sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Lula, o Noivo da Girafa

Algum tempo depois do polêmico lançamento, finalmente vi Lula, O Noivo da Girafa, digo, o Filho do Brasil. De fato, o filme é uma experiência quase tão híbrida quanto seria um casamento entre seres de diferentes espécies: o filme tenta se equilibrar entre duas narrativas muito diferentes: um melodrama típico do cinema da retomada, cuja estética é a "cosmética da fome"; e, mal emjambrada, uma torta biografia política. Essa última, então, tem parto mais sofrido do que o de Lula.

De início, o filme é um melodrama concentrado na figura de Dona Lindu, a mãe de Lula. Ela quer que o filho seja alguém na vida, que realize sua “lenda pessoal”. Essa é a mensagem da mãe. A figura da mãe é utilizada para dar unidade à narrativa, vide as imagens em flashback no final, que denunciam também a carência de unidade. Diante da carência de unidade, do filme, do Brasil ou do PT, talvez se possa recorrer à mãe, seja ela Dona Lindu ou, quem sabe, Dilma Rousseff. A imagem da mãe cristianizada e anti-erótica é, quem sabe, único ponto do filme que aponta remotamente para a candidata do presidente.

A mistura e o hibridismo são imagens boas para definir Lula, que desde o princípio começa como num corpo estranho na política brasileira. Se a parte de melodrama estabelece continuidade com filmes tratando de infidelidade tais como Eu, Tu, Eles, a parte biográfica enfrenta, com desconforto, os assuntos políticos, sempre buscando despolitizá-los, sempre supondo que o espectador que vai ver um filme sobre um líder político não quer debate político algum.

A partir de 1963, quando Lula vivencia uma greve no ABC pela primeira vez, insere-se uma cena de invasão violenta de fábrica onde morre um chefe. Lula foge assustado. A cena seria para mostrar que Lula é contra a violência, mas serve também para muito mais, quando Lula dialoga com seu irmão Ziza, então no Partido Comunista Brasileiro (informação que o filme sonega por puro preconceito e má fé), supostamente o responsável pela invasão violenta da fábrica (o que não é, de forma alguma, típico da atitude do PCB diante do período João Goulart, que era de conciliação).

A cena termina por ilustrar as agitações do período Goulart e o fato de que Lula divergia delas por serem violentas: no entanto, de fato Lula era um alienado e achou que o golpe era uma coisa boa. Ele nem sequer escutou as explicações do irmão. Uma inserção em off de uma rádio da época comenta que Jango, embora tivesse um plano de desenvolvimento para o País, deixava descontentes alguns setores da população. Como ocorre a invasão da fábrica logo em seguida, o espectador pensa que dentre os setores descontentes estava o operariado! E esses setores eram: Igreja Católica, empresariado, mídia conservadora, exército, dentre outros. O golpe que segue em diante fica parecendo justificável, decorrência lógica em função dos acontecimentos anteriores, o que leva o espectador a pensar algo como: “ah, mas eles estavam invadindo fábricas e matando pessoas, tinha que acabar com a baderna mesmo”.

Quando o filme trata do golpe militar de 1964, não relaciona o fato histórico diretamente com Lula, mas dá a entender, com o episódio da perda do dedo, que desde 1964 Lula rompeu com a ditadura e politizou-se, o que é falso.
O filme errou feio em não conseguir enfrentar o fato de que Lula foi a favor da ditadura de 64 até fazer greve em 1978. Será que tocar nisso seria arranhar a imagem cuidadosamente idealizada transmitida no filme? Só que, daí por diante, tudo se desequilibra e se falseia em função disso.

A cena de 1968 onde Lula vê anunciado o AI-5 dá a entender que ele está se manifestando contra a ditadura. A prisão do irmão de Lula também não se encadeia no sentido que o filme deveria ter. O filme deixa no ar se Ziza era comunista ou se foi chamado de comunista, assim como comenta muito rapidamente sobre a tortura; a dramaticidade da situação é toda esvaziada, nem ela é encadeada como uma passagem no processo de conscientização de Lula de que deveria lutar contra a ditadura.

Quando o filme narra a participação de Lula no sindicato, em momento algum é dito que a ditadura proibiu qualquer tipo de greve. E o que deixa perplexo é o tipo de sindicalista ao qual Lula se ligou: são gordos pelegos oportunistas, contrários ao próprio irmão comunista, com discurso de “retrair”, ou seja, pregam a não-luta. O dirigente sindical corrupto transmite ensinamentos que Lula absorveu com firmeza, tal como “ideologia é coisa de bitolado”. Ideologia, nesse sentido, é sinônimo de “esquerda”. Lula é apresentado como um pelego gordo e oportunista que é não é “de escritório” e é “sangue novo”. Mais adiante, quando enfim ele passa a discursar e liderar dentro do sindicato, nega explicitamente a divisão entre esquerda e direita em nome da luta direta por resultados, assim como nega a luta de classes. Embora realmente Lula estivesse, nesse primeiro momento, contra os partidos comunistas e contra Brizola assim como contra a ditadura, seu discurso era bem de “noivo da girafa”: misturava simpatia pelo sindicalismo norte-americano, tradeunionista, com vocabulário marxista: falava em “burguesia nacional” e “socialismo” com bastante freqüência. E não se pode deixar de notar o quanto sua prisão foi uma provação muito light em relação ao que passou na cadeia um César Benjamin. No tempo da prisão, Lula tinha largo espaço na mídia e amplo apoio dos operários que representava, fora outros setores da sociedade que perceberam o levante operário como prego no caixão da ditadura. A empolgação com Lula mostrada no filme é tão grande que até o enterro da mãe vira um animado comício a favor dele.


A questão é que, primeiramente, entre 1978 e 1981, Lula evoluiu da reivindicação direta de salários para o setor operário do ABC paulista que ele representava para a luta política contra a ditadura, inclusive formando um partido e se lançando como político. No entanto, nessa cinebiografia, tudo isso é invisível -- e por ideologia, por desejo de esconder e gerar falsa consciência. O filme esconde o processo em que nasce o político a partir do sindicalista e só mostra os sucessos posteriores em uma elipse pouco esclarecedora. No todo, é um filme que muito esconde sorrateiramente e pouco revela. Merece ser visto com o máximo de espírito
crítico, senão faz cair em equívocos, é torpe e enganador.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Discurso na Câmara dos Vereadores, 13 de setembro de 2010

Boa noite. Venho aqui essa noite parabenizar o vereador Carlos da Rádio, que atendeu recentemente uma reclamação dos artistas locais. Esclareço que tenho acompanhado o andamento do projeto através de meu amigo André do Rock, que encaminhou o anteprojeto ano passado.

Tendo em vista que essa reivindicação foi atendida, venho trazer algumas outras, ligadas aos artistas ou de outra ordem. Os artistas locais demandam há muito uma lei municipal de Incentivo à Cultura. Os Reinadeiros, que também são artistas, informaram que há muito não está ocorrendo repasse de verbas da prefeitura para o Reinado. Gostaria de saber, junto aos vereadores de oposição, se essa informação procede.

Outros dois pontos são a necessidade da criação de uma rádio comunitária e de uma TV local. Nunca vi uma iniciativa que me pareceu tão anunciadora do futuro quanto a TV Interativa. Foi uma iniciativa visionária. No entanto, ela parou e não tenho visto manifestações em seu favor por parte do poder público e dos empresários locais. O apoio e o questionamento sobre o que aconteceu, porque ela parou de ser exibida na web e não foi estimulada como um embrião de uma TV local. Será que a cidade vai deixar morrer essa iniciativa?

Outra iniciativa é a criação de uma rádio comunitária. A rádio comunitária ainda não existe na cidade da forma como ela é idealizada, ou seja, como um espaço plural, onde a s pessoas da comunidade tenham voz. Para a comunidade também é importante a entrada das aulas da cultura afro-brasileira e da música nas escolas municipais.

Outra questão é a preservação da Língua do Negro da Costa. Minha sugestão é a realização de oficinas de produção oral e escrita na Língua do Negro da Costa, assim como frisar a necessidade da revitalização do patrimônio afro do Beco dos Aflitos. Garanto que existe interesse nacional na preservação desse patrimônio local, assim como o apoio à publicação de textos na editora local, que é a Dez Escritos, que já editou Madrinha, de Sônia Queiroz, e o Fernando Cabral, aqui presente.

Lúcio E. do E. S. Júnior

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Xuxa Afro, um Mito Profanador

Pessoal, no último dia 4 de setembro tive uma grata surpresa, ao encontrar o meu amigo Geovane Sassá aqui em Bom Despacho, participando como ator do espetáculo Eh Boi, do Grupo Cabana.

Eu só fiquei um pouco preocupado quando o Sassá me falou que pediu meu contato e ninguém na Secretaria de Cultura local tinha. Pô, Rosalva, pega com o Acir aí! Nesses tempos em que o sigilo fiscal da gente é segredo de liquidificador, ninguém numa cidade do interior tem o telefone de um professor!

Se até o governador Aécio tem meu telefone e me ligou esses dias para passar um trote pedindo para votar em Anastasia!

Então taí um ensaio que fiz sobre o trabalho do Sassá há muitos anos, mas que ainda é pertinente; abraços, Sassá!




A Xuxa África: Um Mito Profanador?

“To whirl the old
woman from Bahia”

Millôr Fernandes,
em The Cow Went To The Swamp



A Xuxa afro-brasileira, criação do músico e ator Geovanne Sassá,
pode ser analisada como sendo uma tentativa de atualização do mito do
andrógino de Platão:

“andrógino era então um gênero distinto, tanto na forma como no
nome comum ao dois, ao masculino e ao feminino(...)inteiriça era a forma de
cada homem, com o dorso redondo, os flancos em círculo; quatro mãos ele
tinha, e as pernas e o mesmo tanto das mãos(...) Por conseguinte, desde que
a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade
e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no
ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral”.

A Xuxa Àfrica busca mimeticamente homenagear/parodiar sua
cara-metade, Xuxa Meneghel, uma gaúcha de clara ascendência européia e corpo
escultural. A “rainha dos baixinhos” exerce seu reinado submetendo seus
súditos a seu otimismo Kitsch e a sorrisos pré-fabricados. A Xuxa Negra se
autoproclama “rainha dos neguinhos”, constituindo-se num mito
dessacralizador. Xuxa, como personagem do músico e ator Carlos Geovane
Nunes, se cristaliza absorvendo elementos do belo grotesco e do belo cômico
que:

“São duas formas do belo que se tocam, que se enlaçam até se
confundirem numa única emoção.

De comum, têem o elemento do ridículo, que nunca pode faltar
nelas; de diferente, têm um grau diverso da deformidade ou da caricatura da
verdade.

Assim como as cócegas e certas formas de volúpia confundem as
fronteiras do prazer e da dor (demonstrando-nos pela centésima vez que as
nossas classificações são brinquedos infantis, fios de seda tecido entre os
granitos da natureza);assim como o grotesco e o cômico parecem folgar nos
confins do belo e do feio, confundindo-os um com o outro, com mão
travessa.”

A personagem de Geovane Sassá o engloba, possuindo seu corpo
numa trasmutação exuberante e esdrúxula; é como uma pomba-gira. A Medusa de
Ébano possui uma força que se assemelha a um grito primal, telúrico,
dionisíaco. A Xuxa “Noir” dá à sua homônima um espelho circense: a loirosa
narcísica e ariana, ao tentar vender o mito da supremacia branca num país
mestiço, é subitamente colocada frente a frente com uma imagem caricata e
deformante de si mesma, mas que mostra a modelo e dublê de artista na sua
verdadeira face; a modelo semigringa é tornada deusa pagã. Fechou-se o
círculo. A divindade africana lança uma luz desmistificante sobre a face da
Eva Braun brasileira e petrifica a megera. Aquilo que na moçoila gaúcha era
pura empulhação, sorriso de propaganda de creme dental, manipulação
mercadológica e ingenuidade calculada ganha um contraponto de impulsos
vitalistas, convites indecorosos à fruição imediata dos sentidos e volúpia
das sensações mais lúbricas.

Exibindo seu corpo de ninfa multicolorida, cortesã apocalíptica
e sensual, nossa personagem remete a obras palpitantes de vida e vigor como
os quadros de Jackson Pollock; ela é, como as telas do referido pintor
americano, uma rede intrincada de gotas, redemoinhos e salpicos. “A pintura
tem vida própria”-disse ele uma vez-“eu tento deixá-la acontecer”. Geovane
também poderia dizer o mesmo com respeito às suas criaturas.

E a criatura em questão usa, não obstante, um óculos de armação
antiga e demodeé. São óculos de velha encarquilhada que escondem olhinhos
brilhantes de moça. Talvez fosse a um olhar como esse que Nietzsche se
referia neste seu poema Da Pobreza do Riquíssimo:

“-Quietos!

É minha verdade!-

De olhos esquivos,

de arrepios aveludados

me atinge seu olhar,

amável, mau, um olhar de moça...

Ela adivinha o fundo de minha felicidade,

ela me adivinha-ah! o que ela inventa?-

Purpúreo espreita um dragão

no sem-fundo de um olhar de moça.”

Sendo assim, a Xuxa Preta bota ao avesso a democracia racial
brasileira, rodando a baiana da europeizada e etnocêntrica vedete da TV.
Santa e prostituta, homem e mulher, frágil e sedutora, a personagem tem um
pouco de Marilyn Monroe e Benedita da Silva, e parece ter nascido da
conjunção carnal de Sassá Mutema e Hebe Camargo.

Ao apresentar-se a Xuxa Preta evoca um clima de confraternização
que também está presente, por exemplo, no rito do vodu, no Haiti. “O vodu é,
basicamente, a religião e o culto aos espíritos ou divindades chamados loa.
A classificação dos loas é muito complexa, não somente por causa da grande
diversidade de origem geográfica e étnica dos africanos trazidos ao Haiti,
mas também pela existência de uma infinidade de divindades regionais ou
locais.(...)Cada loa tem sua morada particular: no mar, num rio, numa
montanha ou árvore, de onde vem para ajudar seus servidores fiéis, quando
ouve suas orações ou o som dos tambores sagrados pedindo a sua presença.
Cada loa tem também seu dia ou dias próprios durante a semana.(...) As
cerimônias do vodu são executadas em locais abertos ao público.” Igualmente
são feitos às claras os rituais lúdicos de Xuxa Àfrica.

Quando achamos que já temos a situação dominada e já rimos da
piada, Xuxa nos dá uma bofetada de veludo, numa reviravolta semiótica.
Transcendendo o reacionarismo e o machismo de Minas Gerais, ela rebola e nos
remete ao momossexualismo baiano. Algo como ver o padre Lima Vaz saindo na
Banda Mole no carnaval, tropicalizantemente conectado no “zeitgeist”. Ela
digere Minas e silencia impávida como se quisesse nos devorar, nos colocar
de volta para o útero. Um toque picante e, sarapatética, ela espargirá
energia como se fosse um lança-perfume cintilante.

Só mesmo uma Xuxa de Cor para nascer nos trópicos e afugentar a
tristeza destas plagas com uma descarga de alegria tão vulcânica!


Uma Xuxa Preta está, é claro, ligada ao espírito dionisíaco do
carnaval, pois ela é brasileira, afinal. Lembra do carnaval do passado,
expressão espontânea da vontade coletiva de libertar-se, divertindo-se. Ela
está ligada ao caráter dionisíaco e mesmo histérico da festa (no sentido
grego de rito coletivo uterino e afrodisíaco) que imprimia à diversão um
forte sentido de contestação psicossocial. A personagem também estaria
ligada à escatologia e ao grotesco, no sentido que explicita Muniz Sodré:

“A Escatologia implica numa atitude cultural com relação à
história. A cultura oral brasileira foi marcada, desde as suas origens
afro-indiano-portuguesas, por uma Escatologia naturalista-que vê o homem
como parte de uma natureza manifesta em ritmos cíclicos, recorrentes. Como o
homem estaria integrado organicamente na natureza, qualquer desacerto,
injustiça, aberração do estado natural, remediável pelo culto ou pela
magia.(...) Essas Escatologias influem poderosamente na imaginação coletiva.
O portador de deformação física, por exemplo, é percebido historicamente
como um desvio da organicidade natural, como monstro (Teratos). Isto gerou
em nossa mitologia figuras como o lobisomem, o mão-de-cabelo, etc. Ainda
hoje, em cidades do interior do Brasil, o deformado físico( a mulher macaco,
o menino com cara de jumento, etc.) é vivido como um fenômeno de origem
sobrenatural-castigo dos céus-e, às vezes, como espetáculo, já que pode ser
exibido, a dinheiro, em feiras, ou simplesmente vendido como história na
literatura de cordel. (...) O ethos da cultura de massa brasileira, tão
perto quanto ainda se acha da cultura oral, é fortemente marcado pelas
influências escatológicas da tradição popular. O fascínio pelo
extraordinário, pela aberração, é evidente nos programas de variedades (
fatos mediúnicos, aberrações físicas como as irmãs siamesas, aleijões,
flagelações morais, etc.) . A esta altura a Escatologia consegue juntar os
dois sentidos: o místico e o coprológico.(...) Em Medicina, o
termo(Escatologia) tem sentido coprológico-é o estudo dos excrementos”

É desta tradição popular que a Xuxa Preta, vista como bizarra
ou aberrante, se alimenta e se insere.

Encerro citando certo trecho de um poema de Baudelaire onde ele
tece uma homenagem “A Un Dame Creóle” como nossa Xuxa d’Afrique:

“No inebriante país que o sol acaricia/ Sob um dossel de agreste
púrpura bordado/ E a cuja sombra nosso olhar se delicia/ Conheci uma crioula
de encanto ignorado./ A graciosa morena, cálida e arredia,/ Tem na postura
um ar nobremente afetado;/ Soberba e esbelta quando o bosque a desafia,/ Seu
sorriso é tranqüilo e seu olhar ousado.”

Bibliografia:

-Baudelaire, Charles: As Flores do Mal.

-Grondim, Marcelo: Haiti, Cultura, Poder e Desenvolvimento.

-Platão, O Banquete: Coleção Os Pensadores.

-Mantegazza, Paulo: A Fisiologia do Belo.

-Sodré, Muniz: A Comunicação doGrotesco