se estivessem falando para um documentário. Mostra-se a câmera, claquetes, o set de filmagem. Guillaume conta que é um ator que está encenando a ópera Eugene Oneguin, de Pushkin. Deseja fazer um verdadeiro teatro socialista com as idéias de Althusser, Mao e Brecht.
O primeiro movimento do filme exibe as idéias dos maoístas como sendo a promissora esquerda independente, heroicamente se opondo aos norte-americanos e aos russos, apoiando o Vietnã e buscando lembrar-se sempre da então recente guerra da Argélia. A essa altura do filme, Guillaume lê, sintetizando-a, uma passagem de um texto de Mao Tsé Tung escrita em 1956 que, reduzida a uma frase (“o imperialismo é um tigre de papel”), ficou bastante famosa:

Agora o imperialismo norte-americano parece bem poderoso, mas na realidade não é. É muito fraco politicamente porque está divorciado das massas do povo e é antipatizado por todos, e até pelo povo norte- americano. Na aparência é muito poderoso, mas na realidade não é nada a se temer: é um tigre de papel (...). Quando dizemos que o imperialismo norte-americano é um tigre de papel, estamos falando em termos de estratégia. Considerado em seu todo, devemos desprezá-lo, mas considerando cada parte devemos tomá-lo seriamente (...)(ZEDONG, 2007, p. 135).

A Chinesa é um filme de construção altamente intertextual: cita-se Fellini (Oito e Meio), Paul Klee (“a arte não tem de mostrar o que se pode ver e sim tornar visível”), Dostoiévski (o personagem Kirilov de Os Demônios), Foucault, Lênin, Mao Tsé Tung.
Ele mistura análise filosófica profunda a uma reportagem sobre um tema quente: a revolução cultural chinesa que tinha acabado de acontecer no ano anterior, 1966. Esse acontecimento estava mobilizando a rebeldia da juventude chinesa, por vezes com violência, contra a velha guarda do partido comunista chinês e a cultura ocidental. A Chinesa é sobre a recepção dessa revolução cultural no ambiente universitário e intelectual francês e as conseqüências que ela traz. Então, nesse primeiro momento em que os jovens militantes são apresentados, pode-se fazer o seguinte balanço: embora a pequena célula maoísta, intitulada Aden Arábia, demonstre boas intenções ao defender os países do terceiro mundo tais como a Argélia e o Vietnã, além de importantes discussões sobre arte, também existe notória preferência por atos violentos. Essa tendência é um aspecto crítico que será retomado em outras ocasiões; pode-se apontá-lo como o aspecto negativo que o filme apresenta da recepção francesa da revolução cultural da China.

1.2. Segundo movimento do filme

Marcando claramente um segundo momento, após a apresentação dos personagens e do meio ambiente ao redor deles, surge o texto: “segundo movimento do filme”, acompanhado do rock francês de Claude Channes a favor de Mao:

O Vietnam queima e eu grito Mao Mao
Johnson ri e eu roubo Mao Mao
O Napalm escorre e eu rolo Mao Mao
As cidades arrebentam e eu sonho Mao Mao
Os putos gritam e eu rio Mao Mao
O arroz é louco e eu brinco Mao Mao
É o livrinho vermelho que faz afinal tudo mover
O imperialismo dita sua lei em toda parte
A revolução não é um banquete
A bomba A é um tigre de papel
As massas são os verdadeiros heróis
Os palhaços matam e eu leio Mao Mao
Os loucos são reis e eu vejo Mao Mao
Os russos comem e eu danço Mao Mao
Eu me denuncio e renuncio Mao Mao
É o livrinho vermelho que faz afinal tudo mover (GODARD, 1971, p. 22).

Nessa altura, Veronique lê um texto de Mao definindo a revolução: ela não é um banquete e não pode ser feita com discrição, ela é uma insurreição violenta onde uma classe derruba a outra. Veronique é perguntada por Godard sobre a “retaliação” e aparece uma cena de rebelião num bairro periférico. Ela lê, então, uma passagem dos Cadernos Marxistas-Leninistas:

Suprimir as provas, porque nelas não se aprende nada, porque nelas não se pode copiar e também porque é um tipo de racismo, uma vez que elas exercem um tipo de racismo em relação aos que trabalham o dia inteiro e porque elas geram neurose, angústia e frustração sexual (GODARD, 1971, p. 23).

Mais adiante, eles fazem um jogo de significado e palavras. Até mesmo a ginástica matinal é acompanhada da frase: “a forma téorica que seguimos é o marxismo-leninismo”. A seguir, Guillaume faz uma exposição sobre os irmãos Lumière e compara-os ao também pioneiro do cinema Mèlies. A exposição tem inscrita por detrás dela o título: “problemas de informação: por uma TV republicana”. No quadro-negro, Serge anota as seguintes frases: “sou eu que direi e o meu tempo”. “Meu trabalho e todo outro trabalho é parecido”. Exposição de Guillaume: ele fala sobre o Vietnã e encena o drama. Aparecem imagens do Capitão América, de Batman e do Sargento Fury. Ouve-se o som da Rádio Pequim; aparece o jornal da Guarda Vermelha ao fundo. Ao fundo há uma frase de Stálin escrita no quadro-negro. Ouve-se em off um discurso do presidente dos EUA, Lyndon Johnson: “eu sou pela paz no Vietnã”. Depois começa a exposição de Henri: “tendências atuais da luta de classes”. Surge na tela o texto: “os imperialistas estão vivos e continuam a fazer...” Veronique cita que eles são como os Robinsons citados no ensaio Anti-Dühring, de autoria de Engels. Surge a imagem de Mao e Guillaume lê um texto sobre a revolução cultural chinesa.
Esse movimento também apresenta a exposição de Omar Diop (um militante político negro) sobre o título, escrito no quadro-negro com giz: “as perspectivas da esquerda européia”. Enquanto Omar Diop dá a palestra, todos anotam; há um monte de livros vermelhos desorganizados numa pilha; no quadro lateral estão escritas palavras de ordem listando seus inimigos, que são os seguintes: anarquismo, ultra-democracia, subjetivismo, individualismo. Surgem, então, fotos da juventude da época fumando e rindo, imagens da universidade de Nanterre, assim como de um exemplo do Caderno de Estudos Marxistas-leninistas, publicação da extrema-esquerda maoísta do período.
Diop comenta que a morte de Stálin abriu uma grande liberdade de pesquisa e permitiu aos marxistas sair de seu provincianismo teórico. Henri pergunta a Diop se uma revolução não-socialista pode se transformar em revolução socialista. Diop diz que sim, dentro de certas condições bem precisas. O que não acontece é uma ausência de revolução se tornar revolução. Ele pergunta de onde vêm as idéias corretas e nessa parte é praticamente encenada a passagem de Mao intitulado “De Onde Vêm as Idéias Corretas?”:

De onde vêm as idéias corretas? Caem do céu? Não. São inatas dos cérebros? Não. Só podem vir da prática social, dos três tipos de prática: a luta pela produção, a luta de classes e os experimentos científicos na sociedade. A existência é sócia do povo e determina seus pensamentos (ZEDONG, 2007, p. 15).

Surgem imagens de Malraux e Malcolm X. Começa a exposição de Serge com um quadro com nomes de inúmeros artistas: Kleist, Feydeau, Brecht, Guitry, dentre outros. Então, Serge nega Trotsky enquanto crítico e teórico de arte, que é a finalidade, afinal, dessa exposição. Comenta que o efeito estético é imaginário, a arte não é reflexo do real, mas o real desse reflexo. Aparece, então, uma paleta e o comentário sobre as cores primárias que predominam em A Chinesa, num lance metalinguístico. Mostram-se quadros e fotos; Serge comenta que é preciso encontrar a unidade de um conteúdo revolucionário com a forma a mais perfeita possível. Serge quer marcar uma posição a favor da vanguarda nas artes, mas contra o trotsquismo.
Guillaume comenta que “o partido controla as armas, mas as armas não devem controlar o partido”. “Assim como a flecha mira o objetivo”, diz ele manobrando um arco e flecha e acertando o projétil numa foto do presidente De Gaulle, “o marxismo-leninismo mira na revolução”. Como o assunto passa a ser ação armada, Henri faz sua exposição a respeito da posição pacifista do PCF; ele claramente diz que barricadas e revolução violenta não são táticas viáveis numa sociedade industrial. Ele é vaiado e chamado de revisionista. No quadro-negro estão escritas, com giz, frases colocando sob a classificação de liberalismo social: dragões, hienas, chacais, mosquitos, tigres, dragões de pacotilha. Essa passagem do filme contrastou fortemente as idéias claras de Diop, um verdadeiro militante político, com a mistura de arte e política que fazem Serge e Veronique. O espírito científico de Diop e Henri é contrastado com uma certa confusão ideológica que reina entre os demais personagens, em especial na mistura entre arte e vida, política e teatro. Godard mostra que entre aqueles jovens fervilha um pensamento rico, mas, em meio à bagunça mental e existencial, eles chegam a conclusões irreais.



1.3. Terceiro movimento do filme

Inicia-se, então, o terceiro movimento do filme. O grupo decide começar uma divisão de combate. No quadro está escrita a frase: Política e crime: o imperialismo universitário burguês. Henri diverge, decide abandonar a sala e busca levar Yvonne junto dele. Yvone reage e prefere ficar com os demais. Veronique é escolhida num sorteio para praticar a ação armada. Pouco antes de realizar a ação armada, Veronique encontra-se com seu professor em Nanterre, Francis Jeanson, que reprova seu gesto de tentar matar o ministro soviético da cultura Michel Shokolov, então em visita à França. Novamente, completando a tela com os textos anteriores, surge o texto “encontro com Francis Jeanson”, seguido de “essa situação deve mudar, é uma tarefa dos povos de todo o mundo pôr fim à agressão”, texto que é intercalado no diálogo entre Jeanson e Veronique. Após uma longa conversa no metrô, Jeanson conclui dizendo que uma ação violenta assim, sem um conhecimento da situação e sem simpatizantes por trás, nunca levará a nada (GODARD, 1971, p. 21).
Surge novamente o texto: “os imperialistas continuam a fazer reinar o arbítrio na África, Ásia e América Latina. Eles oprimem ainda as massas de seus respectivos países. Esta situação...” A coexistência pacífica proposta pelo PCF é intensamente criticada, cita-se Lênin, aparece imagem dele em meio a quadrinhos e quadros. Yvonne lê uma fotonovela de uma revista da Central Geral dos Trabalhadores, também ligada ao PCF. Guillaume reclama com ela, dizendo que não se pode usar a mesma linguagem da novela, uma linguagem tradicional, para tratar de um conteúdo revolucionário. Henri, para desancar Veronique, comenta que “a liberdade nem sempre tem as mãos limpas”, citando Malraux. Henri mostra-se também desgostoso com a crítica ao filme Johnny Guitar no jornal L´Humanité Nouvelle (GODARD, 1971, p.22).
Aparecem, então, imagens de uma exposição de estátuas egípcias. A seguir, é uma cena entre Veronique e Guillaume onde eles esperam uma decisão de Serge. Finalmente, Serge se suicida e deixa uma carta responsabilizando-se pela tentativa de assassinato do ministro soviético da cultura, Michel Sholokov. A seguir, é a cena externa onde Veronique sai para fazer o atentado. Enquanto ela sai para atirar no ministro, mostra-se uma cena de bomba explodindo em uma história em quadrinhos. Veronique mata o homem errado. Aparece de novo o texto: “pertence a todos os povos do mundo pôr fim à opressão do imperialismo”. Henri declama tristemente, citando Marx e Dostoiévski: “se o marxismo-leninismo existe, então tudo é permitido”.
A cena seguinte mostra o destino de Guillaume após o início das ações armadas. Ele radicaliza e deixa o emprego na ópera, onde ele interpretava Eugene Oneguin, de Pushkin. O texto que surge, então, é: “a vocação teatral de Guillaume Meister, todos os anos de aprendizagem e as viagens no caminho de um verdadeiro teatro socialista”. Cita-se, então, o livro os Anos de Aprendizagem de Goethe e o filme revela que não só o filme está se fazendo diante de nossos olhos, como os personagens estão vivendo um aprendizado. Guillaume resolve ir como espectador a uma radical experiência teatral que ocorre num prédio em ruínas e se chama “Teatro Ano Zero”. A seguir, ele passa a vender legumes na rua e colocar a si mesmo de alvo de tomates e outros legumes, como parte de uma estranha estratégia de teatro de rua, fundindo teatro e vida. Enquanto ele se submete a essa radical experiência, Yvonne vende o jornal L´Humanité Nouvelle (GODARD, 1971, p. 20).
Começa, então, o Diálogo 4: Henri excluído da célula Aden Arábia. Nesse diálogo, Henri explica para o diretor os motivos de sua exclusão enquanto lancha leite com biscoitos. O filme justapõe imagens da exposição de Veronique com a entrevista de Henri. A exposição critica o PCF por aceitar As Palavras e as Coisas, de Foucault (que o próprio Henri criticou anteriormente). A tela mostra quadros abstratos, assim como uma foto de Bukhárin e uma parte de seu discurso nos Processos de Moscou em 1937. Henri é, então, comparado a Bukhárin, socialista excluído e executado por Stálin.
Henri, após ser excluído da célula, conta uma fábula sobre um rei do Egito que deixou alguns bebês isolados para poder ouvir que linguagem eles desenvolveriam, se essa seria a linguagem dos deuses. E o rei se surpreendeu ao ouvir os bebês balindo como ovelhas, uma vez que existiam ovelhas ao redor da casa. Henri comenta que, no apartamento, o marxismo-leninismo era como essas ovelhas: estando os jovens europeus desejando se contrapor à contracultura norte-americana e a moda do orientalismo que chegava com os Beatles tocando cítaras, os jovens universitários da esquerda independente adotam para sua crítica à cultura um vocabulário marxista-leninista, embora suas demandas, atrás do uso desse jargão, se aproximassem daquelas dos hippies e outros ativistas politizados dos Estados Unidos.
O texto traz a frase metalingüística: “o último plano do filme”. Veronique vê a sua amiga, Blandine, chegar junto de uma outra amiga para limpar o apartamento. Elas vêem a frase “todos os caminhos levam a Pequim” com grande reprovação e a apagam, e comentando que os jovens que estavam ali teriam matado o ministro soviético em visita à França. Veronique escuta tudo de fora do apartamento e reflete: “Foi tudo ficção, mas me aproximou da realidade. Achei que tinha dado um grande salto para a frente, mas tinha ensaiado apenas alguns passos de uma longa marcha”.

2. Uma conclusão em vias de ser feita

O filme parece alimentar-se do conceito de intertextualidade: é composto de uma tessitura de outros textos lidos e reorganizados, ele é feito de inúmeras citações e de fragmentos de outros textos, considerando texto em um sentido amplo: fragmentos de frases e imagens seriam também exemplos de texto.
As imagens dos atores no apartamento dão lugar, com freqüência, a fade-outs para ilustrar uma frase ou a imagens em cores vivas que citam a arte Pop de Andy Warhol, recortes de jornais ou revistas. Eles ouvem a Rádio Pequim com as novidades sobre a Guarda Vermelha, discutem o crítico Henri Langlois, assim como o cinema de Lumière e de Meliès, mas não têm televisão. A trilha sonora mistura um rock francês (de Claude Channes) muito simples e propagandístico a favor de Mao, intercala-se com um arranjo de cordas erudito interrompendo e gerando tensão em várias cenas e diálogos; em muitos momentos, enquanto os personagens estão lendo, anotando, dando entrevistas para a câmera ou fumando, um outro personagem está escrevendo frases em giz colorido ou branco no quadro-negro ou até mesmo pintando a parede com frases ou desenhos abstratos de tinta colorida. Godard aponta os maoístas como jovens cujas discussões sobre arte e políticas são muito interessantes, mas o filme coloca claramente como negativos os seus impulsos para realizar ações violentas propriamente ditas. Assim, embora utilizem um jargão marxista-leninista, os jovens maoístas retratados estão, à sua maneira, vivendo o que os hippies estavam vivendo do outro lado do Atlântico, nos detestados EUA: a moda do orientalismo, o desejo de resolver todos os problemas de forma rápida e violenta, uma certa adolescentização do protesto, levando a conclusões políticas irreais.
A Chinesa é talvez o filme mais complexo de Godard e ele inaugura sua fase política, com Vento do Leste, Weekend e uma série de filmes que Godard passa a fazer, até 1973, juntamente com o grupo Dziga Vertov, até que ele passa a enfocar um outro campo de interesse, suas pesquisas com a forma e a outra tradição cultural com a qual ele dialoga: Nietzsche, Heidegger, Dostoiévski, Emil Cioran, além de voltar ao filme narrativo em 1979, com o filme Salve-se Quem Puder.
Mais do que qualquer outro filme, A Chinesa representa a intenção de Godard de destruir o cinema, reduzindo-o, num espírito brechtiano, ao puro texto. O cinema de Godard é tão brilhantemente preciso porque ele estava tão desconfortável com o poder ilusório da imagem e tão em casa, num sentido brechtiano, com o texto. Mais do que buscar uma mensagem ou tema, é apreciá-lo como um ato de leitura. Todo texto é polissêmico e pode ser lido de várias formas. De uma forma incomum em outros filmes, o filme, então, força o espectador a lê-lo, mais do que a vê-lo.


3. Referências Bibliográficas:

COUTINHO, Mário Alves. Escrever com a câmera. Belo Horizonte: faculdade de Letras da UFMG, 2007. <>. <>.

DANEY, Serge. Pedagogia godardiana: Jean Luc Godard et la Chinoise. >. <>.

FERREIRA. João. O Prazer do Texto. >. <>.

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