terça-feira, 23 de julho de 2013

Carta a Flávio Paranhos sobre Porcos Comunistas

Antes de ler essa carta, sugiro aos leitores que leiam o artigo Porcos Comunistas

É curioso como basta surgir uma crise social para reaparecer as ofertas de livros como A Revolução Traída, de Trotsky e A Revolução dos Bichos, de Orwell. Teve quem ofereceu-os juntos num mesmo pacote, por ocasião das manifestações. Acho altamente revelador isso. Ambos servem como antídoto para a possível atração que os trabalhadores venham a ter pela revolução russa.

Primeiramente, não foi porque associou "porcos" e "comunistas" que esse livro (A Revolução dos Bichos) demorou a ser publicado.  T. S. Eliot mandou a Orwell uma crítica onde apontou que, de acordo com a narrativa, a fazenda precisava era de mais porcos, uma vez que eram tão mais inteligentes que os outros. E apontou que a Inglaterra era aliada da União Soviética na guerra, que não tinha acabado (era 1943) e aquele tipo de crítica era irresponsável, podendo favorecer o nazismo.

Por outro lado, você (Flávio) analisou corretamente a mensagem principal do livro, que de certa forma é o argumento também de A Revolução Traída, de Trotsky, sobre a revolução russa. Sumarizando, pode-se dizer que o marxismo-leninismo seria um belo ideal no papel, mas quando colocado na prática gera tiranias horríveis. Adotá-lo seria próprio de ingênuos. Somos no fundo "todos porcos" no mau sentido. A seguir, você dissocia os demais socialistas dos "stalinistas" --como se  isso não fosse levar o artigo para "o caminho dos porcos". Depois você ainda associa a tirania às demais experiências socialistas...é....mas sem "stalinismo" --melhor diria, sem Marx e Lênin --elas foram poucas nesse século XX...

Os erros do socialismo foram, segundo você, "de fora para dentro". O socialismo esbarra na "natureza humana", que seria "egoísta, vaidosa, invejosa violenta, nepotista". Se for assim, Dr. Flávio, um coronel do interior seria o mais puro representante da natureza humana, seu mais belo exemplar. Não posso deixar de pensar em Odorico Paraguaçu, que para você é o ser humano em sua face mais pura.

E, finalmente, você abstrai o contexto histórico. Ora, isso também é altamente questionável nesse livro!

Leia o artigo de Valdirene Leite:


FICÇÃO E HISTÓRIA EM A REVOLUÇÃO DOS BICHOS

Valdirene Leite[1]

RESUMO


Nesse texto buscamos um outro olhar não-convencional, sobre o texto A Revolução dos Bichos. Partimos do pressuposto de que George Orwell não apresenta uma narrativa objetiva sobre a União Soviética ao utilizar essa narrativa histórica como base para sua fábula. Nossa hipótese é que a fábula é trotsquista e anticomunista. E assim ela foi utilizada durante a Guerra Fria. Apesar disso, mesmo a esquerda continua a prestigiar o texto e não o aborda em termos mais críticos. Ao analisar que narrativa histórica é essa que Revolução dos Bichos aborda, notamos que é preciso repensar o seu uso em sala de aula, utilizando uma bibliografia a respeito da União Soviética e buscando ser mais objetivo, em especial sobre as dicotomias pobres entre Trotsky e Stálin que o texto A Revolução dos Bichos traz.


Palavras-chave: Orwell, Revolução dos Bichos, história, União Soviética, ficção, fábula


1 INTRODUÇÃO


            O livro A Revolução dos Bichos, de autoria de Eric Arthur Blair (mais conhecido pelo pseudônimo de George Orwell) (1903-190), apresenta, através de uma fábula onde os animais falam, uma crítica política totalizante a respeito da revolução russa, supomos, desde 1917 até 1943. O texto, publicado em 1945 no Reino Unido sob o nome de Animal Farm, foca principalmente o governo de Stálin, adotando a hipótese (de origem trotsquista) de que foi durante esse governo que a revolução se perverteu e se burocratizou.
            Nossa hipótese é que a fábula de Orwell apresenta as posições antissoviéticas de Trotsky de forma ilustrada (e vai mais além). Por exemplo: a coletivização de 1933-34 é representa pela situação do moinho de vento. O entusiamo de Bola de Neve pela construção do moinho de vento e a oposição de Napoleão representaria a situação e a discussão na União Soviética na altura de 1926, quando os trotsquistas propuseram a coletivização e ela foi rejeitada.
            Assim, esse artigo buscará lançar um outro olhar sobre a obra de Orwell, considerando que o objetivo de Revolução dos Bichos, de George Orwell, foi traçar paralelos entre o governo do porco Napoleão e o de Stálin, na União Soviética. O objetivo aqui será entender e criticar esses paralelos, assim como entender quais eram, historicamente, as posições de Trotsky e de Stálin, representadas, na fábula, por Bola de Neve e Napoleão, respectivamente. A contraposição entre os dois será objeto de debate nesse artigo. O livro não é isento: tende a defender Bola de Neve, que era Trotsky. Pesquisando sobre história e ligando aos acontecimentos do livro, pode-se dizer que Bola de Neve é Trotsky, Napoleão é Stálin, o animalismo é o comunismo.


2 Ficção e história em A Revolução dos Bichos


A hipótese a ser articulada nesse artigo é de que Revolução dos Bichos não é uma alegoria neutra do autoritarismo e sim uma ficção carregada de uma ideologia partidária, ou seja, o narrador onisciente toma partido deliberadamente das explicações históricas de Trotsky sobre a revolução russa. Atualmente, essas explicações históricas são totalmente hegemônicas no Ocidente e formam o chamado paradigma histórico da Guerra Fria. Somente agora, nos anos 2000, esse paradigma está sendo questionado por historiadores norte-americanos como John Arch Getty, Mark Tauger e Grover Furr, e outros russos como Yuri Zhukov, assim como ingleses, como Harpal Bar, dentre outros. Como o artigo é sobre literatura, nos concentramos em recontar a história sem citar exaustivamente esses historiadores e autores, cujas obras estão disponíveis na bibliografia (BAR, 1998, p. 12).
Essa pesquisa permite articular história e literatura e fazer uma leitura, sob um novo olhar, da narrativa de Orwell, uma vez que ela está profundamente atrelada a uma determinada versão da história. Optou-se, nesse trabalho, por lançar um outro olhar, vendo essa narrativa de acordo com outra hipótese sobre a história: a hipótese da vertente maoísta do marxismo-leninismo. Segundo essa vertente, a negação do marxismo-leninismo não ocorreu em 1929 (ou seja, não ocorreu com Stálin) e sim em 1956 (ao tempo de Kruschev). A comparação entre as figuras históricas e os personagens foi a seguinte, segundo Olgário Vogt:

O animalismo O socialismo ou o comunismo
O Solar dos Bichos União Soviética
O canto Bichos da Inglaterra A Internacional Socialista
Os porcos A burocracia soviética
Os homens A burguesia
Os animais O proletariado
Sr. Jones O Czar Nicolau II
O Velho Major Marx10
Napoleão Stálin
Bola de Neve (Snowball) Trotsky
As ovelhas A massa alienada
Os cachorros A polícia política (KGB)
Sansão (Boxer) O trabalhador iludido
O corvo Moisés A Igreja Ortodoxa
O porco Garganta (Squealer) A propaganda
A bandeira verde com o chifre e o
casco
A bandeira soviética com a foice
e o martelo (VOGT, 2007, p. 4).

Em Revolução dos Bichos, a narrativa histórica de Trotsky sobre os acontecimentos é uma constante em todo o livro. O processo opera do seguinte modo: a coletivização, por exemplo, é apresentada como sendo a passagem que se refere ao moinho de vento na Fazenda Animal. A divergência entre Bola de Neve e Napoleão representa a forma como a coletivização foi motivo de polêmica entre o grupo de Trotsky e o de Stálin. Tal passagem é comentada nos seguintes termos em A Revolução dos Bichos:

Bola de Neve estudara atentamente alguns números atrasados da revista O Agricultor e o Criador de Gado, encontrados na casa grande, e andava com a cabeça cheia de planos de invenções e melhoramentos (...). Napoleão não fazia projetos próprios, apenas dizia com toda calma que os de Bola de Neve não dariam em nada e parecia aguardar sua vez. De to das as divergências, nenhum foi tão grave quanto a do moinho de vento (ORWELL, 2007, p. 43).

A narrativa histórica aqui visada é a coletivização da agricultura russa nos anos 30. O problema era o seguinte: embora depois da revolução russa houvesse o fim do latifúndio, continuaram existindo uma classe de fazendeiros ricos (os kulaks) e pequenos proprietários empobrecidos. A solução sugerida por Lênin era a criação de fazendas de produção coletiva. A partir da recusa dos kulaks em vender grãos ao governo soviético, a coletivização começou, em 1926, ainda incipiente.
No entanto, de forma inconseqüente os trotsquistas sugeriram que a coletivização fosse adotada rapidamente. O verdadeiro objetivo da oposição de esquerda era infringir uma derrota ao poder soviético; a coletivização naquelas circunstâncias, quando ainda estava apenas em seu início, provocaria novos e mais violentos boicotes por parte dos kulaks e poderia ser derrotada por eles, pois provocaria desabastecimento e fome. A idéia foi recusada, mas entre 1933-34, depois de uma grande fome na Ucrânia, quando a coletivização já estava adiantada, ela foi posta em prática. Os fazendeiros ricos foram, então, derrotados. A forma como a história aparece em A Revolução dos Bichos dá a entender que Stálin (“Napoleão”) era uma criatura maldosa que apenas roubou as ideias de Trotsky (“Bola de Neve”). As seguntes palavras serviram para finalizar a questão do moinho de vento (que refigura o fato histórico da coletivização):

Garganta explicou aos outros bichos, em particular, que Napoleão nunca fora contra a construção do moinho de vento (...). Aí estava a esperteza do camarada Napoleão (...). Ele fingira ser contra o moinho de vento, apenas como manobra para livrar-se de Bola de Neve, que era um péssimo caráter e uma influência perniciosa (ORWELL, 2007, p. 51).

            Assim, uma versão histórica do livro de Orwell que oculta que os trotsquistas, em 1926, quiseram colocar, prematuramente, o poder soviético contra os kulaks, o que causaria sua derrota. A conclusão que se tira é exatamente a contrária: a coletivização foi uma idéia de Trotsky roubada por Stálin. Outro indício da tomada de partido é como a polêmica entre a revolução permanente (Trotsky) e a revolução em um só país (Lênin e Stálin) é apresentada:

Além da disputa sobre o moinho de vento, havia o problema da defesa da granja. Eles bem que sabiam que (...) segundo Napoleão, o que os animais deveriam fazer era conseguir armas de fogo e instruir-se em seu emprego. Bola de Neve achava que deveriam enviar mais e mais pombos e provocar a rebelião entre os bichos das outras granjas (ORWELL, 2007, p. 45).

Acima, a controvérsia entre a revolução permanente e a revolução em um só país é apenas esboçada de forma pouco compreensível. A revolução em um só país foi teorizada por Lênin como conseqüência do próprio capitalismo (a chamada lei do desenvolvimento desigual), afirmando que dificilmente o socialismo venceria em vários países ao mesmo tempo e que era necessário construir o socialismo assim mesmo, mas sem deixar de ajudar a desenvolver o socialismo nas demais nações. Já Trotsky retomava, a propósito da revolução permanente, idéias que ele já apresentara em 1906, quando estava no partido menchevique em oposição a Lênin e aos bolcheviques. Ele condicionava a vitória da revolução na Rússia à vitória da revolução na Europa.
Pode-se dizer que o dilema proposto por Trotsky era aventuras militares ou derrotismo: a Rússia deveria mandar tropas para a Alemanha, ou seja, exportar a revolução ou retornar ao que havia antes de outubro de 1917, entregando o país a um regime burguês. Essa visão foi chamada de bonapartista em seu tempo e rejeitada pela maioria do partido. Não obstante, Trotsky passou a chamar Stálin e seu grupo de bonapartista e fazer uma campanha cada vez mais furiosa contra o poder soviético, culminando em sua expulsão do partido e do país em 1929.
E assim a narrativa prossegue: o papel de Bola de Neve na batalha do Estábulo é a discussão sobre o papel de Trotsky na revolução russa (Krupskaia e Stálin acreditavam que John Reed, autor de Dez Dias que Abalaram o Mundo, exageraram ao dar um papel preponderante a Trotsky). Trotsky aceitou a revolução russa de outubro como condição de que ela fosse o estopim da revolução européia.
            O episódio da fome na Granja dos Bichos é outro exemplo de apresentação da história da revolução russa, e, em especial do período Stálin, sob a mesma luz. Possivelmente o episódio simboliza a grande fome na Ucrânia entre os anos 1932-33, causada por fatores climáticos naturais e que tornou necessária a coletivização, privilegiando os camponeses pobres em detrimento dos kulaks. Esse episódio da fome é descrito nos seguintes termos na fábula de moral antistalinista:

Napoleão bem sabia dos maus resultados que poderiam advir, caso a verdadeira situação alimentar da granja fosse conhecida, e resolveu utilizar o Sr. Whymper para divulgar uma impressão contrária (ORWELL, 2007, p. 64).

            O que ocorreu não foi uma tentativa do governo da URSS de esconder o fato da fome e sim a ampla divulgação da fome por nazistas alemães e reacionários da Polônia e da própria Ucrânia como sendo causada intencionalmente pelo governo da União Soviética como forma de exterminar o povo ucraniano, o chamado “holodomor” (em ucraniano, morte por fome). O pesquisador e historiador Mark Tauger, de West Virginia, estudou recentemente a questão e concluiu que a fome não foi causada pelo governo e sim por fatores naturais. Antes da coletivização, sucediam-se ondas de fome em razão das más colheitas na Ucrânia. Tal fato, no entanto, foi abundantemente usado para fazer propaganda antissoviética. Mais adiante, surge, na Revolução dos Bichos, uma passagem que se referem às conspirações zinovievistas-trotsquistas:

Subitamente, descobriu-se um fato alarmante. Bola de Neve estava freqüentando a granja à noite, em segredo ! (...). Napoleão decretou uma ampla investigação sobre as atividades de Bola de Neve. Com seus cachorros na atitude de alerta, saiu e fez uma cuidadosa inspeção nos galpões da fazenda, com os outros animais a segui-lo a uma distância respeitosa. (...). Bola de Neve vendeu-se a Frederick, da Granja Pinch Field, que neste mesmo instante está planejando atacar-nos e tomar nossa granja! (...) Foi o tempo todo, agente de Jones! (ORWELL, 2007, p. 69).

O texto acima só pode ser corretamente entendido se for apresentada a narrativa histórica do período do governo de Stálin ao qual essa passagem se refere: embora Trotsky tivesse se exilado do País, ainda tinha grupos fiéis a ele na União Soviética, assim como, desde 1932, ele havia formado bloco junto com Zinoviev, Kamenev e Bukharin. Começaram a acontecer inúmeros atentados e sabotagens pelo país, causando muitas mortes, entre as quais a do prefeito de Leningrado, segundo na hierarquia soviética. A partir de um esforço de investigação, chegou-se ao grupo de Trotsky, Zinoviev e Bukharin, que ainda tinha muitos integrantes em altos escalões do estado. Os acusados foram processados nos famosos Julgamentos de Moscou, julgamentos abertos à imprensa internacional e muitos, como Bukharin, foram fuzilados, outros, como Radek, foram condenados à prisão.
De acordo com o historiador norte-americano John Arch Getty, os expurgos que produziram os famosos Julgamentos de Moscou foram mais para poder organizar um sistema de poder que era caótico do que um exemplo de totalitarismo, de acordo com textos como Origens dos Grandes Expurgos (livro inédito em português), do historiador norte-americano Arch Getty. De acordo com esse historiador, até essa época, se alguém era expulso do partido, bastava uma autocrítica verbal para poder voltar. Não foram apresentados, até hoje, documentos comprovando a tortura dos acusados e as falsificações dos chamados Julgamentos de Moscou. E existem, pelo contrário, evidências demonstrando que os julgamentos foram justos. Comentou o historiador Grover Furr (também inédito em português), de Montclair State University (New Jersey) a respeito desse assunto:

Durante a última década, muita evidência documental emergiu dos arquivos formais soviéticos para contradizer o ponto de vista canônico desde o tempo de Kruschev de que os réus, nos Processos de Moscou e na conspiração militar do “Caso Tukachevsky”, foram vítimas inocentes forçadas a fazer confissões falsas. Nós publicamos e escrevemos um grande número de trabalhos ou, ao pesquisar para publicar, podemos dizer que agora temos forte evidência de que as confissões não eram falsas e que réus dos Processos de Moscou pareciam ter sido verdadeiros em confessar as conspirações contra o governo soviético (FURR, 2010, p. 7).

Portanto, a narrativa histórica que Revolução dos Bichos supõe não é a mesma que todos os historiadores registram, ou não é neutra como muitos imaginam. Dentre as revelações nos julgamentos, ficou esclarecido que desde 1925 já existiam contatos entre Trotsky e Von Seekt (representante do estado maior da Alemanha); os contatos prosseguiram e se tornavam mais intensos quando da subida do nazismo ao poder. Hitler às claras anunciou seu ódio ao bolchevismo e a necessidade que o povo alemão tinha de invadir a Ucrânia para conquistar “espaço vital”.
            Jamais foi dito, portanto, que o papel de Trotsky foi negado. Ele foi é objeto de denúncias e revelações. As conspirações, em A Revolução dos Bichos, são tidas como falsas, ou seja, são mostradas como provocações criadas por Napoleão para que ele pudesse conquistar o poder através do terror. Tal constatação pode ser lida no fragmento a seguir:

--Alerto a todos os animais desta fazenda para que mantenham os olhos bem abertos. Temos motivos para pensar que alguns agentes secretos de Bola de Neve estão ocultos entre nós neste momento (ORWELL, 2000, p. 71).

            A partir daí são descritas imagens de execuções que seriam, no entanto, imotivadas e sem nenhum sentido a não ser perverterem os ideiais e a utopia, reforçando a autoridade tirânica de Napoleão (“Stálin”). Pela natureza da relação entre os porcos e Napoleão, pode-se dizer que eles representam Bukharin, Zinoviev e Kamenev:

[Os animais]eram os mesmos que haviam protestado quando Napoleão abolira as reuniões dominicais. Sem mais demora, confessaram ter realizado contatos secretos com Bola-de-Neve desde o dia de sua expulsão e haver colaborado com ele na destruição do moinho de vento (...). Ao fim da confissão, os cachorros estraçalharam-lhes as gargantas e Napoleão, com voz terrível, perguntou se algum outro animal tinha qualquer coisa a confessar. As três galinhas que haviam liderado a tentativa de reação sobre os ovos aproximaram-se e declararam que Bola-de-Neve lhes aparecera em sonho, instigando-as a desobedecer às ordens de Napoleão. Também foram degoladas (...). E assim prosseguiu a sesão de confissões e execuções, até haver um montão de cadáveres aos pés de Napoleão e um pesado cheiro de sangue no ar, coisa que não sucedia desde a expulsão de Jones (ORWELL, 2007, p. 73).

Assim, reforça-se a tese de que o marxismo-leninismo é idealismo ingênuo e que, quando praticado, leva a uma terrível tirania. Acima, pode-se notar a leitura dos expurgos dos anos 30 e dos Julgamentos de Moscou como o fuzilamento dos verdadeiros revolucionários.
            A teoria que Orwell apresenta, resumidamente ao final do texto, é que as teses “stalinistas” destruíram as idéias de Marx. Essa mensagem é comentada quando a narrativa trata das distorções nos pensamentos do personagem Major. O cavalo Sansão, por exemplo, pode ser associado ao Bukhárin, ou seja, era um velho companheiro de Stálin. Por fim, o fato final é a Conferência de Teerã, onde debatiam Roosevelt, Churchill e Stálin. A narrativa de Orwell iguala soviéticos e as potências capitalistas nessa conferência. No entanto, nessa época o nazismo ainda não tinha sido vencido. Parece-nos, inclusive, que mesmo que o nazismo esteja representado nessa fábula por Frederik, da Granja Pich Field, pode-se dizer que faltou a Orwell uma melhor compreensão da ameaça que representava o nazismo, em sua pressa de criticar a União Soviética.
            Na Inglaterra atual, assim como no Brasil, é muito comum a presença da obra de George Orwell nas escolas, onde ele é elogiado como um gênio literário, assim como é celebrado como um escritor na linhagem de Swift e outros. A fábula costuma ser lida como sobre “o totalitarismo em geral”.
No entanto, estudos como os de Stephen Spender e Jodi Bar analisam que aquilo que é de fato avaliado em provas (quando o livro é cobrado na Inglaterra) é a habilidade de regurgitar clichês da Guerra Fria. Para que a narrativa de A Revolução dos Bichos funcione, é preciso concordar com a assertiva de que, embora os governantes de hoje sejam ruins, expulse-os e teremos uma nova tirania ainda pior. Esse é, de fato, o pressuposto desse texto. Embora hoje seja tido como crítica ao totalitarismo em geral, o texto de fato tem sido utilizado como propaganda contra Stálin e a União Soviética.
Um leitor, ao ler Revolução dos Bichos, passa a pontificar a respeito da história da União Soviética, embora na prática não esteja tendo acesso a uma versão preocupada com a realidade objetiva. Na prática, está apenas repetindo a versão de Trotsky dos acontecimentos da revolução de outubro e do período Stálin (mas sem saber que a narrativa é partidária). E a versão de Trotsky é a adotada, em geral com ainda mais exageros negativos, pelo chamado paradigma histórico da Guerra Fria, ou seja, o paradigma adotado pelas universidades norte-americanas nos anos 40 e 50, tendo em vista combater ideologicamente os seus inimigos no campo das democracias populares e socialistas.
            E porque o texto seria ainda tão popular e tão recomendado, se a Guerra Fria, na qual ele foi largamente incentivado, tendo sido até objeto de uma adaptação para desenho animado patrocinada pela CIA, terminou em 1989? O fato é que o comunismo ainda é uma ameaça para a sociedade burguesa, com ou sem Guerra Fria. É preciso refutar as calúnias nos livros de Orwell e orientar a juventude a buscar uma visão mais objetiva, distante dos clichês da Guerra Fria, a respeito do que se passou na União Soviética.


3 REVOLUÇÃO NA REVOLUÇÃO DOS BICHOS


            Os textos que foi possível encontrar na bibliografia brasileira respeito de A Revolução dos Bichos (Teoria e suas implicações: compreensão da utilização doAnimalismo na Revolução dos Bichos e do marxismo na URSS de Stálin, de autoria de Felipe Fontana, Olgário Vogt) não buscam questionar o paradigma histórico da Guerra Fria, pelo contrário, o confirmam e o acentuam. Em geral, o tom de celebração em torno de Orwell, o mito, é geral. Fontana se baseia em Marilena Chauí, Simone Weil e José Paulo Netto (Chauí e Netto tendem bastante ao trotsquismo) para concluir que o marxismo, no Leste Europeu, tornou-se uma ideologia (no sentido de produzir falsa consciência). Tanto Fontana quanto Vogt não buscam novas pesquisas históricas nem suspeitam da mensagem claramente partidária que é transmitida em Revolução dos Bichos.
Olgário Vogt vai no mesmo sentido, supondo que Orwell está criticando “o totalitarismo em geral”. Mais precavido do que Fontana, diante das evidências do uso da obra de Orwell na Guerra Fria, Olgário insiste em afirma que Orwell era um esquerdista e o defende, afirmando que ele desejava um socialismo “independente”.
Orwell é apresentado, nos livros didáticos ingleses, como um “herói”, um jornalista “independente”, “objetivo”, “imparcial”, assim como é visto como exemplo de intelectual engajado em causas sociais. Nos últimos anos, no entanto, têm sido fortes os questionamentos acadêmicos a respeito do antissemitismo, homofobia e racismo presentes em seu texto. Como escreve a respeito Alberto Escusa:

De todos os traços que tinha Orwell, teria que acrescentar alguns que não se comentam e que tiveram grande peso em suas atitudes políticas, como sua fobia contra os homossexuais, seu extremo conservadorismo e seu racismo escondido. Toda a combinação de experiências vividas e concepções sociais nebulosas e abstratas, junto de suas fobias, foram levando rapidamente Orwell a posições marcadamente direitistas, ainda que seguisse formalmente sendo um escritor esquerdista. Um dos traços mais desconhecidos do escritor foram suas manias de perseguição. Segundo Isaac Deutscher, que o conheceu pessoalmente, Orwell vivia em um estado de angústia (...). Essa atitude, junto de sua incapacidade de perceber de maneira científica e realista as questões sociais e políticas, o empurraram a converter-se em um colaborador direto do imperialismo inglês.Até o final de sua vida, em 1949, decidiu colaborar com pleno conhecimento de causa com os serviços britânicos de inteligência, o Foreign Office, ou concretamente com o departamento de investigação de informação (IRD) ao qual lhe entregou uma lista de 135 pessoas suspeitas de serem simpatizantes ou companheiros de viagem dos comunistas. Nesta lista, ao lado dos nomes, anotou os principais defeitos de cada um, revelando a natureza racista e homofóbica de Orwell, que tinha interesse em mostrar traços pessoais dos acusados (ESCUSA, 2012, p. 22).

O antiimperialismo de Orwell, que sempre os comentadores afirmam que teria advindo de suas experiências como policial na Birmânia, também tem sido posto em questão. Outros elementos de sua trajetória têm sido desmistificados: de origem na classe média alta, Orwell tinha uma arrogância típica das classes superiores inglesas; rejeitava o socialismo realmente existente, mas propondo em seu lugar um “socialismo” vago, que se confundia com desapego cristão. Ele também pregava contra os “marxistas dogmáticos”, no sentido de valorizar a classe média e considerá-la parte dos proletários, assim como propunha o resgate do heroísmo físico, o cavalheirismo, dentre outros valores que ele julgava que estavam sendo esquecidos pelos intelectuais (e que também se aproximam dos valores da classe média inglesa de onde ele se originou). Para escrever seus livros, passou algum tempo, embora bastante rápido, entre os pobres em Paris e Londres, assim como foi, de passagem, às regiões do Norte da Inglaterra. Sobre os pobres tirava conclusões dizendo que sua grande diferença era o “odor”.
Orwell foi à Espanha como jornalista e participante do pequeno grupo de linha trotsquista POUM. No entanto, seu conhecimento da situação política na Espanha era pequeno e seu principal foco era fazer um livro. Orwell colaborou, com o livro Homenagem à Catalunha, para fortalecer a versão dos anarquistas e dos trotsquistas de que a União Soviética e a Frente Popular foram os responsáveis pela derrota da República na guerra civil. O título do livro celebra um levante de anarquistas e trotsquistas contra a frente popular que, na época, foi considerado uma punhalada pelas costas que favoreceu a Franco e a Hitler.
Assim como em A Revolução dos Bichos, Orwell tomou partido pelo trotsquismo Acontece que o trotsquismo é a base de boa parte do anticomunismo ocidental e dos ataques feitos à URSS durante a Guerra Fria.
            Outro ponto que tem sido ressaltado são os conteúdos anticomunistas presentes na obra, principalmente em seus últimos anos de vida, em plena Guerra Fria. Surgiu a denúncia que Orwell trabalhou, durante a II Guerra, como informante do estado inglês, fazendo listas de artistas que simpatizavam e militavam a favor do comunismo. O ensinamento que fica ao final da leitura de A Revolução dos Bichos é que os homens não são melhores do que os animais. A “natureza humana” decide tudo.
Os valores afirmados em um texto devem ser buscados a partir dos valores afirmados ao seu final. Deve-se, então, analisar a cena final, que se refere à Conferência de Teerã, representa o momento em que se reuniram Roosevelt, Churchill e Stálin:

Se vossas senhorias têm problemas com vossos animais inferiores, nós os temos com as nossas classes inferiores (...). Doze vozes gritavam, cheia de ódio, e eram todas iguais. Não havia dúvidas, agora, quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já era impossível distinguir quem era homem, quem era porco (ORWELL, 2007, p. 118).

            Orwell age como se estivesse criticando uma esquerda oficial apoiada pela União Soviética e que, junto aos capitalistas e igual a eles, estivesse repartindo o mundo. No entanto, qual era o contexto histórico no ano de 1943 em que Orwell terminou Revolução dos Bichos e tentou publicar esse escrito antissoviético? Os nazistas haviam invadido a União Soviética e matado milhões de russos, arrasando o país. Já havia acontecido a maior batalha da guerra, Stalingrado, mas não se sabia quem venceria o conflito, se a Alemanha nazista ou os soviéticos. Mas o que queria Orwell com seu Revolução dos Bichos? Ele ambicionava acabar com o “mito” da União Soviética como estado socialista. Mas a quem beneficiava, em 1943, essa postura de Orwell? É curioso como se esquece tão facilmente no Ocidente como a vitória foi obtida com enormes sacrifícios pelo povo soviético e pelo exército vermelho.
            Se em 1943 ainda havia atitudes reticentes quanto à posição de Orwell, a ofensiva contra o socialismo em 1945 as desfez e o mundo ocidental passou a ter uma postura favorável com relação a ele, chegando até ao ponto de mistificá-lo. Os espiões de guerra nazistas foram aproveitados por serviços de guerra norte-americanos, como por exemplo, o general alemão das SS Reinhard Genhlen, cuja rede de espionagem passou inteiramente aos norte-americanos e passou a agir no Leste da Europa. Essa rede foi uma das responsáveis pela rebelião antissoviética em Berlim em 1953 e na Hungria em 1956.
            Em A Revolução dos Bichos, o porco Napoleão é caracterizado como grande, feio, com expressão agressiva e descrito como tirânico, rude, hipócrita, vaidoso, ou seja, (“Stálin”). Bola de Neve é mostrado como jovem, bonito, com expressão inteligente e os seguintes atributos: articulado, inovador, brihante, estrategista, modernizador, idealista (“Trotsky”). Não seria a hora de questionar esse tipo de dicotomia pobre que termina sendo passado como aula de literatura e história? Não chegou a hora de quebrar com esse corporativismo trotsquista que tem protegido Orwell de ser criticado nesses últimos cinqüenta anos?
            Nossa hipótese, portanto, foi de que A Revolução dos Bichos é libelo antissoviético e trotsquista, utilizado largamente como propaganda anticomunista, ao ponto mesmo de servir de base para desenhos animados patrocinados pela CIA. George Orwell, ao escrevê-lo em 1948, estava claramente obcecado por seus escritos antissoviéticos.


CONCLUSÃO


            Embora seja muito estudada e lida em sala de aula e na escola, A Revolução dos Bichos é um livro que ainda pede uma releitura crítica. A narrativa histórica na qual ele se baseia é uma narrativa fortemente partidária do anticomunismo, baseada principalmente em Trotsky, embora ele não a apresente assim. Ele é lido como narrativa neutra que é capaz de engajar e de politizar a juventude. Isso precisa ser questionado e uma visão mais objetiva, que não repita, meramente, os clichês da Guerra Fria sobre o período Stálin precisa ser abordada em sala de aula. No Brasil, os trabalhos disponíveis sobre Revolução dos Bichos, com os textos de Felipe Fontana e Olgário Vogt, fixam-se totalmente no mito Orwell, celebrando sem maiores críticas o “clássico”, repetindo elogios a respeito de sua biografia e vida, mas sem aprofundar-se em sua obra. No entanto, na Inglaterra, novos estudos sobre Orwell o fazem aparecer sob uma outra luz: antissemita, homofóbico, anticomunista que chegou a trabalhar como informante do estado em plena Guerra Fria e delatar outros escritores. Igualmente, historiadores como Grover Furr, Arch Getty, Yuri Zhukov e outros estão repensando a narrativa do tempo da Guerra Fria. Como a narrativa sobre a coletização russa dos anos 30 está sendo repensada, é importante verificar como ela foi apresentada em A Revolução dos Bichos. E ela foi apresentada do ponto de vista trotsquista e antissoviético. O texto constrói uma dicotomia pobre entre Stálin (“Napoleão”) e Trotsky (“Bola de Neve”). Não há dúvidas de que o texto tomou claro partido por Trotsky e o anticomunismo. No entanto, os estudiosos brasileiros nunca mostram isso, pelo contrário, dão à hipótese da neutralidade da narrativa o caráter de verdade inquestionável. Nesse trabalho, adotamos a hipótese maoísta, ou seja, de que o abandono do marxismo-leninismo pela União Soviética aconteceu em 1956.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BAR, Jodi. George Orwell, Anti-communist Propagandist, Champion of Trotskyism and State Informer. February 1998. Stalin Society. Disponível em: <http://www.stalinsociety.org.uk/ publications.html>. Acesso em 16 de outubro de 2012.


ESCUSA, Alberto. Quien fué realmente George Orwell? ¿Quién fue realmente George Orwell? Los mitos orwellianos: de la Guerra Civil española al holocausto soviético. Disponível em: . Acesso em 13 de outubro de 2012.


FONTANA, Felipe. A Revolução dos Bichos (Teoria e suas implicações: compreensão da utilização doAnimalismo na Revolução dos Bichos e do marxismo na URSS de Stálin. Revista Urutágua, n. 21, mai./jun/jul./ag. de 2010.


FURR, Grover. Evidências da Colaboração de Trotsky com a Alemanha e o Japão. Disponível em: . Acesso em 13 de outubro de 2012.


_______________. Stalin e a luta pela reforma democrática. Disponível em: . Acesso em 17 de outubro de 2012.


GETTY, Arch. The Origins of the Great Purges: The Soviet Party Reconsidered, 1935-1938. New York: Cambridge University Press, 1995.


ORWELL, G. A Revolução dos bichos. Trad. por: Heitor Aquino Ferreira. 4 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.


TAUGER. B. Tauger, The 1932 Harvest and the Famine of 1933, Slavic Review, Volume 50, Issue 1 (Spring, 1991), 70-89,


VOGT, Olgário. A Revolução Russa através da Revolução dos Bichos. Revista Ágora, Vol. 13, n. 1, 2007.



[1][1] Aluna do Curso de Letras (Fasf/UNISA, polo Luz/MG. RA: 2708931