A atriz Alessandra Negrini seria passável no papel de uma normalista do Méier, mas imaginá-la como Cleópatra, como fez Júlio Bressane em seu mais recente filme, é no mínimo uma ousadia, e provavelmente um ato transgressivo. Só não é mais ousado e transgressivo do que colocar Miguel Falabella no papel de Júlio César.

Mas quando, entre os dois ou três senadores humilhados pelo conquistador da Gália, o espectador distingue um velho conhecido dos programas de Chico Anísio e Jô Soares –trata-se do excelente comediante Lúcio Mauro, coberto de toga, rímel e batom— está mais do que dado o sinal de que o filme “Cleópatra” repete o velho slogan da ditadura militar: ame-o ou deixe-o.

Não o amei, nem deixei de vê-lo. Sem dúvida, tudo no filme traz a aparência da paródia mais selvagem. Os palácios de Alexandria têm banheiras claramente inspiradas nos motéis da Barra da Tijuca. Alguns mármores sugerem a decoração do Palácio do Catete, e as palmeiras do Egito não gorjeiam como as de cá. Armam-se tendas e divãs entre as pedras da avenida Niemeyer, e tronos, piras, coxins, sofás e tapetes vieram com certeza de um saldão de móveis –só faltava aos cenógrafos terem levado o Brasilino de presente.

Dito assim, tudo poderia ser uma paródia das produções épicas de Cecil B. de Mille. Mas acontece que, se a aparência é paródica, o filme de Bressane não se apresenta como tal. Não há nenhum momento em que “pisque o olho” para o espectador, instando-o a não levar nada daquilo a sério. Tudo se desenrola com máxima seriedade.

Que concluir desse mistério? Vale a pena prestar atenção nos diálogos, soleníssimos, do filme, onde se misturam citações de Drummond, João Cabral, e não sei quantos poetas parnasianos.

Cleópatra foi acusada de “enfeitiçar” Marco Antônio (sei disso assistindo a série “Roma”), e sua história encena uma espécie de choque cultural. O conquistador romano é seduzido pelos prazeres e delírios de uma corte estranha, animalesca, refinada, irracional.

Não seria um caso de “antropofagia”, ou, se quisermos, de absorção do colonizador pelo colonizado? E, se se trata disso na interpretação que Bressane dá aos fatos da história romana, o seu filme dá um passo a mais nesse processo: toda a pretensão hollywoodiana de criar um Egito e uma Roma “reais” eram, no fundo, absurdos. E o absurdo de Miguel Falabella como César não é menor que o de Richard Burton no mesmo papel. Fazendo saltar aos olhos a brasileirice desses romanos e egípcios, Bressane não nos ridiculariza; ridiculariza, com solenidade ritual e egípcia, a nova Roma de George Bush.

Tudo isso não basta para recomendar o filme aos desavisados. Mas bastou para que eu não saísse uivando da sala nos primeiros minutos de projeção.

Um bom complemento para “Cleópatra” seria “Roma” , de Fellini, que finalmente saiu em DVD. Mas é assunto para depois.

Cleópatra: ame-o ou deixe-o