sábado, 29 de dezembro de 2007

Clone-se a si mesmo! Ou: Breves Considerações Sobre Vita, de Alexandre H. Reis

Diante do livro de Alexandre H. Reis, sinto que tenho nas mãos um dos textos mais belos e admiráveis que já li (e trata-se de um contemporâneo!). O texto estruturou-se em torno da morte e de considerações sobre ela, mas também existem os mais variados temas em suas três subdivisões: o que lhe deu corpo, fora o estilo agudo, inspirado em Nietzsche e nos moralistas franceses e quem sabe, Oswald de Andrade e Emil Cioran: a forma aforismática.O tema, a morte, é a coisa mais segura e firme que a vida inventou até agora e, portanto, fornece um bom e universal fundamento.

O livro é muito rico e merece uma releitura. Ele se baseia em dois pólos: a construção de belos apotegmas, ou seja, fragmentos curtos e sucintos, sempre encerrando alguma reflexão de natureza prática ou, paradoxalmente, moral. O autor conseguiu um bom tratamento aos temas, assim como excelente escolha de temas. Ele tomou Nietzsche como mestre, mas aventurou-se a dialogar com ele sem muita formalidade ou cerimônia, muitas vezes tomando-lhe o estilo, -- e de certa forma -- o espírito. Não se trata aqui de kardecismo e em Vita estamos longe dos pastiches realizados por Xyko Xavyer. Ocorreu-me, no entanto, o seguinte pensamento: um amigo espiritualista chamado Sergei me avisou que jamais devemos procurar em que lugar, em que corpo está habitando um antigo espírito, tal como o de Napoleão ou o de Hitler, por exemplo. No entanto, após ler Vita, eu toparia fazer uma aposta de onde está reencarnado o espírito de Nietzsche...

Não me canso de repetir meu assombro pelo fato de um texto desse quilate ter saído do contexto de Belo Horizonte, cidade ainda marcada por um catolicismo inquisitorial (quem sabe por isso mesmo). Alexandre não assumiu compromisso total com os conceitos de Nietzsche, não optou entre o super-homem e o além do homem. Mesmo assim, seu livro é um livro que entusiasma, é uma maravilhosa impertinência. Que alguém de minha geração tenha dado à luz a uma estrela bailarina como Vita me é espantoso. Alexandre trabalhou com conceitos que reformulou conforme sua visão pessoal do mundo, tais como bíos e zoé: sua observação sobre a biologia já valeu o livro:

Bíos é uma vida vivida. Uma vida que pode, por ser única e caracterizada, ser contada numa bio-grafia; uma vida que pode ser morrida (...). Abro aqui um parêntese: a palavra biologia parece ter sido cunhada sob um acidente filológico, o que nossas ciências biológicas estudam é decorrente do signo de zoé, a vida em geral, e não bíos--; a rigor, nesse sentido filológico, nossa biologia não é senão uma zoologia. (REIS, 2007, p. 34).

Faço também algumas observações críticas a respeito de algumas passagens. Um livro como Vita não nos permite crítica, nos instiga a pensar. Quando referiu-se ao marxismo e ao socialismo, Alexandre foi azedo, como no aforisma 218, A Favor de Marx, que referiu-se ao marxismo como sendo ópio, atribuindo a Bruno Bauer uma frase que já foi atribuída a um pastor protestante do século XVI: “a religião é o ópio do povo”. Nesse ponto, curiosamente, Nietzsche e Marx convergiram: até em Vita, toda religião foi definida como vazia. Somente concordo que o marxismo seria ópio no sentido de verdade intoxicante. O homem que mais obteve sucesso em dividir a história da humanidade em duas, depois de Cristo, foi Lênin. Talvez o único filósofo a se tornar múmia tal qual um faraó de nosso tempo.

Afinal, vale a pena exprimir profecias, tal como fez Marx, ainda que sob pena de não permitir que elas se realizem? Ou quem sabe, como nos mitos gregos, enunciar a profecia não evitaria sua realização? O outro ponto problemático foram alguns elogios a Hitler no aforisma número 144:

Comércio exterior. A Alemanha o seu Fuhrer na desastrosa figura de Hitler, que era astuto, relativamente inteligente, mas não auto-suficiente: os Estados Unidos souberam tirar proveito deste fato, aumentando seu poder econômico sob as máscaras de sua propaganda anti-hitlerista e emprestando suas admiráveis maquininhas para a contabilidade e reconhecimento dos judeus (REIS, 2007, p. 79).

Penso que Hitler foi notável unicamente em seu uso da razão instrumental, pois conseguiu controlar os impulsos de sua natureza para a destruição durante relativamente muito tempo, o tempo de sua carreira política: pior para a Alemanha. No fim das contas, fez com a Europa o que fez com sua prima Geli Raubal, quem sabe seu único amor heterossexual: levou-a ao suicídio. A Europa Unida deve a ele sua fraqueza, sua dependência em relação aos Estados Unidos.

Claro que muitas perguntas instigantes ficam em aberto depois da leitura de Vita, pois trata-se de um livro que perturba o corpo, faz fugir o chão. Uma delas nos foi colocada pelo aforisma número 141, que comentou sobre a pós-modernidade enquanto inimiga da cultura. Ora, a pós-modernidade, em termos de Filosofia, foi também o triunfo da tradição criada por Nietzsche e entrevista em Vita: Cioran, Heidegger, dentre outros. O diálogo aqui, não se definiu em termos de gosto: o gosto de Vita é antropofágico, tendo canibalizado alegremente até mesmo o mestre Nietzsche, ainda sem problematizar explicitamente isso. Definindo Heidegger como hegeliano velado, Reis deixou de lado a tradição fundada por Nietzsche para dialogar diretamente com um Laio que, emudecido, lhe entregou o trono.

Fecho esse artigo breve com uma observação sobre a glória de Apolo no século XXI: quando surgiu o primeira clone, Dolly, a mídia passou a fazer a pergunta narcísica: “você clonaria a si mesmo?” Minha resposta é dirigida ao autor de Vita, em sentido de provocação elogiosa: “clone-se a si mesmo!”

sábado, 22 de dezembro de 2007

A Planície dos Mortos

A Planície dos Mortos

Plano Imagem

Plano geral Um prédio de apartamentos no

centro de Belo Horizonte

Plano de meio conjunto O sujeito assiste TV no apartamento.

Primeiro plano Tela da TV onde passa o vídeo

do Joy Division

Plano de detalhe O vídeo passa a falar do New Order

e a mão apaga a TV

Plano de detalhe Mãos folheiam um livro: “A Cidade

Escrita”.

Plano americano O sujeito afunda o rosto nas mãos por

alguns segundos.

Plano americano O sujeito sai do apartamento, depois de pegar uma chave.

Plano médio O sujeito aparece diante de uma casa

Em ruínas

Plano médio O sujeito na lagoa do Parque Municipal

Plano médio O sujeito olha as horas no edifício do

Correio, de dentro do Parque Municipal.

Plano médio O sujeito diante da Igreja da Boa Viagem, bebendo.

Plano de conjunto Torres da Igreja em contra-luz. Testar backlight.

Plano médio A estátua da praça da estação é mostrada à contra-luz também.

Plano de meio conjunto “Caronte” é visto na beirada do Rio Arrudas, ressaltar o ambiente.

Plano de conjunto O rio escorrendo, do ponto de vista de Caronte.

Primeiro plano Caronte silencioso olha o rio. Atira uma lata de cerveja no rio.

Primeiríssimo plano A boca de Caronte é focalizada dizendo:

O chope não me traz o desejado esquecimento

Os insetos morrem de encontro à lâmpada

Ou se acoitam no sofrimento destas rosas secas.

O Arrudas desce tranqüilo, grosso e pesado

Carregando cervejas, fetos guardados, rótulos de farmácia, águas tristes refletindo estrelas.

Tudo depois continuará irremediavelmente como no

princípio

Somente, ao longe, na solidão de um poste,

Num fim de rua, o vento agita o capote do guarda.

Plano americano Caronte diante das fotos do museu Abílio Barreto. Seu rosto está espantado.

Plano médio Caronte sai afobado do museu.

Plano americano Caronte picha uma frase no muro, abaixo do letreiro

onde se lê que o espaço está reservado para pichadores. A frase é : “O amor nos destroçará novamente, ass. Caronte.”

Áudio: Nas primeiras cenas, som ambiente. Depois de lido o poema, faixas dos discos do Joy Division. O encerramento é com “Love Will Tear Us Apart”.

Quatro Mundos Nascidos da Mundo de Cetim

Quatro Mundos Nascidos do Cetim: Bernardo, Memórias do Infortúnio, Cosmofilia & Águas

Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior


Tornou-se um lugar comum no Brasil dizer que literatura brasileira não vende. A falta de renovação de talentos ameaça, inclusive, a existência de nossa literatura, que, segundo alguns, corre risco de extinguir-se e passar a viver apenas dos livros de celebridades tais como Jô Soares, Bruna Lombardi e Paulo Coelho. Esse último, sintomaticamente um dos mais vendidos, sempre aclimatou seus livros em todos os lugares, menos no Brasil. Vem daí a importância de uma editora nova e independente tal como a Mundo de Cetim, capitaneada pelo poeta Ramon Maia. Falar de seus lançamentos, portanto, é traçar estratégias de sobrevivência tanto do editor, do poeta quanto do crítico.
Um clima poético permeia Memórias do Infortúnio (Ramon Maia, Mundo de Cetim, 2006), mas aqui o clima se torna concreta prosa poética. Dentre os dilemas de uma casta diva, que desliza entre a estéril solidão e a melodia unânime e frívola. Caminha como uma personagem aparentemente poética e perdida na multidão, na súcia ensandecida. A alma de Ramon, alma de poeta, no extremo de si, vê-se em pleno estertor de criar essas memórias. Começa a narrativa de forma muito elegante: “Ofereceu-me fósforo a fim de que eu acendesse meu cigarro. O obséquio parece-me estrangeiro diante da pletora do ríspido que tanto me aborda. Devolvi-lhe um sorriso tímido e certeiro, contumaz, talvez, espanto na indagação do primeiro gesto, da mão que se estende ao ver balançar ao léu por entre lábios trêmulos”. Trata-se de uma passagem em que a personagem nebulosa da mulher, entre o evolar da fumaça e a duração de um toque ao café, deixa-se como uma imersa, confundida, indiscernível no volume; ela se se lança ao delicado, tal que o autor nessas memórias. Há uma frase forte de Ramon que fica, depois da maré e da ressaca: “meu outono irremediável perscrutava marolas de mim”. Em Da Vanidade, capítulo dessas afortunadas memórias, o autor oscilou entre o cômico e o sagrado ao buscar, tal qual um Santo Graal, a produção do literato Raimundo Periquito em um monastério. Muito curioso também foi o processo de desnaturação ontológica que surgiu no decorrer dessa busca, uma verdadeira descontrução ôntica da dialética da malandragem. Há momentos em que a narrativa partiu diretamente para o realismo fantástico; outros existem em que o autor capta, esboça impressões, tal que um pintor impressionista; finalmente, quem sabe num traço que o define, faz uso de um estilo metafórico, de vocabulário rico, de talhe barroco e hermético.
A prosa de Ramon é bem poética também em Bernardo (Memórias de Exílio e Cisão, Mundo de Cetim, 2005). Essa primeira memória, estréia do autor de três livros de poemas como prosador, possui um traço mais realista; quando trata da infância de Bernardo, possivelmente colheu elementos biográficos. Igualmente, dentro de Bernardo, há a voz, uma espécie de heterônimo feminino, de Maria dos Prazeres, que representa a poesia quase em estado puro dentro dessas memórias; é quase um fluxo de inconsciência intercalado. A escrita busca idéia, imagem, fogo, tela, papel, acrílica. Tanto nessa quanto na outra memória existiu todo um devaneio ligado ao mar e às coisas marinhas, sempre surgindo como signo de liberdade e imaginação infinita, sem peias. A prosa floreada, artística, intensamente trabalhada, talvez mais aveludada que acetinada, das duas memórias de Ramon Maia também foi uma grande contribuição de um escritor que também se fez bom editor, atuando corajosamente ao editar poesia e prosa de autores iniciantes e da própria pena, num País onde os autores iniciantes parecem condenados ao limbo pela maioria das editoras e tudo o que se faz parece subserviente ao Deus do Mercado.
O livro Cosmofilia (Baco Graco, editora Mundo de Cetim, 2006) é uma poesia discursiva, ritmada, exuberante de vida. Um texto que ousa dizer, num mundo carente de sentido e significado. Suas palavras são prenhes de sentidos, buscando, tentacular, uma multiplicidade de objetos do mundo, navegando pelas singularidades, consciente de seu material, usando de três atitudes básicas: a disposição de um rico arsenal vocabular, um poderoso jogo de imagens e uma relação de temas de origens mítico-órficas.
Baseado em Marx, Baco afirma: “Eu estou completo/com meu álcool e minha droga, derramo feito copo engolido pela água: sede da água./Marx, o sedento, deixou escrito que a paixão é a força essencial do homem, de tendência enérgica ao objeto”. Nesse momento, Baco mostrou-se o mais perigoso tipo de marxista: o poeta marxista. Há, inclusive, um poeta dedicado a Roberto Piva, grande poeta brasileiro admirador de um dos mais perigosos poetas marxistas já surgidos: Pier Paolo Pasolini. Marxista bacante, professor e estudante de Filosofia de trinta anos, Baco Graco fez, dentre outras obras marcantes, belíssima ode à cerveja: “A cerveja desce de veludo/mergulha na alma/acariciando o coração/a cerveja viaja sem compromisso/chega sem boa noite/ e é a noite. A cerveja reluz dourada e é algo mais que o ouro/ a cerveja espuma e avança como um mar inscrito no copo (...). A cerveja diz no ouvido/verdades só nossas.” Cosmofilia é uma excelente estréia e boa revelação de um grande autor.
Já Águas (Sílvio Neves, Mundo de Cetim, 2006), aderiu ao comedimento poético nas searas da poética recente. O poeta, maduro, deixa o dito pelo não-dito. Do pego na bátega, muitos de seus diamantes são preciosos, mas pagam apenas metade do esforço dispendido. É uma coleção de 52 poemas, nenhum mais extenso do que uma página. O objetivo foi seguir as lições hegemônicas de João Cabral e Leminski. Seus verbos, mais que delirantes, são racionados, dosados em conta-gotas. Ele teatralizou estáticos obuses, deu tiros na lebre de vidro, mesmo vendo que ela é estática clepsidra. Mas como fazer o verbo delirar, se há até mesmo poemas sem verbo, como Dísticos Recortes de Diamantina? O poema é, aliás, um dos melhores do livro, justamente por se tratar de um momento em que o poeta abandonou um pouco sua preferência pelo som e perseverou no sentido.
Também plena de sentido é Canto, poesia dedicada aos músicos Elzi e Helvécio, onde falou da voz que subtraiu o silêncio; há todo um Réquiem Cerrado, com direito a andantino, presto e adagio. Sílvio enfim se aproxima da música, musa da qual se afastara só para ficar mais cabralino em seu desprezo pela música. Há, no entanto, um quê de Cruz e Sousa em Sílvio Neves, um certo privilégio da musicalidade, do som dos poemas em detrimento do conteúdo, do sentido. Os poemas ganham quando recitados, pois, muitas vezes, quando lidos, parecem vagas e veludosas vozes, mots en liberté soltas, vox clamantis por verbos de ligação.
Outras paixões de Sílvio se destacaram: Futebol Acuado e Lance falam da paixão do poeta pelo futebol, que se mostra parecida com a de Gonzaga e Marília: o poeta mais torce e observa do que desfruta lances prazerosos com ela. Mais do que seguidor de João Cabral, Sílvio sofre do efeito Cabral, ou seja, reafirma a própria poesia cerebral: “Cirúrgicos poemas/o cérebro desobstrui/como se coração fosse”. Uma vez na zona rural de Diamantina, reflete: “floresce algo em mim”. Sua ambição, no entanto, é preparar-se para pedra à la Manoel de Barros, “ter a mudez de um riacho”. A insanidade (e não só a faca), descobre Sílvio, também é lâmina. O risco é que, passado o feito em revista, muito se perca na voragem das Águas: atentemos para o fato de que telhado não se faz sem risco. Embora com algumas licenças poéticas acima citadas, o autor conduz o livro com maturidade e segurança; o lançamento de qualidade enriquece a poesia mineira e brasileira, tal como os outros títulos da Mundo de Cetim acima referidos.

Um Ensaio e Dois Roteiros

Eu Sei Que Eu Vou Te Amar

“A verdade de uma mulher é diferente da verdade de um homem”, é a frase que contêm o motivo-guia do filme que vai ser analisado neste trabalho: Eu Sei que Vou Te Amar, de Arnaldo Jabor.

O livro Eu Sei Que Vou te Amar, baseado no roteiro do filme, se inicia com duas epígrafes: a de Chacal: “Nosso amor puro/ Pulou o muro...” e de Leonardo da Vinci: “O que se vê, antes não era; e o que era, não é mais.”

A mitologia da publicidade e dos meios de comunicação de massa pontua esta história que gira em torno da relação ambivalente de um casal, relação na qual o amor se intercala a momentos de ódio.

Misturam-se no texto referências tão díspares quanto a Kryptonita do super-homem e a cantora de folk Joan Baez:

...E eu sei que conseguirei te desagregar pouco a pouco e que no fim da noite você estará caído feito um joão-ninguém entre pedaços de kriptonita e eu ajeitarei o batom, o salto alto e partirei vingada, pensando: Dorme meu homem...dorme my baby, that’s my boy...(...) Ela está com um sorrisozinho maduro...na vitrola esta música ridícula que eu pus...Joan Baez...que absurdo...

Guantanamera, guajira guatanamera...

Estas referências ao universo dos quadrinhos e ao da contestação dos 60-70 universalizam a tragicomédia que se desenrola entre os dois e situa este diálogo na caótica década de 80.

Tais referências nos levam imediatamente ao universo da cultura de massa, que se desenvolveu em suas características originais a partir da década de 30, nos Estados Unidos. Ela constituiu uma temática coerente depois da Segunda Guerra Mundial, atingindo o conjunto dos países ocidentais. Essa temática corresponde aos desenvolvimentos da sociedade americana, em primeiro lugar, e das sociedades ocidentais em seguida. E agora, nos anos 90, sua abrangência se torna por fim mundial. Ela pode enfim penetrar em mercados que antes lhe eram vedados, como o Leste Europeu.

Esses desenvolvimentos são bem conhecidos: as massas populares urbanas e de uma parte dos campos têm acesso a novos padrões de vida, entram progressivamente no universo do bem-estar, do lazer, do consumo, que era até então o das classes burguesas. As transformações quantitativas (elevação do poder aquisitivo, substituição crescente do trabalho da máquina pelo esforço humano, aumento do tempo de lazer) operam uma lenta metamorfose qualitativa: os problemas da vida individual, privada, os problemas da realização de uma vida pessoal se colocam, a partir daí, com insistência, não mais apenas no nível das classes burguesas, mas da nova camada salarial em desenvolvimento. A cultura de massa se constitui em função das necessidades individuais que emergem. Ela vai fornecer à vida privada as imagens e os modelos que dão forma às suas aspirações. Um gigantesco impulso do imaginário em direção ao real tende a propor mitos de auto-realização, heróis modelos, uma ideologia e receitas práticas para a vida privada. Se considerarmos que, de hoje em diante, o homem das sociedades ocidentais orienta cada vez mais suas preocupações para o bem-estar por um lado, o amor e a felicidade por outro, a cultura de massa fornece os mitos condutores das aspirações privadas da coletividade.

É porque a cultura de massa se torna o grande fornecedor dos mitos condutores do lazer, da felicidade, do amor, que nós podemos compreender o movimento que o impulsiona, não só do real para o imaginário, mas também do imaginário para o real. Ela não é só evasão, ela é ao mesmo tempo, e contraditoriamente, integração.

O filme em dado momento faz uso de uma citação de outro filme, A Um Passo da Eternidade, referência marcante para a geração de Arnaldo Jabor. Um diálogo (ausente do filme) é encenado pelos dois personagens do filme de Jabor, pouco depois que um deles afirma que o “amor é invenção do cinema americano para faturar”:

Tenente Williams: - Quero te dizer que vou para Tóquio, senhorita Bellaway. Mas sempre lhe amei!

Senhorita Bellaway: - Você vai embora, tenente Williams?

Tenente Williams: - Vou, vou e estarei de volta, e faremos um rancho no Tenesee! (...)

Senhorita Bellaway: - Oh, tenente Williams, eu te esperarei até o fim da guerra! Meu amor, estamos a um passo da eternidade!

Esta encenação é um exemplo da promoção em torno das divindades da cultura de massa, os olimpianos modernos. Esses olimpianos não são apenas os astros de cinema, mas também os campeões, príncipes, reis, play-boys, exploradores, artistas célebres, Picasso, Cocteau, Dali, Sagan. O olimpismo de uns nasce do imaginário, isto é, de papéis encarnados nos filmes (astros), o de outros nasce de sua função sagrada (realeza, presidência), de seus trabalhos heróicos (campeões, exploradores). Os novos olimpianos são, simultaneamente, magnetizados no imaginário e no real, simultaneamente, ideais inimitáveis e modelos imitáveis; sua dupla natureza é análoga à dupla natureza teológica do herói-deus da religião cristã: olimpianas e olimpianos são sobre-humanos no papel que eles encarnam, humanos na existência privada que eles levam. Um Olimpo de vedetes domina a cultura de massa, mas se comunica, pela cultura de massa, com a humanidade corrente.

A importância desta citação no filme é que ela desconstrói e satiriza os protagonistas do filme norte-americano como mitos de auto-realização da vida privada. De fato, os olimpianos, e sobretudo as estrelas, se beneficiam da eficácia do espetáculo cinematográfico, isto é, do realismo identificador nos múltiplos gestos e atitudes da vida filmada, são os grandes modelos que trazem a cultura de massa e, sem dúvida, tendem a destronar os antigos modelos (pais, educadores, heróis nacionais).

Eu Sei Que Vou Te Amar é pontuado pela imagem do casal protagonista se abraçando na praia, entre as ondas, realizando finalmente o mito de auto-realização visto na tela do cinema. No final do filme, Jabor tende a fazer um apoteótico final de festa, é como se os problemas fossem jogados para o alto, dissolvidos e esquecidos num frenesi dionisíaco.

Uma olimpiana que simboliza a nova mulher que Hollywood mitificou no Segundo Pós-Guerra é Marilyn Monroe. A referência é colocada num novo contexto em que obtêm um novo sentido:

- Uma vez...rondando pela noite...eu peguei uma mulher na rua...linda...loura...igual a Marilyn Monroe...levei pro motel, na hora...cheguei lá e vi que era um travesti...lindíssima...e aí...eu fiz ela me comer...eu fui comido pela Marilyn Monroe!!! Eu olhava no espelho e via a Marilyn Monroe me beijando pelas costas...eu...um pai de família brasileiro...um homem de bem...graças a Deus...dei para a Marilyn Monroe...dei e tinha um homem mau morrendo em mim...eu via o cabelo de ouro no espelho...a unha vermelha...e tinha um homem mau morrendo em mim...morrendo...morrendo...um macho canalha morrendo em mim...e eu... campeão de vôlei...forte...morria...e eu me sentia livre...graças a Deus...uma vedete...um Cristo de classe média...uma vedete crucificada...ahhh...de dia eu era marido...de noite...meu verdadeiro nome era Cristina e eu fazia trottoir pelas ruas do Brasil!!!

A falta de sintonia entre estes dois universos torna a relação homem/mulher um encontro/desencontro, um estranhamento seguido de súbitos sinais de que há uma possibilidade de contato.

A relação entre o mundo masculino e feminino exige tanto esforço que o filme a mostra parecida com a relação entre um venusiano e um marciano - Arnaldo Jabor arma um diálogo para ilustrar esse embate:

- Nós dois somos vítimas de uma doença extraterrestre e temos de nos curar, você e eu pegamos uma doença gelatinosa que nos agarra um no outro, uma gosma do ET, uma gosma que nos une, e a gente quando se junta vira uma geléia, uma terceira pessoa, a gente tem de se salvar um do outro; pelo amor de Deus me salva de você e pelo amor de Deus te salvo de mim...

- Acabou?

- Se salvar um do outro...

- Chega!

- Temos de matar este amor...

- Cala a boca!

O personagem masculino, anônimo no livro(elaborado a partir do roteiro) e anônimo no filme, exerce a profissão de publicitário. O filme é a fábula do casal em transe num mundo onde a comercialização da sexualidade e dos sentimentos é a regra. Thales Pan Chacon é assombrado por fantasias ‘comercias’:

(...) Você virou uma mulher enorme, cresceu feito um anúncio, você ficou do tamanho do quarto e eu fiquei pequeno, um menino, eu fui diminuindo e você crescendo (...).

A linguagem da propaganda do sabão OMO é satirizada a seguir. O comercial de sabão em pó vende também uma idéia de harmonia e felicidade no lar, criando artificialmente assim uma atmosfera para fazer a apologia do produto a ser consumido - e assim iludindo o freguês de que é possível consumir também a harmonia e a felicidade; o texto trabalha a questão da seguinte forma:

E a senhora, dona fulana, responda que ganha vinte caixas de detergente OMO, o que lava mais branco!...Fez o teste da janela? Fiz, sim senhor...e então, dona fulana? Meu marido é um sujo...Muito bem...e a senhora? Eu...eu lavo mais branco...eu sou pura e branca!...Muito bem...é isto aí! Seis anos para chegar a esta conclusão. Aliás, chega! Não agüento mais este papo...

O tempo da tecnociência, da cibernética e dos robôs também influi no discurso amoroso do filme, que se utiliza do espelho para refletir a realidade desta sociedade tecnológica. No monólogo frente ao espelho, a solidão narcísica da sociedade de consumo é mostrada:

Minha cara no espelho...

- Boa noite, senhor, que lhe aconteceu? O senhor está transtornado!...

- É o seguinte, amigo transeunte espelhar, eu era feliz, um robô feliz, ordeiro na minha mediocridade, até que uma mulher replicante fez isso comigo, uma mulher biônica chamada Cármen, uma batedeira de ovos que evolui!...

- Não brinque comigo, robô!!!Diga seu número de série! Over!

- Meu número de série é 2447 e fui construído em 1949 pelo engenheiro sul-vietnamita Fuck Ya...Meu nome é Daisy...Would you like to hear a song?

- Yes, Daisy!!! sing it to me!!! - Daisy, Daisy, give me your answer, do, I go crazy just for the love of you...

Em outro trecho surge um personagem lendário, mais próximo no entanto do imaginário carioca:

Vou-me embora desta casa e sair por aí, como vai ser bom eu sair por aí, vou pela praia molhando os pés...até o Leblon...andar pela praia até o Leblon...encontrar o Tom Jobim...se o Tom Jobim se apaixonasse por mim poderia me salvar...me salvaria desta merda...e eu diria: ‘Querido...o Tom me ama...e como você é inferior a ele hierarquicamente na escala da humanidade, como ele compôs músicas lindas como Lygia e tua obra-prima é aquele jingle em que a gelatina Royal dança um samba com o pudim Royal...eu irei com ele...fique, seu medíocre...’

Observo neste filme a presença de mitos, lendas, de um imaginário que emerge através da publicidade e do cinema, principalmente. A análise de trechos do texto mostra, como dizia Mircea Eliade, que:

A vida do homem moderno fervilha de mitos semi-esquecidos, hierofanias decadentes, de símbolos esvaziados de sua finalidade. A dessacralização ininterrupta do homem moderno alterou o conteúdo da sua vida espiritual mas não quebrou as matrizes da sua imaginação: todo um resíduo mitológico sobrevive nas zonas mal controladas.

Edgar Morin reitera:

Ao redor das antigas aldeias os homens projetavam seus fantasmas: lugares malditos, anaons, fogos-fátuos, espíritos; a noite pululava de fantasmas. Ao redor das grandes cidades industriais, a franja projetiva é constituída pelos acidentes e os crimes dos fatos variados. As noites são iluminadas, tranqüilizadoras. Os fantasmas em toda parte presentes, dia e noite, modificaram sua natureza (...) A civilização é uma fina película que pode solidificar-se e conter o fogo central, mas sem apagá-lo. A civilização do conforto pacífico, da vida sem riscos, da felicidade que quer ignorar a morte, será que constitui uma crosta cada vez mais sólida abaixo das energias dementes da espécie? Ainda aqui a resposta é dupla. Se, de fato, a superfície se endurece e torna a se fechar sobre o fogo central, então a pressão interna se decuplica. Que a crosta venha a se romper, e os monstros quebrando suas correntes, farão irrupção, não mais sobre as telas e os jornais, mas em cada um de nós. Todas as experiências nos provam que ninguém está definitivamente civilizado: um pequeno burguês pacífico pode tornar-se, em condições dadas, um SS ou um carrasco; a guerra das nações civilizadas é, pelo menos, tão odiosa, atroz, implacável, como as guerras das sociedades primitivas. A cultura de massa nos entorpece, nos embebeda com barulhos e fúrias. Mas ela não nos curou de nossas fúrias fundamentais. Ela as distrai, ela as projeta em filmes e fatos variados. (MORIN)

O Guarani, Uma Metáfora do Cinema Brasileiro

Peri é o cinema brasileiro hoje. Neste filme o selvagem com alma de nobre volta para nos assombrar. Ainda somos índios de terno e gravata. Assim como Norma procurou para seu filme um passado do qual quase nada resta, do cinema novo dos anos 60 pouco vamos encontrar hoje em dia. Os filmes brasileiros andam tentando conquistar público e não estabelecer um laço de continuidade de cultura cinematográfica do passado.

Norma tentou filmar um velho romance e acabou trazendo à tona o drama brasileiro atual, que continua pouco diferente do de Peri. O Brasil está ainda na mesma situação de Peri, tentando agora conseguir o reconhecimento de europeus e norte-americanos. Só que não basta imitar sua linguagem e satisfazer seus caprichos. Não temos a alma pura e a pele clara o suficiente para sermos aceitos de igual para igual. O Guarani representa nossa nacionalidade assim confusa, com problemas de auto-afirmação, subserviente, prestes a entregar tudo em troca dos espelhinhos de Miami. O Guarani, selvagem com alma de nobre, é tão agradável aos poderosos quanto o “preto de alma branca”.

O índio e o cinema brasileiro querem ser aceitos, mas a Disneylândia não deixa. Mickey Mouse herdou o trono de Portugal. Não admira, neste contexto, que o crítico de Veja arrebente com o filme. Veja é a revista do leitor médio, de cultura média, de classe média. O que acontece é que Veja é a revista dos donos de mico em feira de subúrbio. Todos são doidos para morar em Miami, numa sociedade de consumo de verdade. Mas são obrigados a viver aqui, em meio ao subdesenvolvimento, eles que já são pós pós. Por isso os maus tratos. Estamos vivendo uma verdadeira Disneylândia do Absurdo, um parque de miséria. Por isso a grosseria e o cafajestismo. Pior do que O Guarani é O Quatrilho, que nos reinventa para nós mesmos, traduzindo o governo FHC em imagens.

Daniel na Cova dos Leões

Cena 1

Indivíduo observa pela janela. O sujeito é visto da rua. Ext/dia.

Cena 2

A câmera toma a posição do homem que observa. Ela se dirige para fora. Ext/dia.

Cena 3

Casas no subúrbio. GPG. Ext/dia.

Cena 4

A câmera focaliza uma casa somente. Plano geral. Ext/dia.

Cena 5

A câmera observa um casal saindo da casa. Plano médio.

A voz em off:”Eu sempre quis varrer deste mundo os latidos.”

Cena 6

Um cão segue o casal até a porta, Avellar o fecha dentro da casa. Ouvem-se latidos.

Cena 7

Rosto de um homem idoso, claramente marcado pelo desgosto. Ele repete obsessivamente: “Ô cão do inferno! A noite inteira ele late. Late demônio, sempre está latindo, o desgraçado!” Int/dia.

Cena 8

Corta. Imagem de uma mão atirando um pedaço de carne para o outro lado do muro. Ext/dia.

Cena 9

Imagem de um gato. A voz em off comenta, alterada: ”Quem comeu a carne envenenada foi um gato! Um gato! Por mim quem matasse um gato deveria ser levado ao patíbulo!” Ext/dia.

Cena 10

O rosto do velho entra em close. Destaque para sua face torturada, obcecada. Ele sorri entre dentes: “Até que numa noite fizeram por mim a tarefa que eu sempre quis fazer.”

Cena 11

O casal está chegando em casa numa noite. Avellar abre a porta. O cão se aproxima. Plano americano.Int/dia

Cena 12

Close para o rosto de Avellar, aturdido, assombrado. Corta para a boca do cachorro, também em close.Int/dia.

Cena 13

Rosto da mulher desesperada (close)

Cena 14

Flashback do bebê sendo abraçado pela mãe. A homem o abraça, satisfeito.

Cena 15

Penduricalhos balançam no quarto vazio do bebê, por trás se vê uma janela. Plano médio.

Cena 16

Os pais são mostrados saindo, fechando as janelas e deixando o bebê a dormir. O cachorro é mostrado solto. O moço é jovem, ela é adolescente.

Cena 17

Flashback: Uma senhora esbraveja, os dois moços estão num sofá, cabisbaixos. A senhora grita: “Meu Deus! Você, Avellar, cresceu aqui na vizinhança! Você é um irresponsável! Agora vocês têm de se casar!” Int/dia. Plano médio.

Cena 18

A moça está caída no sofá,inerte, chocada. Avellar está debruçado sobre ela. Plano médio. Int/dia

Cena 19

Close do rosto transtornado de Avellar.

Int/dia.

Cena 20

A voz em off do homem idoso comenta: “Avellar resolveu cobrar o sangue do filho. Olho por olho, dente por dente”. Int/dia. Avellar é mostrado em plano médio.

Cena 21

O homem corta as unhas tranqüilamente.Plano médio, int/dia.

Cena 22

Close de uma unha sendo cortada repentinamente.

Int/dia.

Cena 24

Avellar dando vários tiros. Plano americano.

Int/dia.

Cena 25

A câmera se desloca, saindo rapidamente para a rua. Int/dia para Ext/dia. Ouvem-se ganidos de cão e uma voz em off comenta:”O tempo dos latidos chegou ao fim, afinal.”

Cena 25

Close do sangue escorrendo pelo chão.Int/dia.

Cena 26

A mulher entra na sala gritando.Avellar está perplexo. Plano geral. A câmera se aproxima lentamente, acabando por fixar um close no rosto do bebê, que chora insistentemente.

Int/dia.

Cena 27

Avellar entra no quarto do bebê, encontrando um corpo ensangüentado junto à janela, que está arrombada. Plano médio.

Cena 28

A voz em off comenta:”O ladrão morreu pelas dentadas do cachorro. O cão morreu pelas dentadas da humanidade.” Grande plano geral novamente, ext/dia. Casas no subúrbio.

Observação de Plano/ Ação/ Áudio / Duração

1. Plano conjunto / quadro/trilha/ 3 segundos

2. Plano detalhe /objetos /trilha/ 6 segundos

3. Contraplano /homem observa pela janela/trilha/ 3 segundos

4. Câmera subjetiva

Zoom in /casas do subúrbio/ trilha/ vinte segundos

casal saindo, casa de Avellar

5. Close up / cão acariciado por Avellar/ som ambiente/ 3 segundos

6. Plano conjunto/ Avellar fecha a porta/ latidos/ dois segundos

7. Plano detalhe / mão de Avellar tranca a porta/ som ambiente/dois segundos

8. Plano conjunto/ cão latindo/ voz em off/ dois segundos

9. Close up /Rosto do homem/”Ô cão do inferno! A noite inteira ele late. Late demônio, sempre está latindo, o desgraçado!”/três segundos

10.Panorâmica vertical/muro/trilha/dois segundos

11.Plano detalhe/ mão atira carne/ latidos/ dois segundos

12.Câmera subjetiva(alta)/gato freezado/”Quem comeu a carne envenenada foi um gato! Um gato! Por mim quem matasse um gato deveria ser levado ao patíbulo!”/ três segundos

13.close up/ rosto do homem/“Até que numa noite fizeram por mim a tarefa que eu sempre quis fazer.”/três segundos

14.contraplano/ casal na igreja/ trilha/ três segundos

15.Plano conjunto/casal chega em casa e o cão se aproxima, fazendo festa./ trilha/ três segundos

16.Plano americano/ homem de lado atirando/ som dos tiros e ganidos de cão/ cinco segundos

17.Primeiríssimo plano/ mulher gritando, fusão com o quadro O Grito, do Edvard Munch/ cinco segundos.

18.Plano médio/mulher com bebê no colo, Avellar a abraça/ silêncio/ cinco segundos

19.Plano detalhe/ móbile do quarto do bebê e janela ao fundo/ silêncio/ três segundos

20.Plano médio/Avellar fecha janela do quarto/silêncio/ três segundos

21.Contraplano/Mulher fecha cortinado do berço/ silêncio/ dois segundos. Avellar repete, ao fundo, a ação de fechar janelas

22.Câmara alta (subjetiva)/ bebê dormindo (backlight)/som do móbile/ dois segundos

23.Plano conjunto/ quarto do bebê, cão em primeiro plano/silêncio/três segundos

24.Câmera alta, primeiro plano/ casal adolescente no sofá./“Meu Deus! Você, Avellar, cresceu aqui na vizinhança! Você é um irresponsável! Agora vocês têm de se casar!”.../cinco segundos

25.Close up/ Avellar transtornado/Avellar resolveu.../ cinco segundos

26.Plano vertical/ sangue escorrendo/ trilha/ cinco segundos

27.Plano médio/ mãe acalenta bebê/ choro de bebê/ cinco segundos

28.Plano detalhe/pernas de Avellar e corpo caído, ensangüentado/trilha/cinco segundos

29.Plano geral/casas no subúrbio/ trilha e voz em off: ”O ladrão morreu pelas dentadas do cachorro. O cão morreu pelas dentadas da humanidade.”/cinco segundos

As Felicíssimas Esquinas de João Evangelista

Imagem Áudio Plano

João lendo som plano

um poema ambiente médio

Interior da música de Gilvan plano

casa de Oliveira americano

(acompanhando João)

João mostra

fotografias close

J. lendo outro

poema ou crônica fundo de música close

clássica

Imagem da cidade

de Belo Horizonte voz de João em off

falando de sua trajetória grande

plano

geral

Rosto de João,

enquanto ele fala de

sua trajetória som ambiente plano americano

A Volta do Cinema Catástrofe

O todo poderoso cinema de Hollywood demonstra, nos anos 90, a clara preponderância de uma vertente: o cinema catástrofe. O gênero nasceu em meio à Guerra Fria, nos anos 50, e ajudou Hollywood a reconstruir sua hegemonia, abalada na década de 60 pela popularização da televisão.

No filme Titanic (1998, direção de James Cameron), o arrasa-quarteirões de maior bilheteria da indústria cultural norte-americana, o tema é o navio afundado como símbolo dos amores que já foram destruídos. A dor e a delícia do casal é adoçada com orçamento milionário, música melosa e efeitos visuais mirabolantes. Neste produto da cultura de massas, o amor idealizado romanticamente abole a diferença de classes. A androginia fica por conta do face púbere de Leonardo Dicaprio. O rapaz representa com freqüência o papel de jovem, belo e rebelde – um rebelde absolutamente sem causa. Se em Rebel Without a Cause (1956, direção de Nicholas Ray), James Dean simbolizava a juventude americana do pós-guerra, confusa em sua identidade, afásica e violenta, Dicaprio significa uma continuidade daquela rebeldia. Mas hoje, no entanto, sua rebeldia é apenas um ritual sagrado de transgressão. Dicaprio oscila entre Rimbaud e um modelo de roupas, e sua beleza é uma armadilha para ambos os sexos.

Dicaprio, o centro oscilante do navio, está ancorado em muitas outras ambigüidades: a abordagem de pseudo-documentário que marca a obra, o “neón-realismo”, a sua pose de herói problemático. Titanic afasta-se do primarismo de Guerra nas Estrelas e do cinema-videogame de Spielberg – pero no mucho. Seu realismo é dosado, é minimamente calculado. A tragédia do Titanic em 1910 marcou o século pela flagrante reversão de expectativas. O século começou num clima de otimismo, e termina com a falência do humanismo, com a crise da razão, dos valores e das hierarquias, dando uma sensação de fim de mundo, de morte de uma cultura. Antes do fim, Dicaprio grita eufórico: “Eu sou o rei do mundo!” e James Cameron ecoa este grito no momento da entrega do Oscar. Esse grito, saído da garganta de Roliúde, festeja a vitória da América do Norte no século XX. O grito de gozo seguido do doloroso naufrágio relativiza, no entanto, tal sucesso. Mas o aplauso das massas vem quase mecânico. E até a crítica cai de joelhos, diante de tanto poder. Aqui em Belo Horizonte mesmo há a revista Clap, especializada no cinemão americano, que desde o título já entrega o seu conteúdo subdesenvolvido e deslumbrado.

Em Titanic há a dramatização de um naufrágio anunciado. Mas é também explorada uma nostalgia. O cenário é a Belle Époque, o período em que a civilização européia chegou ao apogeu, entre 1870 e 1914. A beleza da arte desta época, o cavalheirismo, as boas maneiras, a nobreza da orquestra que toca até no caos, o capitão que afunda com seu navio, como manda a tradição, a prioridade dada às mulheres e crianças, também de acordo com o figurino, tudo isso se perdeu em meio aos extremos do século XX. Nas catástrofes de hoje, vale Darwin: só os fortes sobrevivem.

O Corte

Plano de conjunto: a lagoa da Pampulha

Plano médio: pessoas mascaradas dançam

Plano americano: um dos mascarados se revela e grita: por que não um plano Cristo? Uma moeda Cristo?

Primeiríssimo plano: uma das figuras grita, imitando o quadro de Munch.

Plano médio: os três mascarados erguem tesouras e facas e simulam o corte dos painéis na Fafich e na prefeitura.

Primeiro plano ou plano conjunto: trem fantasma do Mangueiras.

Plano médio: mascarado simula cortar o painel da prefeitura da UFMG

Cenas do interior do trem fantasma

Primeiro plano ou plano detalhe: mascarado se mostra e fica cortando imagens dos estudantes do Borges. Repete: Borges Herzegovina, do neoclássico ao neohippie! Recita trechos desconexos do texto. Corta o texto também, por fim.

Figura fantasiada avança para o primeiro plano, brandindo a nota de um real, ameaçando cortar a câmera: quando eu filmar a odisseya, convidarei o professor Fernando Henrique Cardoso para o papel de sedutor, embora não saiba se o pryncype topa contracenar nu com Ariadne no labyrynto do Cebrap.

Mascarado simular cortar o painel de Portinari na reitoria. Música: Villa-Lobos.

Tesoura em close, perto de uma flor, cortando pétalas. Música de Villa-Lobos.

Tela escurece. Barulho de tesoura. Sobe um trecho da carta testamento de Getúlio Vargas.

Dois Contos

A Vida Nas Grandes Cidades Contemporâneas

Nas grandes cidades, queremos ser felizes por um tempo, por um certo tempo. Uma geração perdida no espaço. Nenhum anjo nascido no inferno podia quebrar este encanto...Eram os filhos de Marx e da Coca-Cola. E restou a nova direita, restou só a Coca-Cola. Tome suas pílulas de proteína...Este será o dia em que morri...

Os mundos não acabam, ficam sepultados uns sobre os outros. Por isso na grande cidade estão sepultados os mundos mortos. Ariel, Ucla, vamos! Tanto se foi, há pouco de novo. QVL: a carta tem o coringa, Lênin tem influências de Marx. Sinal fechado. Este será o dia em que morri. Mas não tem nada não.

Morangos mofados, “la solitudine”, uma Meca laica surge em São Francisco, hippies, depois gays & yuppies. Verei surgir o monstro da Lagoinha? O presidente era um cara liberal, pena que não pode ver mulher. O Iraque ele já pede para atacar, cuidado com a província do Kossovo. João Gilberto Noll e seu sexo a céu aberto. Cabelo ao vento, gente jovem reunida, rezando a oração do pescador do atol de Mururoa. Como era gostoso o meu Tancredo, diz o micróbio de Marte.

Quero dedilhar a lira da amada, a TV regurgita lixo. Os nenúfares de Monet em Nova York, la ville tentaculaire. Nos muros, o não-saber, o não-sentido. Vulgívaga, vulgapalavras, vulvalabras. Sexonhei la verdad tropykal, ressuscitei o soneto, Spyder picha o viaduto, eu sou uma equação que a caixinha falante resolve no ato.

Let’s play that: “vamos brynkar de yndyo, mas c/ mocynho vencendo no final”. Estrebucha! Maga de chiclete, bruxa neomaga de consumo, pernas abertas para celebridades lúbricas, Pelé e Ayrton Senna compartilhando o sexo da vedete repleto de purpurina. Angiosperma é o esperma do anjo. O crioulo do Grapete não liga para a chacrete. Cuidado com a província do Kossovo, é a caixinha falante ruminando lixo e arrotando luxo.

Vale-tudo: ofidosofia? Palavra-valise: sub-urbe tola, doente e cretina. “É preciso evitar Mallarmé!”, dizia Mário de Andrade. Entre o nô & o pornô: Estrebucha entreabre as pernas, deixando ver a úmida xoxota. Diz Duchamp: você já enfiou a medula da espada no aquecedor da amada? Cho-cho-que. No(é) do pingo d’água. A falência da falycydade. Abuse & use, bullshit or not, komunystas mais ortodoxos que o rótulo da Maizena têm 88 militantes dispersos em Minas, e Minas é maior que a França. Yes, it is, it’s true. Ah, como é bom jogar pingue-pongue com o abismo!

Sol Pedra Rocha na Taba do Chefe Branco

(Ou A Vida nas Grandes Cidades Contemporâneas)

Sol Pedra Rocha viera a Brasília para o dia dele. A taba do chefe branco era a taba que mais queria ver. Sol queria gritar para chefe branco ouvir, levantar papel para os caciques dos brancos verem.

-Brasília-disse Sol-é que nem o céu, tem umas estrelas que desceram, uns ouriços espinhudos brilhantes, e cada oca é muito longe da outra.

Sol se hospedou com outros índios numa oca muito apertada. Não ficava lá não, saía para outras ocas onde se podia trocar papel colorido pelo cauim dos brancos. O cauim dos brancos era uma bebida que faz a gente ficar pisando nas nuvens, como se não tivesse problema nenhum. As ocas que chamavam “bar” tinham sempre muitos brancos em roda tomando o cauim deles.

Tinha também a oca barulhenta, tinha lá uns tambores zumbindo que nem abelha, que faziam as brancas balançar. Sol saiu para a oca barulhenta com outro índio, o Tibiqüera, e disse para ele, quando saíam:

-Branco gosta demais dar conta do xacundum, e o zum-zum deixa a gente surdo.

-Amanhã a gente volta? As brancas ficam aí... Disse o danado do Tibiqüera.

-Não volto na oca-boate mais não.

Sol gostava de Brasília às vezes sim, às vezes não. Um chefe branco tirou Brasília do chão, disseram para ele. Ali tinha rio de leite e mel, e os brancos escolheram e um chefe branco tirou dali uma cidade inteira, como se fosse de dentro da pedra. Uns dizem que teve de lavar a pedra com o sangue dos brancos, só assim a cidade ficou pronta. Neste dia rezaram missa, imitando o dia em que branco chegou aqui no Brasil, que antes o índio chamava de Pindorama. Índio achou que branco era fantasma, no tempo dos quinhentos.

-Aqui na taba de branco tem umas onças-pintadas bravas, passam por cima de índio, de branco, de todo mundo. Passam por cima e matam mesmo.

-Não é onça não-disse Tibiqüera-é carro.

-Chefe branco não acaba com as carronças, um chefe branco falou que ia acabar, mas aí ele roubou e tiraram ele.

-Você está fazendo confusão-replicou Tibiqüera.

Sol achava as máquinas dos brancos cheias de ziquizira. Tinha uma que, se o branco batesse nas conchinhas brancas com risco preto, caracol abria a boca e cuspia papel colorido, com cara de cunhã pintadinha que era uma beleza, e branco fazia festa comprando uns troços bonitos e umas gostosuras com o papel. Sol tentou tirar papel, custou a passar pela água dura, transparente, fincada na entrada da oca. Sol não conseguiu que o caracol abrisse a boca pr’ele não.

As cunhãs brancas, as filhas da mandioca eram bonitas mas usavam uns uluris que tapavam tudo. Sol pedia para ver, elas não deixavam, davam uns gritos e chamavam os brancos guerreiros; Sol tinha medo do tacape e da cana de guspir fogo que tinham os guerreiros brancos e sumia rápido.

Sol gostava de apreciar umas ocas que tinham papel colorido e folha cheia de pintinha preta. Tinha, nestas ocas pequetitinhas, muito branco pintado na folha, mas branco assim sem uluri nem nada, com tudo de fora. Sol ficava vendo as brancas sem nada, já que as de verdade não conseguia pegar. E tinha folha com branco fazendo.

-Branco que não faz-disse Tibiqüera para Sol-quer ver os outros fazer.

Sol achava difícil, era engraçado que branco na rua usava pena, cocar, uluri, tudo quanto é enfeite. Ainda por cima, nas folhas pintadas, branco fazia de tudo, tinha branco atrás de branca, fazendo, e tinha branco atrás de branco, fazendo também.

Naquele dia, quando Sol cansou de olhar as ocas-bancas, queria voltar para a oca, Tibiqüera tinha tomado cauim-cachaça e voltado, e Sol viu que Jaci, que os brancos chamavam de lua, e diziam que já tinham pisado nela, estava lá no alto. Os caixotins dos brancos quase encostavam a testa lá em Jaci. E tampavam a luz. Já não tinha mais branco na rua. Quando Sol achou a oca, custou, e a oca já tinha fechado. Sol rodopiou, gritou, tinha jeito não. Então arrumou pano e deitou entre umas ocas e outras, no lugar onde os brancos plantavam flor e árvore.

Daí chegaram uns curumins brancos em cima da onça-carro, e de dentro dela saía um canto barulhento, um xacundum que nem na oca-boate. Os curumins eram que nem Anhanga, que nem o Caapora, jogaram agüinha nele. Sol acordou e xingou os curumins, chamou eles de galegos-de-água-doce, mandou eles irem embora. Eles não foram e ficaram rindo. Um acendeu um foguinho na madeira e jogou, a agüinha pegou fogo. Sol virou um fogaréu danado. Tupã levou a alma do índio embora, teve jeito não.

Aí, no dia seguinte, as folhas coloridas e pintadinhas falaram. Todo mundo ficou com cara de quem chupou fruta verde, em Brasília. Os brancos guerreiros pegaram a onça e os curumins sem coração. Chefe branco ficou sabendo de Sol, mas só aí, tinha jeito mais não. Os brancos falaram na máquina, chefe branco falou bravo para os brancos, mas com os curumins brancos não fizeram nada, soltaram de novo os coisinha-ruim. Branco logo esqueceu tudo, a máquina de branco brilha, pisca e vira, e então branco esquece. A cabeça de branco é rasinha, eles esquecem depois não pensam mais não.

Ulisses, o Rei de Dyvynopolys

O rei Ulisses saiu de Dyvynopolys amaldiçoado pela Vênus Platinada. A deusa estava com inveja da felicidade do casal real divinopolitano; a Vênus encantou Penélope Charmosa, esposa de Ulysses, aprisionando-a dentro da TV, onde ficava girando eternamente numa corrida de fórmula 1. Desesperado, banido pela deusa, Ulisses saiu pelo oeste de Minas em busca do santuário da deusa, onde faria sacrifícios para satisfazê-la.

Ao chegar à cidade vizinha de Arcos, Ulisses procurou o santuário da deusa, mas se deparou com uma caverna. Ao adentrá-la começou a escutar os terríveis versos: “Suga a energia do planeta baixo astral!” Em meio a duendes estava Xuxirce, gritando e dançando sem parar. Ulisses tirou sua espada e interpelou a bruxa:

--Xuxirce, como vou tirar Penélope Charmosa da TV?

Sem responder, Xuxirce começou a tirar a roupa. Ulisses, tentado, viu os seios túrgidos e a penugem loira de seu sexo. Ao amanhecer na cama de Xuxirce, Ulisses a deixou e partiu para Pompéu. Xuxirce, furiosa, enviou uma nuvem de mosquitos da dengue para perseguir Ulisses na viagem.

Ao chegar em Pompéu, Ulisses viu que a cidade estava decadente, vivendo seus últimos dias. Resolveu procurar o tirano que era o causador daquilo tudo. Ao entrar em seu palácio, Ciclopelé se mostrou impaciente, pois Guilherme não conseguira fazer o centésimo gol no último jogo do Atlético Mineiro.

--Ele até foi substituído! Lamentou Ciclopelé com Ulisses, enquanto o som torturante berrava, na máxima altura, um verso de uma canção bizarra que dizia como refrão: “só não pode acabar com as muié/Nós é doido com muié/Nós não vive sem muié”.

Ulisses, que detestava futebol, na mesma hora furou o olho do Ciclopelé, que deixou cair a toalha e foi para o vestuário. A seguir, roubou um dos carros importados do tirano e saiu da cidade aplaudido pelo povo, mas perseguido pelos guardiões do palácio de Ciclopelé: Romaryo e Daryo. Já no meio da BR, Ulisses se lembrou que não sabia dirigir. Parou o carro e foi cercado por Romaryo e Daryo. Vendido como escravo em Luz, uma cidade próxima, Ulisses conseguiu que o filósofo mais famoso do local, seu amigo Andrius Filipus, o comprasse e soltasse. Andrius em seguida consultou o oráculo e disse a Ulisses que o santuário da Vênus estava no Botanyk Garden, numa cidade distante chamada Ryo de Janeyro. Andrius também recebeu da pitonisa a seguinte frase: “No futuro, todo mundo será Che Guevara por quinze minutos”. Andrius aconselhou Ulisses a retornar a Dyvynopolys. Ao pegar o ônibus, Ulisses bateu palmas para matar os mosquitos da dengue que insistiam em persegui-lo. Esse gesto fez sangrar um mosquito e desencantar a deusa Calypso Myranda. Ela dançou cantando com uma fruteira na cabeça, e Ulisses chorou, saudoso dos tempos em que vivia feliz com Penélope Charmosa.

Ao chegar a Dyvynopolys, Ulisses comprou um revólver e atirou na primeira TV que viu. E repetiu o gesto com todas as TVs da cidade, evitando assim ver Penélope Charmosa em seus eternos giros na corrida maluca e fazendo o sacrifício das TVs para a deusa. Acidentalmente, Ulisses atirou também na TV de Nerykus, filósofo e vice-rei de Dyvynopolis. Assim, Nerykuys pôs fogo em Dyvynopolys, para desespero de Ulisses, enquanto cantava uma canção de Bob Dylan:

Às vezes você tem que fazer como Elvis fez

Dar tiro na TV, acabar com tudo de uma vez.

Por Uma Crítica da Perdição

Por Uma Crítica da Perdição

Introdução

Que fim levou a crítica literária? Esta pergunta nos remete à situação das artes - e em especial da literatura - neste final do século XX. Leyla Perrone-Moisés introduz a questão: hoje, em tempos ditos pós-modernos, ela (a crítica literária) anda um pouco anêmica, reduzida ao rápido resenhismo jornalístico, necessário, mas não suficiente.1

A questão da crítica literária é colocada por Leyla Perrone-Moisés como inserida dentro de uma problemática maior, a da luta entre a cultura e a descultura pura e simples. Segundo ela, nos campi universitários, os teóricos acadêmicos modernos discutem com os acadêmicos pós-modernos, os literários com os culturalistas, os machistas com as feministas, o vale-tudo ideológico e estético prospera e aufere lucros, indiferente a qualquer teorização ou crítica. (...) As querelas acadêmicas relativas à cultura apenas refletem parte de uma luta maior, que se trava em âmbito mundial, e do resultado da qual dependem coisas fundamentais que, se formos ‘pós-modernos’, não nomearemos, já que têm a ver com metanarrativas e projetos. Coisas como os rumos da história e da espécie humana .2

Farei mais adiante uma análise do artigo A Contestação da Harmonia, publicado no número 0 da revista Orobó. O artigo entrará neste trabalho como amostra da fragilidade e do novo-riquismo da crítica nesses dias “pós-modernos”; pretendo tirar dele alguns tópicos para discussão. O artigo começa sob o signo das seguintes epígrafes:

Nada há de mais derrotado, no mundo contemporâneo, do que a poesia. Sem ‘audiência’ e sem recepção, vaga - no campo das artes e no mundo real - como um fantasma ou senha de uma seita em extinção, sem que ninguém a entenda ou organize.3

Neste momento, há a tendência de um ‘retorno à ordem’ como se dizia antigamente. Vejo que todos os setores estão em crise. Do setor filosófico ao setor literário. Vejo a tentativa de revalorizar modos de pensamento prevalentemente religiosos, que para mim são superados.4

A primeira parte do artigo é uma introdução deslocada que discute a relação computador/poeta no mundo atual, citando muitos autores. Deixando de lado esse coquetel teórico, parto diretamente para a discussão do segmento seguinte.

Apesar de Dependente...

Anelito frisa, num segmento logo adiante, a necessidade de Oswald, e elogia a ruptura de 22:

O grande salto dos modernistas de 22 foi justamente no sentido de romper de vez com esse impasse - que nunca teve sentido - entre arte e realidade brasileira (...). Nunca é demais lembrar que o método utilizado tradicionalmente para se pensar a cultura brasileira - contra o qual Oswald foi o primeiro a se voltar radicalmente - é europeucentrista.5

Aqui, Anelito parece ignorar que o modernismo foi a eclosão de um novo modo de interpretar o Brasil, incluindo o folclore, a negritude, a cultura popular, aspectos até então abordados marginalmente por Lima Barreto, Graça Aranha e Sílvio Romero, e que ficam então no proscênio. Seu intento era colocar São Paulo em contato com as vanguardas estéticas, introduzindo-as em nosso país, elaborando uma teoria singular para poder incorporar as suas criações dentro de um movimento universal. Oswald, no entanto, representa um marco no modernismo, e em sua riqueza pode ser reinterpretado, como faz Eliana Lourenço: É dessa canibalização da língua e da cultura estrangeira que o “mau selvagem” vai tirar sua força: apropria-se de uma “língua maior” para produzir uma “literatura menor” no sentido dado por Deleuze e Guattari; recolhe no acervo das culturas os textos que lhe agradam, desterritorializando-os para dotá-los de novas significações.6

O escritor Silviano Santiago, que também atua como crítico de renome internacional, adotou no artigo Apesar de Dependente, Universal uma posição que julgo próxima da Antropofagia e do concretismo. Desejando escapar às dicotomias localismo versus cosmopolitismo, particular versus universal, negou tanto o nacionalismo brasileiro quanto a sofisticada defesa de idéias estrangeiras, pretendendo adotar uma posição intermediária.

O abandono do nacionalismo é aconselhado pelo crítico e escritor mineiro para que possamos superar a erudição onomástica, o “enciclopedismo europeocêntrico” que assola nossa produção cultural de país dependente. A explicação para a construção de nós mesmos surge através do conceito de entre-lugar, inventado por Santiago em 1969: nem cartilha populista, nem folclore curupira - eis as polarizações que devem ser evitadas a bem de um socialismo democrático. Nem o paternalismo, nem o imobilismo.7 Santiago repudia simultaneamente o nacionalismo trabalhista (de Vargas, Brizola, Jango, Arraes) e o nacionalismo verde-amarelo (de Plínio Salgado, Cassiano Ricardo e Menotti Del Picchia), que Santiago analisa como duas posturas opostas mas igualmente equivocadas. O nacionalismo trabalhista culpava os estrangeiros pelos males nacionais, negando a luta de classes que se processa dentro do Brasil subdesenvolvido. Já o verde-amarelismo era um nacionalismo católico, messiânico e patriarcal, que propunha um Brasil “com palmeira e sem luta de classes”. Santiago combateu o nacionalismo de qualquer coloração política, medida que, aparentemente, o crítico via (e provavelmente ainda vê) como essencial para efetivar nossa modernização. O nacionalismo lhe parece sempre escamotear a dívida para com as culturas dominantes, tendendo a negar a dependência. Creio que o essencial a ser notado, no trecho de Silviano Santiago acima citado, é a dissociação do nacionalismo e do marxismo que fazia parte de seu receituário, enquanto o cerne da questão se deslocava para a dicotomia centro versus periferia. A reviravolta que Silviano Santiago faz é uma afirmação do artista periférico:

Subversão esta que não é um jogo gratuito de cunho nacionalista estreito, tipo integralismo dos anos 30, mas compreensão de que, apesar de se produzir uma obra culturalmente dependente, pode-se dar o salto por cima das imitações e das teses enciclopédicas etnocêntricas e contribuir com algo original.8

Aparentemente, Silviano Santiago desejava naquele ano de 1969 constatar a “morte do populismo”, em termos semelhantes aos que Caetano Veloso usa quando se refere àquele período em depoimento recente: o golpe no populismo de esquerda liberava a mente para enquadrar o Brasil numa perspectiva ampla, permitindo miradas críticas de natureza antropológica, mítica, mística, formalista e moral com que nem se sonhava.9

Tentando aproximar-se das idéias de Silviano Santiago e do tropicalismo, Anelito considera que o pensamento latino-americano deve ser barroco, ou seja, dentro dele podem conviver autocontradições oportunistas: Chacrinha pode se misturar com Ezra Pound, o mau-gosto pode conviver com a erudição:

Marca, no Brasil, de uma verdadeira necessidade da desarmonia para continuar suportando a vida neste continente, vida esta comumente miserável em quase todos os países, é o carnaval grandioso do Rio de Janeiro a poucos metros das grandiosas favelas, a alegria imensa dos baianos sob a pobreza assustadora do nordeste, enfim, essa eterna convivência entre o mais feio e o mais belo, o luxo das novelas da Globo e o lixo da realidade social.10

Essa dicotomia, esses contrastes que observamos no Brasil não são no texto acima mostrados como fruto de um processo histórico, e aparecem em outros contextos pela América Latina afora, não são inexplicáveis o Brasil não é a pátria do absurdo e do nonsense, ao contrário do que pensa Anelito, que desconhece o processo histórico global que está em curso.

Embora o pensamento de Oswald pareça ter uma ambivalência significativa, Eliana Lourenço esclarece: É na idéia do bárbaro ou do selvagem que Oswald opera uma reversão da imagem européia, invertendo-lhe os valores, numa reação em que entram amor e ódio, homenagem e dessacralização. O ‘bárbaro tecnicizado’ mantêm sua rebeldia inata ao rejeitar toda forma de catequização, mas absorve ‘o inimigo sacro’, isto é, pratica uma antropofagia eletiva, ao mesmo tempo vingança e homenagem: ‘uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o jabuti’ (...). Isto é, o traço que nos une seria a bulimia, a violência, a “reação contra” à maneira do trickster jabuti (...) Mais ainda, o marco zero da cultura brasileira estaria na ‘deglutição do bispo Sardinha’, ou seja, no primeiro ato de apropriação agressiva da civilização européia.11

Os autores concretistas e tropicalistas brasileiros se apropriaram da tradição ocidental, e a tomaram para criar novas tradições, incorporando suas criações dentro de um processo universal: O produssumo, como o definiu Décio Pignatari: a poética de invenção no consumo de massa, para além do ceticismo adorniano...12

Cumpre refletir sobre a produção que resultou e sobre os desdobramentos desse processo no Brasil. Caetano mantêm uma curiosa discussão com o psicanalista italiano Contardo Calligaris sobre o projeto antropofágico-oswaldiano. Cumpre refletir sobre a produção que resultou e sobre os desdobramentos desse processo no Brasil:

O psicanalista italiano Contardo Calligaris escreveu, no início dos anos 90, um livro sobre o Brasil que coloca a questão da antropofagia cultural, que ele encontrou disseminada nos meios psicanalíticos brasileiros, como um mito que, além de nocivo, é sintoma de nossa doença congênita de não-filiação, da ausência de um ‘nome do pai brasileiro’, da falta de um ‘significante nacional brasileiro’. (...) Trazer de volta – como ele fez – ao meramente orgânico o ato antropofágico ritual que Oswald emprestava dos índios, (comer partes do corpo do inimigo admirado para adquirir-lhe a bravura, a destreza e as virtudes morais) como receita de um comportamento criativo em tudo diferente do que freqüentemente se faz no Brasil (...) era forçar a mão para, numa sanha diagnosticadora, meter num mesmo saco a mediocridade dos misturadores de informações mal assimiladas e o gesto audaz de um grande poeta. (...) O ‘antropofagismo’, como Calligaris prefere, teria surgido como solução para esse problema. E é por ele criticado duramente por substituir pelo tubo digestivo (que todos sabem onde vai dar...) o UM que o Brasil nunca conseguiu se fazer. E essa substituição, afinal, seria uma sugestão do colonizador ao colono no sentido de tomar como UM nacional o corpo escravo que se oferece: o Brasil seria assim exótico não só para os turistas como também para os brasileiros.13

Modernidade e Cânone

Anelito tematiza, no segmento seguinte, que se intitula “o tempo dos contrários”, a própria Modernidade:

Antes da modernidade, o tempo era concebido como uma estrutura linear, formada por passado, presente e futuro. Era um tempo sistematizado a partir de uma visão linear sobre a história, fundamentada no historicismo hegeliano, o qual se contentava em ‘estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história’, como disse Walter Benjamim.14

O conceito de modernidade utilizado no parágrafo acima é questionável se avaliarmos que o pensamento hegeliano, datado do início do século XIX, consolida-se como a grande realização do projeto do racionalismo e do iluminismo. Hegel é contemporâneo da revolução francesa e das guerras napoleônicas. A revolução francesa é o marco da Idade Moderna para o âmbito político, econômico, jurídico, e outros, mas Hegel é o marco da modernidade filosófica. Formulações hegelianas, como “o real é racional e o racional é real”, mostram o teor de seu pensamento. Fazendo uma crítica defasada e confundindo moderno e pós-moderno, Anelito adere ao irracionalismo:

Na Modernidade, não tem sentido a linearidade, a coerência, a pureza, enfim, todo o bom senso cartesiano, totalmente europeucentrista. Os ‘agoras’, instantes sempre diferentes, fazem da Modernidade um momento, estrutura movente, em constante transformação, ‘constelação’. Então, pode-se pensar na Modernidade como momento de diferenças porque, naturalmente, as ‘estrelas’ dessa constelação, os dados, são sempre diferentes.15

O panorama que vemos é nebuloso, o conceito de pós-moderno, escorregadio, mas com certeza a modernidade, se a identificarmos com o projeto racionalista/iluminista, está em xeque nos dias atuais. Octavio Paz, citado pelo próprio Anelito, define que “hoje assistimos ao crepúsculo da estética da mudança” e “a Modernidade está ferida de morte: o sol do progresso desaparece no horizonte e ainda não vislumbramos a nova estrela intelectual que há de guiar os homens”. O ensaísta niilista, no entanto, encontra nesta posição de Paz uma visão finalista da história, e julga que Paz é moderno e contraditório nas suas definições:

Há uma clara contradição no fundo desta visão de Paz que faz com que ela soe ainda mais instigante. Esta contradição advém de um tratamento da Modernidade como algo pertencente ao passado (“a Modernidade se identificou com a mudança”). Em seguida, até mesmo em decorrência da colocação da Modernidade no passado, advém um olhar finalista, portanto historicista, sobre a Modernidade (“Hoje assistimos ao crepúsculo da estética da mudança”) (...). Analogicamente, isto pode significar uma tentativa de recuperação da harmonia com a qual a Modernidade rompeu.(...) Prova-conforto: ainda estamos no espaço da Modernidade.16

Minha conclusão é a seguinte: embora existam noções diferenciadas de pós-moderno (os europeus o usam se referindo a tudo que ocorreu depois das grandes guerras), é melhor utilizar o termo do que avaliar que o momento atual ainda é o da modernidade. Melhor dizer que o projeto modernista permaneceu inconcluso, e gente como Anelito pretende preencher os interstícios com formas culturais de origem norte-americana. No segmento seguinte, Anelito procura criticar, via Octavio Paz, o conceito de pós-modernismo:

Vê-se, (segundo a visão de Paz), portanto, que pós-modernismo não passa de mais uma estratégia discursiva que pensadores anglo-americanos colocam em prática atualmente para se manterem no poder, determinando padrões estéticos para o resto do mundo. A ignorância da antecipação do modernismo em língua espanhola não é gratuita, mas proposital, sendo, portanto, uma decisão política, uma conseqüência do ‘etnocentrismo’. Anglo-americanos querem institucionalizar a história deste século, através de todos os meios, como sempre fizeram: eles entre eles sobre eles como eles para eles. Não lhes interessa o que se passou em outros lugares do mundo simplesmente porque esses lugares não existem, não podem existir realmente, devem ser ficções. Muitos insistem em enxergar esta verdade talvez com medo de se indispor com o ‘pai’ - os Estados Unidos. Duas posturas críticas - uma no plano da literatura e outro no da filosofia - revelam a face imperialista de norte-americanos neste fim-de-século, a ‘arrogância cultural’ e ‘insensibilidade histórica’ de que fala Paz. A primeira é de Harold Bloom, exposta com precisão no seu O Cânone Ocidental (trad. Marcos Santarrita, RJ, Objetiva, 1995). A segunda é de Francis Fukuyama, exposta no seu O Fim da História e o Último Homem17

Aqui vale a pena anotar: Fukuyama é de origem nipônica, Bloom é de origem judaica. Os dois falam a partir de um ponto de vista norte-americano, mas suas ideologias também são diferentes: Bloom é liberal e religioso; Fukuyama prescreve que já que aconteceu a vitória da democracia liberal ocidental, esta seria “o ponto final da evolução ideológica da humanidade”. É um político com formação filosófica embasada em Hegel e Kojève. Bloom se aproxima do esteticismo de Oscar Wilde, e do liberalismo de Emerson; Fukuyama não tem a arte como preocupação evidente. Atacando tanto Hegel quanto o conceito de pós-moderno, colocando-se numa posição comodamente confusa, o pretenso “ensaísta” prossegue:

A visão de Bloom e Fukuyama é enraizada no historicismo, o que os leva a reclamar uma ordenação das coisas, uma disciplina, uma acomodação, uma harmonia, portanto. Ambos se colocam na retaguarda da Modernidade: o lugar do discurso de Bloom é o cristianismo, enquanto o de Fukuyama é a filosofia hegeliana - todos os dois totalmente ‘enterrados’ nas crenças fundadoras da civilização ocidental.18

Bloom é liberal norte-americano, preocupado em ser “sacerdote do estético”. Fukuyama propõe uma fusão inegavelmente original entre as idéias de Hegel e Kojève:

De Hegel (Fukuyama) aproveitou dois elementos: o constitucionalismo da Rechtsphilosophie - que, como vimos, pode ser corretamente denominado o liberalismo de Hegel; e o otimismo de sua concepção do próprio fim, como a concretização da liberdade na Terra. O primeiro destes elementos foi sempre estranho a Kojève, para quem o liberalismo - político ou econômico - era uma relíquia do passado. O segundo animou a interpretação original de Kojève do seu tempo, quando procurou uma estrada socialista para o domínio da liberdade mas a abandonou, trocando-a pela ironia de sua visão final da expansão do capitalismo. De Kojève, por outro lado, Fukuyama tomou o sentido da centralidade do hedonismo do moderno consumo, e da caducidade da significação tradicional do Estado nacional -- temas inteiramente ausentes em Hegel. A síntese resultante é original, reunindo a democracia liberal e a prosperidade capitalista num enfático nó terminal.19

Os dois pensadores, portanto, têm interesses políticos diversos. A minha crítica a Bloom passa por um viés diferente do irresponsavelmente adotado por Anelito. Bloom nega ser nacionalista, embora seu livro seja marcado por um certo dirigismo que o leva sempre a voltar às culturas anglo-saxônicas. Em tese, porém, recusa tanto o etnocentrismo quanto o nacionalismo: “A defesa do Cânone Ocidental não é de modo algum uma defesa do Ocidente ou uma empresa nacionalista”.20

Igualmente nem é apocalíptico, não segue as idéias dos pensadores da Escola de Frankfurt nem é marxista, não aprofunda conceitos de cultura de massa nem de indústria cultural. Apega-se ao liberalismo, exerce sua liberdade de expressão, opina, demonstra preferências pessoais, acusa os adversários de formarem uma “Escola do Ressentimento”. Mais adiante, comenta que muitos dos pensadores desta “Escola” foram seus alunos; logo, podemos supor que Bloom também escreve o Cânone Ocidental movido pelo ressentimento contra seus ex-alunos, que o contrariaram, que distorceram a lição.

Suponho também que a mesma crença no liberalismo que possui Harold Bloom foi reformulada pela vertente multiculturalista. O fato de que seus ex-alunos fazem desdobramentos das mesmas idéias liberais desagradou profundamente Bloom, liberal e religioso ao mesmo tempo.

O objetivo de Bloom é atingir seus ex-alunos, contrapor-se a eles e aos que os consagraram na mídia. Ele demarca o território e começa o ataque:

A crítica literária é uma arte antiga, seu inventor, segundo Bruno Sell, foi Aristófanes, e inclino-me a concordar com Heinrich Heine em que ‘houve um Deus, e chamava-se Aristófanes’. A crítica cultural é mais uma triste ciência social, mas a crítica literária, como uma arte, sempre foi e sempre será um fenômeno elitista.(...) O que mais me interessa é a fuga ao estético entre tantos de minha profissão, alguns dos quais pelo menos começaram com a capacidade de sentir o valor estético.(...) Por baixo da superfície de marxismo, feminismo e neo-historicismo acadêmicos, continua a correr a antiga polêmica do platonismo e a igualmente arcaica medicina social aristotélica.21

A esses argumentos de Bloom, Anelito responde o seguinte:

Tudo o que era demasiadamente velho - e por isto mesmo recebeu um ‘basta’ da Modernidade - volta no mesmo discurso de Harold Bloom: a preocupação com o que o outro vai ler, como se ler fosse uma obrigação de todos; a preocupação com o passar do tempo (“tão tarde na história”); o pessimismo em relação ao futuro, estimulado pelo Apocalipse; a defesa do purismo poético; a filiação clássica via Dante; o nacionalismo e, finalmente, a inquietação em torno da idéia de morte. Desta forma, Bloom se coloca totalmente fora da Modernidade, foge em direção ao passado em busca da ordem perdida, aquela coerente com a condição de potência econômica dos Estados Unidos e de potência cultural da língua inglesa. O fundamento desta visão finalista aparece na ressistematização da tese do fim da história por Fukuyama. Claro que os bloomianistas não concordam com esta afirmação; provavelmente diriam que ‘isso reduz o estético a ideologia’. Não penso que ‘reduz’ porque todo estético é irredutível a ideologia, já que ideologia é uma negação do pensamento instituído, da ‘língua dominante no tempo e lugar do artista’; não há estético sem ‘essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem’, para dizer com Roland Barthes (Aula, trad. Leyla Perrone-Moisés, SP, Cultrix, 1992, p. 16). O estético já é, portanto, uma espécie de ideologia, no sentido de ser parcialmente determinado por um mal-estar na história e incorporar uma inquietação que é política, uma vontade de tensionar vozes para destruir a Verdade instituída(...). Ideologia de uma contra-ideologia que luta pela ‘subversão de toda ideologia’, eis o texto, eis o estético.22

Dito isso, Anelito se alinha na dita “estética da mudança”, apresentando também exigências ideológicas, estabelecendo como único critério suficiente para a aprovação do estético a ruptura com o instituído. O que “Alienito” define como sendo aquilo com que a modernidade rompeu, no fim das contas, é a própria modernidade –é ele próprio um irracionalista que rompeu com a brasilidade, a tradição enquanto história dos estilos, e quem sabe até com Afonso Ávila.

Prefiro criticar The Western Canon por um viés menos violento do que o de uma contra-ideologia que visaria, pelo que foi dito acima, uma atitude semelhante à proposta da contracultura.

O que incomoda em Bloom é o individualismo arrogante mesclado a uma impregnação religiosa em seus textos, a partir da palavra cânone, usada com freqüência por religiosos para definir aquilo que foi consagrado. O satírico Aristófanes é chamado de Deus, Shakespeare é capaz de iluminar quaisquer teorias contemporâneas, sejam elas o marxismo, o estruturalismo ou o neo-historicismo. Bloom acredita que Shakespeare contêm todas estas teorias, pretendendo então pensar Freud a partir de uma visão shakespeariana. Tal intento é problemático, principalmente se fixarmos que Shakespeare é um artista, não um pensador, e ele não produz conceitos como Freud. Freud, Nietzsche, Marx, Hegel e outros produzem conceitos que lhes permitem analisar a realidade. Em Freud estes conceitos seriam, por exemplo, Eros e Thanatos. Quais são os conceitos de Shakespeare? Shakespeare só produz situações que podem ser utilizadas por meio da alusão. Neste sentido, Bloom se mostra anti-historicista - e a partir desta postura se permite cometer anacronismos. Seu objetivo, ao criticar o historicismo, parece ser o de preservar o estético, criticando certas atitudes da esquerda norte-americana:

O professor Frank Lentricchia, apóstolo da mudança social através da ideologia acadêmica, conseguiu ler “Anedocte of the Jar” (“Historinha” do Jarro), de Wallace Stevens, como um poema político, um poema que expressa o programa da classe social dominante. A arte de arrumar um jarro estava, para Stevens, aliada à arte do arranjo de flores, e não vejo porque Lentricchia não deva publicar um modesto volume sobre a política do arranjo de flores, sob o título Ariel e as Flores de Nosso Clima.23

A esquerda americana (principalmente a chamada New Left), abdicou de fazer uma revolução e passou a priorizar questões como ecologia, feminismo, Gay Power, Black Power, temáticas que entraram em voga nos anos 60. Bloom toma um caso particular e critica um professor esquerdista, ironizando sua preocupação mais ideológica que estética. Mas muitas questões permanecem em aberto, diante das idéias de Bloom. Dou o seguinte exemplo: seria possível, então, fazer uma leitura machadiana de Roberto Schwarz? Machado também conteria todos literatos e críticos brasileiros posteriores? Ou Shakespeare é que conteria Machado? Está subentendido em Bloom que todas as literaturas ocidentais periféricas (inclusive a brasileira) estariam contidas no Cânone Ocidental, confirmando assim nossa situação de periferia do Ocidente. Como pensar a problemática das literaturas ocidentais periféricas? Estas questões permanecem menosprezadas, assim como Machado de Assis foi menosprezado.

Harold Bloom define, como cânone hispano-português, os seguintes autores: Borges, Neruda e Pessoa. Em seguida afirma que eles seriam desdobramentos da poética de Walt Whitman. A nós, brasileiros, Bloom desconsiderou bastante ao escolher o português Fernando Pessoa para o cânone da língua portuguesa. O que é mais suspeito e particularmente irritante é que Bloom escolhe estes autores considerando Walt Whitman como “pai simbólico” de todos. Ressalta, aliás, o fato de que Borges e Pessoa são bilíngües, falam e escrevem em inglês desde cedo, e têm sólidas ligações com o mundo anglo-saxônico.

A cultura francesa é representada no Western Canon por apenas três autores: Molière, Montaigne e Proust. Bloom demonstra antipatia pela psico-lingüística de Lacan, e relativiza a importância francesa em prol dos anglo-americanos. Bloom, embora se pretenda não-nacionalista, acaba estabelecendo um “centro”, um núcleo do Ocidente na cultura norte-americana e inglesa. As preferências que daí decorrem menosprezam a literatura brasileira, que ficou relegada a um mero apêndice da literatura portuguesa, por sua vez apenas um desdobramento da literatura norte-americana. Diante de uma análise mais rígida, emerge um componente tipicamente norte-americano: Bloom canoniza também a visão de centro do mundo que os americanos do norte têm. O fato de Harold Bloom estabelecer Fernando Pessoa como paradigma literário da língua portuguesa coloca a seguinte questão: para nossa literatura dependente, o paradigma atropela nosso autor de maior grandeza, e nos condena a sermos subsidiários de Portugal, sem nos ligarmos diretamente ao “centro” anglo-saxônico. Nossa originalidade nacional foi moldada historicamente pelo fato de termos sido colônia de um país periférico. Nossa literatura continua, do ponto de vista do cânone fixado por Bloom, dependente de uma literatura de periferia. Bloom diz de Borges o seguinte:

A avó paterna de Borges era inglesa; a biblioteca de seu pai era grande e concentrava-se em literatura inglesa. Em Borges, temos a anomalia de um escritor hispânico que leu Dom Quixote pela primeira vez em tradução inglesa, e cuja cultura literária, embora universal, permaneceu inglesa e norte-americana em sua sensibilidade mais profunda.24

Mais adiante, após comentar a recepção que teve Whitman na América Latina, comparando-o a Neruda, Borges, Paz, Vallejo, Bloom traz à baila o nome de Fernando Pessoa (1888-1935). Em seguida, emenda sua teoria:

Pessoa não era louco nem ironista; é Whitman renascido, mas um Whitman que dá nomes ao ‘eu’, ao ‘verdadeiro eu’, ao ‘eu mesmo’, e escreve maravilhosos livros de poesia por todos os três, além de um volume separado sob o nome de Walt Whitman.25

Nas linhas anteriores, Bloom mostra Pessoa como também sendo um caso anômalo:

Pessoa, nascido em Lisboa e descendente pelo lado paterno de conversos judeus, foi educado na África do Sul e, como Borges, tornou-se bilíngüe. Na verdade, até os vinte e um anos escreveu poesia apenas em inglês. Em eminência poética, equipara-se a Hart Crane, a quem se assemelha de perto, sobretudo em Mensagem, uma seqüência poética sobre a história portuguesa semelhante a Bridge (Ponte) de Crane. (...) A lição última de influência de Whitman - sobre Borges, Neruda, Paz e tantos outros - talvez seja que só uma originalidade tão ofensiva quanto a de Pessoa pode esperar contê-la sem risco para o eu ou eus poéticos.26

Mas melhor a anomalia portuguesa do que a completa marginalidade a que relegou o Brasil o cânone norte-americano. Bem diversa é a opinião de Salman Rushdie, que considera Machado de Assis um de seus antecessores:

I stress this is only one of many possible strategies. But we are inescapably international writers at a time when the novel has never been more international form (a writer like Borges speaks of the influence of Robert Louis Stevenson on his work; Heinrich Böll acknowledges the influence of Irish literature; cross-pollination is everywhere); and it is perhaps one of the more pleasant freedoms of the literary migrant to be able to choose his parents. My own - selected half consciously, half not - include Gogol, Cervantes, Kafka, Melville, Machado de Assis; a polyglot family tree, against which I measure myself, and to which I would be honoured to belong.27

A polarização que se deu entre Harold Bloom e os multiculturalistas após o lançamento do Western Canon teve repercussões internacionais. Haroldo Bloom foi também criticado no Brasil, mas não por marginalizar a literatura do país, como acima observei. Bloom é um prato cheio para multiculturalistas e feministas, por ter posições que Leyla Perrone-Moisés define da seguinte maneira:

Na defesa do cânone e da tradição ocidentais, Bloom mistura atitudes conservadora-reacionárias com atitudes resistentes, argumentos de caráter universal e opiniões arrogantemente individuais. Sua postura é apocalíptica: “Tudo desmoronou, o centro não resistiu, e a pura e simples anarquia se desencadeia sobre o que antes se chamava ‘mundo culto’ ” (p.11) . Os Estados Unidos, para ele, são um ‘país ocupado’ por feministas e multiculturalistas (p.24). Por aí já se vê o teor de sua diatribe. Mas ele procura resguardar-se das possíveis acusações, colocando-se numa aparente posição neutra: ‘Eu não me preocupo com o atual debate entre defensores direitistas do Cânone por seus supostos (e inexistentes) valores morais, e a rede acadêmica que apelidei de Escola do Ressentimento, que deseja derrubar o Cânone para promover seus supostos (e inexistentes) programas de transformação social. (p.13) . Ora, o livro todo prova que ele se preocupa, e muito.28

Já a análise de Marcelo Coelho, articulista da Folha de São Paulo, ressalta o individualismo exacerbado de Harold Bloom e a arbitrariedade de seu cânone. O jornalista e crítico arrisca uma interpretação: Bloom é um personagem de si mesmo, esta é a sua maior vitória em termos de valor estético:

Trata-se de um ‘cânone’ altamente arbitrário, portanto. Acontece que Bloom é um individualista ferrenho, um emersoniano dos mais azedos. A escolha subjetiva é tudo, desde que a pessoa a fazer as escolhas seja ‘forte’, como ele gosta de dizer. Se fui arbitrário, se escolhi uns e não outros, pouco importa, pois quem está escolhendo sou eu. Muito bem, se o autor estivesse publicando uma coletânea de ensaios, do gênero ‘my favourite authors’. Só que o livro de Bloom se apresenta como um ‘cânon’ – mais o ‘Cânon de Bloom’ do que o ‘Cânon Ocidental’, como vimos – e, além disso, como uma História da Literatura. (...) Desde ‘A Angústia da Influência’ (Imago), seu mais poderoso livro, Bloom descobriu um método genial de fazer crítica literária. A obra de um poeta tem como assunto, na verdade, a obra de um antecessor. Cada autor ‘forte’ está envolvido num conflito com a tradição. É uma perspectiva iluminadora, em especial se levarmos em conta os hábitos da crítica literária americana anterior a Bloom. Predominava o interesse pelo ‘texto em si’ (...). Bloom contestou violentamente este método. Não existem textos, só personalidades autorais em conflito, e entre elas, acima de tudo, a nossa própria personalidade. (...) ‘O Cânone Ocidental’ mostra o poder estético de um autor não apenas como o poder de reagir a obras anteriores, mas também como o poder de criar realidades, ou melhor, personagens ou problemas, incontornáveis para as gerações seguintes. (...) E, nesse sentido, talvez este livro de Bloom tenha conseguido um êxito estético, segundo seus próprios parâmetros. Criou, mais do que nunca, um personagem literário: o próprio Bloom, que aparece como uma mistura de Rei Lear, traído pelos discípulos de esquerda, e de Falstaff, hedonista sarcástico (...). Não há textos; só há uma personalidade neste livro, e é uma personagem fictícia, a de um rabugento Dr. Johnson, de um Jó desgraçado, de um Dom Quixote acadêmico, de um Whitman pessimista, ou qualquer outra coisa.

O importante para a crítica literária brasileira é avaliar, então, o cânone estabelecido por Harold Bloom apenas como uma escolha pessoal, centrada no mundo literário anglo-saxônico. Trata-se do cânone de Bloom, de maneira alguma o “cânone ocidental”.

Considerações Finais

Para finalizar, subscrevo alguns trechos publicados no jornal literário Blau, de Porto Alegre:

Nos dias de hoje, quer dizer, depois de 1970, mais ou menos, há uma grita generalizada dos autores com a crítica literária de jornal no Brasil. Falta espaço, os críticos são incompetentes, não têm delicadeza, etc., por aí. Verdade? Em termos bem amplos, sim. De fato, a literatura tem hoje menos espaço na imprensa do que já teve. Até os anos 60, cada jornal que quisesse ser jornal tinha lá seus críticos, seus colaboradores, seus suplementos, que gastavam grandes quantidades de papel para tecer comentários sobre romances, poesias, contos. Mas aí é preciso relativizar a coisa para o contexto: também a literatura tinha outro lugar no mundo. Imagine que não havia computador, Internet, tevê a cabo, vídeo caseiro, sequer redes nacionais de tevê; e as camadas ilustradas, diferentemente de hoje, encontravam na literatura não só o lazer, que hoje migrou para outros meios, como também um fator de conhecimento do mundo.30

O trecho do professor Fischer acima citado resume uma das razões que levaram ao sumiço da crítica literária: a perda de status social da cultura humanística, com o subseqüente deslocamento da literatura de sua posição anterior para uma mais retraída e modesta. Outro autor se inclina sobre o mesmo tema, com uma perspectiva diferente:

A crítica literária brasileira encontra-se em estado de catalepsia. O tempo dos escritores parece condenado, não o dos livros. Assim como as estrelas de hoje são as top-models, paradigmas da aparência em oposição ao conteúdo, que até podem possuir sem precisar demonstrar, os autores admirados e disputados pelas editoras brasileiras são cada vez menos os profissionais da prosa literária e cada vez mais as celebridades: humoristas e apresentadores de programas de televisão, atores, cantores, compositores de música popular e jornalistas. Gente conhecida e com espaço garantido de divulgação. (...) A mídia, que raramente se autodenuncia, tornou-se cúmplice da penúria intelectual e das fórmulas fáceis em literatura. Práticas desta época em que pensador é o Gabriel. Os gurus da era diet fazem os seguidores sentirem-se brilhantes graças à utilização de recursos estilísticos que simulam complexidade ao alcance de mentes esquálidas. E viram gênios da classe média. (...) Até quando os leitores terão de suportar o duelo entre os vendedores de gadgets e os filhos da sínquise? Precisa-se, com urgência, de uma crítica da perdição.31

A crítica literária no Brasil, me parece, ficou limitada a um nicho, restrita a um segmento do público. Tentei neste trabalho esboçar alguns tópicos importantes para a prática da crítica literária (modernidade e pós-modernidade, herança antropofágico-oswaldiana, discussão do cânone ocidental). Concluo concordando com o professor Fischer: é necessária uma crítica que enfrente as celebridades da mídia, que apelam ao consenso com obras medianas, e também aos eruditos esteréis.

Notas:

1. Perrone-Moysés, Leila.1996. Folha de São Paulo.

2. Perrone-Moisés, Leyla. Altas Literaturas, 1998. p.203.

3. Bonvicino, Régis. Revista Orobó, 1997, p. 58.

4. Argan, Giulio Carlo. In: Revista Orobó, 1997, p. 59.

5. Oliveira, Anelito de. Revista Orobó, 1997, p. 61.

6. Lourenço, Eliana. O Antropófago e o Arlequim. Artigo inédito cedido pela autora, 1998.

7. Santiago, Silviano. Vale Quanto Pesa. Rio de Janeiro, 1982. p.18.

8. Santiago, Silviano. Vale Quanto Pesa. Rio de Janeiro, 1982. p.18

9. Veloso, Caetano. A Verdade Tropical. São Paulo, Companhia das Letras, 1997. p.105.

10. Oliveira. Anelito de. Revista Orobó, 1997. p. 61.

11. Lourenço. Eliana. O Antropófago e o Arlequim. Artigo inédito cedido pela autora, 1998.

12. Campos. Haroldo de. Metalinguagem e Outras Metas. 1992. p. 231-255.

13. Veloso, Caetano. A Verdade Tropical. 1997. ps. 248, 249, 250.

14. Oliveira. Anelito de. Revista Orobó, 1997. p. 66.

15. Idem. Revista Orobó, 1997. p. 66.

16. Idem. 1997, p. 66.

17. Idem. 1997, p.66.

18. Idem. 1997, p.66.

19. Anderson. Perry. O Fim da História de Hegel a Fukuyama. 1972. p. 81-82.

20. Bloom, Harold. O Cânone Ocidental, 1993, p. 67.

21. Idem. O Cânone Ocidental, 1993, p. 38.

22. Oliveira. Anelito de. Revista Orobó, 1997. p .66.

23. Bloom, Harold. O Cânone Ocidental. 1993. p. 443.

24. Idem. O Cânone Ocidental, 1993, p. 462.

25. Idem. Harold. O Cânone Ocidental, 1993, p. 468.

26. Idem. Harold. O Cânone Ocidental, 1993, p. 468.

27. Rushdie, Salman. Imaginary Homelands, 1996, p. 902.

28. Perrone-Moisés. Leyla. Altas Literaturas. 1998. p. 199.

29. Coelho, Marcelo. 1994, Folha de São Paulo.

30. Fischer, Luís Augusto, Jornal Blau, 1996.

31. Machado da Silva, Juremir. Jornal Blau, 1996.

Referências Bibliográficas:

1. Perrone-Moisés. Leyla. Folha de São Paulo, 25/09/1996.

2. Perrone-Moisés. Leyla. Altas Literaturas. São Paulo, Companhia das Letras, 1998. p. 203.

3. Bonvicino, Régis. In: Revista Orobó, ano I, número 0, 1997, p. 58.

4. Argan, Giulio Carlo. In: Revista Orobó, ano I, número 0, 1997, p. 58.

5. Oliveira, Anelito de. Revista Orobó, ano I, número 0, 1997, p. 61.

6. Lourenço, Eliana. O Antropófago e o Arlequim. Artigo inédito.

7. Santiago. Silviano. Vale Quanto Pesa. Artigo: Apesar de Dependente, Universal, Rio de Janeiro. Editora Paz e Terra, 1992. p. 18.

8. Santiago, Silviano. Vale Quanto Pesa. Artigo: Apesar de Dependente, Universal. Rio de Janeiro, 1992. Editora Paz e Terra. p.18.

9. Veloso. Caetano. A Verdade Tropical. São Paulo, Companhia das Letras, 1998. p. 105.

10. Idem. Revista Orobó, ano I, número 0, 1997, p. 61.

11. Lourenço. Eliana. O Antropófago e o Arlequim. Artigo inédito cedido pela autora, 1998.

12. Campos. Haroldo de. Metalinguagem e Outras Metas. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1993. p. 231-255.

13. Veloso. Caetano. A Verdade Tropical. São Paulo, Companhia das Letras, 1998. p. 248, 249, 250.

14. Oliveira. Anelito de. Revista Orobó, número O, 1997, p. 66.

15. Idem. Revista Orobó, número 0, 1997, p. 66.

16. Idem. Revista Orobó, número 0, 1997, p. 66.

17. Idem. Revista Orobó, número 0, 1997, p. 66.

18. Idem. Revista Orobó, número 0, 1997, p. 66.

19. Anderson. Perry. O Fim da História de Hegel a Fukuyama. Jorge Zahar Editor. ps. 81-82.

20. Idem. O Cânone Ocidental. Ed. Objetiva. Trad. Marcos Santarrita. 1993, p. 67.

21. Idem. O Cânone Ocidental. Ed. Objetiva. Trad. Marcos Santarrita, 1993, p. 468.

22. Oliveira. Anelito de. Revista Orobó, número 0, 1997, p. 66.

23. Bloom. Harold. O Cânone Ocidental. Ed. Objetiva. Trad. Marcos Santarrita. p. 443.

24. Idem. O Cânone Ocidental. Ed. Objetiva. Trad. Marcos Santarrita. 1993. p. 462.

25. Idem. O Cânone Ocidental. Ed. Objetiva. Trad. Marcos Santarrita. 1993, p. 468.

26. Idem. O Cânone Ocidental. Ed. Objetiva. Trad. Marcos Santarita. 1993, p. 468.

27. Rushdie, Salman. Imaginary Homelands. The Arnold Anthology of Post-Colonial Literature. P. 902. London: Arnold, 1996. Tradução: Eu creio que esta é uma das muitas estratégias possíveis. Mas nós somos inescapavelmente escritores internacionais num tempo em que o romance se tornou uma forma mais internacional (um escritor como Borges fala da influência de Robert Louis Stevenson em seu trabalho; Heinrich Böll reivindica influências da literatura irlandesa; a transpolaridade está em todo lugar); e talvez uma das mais agradáveis liberdades do imigrante literário está em sua aptidão para escolher seus pais. Meus próprios - em parte escolhidos conscientemente, outros não - incluem Gogol, Cervantes, Kafka, Melville, Machado de Assis; uma árvore de família poliglota, onde eu posso me medir, e à qual eu posso com honra dar continuidade.

28. Perrone-Moisés. Leyla. Altas Literaturas. São Paulo, Companhia das Letras, 1998. p. 199.

29. Coelho. Marcelo. Artigo: Bloom é seu Próprio Personagem Literário. 1994, Folha de São Paulo.

30. Fischer. Luís Augusto. Secretário de cultura de Porto Alegre. Jornal Blau, número 12, setembro de 1996.

31. Machado da Silva. Juremir. Jornal Blau, número 12, setembro de 1996.

Antropofagia e Autofagia na Verdade Tropical


Pretendo neste trabalho analisar o capítulo do livro Verdade Tropical em que Caetano Veloso fala da influência de Oswald em seu trabalho, e se apresenta implicitamente como continuador do escritor modernista e do projeto antropofágico-oswaldiano.

No livro, Caetano avalia a influência da poesia concreta sobre seu trabalho, e só depois a da Antropofagia, e inicia o capítulo em que analisa Oswald com uma frase que, citada isoladamente, perde o sentido: “Essa visão é a grande herança deixada pelo modernista Oswald de Andrade.” Lendo o capítulo sobre o concretismo, julgo que a herança deve ser melhor explicada. Aqui, portanto, irei inicialmente comentar e analisar o capítulo que trata do projeto de Oswald e depois o que envolve a poesia concreta.

Antropofagia(s)

Oswald foi descoberto por Caetano através da peça O Rei da Vela, dirigida por José Celso Martinez Corrêa, narra o compositor em Verdade Tropical. Dali por diante, a busca violenta pelo novo dos concretistas, opondo-se à geração de 45, ganhava um aliado no campo musical que desejava absorver o iê-iê-iê, conciliando-o com a herança da bossa nova. Podemos dizer que, para se afirmar como figura de primeira grandeza na música popular brasileira, Caetano confrontou o projeto nacional-popular da esquerda ligada ao regime caído em 1964. Semelhante estratégia adotaram os irmãos Campos e Décio Pignatari, que propunham uma poética de invenção no consumo de massa, e também tinham rompido com o nacionalismo de esquerda após um curto “salto participante” no início dos anos 60.

José Celso se encaminhava, com O Rei da Vela, para um teatro que seria uma experiência radical de explosão do irracional, reafirmado quando dirigiu a peça Roda Viva, de Chico Buarque. Pelo menos assim Caetano o viu em 1967. Mas Oswald seria para Caetano um denominador comum que dava coesão às suas várias influências:

De fato, se eu fora rejeitado pelos sociólogos nacionalistas de esquerda e pelos burgueses moralistas da direita (...), tivera o apoio de (...) ‘irracionalistas’ (como Zé Agrippino, Zé Celso, Jorge Mautner) e ‘super-racionalistas’ (como os poetas concretos e os músicos seguidores dos dodecafônicos). (...) Uma figura, contudo (...), era visível por trás desses dois grupos que nem sempre se aceitaram mutuamente: Oswald de Andrade.1

Prosseguindo em seu relato, Caetano se refere à reação ‘racionalista’ de Augusto Boal quando viu a montagem de O Rei da Vela. Boal preferiu Vianinha a Zé Celso. Em O Rei da Vela, dizia o dramaturgo politizado, as figuras caricatas do “burguês decadente”, do “agente do imperialismo” estavam ambientadas no contexto político, apesar da forma simplista. Em Oswald, dispostas anarquicamente, delas só se depreendiam julgamentos morais, como o burguês “corno”, o aristocrata “homossexual”, o arrivista “filisteu” e daí por diante.

A leitura que Caetano faz de Oswald concilia duas manifestações culturais: o concretismo e o teatro de Zé Celso. O ritual canibal passa a funcionar como cena inaugural da cultura brasileira, o próprio fundamento da nacionalidade. Novamente, reaparece aqui Oswald como denominador comum utilizado por Caetano.

Os tropicalistas passaram a se servir do mito antropofágico, popularizando-o. Caetano defende a apropriação oswaldiana feita por ele, Gil e outros do questionamento elaborado pelo psicanalista Contardo Calligaris no início dos anos 90. Segundo Calligaris, o mito é nocivo por ser sintoma de nossa doença congênita de não-filiação, da ausência de um “nome do pai”, de um significante nacional brasileiro. Caetano responde de maneira contundente:

Mas sua argumentação só me parece aceitável se considerarmos que ele está ali agredindo um uso que se fez de tal mito e lhe pareceu contribuir para a manutenção de um estado de coisas lastimável, não a intuição mesma de Oswald em sua perspectiva própria. (...) Trazer de volta – como ele fez – ao meramente orgânico o ato antropofágico ritual que Oswald emprestava dos índios (...) como receita de um comportamento criativo em tudo diferente do que freqüentemente se faz no Brasil – nos congressos psicanalíticos ou fora deles – era forçar a mão para, numa sanha diagnosticadora, meter num mesmo saco a mediocridade dos misturadores de informações mal assimiladas e o gesto audaz de um grande poeta. (...) Tal como a vejo, ela é antes uma decisão de rigor do que uma panacéia para resolver o problema da identidade do Brasil.2

A tese central do livro de Calligaris (que Caetano não cita em seu texto integral, nem sequer o título) é anunciada como sendo a seguinte: O colonizador (que deixou a terra-mãe para exercer a potência do pai sem interdito na nova terra) e o colono (o imigrante que veio esperando do colonizador uma interdição paterna que fundasse uma nova nacionalidade, e só encontra um uso escravo do seu corpo, confundido pelo colonizador, como o corpo dos negros, com a terra que deve ser exaurida sem limites) são as duas instâncias da mente brasileira que produzem a frase (...) ‘Este país não presta’ 3. O próprio nome do país, assinala Calligaris, é o nome de um produto de exploração rapidamente esgotado. Caetano argumenta que Calligaris conheceu a Antropofagia já triunfante, e que ela foi a corrente modernista que encontrou maior resistência, senão total rejeição, desde os anos 20 até o final dos anos 60. Segundo o tropicalista, assim que a Antropofagia ensaiou uma volta no concretismo, foi penalizada pelo bom senso. “Anticorpos” contra ela atuaram também na época do tropicalismo. Calligaris nota que há na Antropofagia uma tendência a tentar tornar o Brasil exótico tanto para turistas quanto para brasileiros. Caetano assume esta característica, e se defende dizendo que:

Sem dúvida, eu próprio até hoje rechaço o que me parecem tentativas ridículas de neutralizar as características esquisitas deste monstro tropical, feitas em nome da busca de migalhas da respeitabilidade internacional mediana.4

Oswald só passou a influenciar o tropicalismo quando este amadureceu e o essencial dessa produção estava pronto, diz Caetano. O baiano insiste que esta criação se deu “no vazio”, omitindo que, no início de sua carreira, ao participar de musicais com Augusto Boal, receber apoio e incentivo de Edu Lobo e outros, estava num acordo tácito com o nacionalismo defensivo do teatro engajado e dos herdeiros da bossa nova. Suas aventuras de sensibilidade tiveram seu ponto de partida no florescimento cultural que o desenvolvimentismo dos anos 50 gestou e que emergiu na década de 60. Oswald foi, neste momento, uma opção estética decisiva:

Esse antropófago indigesto, que a cultura brasileira rejeitou por décadas, e que criou a utopia brasileira de superação do messianismo patriarcal por um matriarcado primal e moderno, tornou-se para nós o grande pai. (...) Glauber parece ter sido o único a não partilhar do culto oswaldiano (...) De resto, já tinha feito sua escolha entre os modernistas: Villa-Lobos, com seu nacionalismo retumbante e a conquista de renome internacional, com seu talento exuberante, com seu temperamento e seus caprichos, parecia-lhe uma identificação mais adequada.5

Uma diferença essencial podemos aqui assinalar entre Caetano e Glauber. Enquanto Glauber desejava afirmar um cinema nacional e, através dele, afirmar a nação brasileira no mundo, fazia propaganda de Villa-Lobos em detrimento de Oswald de Andrade. No entanto, o texto A Estética da Fome tem ressonâncias oswaldianas, a partir inclusive, do título:

Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entendeu. Para o europeu, é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro, é uma vergonha nacional. Ele não come mas tem vergonha de dizer isto; e, sobretudo, não sabe de onde vem esta fome. Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendos do tecnicolor não escondem, mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.6

Tanto Glauber quanto Oswald interpretam os atos de comer e deglutir como decisivos para a nossa cultura. Ambos partem do ato meramente orgânico e o revestem de significações culturais. Glauber chegou a dizer que a fome é que molda o inconsciente coletivo do povo brasileiro. Como o antropófago que come o catequizador colonialista, o brasileiro faminto apela para a violência, como o sertanejo que, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, mata o opressor e se divide entre o cangaço e o messianismo.

Noutro momento do livro, Caetano fala do quanto se sentiu instigado a criar quando ouviu de Augusto de Campos a análise que, se Villa-Lobos era para a música erudita um diluidor, Caetano e Gil eram, para a música popular, inventores. Na hora de exportar, Glauber prefere Villa-Lobos, Caetano resgata Carmen Miranda. Essa dissonância volta quando o assunto é Cinema Novo:

E só uma eleição do modelo Villa-Lobos estimularia esse tipo de feito: não se pode imaginar Oswald de Andrade participando da fundação da Embrafilme, e Mário de Andrade – que talvez o fizesse – era uma figura sensata demais (...). Mas o Glauber dessacralizador e demolidor que se fez ouvir na Bahia quando se tinha de defender a vanguarda e a experimentação contra o acanhamento provinciano, esse Glauber era Oswald – e foi esse mesmo Glauber-Oswald que escarneceu da Embrafilme ao fazer, pouco antes de morrer, A Idade da Terra, espetacular gesto marginal e perdulário em todos os sentidos, que desconcertou o coro dos contentes e dos descontentes.7

Apesar das divergências, Glauber Rocha demonstrava apreço pelo “grupo baiano”. Ressalta que está se dirigindo para um caminho diverso, mas acha que o experimentalismo da “tropicália” é saudável. Numa entrevista para Flávio Rocha, da revista Manchete, Glauber Rocha responde à pergunta “você se considera um tropicalista?”, esclarecendo sua posição com relação ao movimento já na época de sua explosão:

Soube que o Gilberto Freyre já começou a dar bronca, dizendo que ele lançou o Tropicalismo e ninguém fala dele. Lançou mesmo. Mas acontece que o Tropicalismo de que se fala é outra coisa, é uma explosão contraditória e agressiva deste Brasil de hoje, terra em transe. O negócio do Tropicalismo foi o seguinte: quando saiu Terra em Transe, ninguém falava em Tropicalismo e muita gente esculhambou o filme sem entender direito. (...) Ora, o Tropicalismo é o movimento mais tropicalista que existe. Vale tudo. Eu, no momento, estou pensando em outras coisas, mas incentivo as descobertas tropicalistas. (...) O Tropicalismo nos liberta das manias européias e nos lança no pânico carnavalesco do nosso Brasil, onde a bossa convive com a palhoça. Somente da consciência em chagas nascerá alguma coisa.8

Outro ponto controverso é a própria origem do termo “tropicália”. Numa conferência na FAU, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, em 1968, Pignatari tentou explicar o termo, negando a sua origem na obra de Gilberto Freyre, sociólogo que apoiara o golpe de 64 e que teve sua teoria da “democracia racial brasileira” distorcida e adotada por segmentos conservadores, que a utilizavam para negar a existência do racismo no Brasil. A preferência de Pignatari era pela associação com a Antropofagia:

O nosso tropicalismo é recuperar forças. O de Gilberto Freyre é o trópico visto da casa grande. Nós olhamos da senzala. Pois, como dizia Oswald de Andrade, não estamos na idade da pedra. Estamos na idade da pedrada. Interessa é saber comer e deglutir, que são atos críticos, como fazem Veloso e Gil.9

Estranhamente, Caetano se contradiz a respeito de Oswald, contrapondo o rigor de João Cabral à “contribuição milionária de todos os erros” do modernista. Oswald, tomado anteriormente como decisão de rigor, torna-se elogio da transgressão; rigoroso é João Cabral:

O culto a João Cabral de Melo Neto não se abalou. Antes terá acontecido o que Augusto conta que se passou com os próprios concretistas: o rigor construtivo de Cabral encontrou, para eles como para mim, complementaridade na abertura oswaldiana para ‘a contribuição milionária de todos os erros’. 10

A descoberta de Oswald, na vida de Caetano Veloso, teve como contraponto a desvalorização de Sartre e Clarice Lispector. A recusa de Sartre fica inexplicada, mas uma crítica direta a Clarice está presente:

Hoje amo sua literatura como quando eu tinha dezessete anos, mas no meio da Tropicália, sob o impacto de Oswald, ela me pareceu demasiadamente psicologizante, subjetiva e, num certo mau sentido, feminina.11

Pouco depois se encerra o capítulo que tematizou a Antropofagia, com Caetano contando de suas conversas telefônicas com Clarice, antes do tropicalismo, e o desencontro subseqüente. Encerra lamentando que o movimento lhe tenha custado, entre outras coisas, o diálogo com Clarice.

A retomada de Carmen Miranda no tropicalismo é reafirmada em A Verdade Tropical. Fazia parte da retomada do que antes era tido, em círculos intelectuais ou acadêmicos, como lixo ou subarte. Carmen fundia dois elementos: atitude contracultural (tratava-se do resgate de um ícone do passado) e adesão à cultura de massas de origem americana, então em plena expansão:

O fato de ela (Carmen) ter se tornado, com o sucesso de Hollywood, uma figura caricata de que a gente crescera sentindo um pouco de vergonha, fazia da mera menção de seu nome uma bomba de que os guerrilheiros tropicalistas fatalmente lançariam mão. Mas o lançar-se tal bomba significava igualmente a decretação da morte dessa vergonha pela aceitação desafiadora tanto da cultura de massas americana (portanto da Hollywood onde Carmen brilhara) quanto da imagem estereotipada de um Brasil sexualmente exposto, hipercolorido e frutal (que era a versão que Carmen levava ao extremo) aceitação que se dava por termos descoberto que tanto a mass culture quanto esse estereótipo eram (ou podiam ser) reveladores de verdades mais abrangentes sobre cultura e sobre Brasil do que aquelas a que estivéramos até então limitados.12

Caetano não revela mais nada sobre as tais verdades abrangentes, prosseguindo no assunto Carmen Miranda, mas insistindo em sua exposição sexual, citando o fato de que foi a atriz mais bem paga de Hollywood numa determinada época, passando pelo aspecto “travesti” de Carmen, retomado pelo tropicalismo para atingir os temas (sempre polêmicos) do homoerotismo e bissexualidade. Note-se também o termo “bomba” usado para se referir a Carmen. O termo “Brazilian Bombshell” ,“explosão brasileira”, era usado pela mídia norte-americana para definir a artista. O próprio livro A Verdade Tropical de Caetano Veloso nasce depois da publicação de um artigo sobre “a pequena notável” no New York Times, e depois desse artigo (do qual ele não cita nenhum trecho), um editor norte-americano o incitou a escrever um livro, e daí a Verdade Tropical. As referências a Carmen Miranda parecem indicar que o tropicalismo pretendia reabilitar no exterior uma “imagem de Brasil” exótica e recolocá-la em circulação, inclusive entre os próprios brasileiros.

Sérgio Paulo Rouanet é um crítico de certos aspectos da Antropofagia, tema que ele discute em seu livro O Mal-Estar na Modernidade. Uma esquisita característica deste intelectual foi sua participação no governo neoliberal de Collor, junto com José Guilherme Merquior. Rouanet diz combater o chamado “modernismo vulgar”:

A antropofagia se difundiu. O Brasil inteiro rói, incansavelmente, o fêmur do bispo Sardinha. Mas o espírito do modernismo está a postos. Indomesticável, ele deve ter se mobilizado contra sua contrafação, o modernismo vulgar. Ele há de devorar esses canibais medíocres, que ritualizaram, transformando-a em gastronomia oficial, a antropofagia crítica que presidiu a Semana de Arte Moderna. Ele pode ir mais longe ainda, e devorar a própria Semana, como a única forma de resgatar o seu radicalismo – deglutindo-a, aproveitando suas proteínas e jogando fora os ossos. Tenho certeza de que, se Oswald fosse vivo, ele endossaria esse programa e estaria de acordo em auto-devorar-se, para com essa autofagia anular os males da antropofagia institucionalizada. 13

Daqui por diante irei retomar a problemática da Antropofagia institucionalizada, analisando as idéias de Gilberto Vasconcellos, um ex-entusiasta da tropicália que passou a detrator.

1994: Tropicália no Poder?

O capítulo 11 do livro O Príncipe da Moeda, do sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcellos, afirma que a tropicália está no poder, e eu aqui prefiro elaborar uma investigação que remete à institucionalização da vanguarda antropofágico-tropicalista. Vasconcellos não aceita a hipótese de que a tropicália seja o retorno da vontade de comer o próximo, até então recalcada, ou seja, é uma continuação atualizada da Antropofagia que faz alterações no cardápio. Na verdade, não é neste viés que ele discute. O sociólogo se baseia em Darcy Ribeiro, Luís da Câmara Cascudo, Gilberto Freyre e principalmente em Glauber Rocha para tecer suas especulações, que trazem embutidas também uma crítica da razão:

Discípulo de Paulo Emílio Salles Gomes e Antonio Candido, o crítico Ismail Xavier não chega a pontuar nas Alegorias do Subdesenvolvimento (1993) a questão do nacionalismo, que é a raiz da estética da fome e do sonho. (...) A crítica que privilegia o procedimento alegórico está sempre indisposta com Getúlio Vargas, associando-o de modo pejorativo ao folclore da roça, enquanto a inteligência urbana moderna viajaria nas ruínas alegóricas colhidas por Roberto Schwarz no jardim de Lukács e Walter Benjamin. Ora, acontece que o cinema glauberiano é o cinema de Getúlio Vargas. (...) Nos últimos anos, de Sarney a FHC, a tendência dominante na cultura brasileira é considerar a colagem tropicália exemplo de lucidez, de saúde, de síntese, enfim, o moderno receituário de como se acanalhar no atual capitalismo cósmico, o qual teria liquidado com as teleologias revolucionárias, utópicas e românticas, do nacionalismo brasileiro. (...) É a paixão pelo folclore villalobiano o motivo do renascimento de Getúlio Vargas no Cinema Novo. Em 1968, Câncer, filmado no Rio de Janeiro, Glauber mostra a violência internacional. Nesse filme sobre a ausência da contraviolência anticancerígena, Cristo é Getúlio, Antônio Conselheiro é Villa-Lobos. (...) Em 1968, de Rimbaud do Cinema Novo, Glauber passa a ser considerado o avô de São Jorge, o santo megalomártir, o triste cavaleiro andante da revolução socialista, o ogum mórbido da dialética materialista. (...) Curiosamente o Cinema Novo lança a maldição sobre o destino medíocre de uma arte no Brasil sem ambição nacionalista, que no cinema atual é a linguagem subalterna à sonoridade da MPBxéu, genocídio social antevisto no filme Cabeças Cortadas (1970). A salada pop contracultural da tropicália é a paródia de seu próprio cinismo, cujo leão-de-chácara não faz senão gozar a miséria do povo. Estética janízara. O artista é o bacana narciso que opera bem com a técnica, mas o povo é feio, grosso, arcaico, inculto, gordo, violento. Com essa justaposição superficial, típica do mulato iupi e do mameluco parvenu, a cultura popular é reduzida a um kitsch da indústria cultural, embora a tropicália tenha da expansão moderna da TV uma visão reacionária: a culpa é do povo.14

Estão aí acima expostas as profundas divergências entre Glauber e os tropicalistas, ou melhor, entre um acadêmico glauberiano e os tropicalistas. Diferenças que tendem a ser invisíveis a olho nu. Muitos críticos falam em procedimento alegórico: Celso Favaretto e Antônio Carlos de Brito, e junto com Ismail Xavier são o alvo de Gilberto Vasconcellos neste caso. Brito comenta um texto de Roberto Schwarz publicado na Les Temps Modernes:

Roberto Schwarz toca num problema que parece decisivo: a relação, no âmbito da produção estética, entre técnica e política. Tomando o cinema como exemplo, Schwarz chama a atenção para um palavra-de-ordem criada por Glauber Rocha, “por uma estética da fome”, à qual estão ligados alguns dos melhores filmes nacionais: Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e, principalmente, Os Fuzis. No limite poder-se-ia afirmar que o impulso dessa estética era revolucionário: o artista iria buscar sua força e sua modernidade na etapa presente da vida nacional, e guardaria a maior autonomia possível em face do aparelho tecnológico e econômico sempre controlado, em última instância, por instituições adversas. (...) A direção do tropicalismo é inversa: apresenta o atraso do país segundo a ótica da vanguarda e da moda mundiais – que não deixam de ter implicações econômicas – como algo de aberrante. No primeiro caso a técnica é avaliada politicamente; no segundo, seu nível internacional é o parâmetro aceito da infelicidade nacional: nós, que somos atualizados, articulados ao circuito do grande capital, reconhecemos, depois do fracasso do ensaio de modernização feito a partir do alto, que o absurdo é a alma do país, e a nossa. A noção tropicalista de uma “pobreza” brasileira, cujas vítimas são tanto os pobres quanto os ricos, resulta de uma generalização abstrata da mesma natureza.15

Quando a penetração da contracultura se aprofunda, com a anunciação paralela da “morte do populismo” pelos tropicalistas, Glauber já fora fundo aos motivos do golpe de 64 em seu filme Terra em Transe, visto por Caetano e José Miguel Wisnik como negação do nacionalismo e da figura do político carismático, quando pode-se analisar o filme como uma tentativa de racionalizar o processo político, enquanto estava ainda acontecendo.

Embora sem explicar a obsolescência do nacionalismo, o olhar tropicalista viu em Terra em Transe a adesão a um formalismo que o filme violentamente critica no protagonista Paulo Martins, quando ele tenta tal saída. Wisnik diz o seguinte:

O cinema de Glauber (...) um cinema tão estruturalmente musical - basta ver e ouvir a passagem de O Guarani, em Terra em Transe, onde a música imprime sua coreografia dramática à dança Danusa-Autran-Jardel, tem tudo a ver com isso (as apropriações carnavalizantes das culturas da margem). Ele exacerba gritantemente a contradição do intelectual no ciclo nacional-populista (...)O senador de casaca cai no samba em meio aos passistas e à batucada do comício-passeata-carnaval, as massas (estudantes, operários, demagogos e escola de samba) começam a se deslocar e a câmera se aproxima lentamente do intelectual e da militante colocados no olho-do-ciclone populista, no contraponto entre a farsa e a tragédia, quando começam a soar majestosamente os sons iniciais das cordas da ‘fuga’ das ‘bachianas brasileiras.16

Num outro artigo, o Orfeão do Estado Novo/ Esse Coqueiro que Dá Coco, Wisnik repudia em Villa-Lobos a sua associação com o Estado Novo, por ela se revestir de uma estetização da política, elogio de uma ética do trabalho e do estado-nação. Wisnik então ressalta que: “Para tanto, (Villa-Lobos) converte o mitopoético do campo de energias caótico-domadas em fator de legitimação do Estado através de um procedimento que lembra em tudo a concisa formulação de um crítico musical nazista, em 1938.”

Embora ressaltando que não deseja aplicar a Villa-Lobos a palavra-fetiche “fascismo”, parafraseia Walter Benjamim para anotar que restaurar a aura da arte através do modelo da arte estatal, estetizando por sua vez o estado, é um dos vértices do fascismo.

Wisnik assume, então, uma postura próxima da tropicalista, ou seja, a de equacionar ideologicamente todos os nacionalismos com o fascismo. Podemos pontuar que o nacionalismo também impeliu a descolonização da Ásia e da África. Glauber associou seu nome e sua obra a Villa-Lobos e defendeu Getúlio por ter uma pulsão nacionalista básica, e o cineasta acreditava inclusive que o populismo de Vargas teria gerado o projeto estético nacional-popular. O livro de Luiz Mir sobre a luta armada no Brasil tem uma opinião semelhante (ainda que menos estridente) à de Vasconcellos sobre Vargas:

O segundo governo de Getúlio Vargas, eleito democraticamente em 1951, com um plano autônomo de desenvolvimento econômico em setores estratégicos –minerais, petróleo, siderurgia, energia nuclear – associado a uma política externa altiva, sacode a América Latina. Reproduzido continentalmente, transfiguraria o rosto e o andar do sul do Rio Grande. Em quantidade e qualidade. Para os Estados Unidos, Vargas era um pusilânime joguete dos comunistas, enveredado pela trilha do colaboracionismo. Colocara à mercê do comunismo o gigante latino-americano. Vargas, o homem que derrotara os comunistas em 35 liquidando a ANL, agora negava a sua história e sentava as bases para que os comunistas tomassem o poder ao abrir-lhes as portas do governo e da máquina administrativa.17

A interpretação anti-populista de Wisnik e Caetano do filme Terra em Transe exige que analisemos a obra. Supomos que esta interpretação é uma visão parcial que se aproveita da equivocidade presente numa obra barroquizante.

A intriga de Terra em Transe se desenrola num país imaginário - Eldorado. Felipe Vieira, governador da província de Alecrim, decide não resistir ao golpe de estado, liderado pelo político de direita - Porfirio Diaz. Depois de uma acirrada discussão com Vieira, o protagonista-narrador, Paulo Martins, acompanhado por Sara, secretária de Vieira, foge do palácio do governador e é ferido mortalmente pela polícia. Enquanto vai perdendo a vida, lembra-se dos acontecimentos que culminaram nesta derrota pessoal e política. Quatro anos antes, ele tinha sido o poeta e protegido de Diaz, até o momento que o abandona a fim de se dedicar a uma poesia mais política. Ele vai a Alecrim para colaborar com a militante Sara na campanha eleitoral de Vieira, um político populista. Ganham as eleições, mas o governador eleito, devido às suas ligações com os latifundiários, quebra suas promessas eleitorais e solta os policiais contra os camponeses. Desiludido, só então Paulo se lança numa vida de orgias e de náusea existencial – apenas para retomar a política mais adiante. Mais tarde ele muda de postura, quando Sara lhe pede para fazer um programa de TV a fim de destruir Diaz, agora aliado da Explint (leia-se imperialismo) Paulo, em nome do seu amor por Sara, aceita a proposta e faz um filme, “Biografia de Um Aventureiro”, contando as sucessivas traições políticas de Diaz. Julgamos que nesse ponto Glauber demonstra uma recusa do formalismo que já abandonara desde o curta Pátio, ou seja, desde os anos 50. Denunciado como traidor por Diaz, Paulo se liga à eufórica campanha presidencial de Vieira. Numa atmosfera de festa popular perturbada somente por atos ocasionais de repressão violenta, o povo contribui para o crescente entusiasmo da campanha populista de Vieira. Aí é que acontece o comício-passeata-carnaval citado por Wisnik. A direita, temendo uma derrota eleitoral, começa a preparar um golpe. Voltando ao ponto inicial do filme, vemos Paulo oferecer um revólver a Vieira, que o recusa. Numa montagem paralela assistimos os momentos finais da morte de Paulo se alternar à coroação de Diaz e o plano mostra Paulo com um fuzil erguido.

A relação da tropicália com a social-democracia brasileira ainda está para ser analisada detalhadamente. Gilberto Vasconcellos tentou mapear a trajetória de Fernando Henrique Cardoso, para compreender o sentido de sua trajetória da USP para o Planalto, mantendo as mesmas características anti-nacionalistas e anti-varguistas. Sua idéia central é que tanto FHC quanto os baianos são uma oposição que renega tanto o regime deposto em 64, tido como nacionalista e atrasado, quanto o autoritarismo da ditadura militar. Baseia-se principalmente no insight de Glauber, incluído na contracapa: No Brasil, o gancho do pentágono é o Centro Brasyleiro de Análise e Planejamento (Cebrap), que funciona em São Paulo. Quando eu filmar a Odysseya convidarei o professor Fernando Henrique Cardoso para o papel de sedutor, embora não saiba se o Pryncype topa contracenar nu com Ariadne no labirinto do Cebrap. O professor Fernando Henrique Cardoso disse que não era o assoprador de novidades nos ouvidos do Pryncype. Claro: o Pryncype é ele, assim o batizey no Peru em presença do magnyfico Darcy Ribeiro. Uma tese que o Cebrap não aceita e por isso não consigo me entender com o Pryncype: a revolução de 64 começou na Guerra do Paraguai. Fernando Henrique Cardoso é apenas um neocapitalista, um kennediano, um entreguista.18

Os Fantasmas da Nacionalidade

Segundo Caetano, Oswald de Andrade funcionou para ele como um elemento unificador entre criadores diferentes, unindo as personalidades mais díspares que o influenciaram . Oswald representou o pai anti-patriarcal, e a devoração do bispo Sardinha, o ritual pagão. Há, no entanto, uma postura unanimemente negada: o nacionalismo. E um contemporâneo de Oswald, Plínio Salgado, com seu “verde-amarelismo” e posterior integralismo, passou a ser constantemente referido e negado, e, além do mais, identificado ao nacionalismo de esquerda preconizado nos Centros Populares de Cultura e no ISEB. Este ritual de negação de Plínio/identificação com Oswald está presente tanto em Caetano, Glauber, os irmãos Campos quanto em Arnaldo Jabor, ou seja, percorre tanto a poesia concreta quanto a música popular e o Cinema Novo. Um artigo de Augusto de Campos, citado por Caetano Veloso, afirma que:

Os ‘nacionalóides’ preconizavam um ‘retorno ao samba quadrado e ao hino discursivo folclórico-sinfônico’. Eles queriam voltar àquela triste concepção ‘verde-amarela’ que Oswald de Andrade estigmatizou em literatura como triste xenofobia que acabou como macumba para turistas. (...) Foi nesse estado de coisas que chegaram a Jovem Guarda e seus líderes Roberto e Erasmo Carlos para, embora sem o saber, evidenciar a realidade e o equívoco. Para demonstrar que, enquanto a música popular brasileira, envergonhada do avanço que dera, voltara a recorrer a superados padrões e inspirações folclorísticos, a música estrangeira também popular, mas de um folclore não artificial nem rebuscado, o ‘folclore urbano’, de todas as cidades, trabalhando por todas as tecnologias modernas, e não envergonhado delas, conseguia atingir facilmente a popularidade que a música popular brasileira buscava, com tanto esforço e tamanha afetação populística.’ 19

No entanto, por outro lado Augusto de Campos deixa de lado a problemática ideológica e cultural da Jovem Guarda, que pode ser vista num outro viés:

O programa de TV “Jovem Guarda” (1967) foi o primeiro processo de diluição da moda jovem, lançado pelos hippies. Toda uma tradição de moda, até então mantida na TV brasileira pela maioria de seus apresentadores (...), sofreu um abalo, com os coloridos cantores de “jovem guarda” e suas roupas que foram impostas como “kitschs” subdesenvolvidos à classe média (consumidora de TV), de forma massificante. (...) A moda “jovem guarda” saiu então da TV para butiques e ruas, atingindo uma faixa da juventude brasileira despreocupada com os problemas sociais e políticos do país (por culpa da própria massificação publicitária) e desligada, portanto, da realidade. (...) O psicodelismo chacriniano e a antimoda tropical também se incorporaram à redundância, porque “na televisão nada se cria, tudo se copia” (Chacrinha). As butiques industrializaram o exótico e o que tinha sentido crítico virou artigo de luxo.20

A retomada de Oswald pelo movimento concretista nos anos 50, referida pelo próprio Caetano em Verdade Tropical, contradiz sua afirmação anterior de que a Antropofagia teria sido um fracasso dos anos 20 até os anos 60. Antes dos tropicalistas, os concretos chegaram a se encontrar pessoalmente com Oswald, quando o poeta modernista, isolado no fim da vida, era tido como ultrapassado pelas gerações seguintes, que retomavam a herança modernista com outros parâmetros:

Oswald de Andrade construiu toda uma filosofia de vida e uma teoria sociológica para justificar o exercício de sua tendência ao sarcasmo. Apelidou isto de Antropofagia e viu no homem um devorador por excelência, tanto mais justificado, histórica e psicologicamente, quanto mais deglute seu semelhante. No fundo desta doutrina havia apenas o gosto pela sátira. De resto, gosto bem curioso, pois coincidia plenamente com a capacidade de admiração que o escritor aplicava a este ou aquele confrade. (...) A grande tolice do meu amigo Oswald de Andrade é imaginar que descobriu o Brasil. Absolutamente não descobriu tal. Hoje é um dos nossos bons poetas, se bem que não entenda uma palavra de anatomia do verso. Não passou pelo serviço militar da métrica. Ora, eu acho isso quase indispensável. É o único poeta brasileiro da atualidade que lançou manifesto. Engraçado, inútil, significativo.21

A esta análise impiedosa, os concretistas opunham uma releitura, mais “integrada”, sob a luz de teorias recentes, que unia Oswald-Drummond-João Cabral numa linha evolutiva linear, e culminava no próprio concretismo:

A revolução - e revolução copernicana - foi a poesia ‘pau-Brasil’, donde saiu toda uma linha poética substantiva, de poesia contida, reduzida ao essencial, do processo de signos, que passa por Drummond na década de 30, enforma a engenharia poética de João Cabral de Melo Neto e se projeta na atual poesia concreta (...) Queremos nos referir, desde logo, à maneira oswaldiana de cortar e aparar o poema como um produto industrial seriado, como uma peça estampada à máquina...uma verdadeira tomada pré-concreta. (Andrade, 1974, p. 15 e 44). E vai mais além: ‘A obra de Oswald de Andrade é o legado mais radical que nos vem do Modernismo de 22. E o importante é que, no Brasil, a poesia concreta nasceu da meditação de conquistas formais, perfeitamente.caracterizadas no âmbito de nossa história poética, como são as formas minuto de Oswald de Andrade’ 22.

Por fim, a poesia concreta busca o novo na continuidade da ruptura, retomando Oswald para romper com a institucionalização do legado modernista, e associando-o a um pensador como Mcluhan, intrinsecamente ligado à cultura de massas, cultura esta que os modernistas desconheciam (até por ela ter nascido nos EUA dos anos 30):

Tudo somado, o grande pecado de Oswald parece mesmo o de ter escrito em português. Tivesse ele escrito em inglês ou francês, quem sabe até em espanhol, e a sua Antropofagia já teria sido introduzida na constelação de idéias de pensadores tão originais e inortodoxos como Mcluhan, Buckminster Fuller (Utopia or Oblivion - a utopia tecnológica - mais uma contribuição para a marcha das utopias), John Cage ( ‘como melhorar o mundo. Você só tornará as coisas piores’.) e o mais recente Norman O. Brown, que em Love’s Body ressuscita os temas do canibalismo freudiano e do matriarcado de Bachofen. Pensadores da América, todos eles, por sinal.23

Enquanto Oswald de Andrade propunha o matriarcado de Pindorama, Plínio Salgado, que nunca esteve sob as ordens de mamãe, continuou a professar o messianismo patriarcal, ainda que disfarçadamente. Plínio Salgado cria em O Esperado o personagem Gruber, grã-fino, adesista e oposicionista de salão, que escreve com os amigos uma obra chamada O Perfeito Cozinheiro das Almas Deste Mundo. O alvo era Oswald, que em contrapartida chamou os verde-amarelistas de pessoas de pouca inteligência, antas, pândegos que desejam restaurar um passado vencido e posteriormente, fascistas, “jacarés falantes do integralismo”.

Oswald, filho de um patriarca rural, vivia já os padrões burgueses, e julgava que tudo de pior que a civilização ocidental possuía era devido ao patriarcado. Plínio Salgado, filho de um chefe político de São Bento do Sapucaí, cidadezinha do interior de São Paulo, criou uma facção no modernismo e posteriormente um movimento político. Messiânico e patriarcal, opõe-se formalmente à figura do líder carismático, do caudilho, por vê-la adotada por Getúlio Vargas e seus seguidores. Acaba exilado pelo Estado Novo, depois de recusar o cargo de ministro da educação. No ano de 1939, segue para o exílio em Portugal. Quando retorna, monta a custo alguns cacos do integralismo e vive o resto da vida como político secundário.

Oswald profetizava a falência do regime paterno, “pelas transformações sociais, que apontam de todo lado”. Para ele, era importante “a conquista da ócio”, pois “o ócio era permitido na seara fácil da selva matriarcal”. Sem nunca ter essa clareza, Plínio Salgado se ligava a uma releitura modernista do ufanismo que desde o princípio do século se mostrou presente, com o livro Por Que me Ufano do Meu País, do Conde Afonso Celso. Enquanto Oswald desejava a ociosidade, o amor livre, a nudez, a irresponsabilidade, a comunidade de mulheres e crianças, a simplicidade natural do selvagem, ou seja, uma ruptura radical, Salgado, Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo elaboram o Manifesto Verde-Amarelo, em resposta ao Manifesto Antropofágico, onde exibem posições mais brandas.

No Manifesto Verde e Amarelo, publicado em 1929 e do qual Plínio foi um dos autores, a mentalidade conciliadora, tupi, é apontada como a mais adequada para o Brasil, enquanto todo jacobinismo é tido como tapuia. E os tapuias, por não aceitarem a convivência com os portugueses, foram exterminados mas não permaneceram na alma da nova nação. Os tupis, conciliadores, se aliaram aos lusos para gerar o Brasil. Para os verde-amarelistas é preciso entrar nas instituições conservadoras para fazer a transformação “de dentro”. Esta teoria justificou a entrada de Plínio Salgado, Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo na Academia Brasileira de Letras.

Nos anos 60, Oswald foi retomado em sua utopia boêmia e matriarcal pelos baianos. A Bahia foi entronizada a “mãe do Brasil” à época do desbunde hippie. Paralelamente, à mesma época, o pensamento de Plínio se faz presente no nacionalismo ufanista das Forças Armadas, enquanto os tecnocratas assumiam o poder efetivo no regime militar, submetendo o país ao endividamento externo e modernização conservadora.

Num episódio ocorrido no início dos anos 60, reaparece a negação veemente dos nacionalismos; Nara Leão e Caetano Veloso, ao comentarem a passeata contra a música estrangeira (tida como ‘contra as guitarras elétricas’) realizada pelos apresentadores e artistas emepebistas do programa Frente Única, prenunciavam a postura tropicalista:

- Nara, eu acho isso muito esquisito...

- Esquisito, Caetano? Isso aí é um horror! Parece manifestação do partido integralista. É fascismo mesmo!24

Caetano posteriormente fez uma declaração ao jornal Última Hora (ligado historicamente a Getúlio Vargas e João Goulart), refazendo a identificação de todo e qualquer nacionalismo com o fascismo, negando ao mesmo tempo o nacionalismo populista, o integralismo e o nacionalismo das Forças Armadas:

Acho que tudo que se fez num dos shows, como passeata ao som de Caymmi e Zé Keti, gente no alto do Paramount com bandeirinhas brasileiras, é muito negativo. Lembra-me o nacionalismo nazista, o Estado Novo. Penso até que, se no meio daquela psicose toda aparecessem a Vanderléa ou Erasmo Carlos, seriam mesmo massacrados. Acho que à música cabe uma única colocação: ou se gosta, ou não se gosta. Fazer marchas, agora ‘da família com Deus e pela música brasileira’, eu acho ridículo.25

Neste trecho, Caetano confunde diferentes apropriações do nacionalismo, negando até um sentimento defensivo e antiamericano que o populismo de esquerda canalizava contra os EUA, incluindo neste rol a ideologia confusa do integralismo, que por sua vez misturava elementos imitados de Mussolini com o nacionalismo católico. Todos os nacionalismos são identificados então com o nacionalismo agressivo do nazismo, manifestação totalitária de uma ditadura francamente expansionista. O tropicalismo começou a repensar a nossa realidade sem o emblema nacionalizante. Contestando a temática do nacionalismo, lançou mão da paródia, daí a identificação com Oswald de Andrade. A paródia deve ser entendida aqui como um procedimento que se apropria dos códigos para demonstrar a sua desatualização. Apresenta o choque entre o arcaico e o moderno como grotesco, enquanto contrapõe os estilemas românticos, tais como os olhos verdes e cabeleiras negras, usados por José de Alencar e Gonçalves Dias, e outras referências ao nacionalismo, tais como o “luar do sertão” de Catulo da Paixão Cearense, a Iracema de Alencar, (citados em Tropicália) o “florão da América” do Hino Nacional (citado em Eles) e o “salve o lindo pendão da esperança” do Hino à Bandeira (citado em Geléia Geral), que aparecem nas canções do grupo baiano em meio a bossa e a palhoça para dar efeito de absurdo e comprovar a incompatibilidade do nacionalismo com a realidade. Caetano e Gil anunciam a morte da opção nacionalista em prol de um som universal.

Anos depois de passado o tropicalismo, já em 1984, Roberto Schwarz diria que ao nacionalista a padronização e a marca americana que acompanham os veículos de comunicação de massa apareciam como efeitos negativos da presença estrangeira. É claro que, à geração seguinte, para quem o novo clima era natural, o nacionalismo é que teria de parecer esteticamente arcaico e provinciano. Pela primeira vez, que eu saiba, entra em circulação o sentimento de que a defesa das singularidades nacionais contra a uniformização imperialista é um tópico vazio. Sobre fundo de indústria cultural, o mal-estar na cultura brasileira desaparece, ao menos para quem queira se iludir.26 O progressismo da antropofagia oswaldiana, observando o desajuste entre os padrões burgueses e as realidades derivadas do patriarcado rural, propunha um salto da sociedade pré-burguesa diretamente ao paraíso, gerando o “bárbaro tecnizado”. Na reapropriação tropicalista de Oswald, esta crença no progresso tecnológico retorna atenuada, enquanto as atitudes avacalhantes que Oswald eventualmente cultivava, e que eram subversivas em seu tempo, grassam sem levar em conta a possível defasagem. Esta retomada também vem envolvida pelas ambigüidades da cultura de massa. Mesmo em plena voga da contracultura, em 1972, Caetano Veloso ainda ressalta, em entrevista para a revista underground Navilouca: “O nosso machonalismo é merdavarelo e puti”. A frase que conclui o Manifesto Verde-Amarelo é ridicularizada, e nacionalismo é equacionado com machismo, fezes e prostituição. O tropicalismo tendeu a se dissolver em meio à contracultura.

A preferência por Carmen Miranda em detrimento de Villa-Lobos no tropicalismo é explicável pela postura getulista assumida pelo maestro:

O movimento de 1930 traçava novas diretrizes políticas e culturais, apontando ao Brasil rumos decisivos, de acordo com o seu processo lógico de evolução histórica: Cheio de fé na força poderosa da música, senti que era chegado o momento de realizar uma alta e nobre missão educadora dentro de minha pátria. Senti que era preciso dirigir o pensamento às crianças e ao povo. E resolvi iniciar uma campanha pelo ensino popular da música no Brasil, crente de que o canto orfeônico é uma fonte de energia cívica vitalizadora e um poderoso fator educacional. 27

Para Caetano e Gil, que tinham o desejo de fazer um “som universal”, essa combinação de música erudita, nacionalismo e pedagogia do canto orfeônico provavelmente não lhes deve ter parecido adequada, tanto pela maior dificuldade que encontra a música clássica para a divulgação massiva, quanto pelo teor ideológico nacional-popular.

No filme Tudo Bem (1978), de Arnaldo Jabor, enfoque semelhante é dado à questão nacional. O personagem de Paulo Gracindo (Juarez), é um aposentado do IBGE, ingênuo e sonhador amante das coisas brasileiras, espécie de Policarpo Quaresma moderno. Ele recebe a visita de seus fantasmas de juventude: Luiz Linhares (Pedro Penteado), poeta romântico egresso do eterno Parnaso, Fernando Torres (Giacometti) empresário de baixo nível do capitalismo selvagem, servil a velhos conceitos de progresso industrial. E finalmente, Jorge Loredo (Alarico Sombra), uma figura mesclada das nostálgicas caricaturas do integralismo brasileiro. Plínio Salgado é citado já no perfil dos personagens. Alarico Sombra morreu bêbado em Vassouras, redator do jornal O Camisa Verde. Uma frase pronunciada por Plínio Salgado em 1932 é citada: “Em nome da liberdade, a raça humana caminha para a ruína total.” Jabor, como entusiasta das experiências tropicalistas e um dos expoentes do Cinema Novo, entroniza Alarico Sombra como um dos fantasmas da nacionalidade:

Alarico Sombra (lendo): - “Benditos os povos que desaparecem lutando, pois a guerra é sagrada e justa, a conseqüência trágica a que Deus condenou todos os povos”...

Juarez (embevecido) - Ah, Alarico...você é um visionário!

Alarico (meio bêbado, meio místico) - Visionário é o cacete! Tá me estranhando, Juarez. Diga aí nesse jornal da minha ferocidade patriótica. (...)

Alarico – Vocês se lembram daqueles papagaios que eu ganhei do sobrinho do Mussolini, no tempo em que eu era mestre-escola? Pois os três papagaios cantavam em italiano: ‘Giovinezza, giovinezza, primavera de belleza!’ , o hino fascista. Pois estrangulei os três papagaios ali na frente dos alunos todos, torci-lhes o pescoço e ainda comi um assado! Eu concordava com as idéias, mas que fossem ditas em língua nacional! Põe isso aí no jornal, põe Juarez!28

Jabor satirizou acima um trecho de O Estrangeiro, romance de Plínio Salgado, em que o professor nacionalista Juvêncio tenta restaurar a brasilidade de alguns papagaios que haviam aprendido o hino fascista italiano:

-Vou curá-los no sertão.

Mas foi inútil...

O Tietê tombou, de chofre, com ribombo e estilhas. Catadupa de ouro líquido. (...) E os papagaios de Carmine gritavam, roucos:

Giovinezza, giovinezza,

primavèra di bellezza!

Uma grande arara gargalhou gostosa no alto de um Ipê. Juvêncio, de pé sobre uma rocha, exclamou:

-Quem ri desta cachoeira? (...)

Agarrou, então, os papagaios – giovinezza! giovinezza! –e, um por um, os foi estrangulando, atirando-os na onda brava da catadupa.

-Indignos todos os seres que falam como os papagaios, sem por nas palavras a força e o calor da Terra! Indignos todos os homens que falam com os lábios e acabam transformando-se na insensibilidade dos fonógrafos!29

Noutro momento, Giacometti, defensor do capital estrangeiro, repete uma frase do ex-presidente Washington Luís, amigo pessoal de Oswald e Plínio Salgado: “Além disso, estrangeiro nessa terra é todo mundo, menos os índios.” A frase é dita por um defensor do capitalismo selvagem e dos estrangeiros que, segundo ele, “trouxeram a indústria para esta terra”, país onde até penico era importado. Até o poeta parnasiano/romântico/castroalvista recita Plínio Salgado, num “fecho de ouro” que encerrará uma simples carta de Juarez contra a sonegação da carne, carta esta transformada em extravagante profecia:

Juarez – Agora, o fecho de ouro, o fecho de ouro, poeta!

Os três ‘amigos’ acorrem para junto de Juarez, enquanto Penteado, o poeta, declama solenemente, com a fronte erguida, o gesto parnasiano.

Penteado – “As trevas caíram, o sol está negro, mas eu ouço duzentos milhões de homens andando no mapa do Brasil. São multidões que crescem de todos os lados, ouço passos andando, milhões de passos andando, andando, andando! Para onde?” 30

Neste momento, é o poeta, que aparece como um habitante da torre de marfim, aéreo, que cita O Esperado, romance da trilogia O Estrangeiro, O Esperado e O Cavaleiro de Itararé, escrita por Plínio Salgado entre 1927 e 1933. Os quatro compartilham do nacionalismo verde e amarelo, inclusive Juarez, aposentado impotente que o filme trata com certa complacência. Neste filme, o nacionalismo caricatural e grotesco de Juarez é mostrado em contraponto com a corrupção e desinteresse dos filhos, Vera Lúcia (Regina Casé) e Luiz Fernando Guimarães (Zé Roberto). Vera Lúcia é apresentada como “típica jovem da burguesia brasileira”, que deseja o rico americano Bill Thompson (Paulo César Pereio) enquanto Zé Roberto “tem as características gargalhantes da nova geração tecnocrata do país.” Supomos que a mensagem do filme, em conformidade com o ideário tropicalista de aproximar todo nacionalismo com o verde-amarelismo, é que qualquer resistência nacionalista é impotente para evitar a dominação imperialista americana. O filme se encerra:

Corte brusco: Explode na tela uma vista aérea das Cataratas do Iguaçu, enquanto sobem os acordes finais de uma grande orquestra tocando ‘Around the world...’ no estilo típico de um fim de filme americano, sobre as matas brasileiras, onde se inscreve a palavra FIM.31

No momento em que surgem, os tropicalistas, numa postura verdadeiramente arriscada, atacam tanto o nacionalismo verde e amarelo, promovido pela tradição do exército, quanto o nacionalismo populista, opositor dos militares, apresentando-os simbolicamente como complementares. Essa posição anti-nacionalista era verdadeiramente transgressora, pois passaram a ser vistos com desconfiança por Edu Lobo, Sérgio Ricardo, Augusto Boal e, principalmente, Geraldo Vandré e outros no meio artístico, irritando também Chico Buarque. Outro efeito foi a repressão que sobre eles se abateu, pois o regime militar acabou por prender Caetano e Gil em 1969, não por acaso, com a acusação de desrespeito ao hino nacional. O próprio Plínio Salgado colaborou para a interpretação que fundia o nacionalismo num todo ideologicamente único, ao reivindicar o pionerismo desta atitude, em pleno governo João Goulart:

Porém, este movimento, que surgiu em 1922, com ímpeto de renovação, pouco depois dividia-se em várias outras correntes. Entre estas correntes, temos de memorar o Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, o notável escritor autor de Serafim Ponte Grande, das Memórias Sentimentais de João Miramar, tão típico e tão pessoal na sua forma literária. Mas nós, sr. Deputado, com Cassiano Ricardo, Mota Filho, Alfredo Ellis, Raul Bopp, desfraldamos nova bandeira, a bandeira do verde-amarelismo, que queria capitalizar para o nacionalismo brasileiro a nova revolução literária e artística do Brasil. Aquele movimento verde e amarelo foi o precursor de todo o nacionalismo hoje existente no País.32

Glauber Rocha, ao falar do início de sua carreira, falou de passagem de um flerte com a “ideologia curupira”. Num poema de 1965, Glauber celebra que o “nacionalismo não é mais verde e amarelo”. Este retorno obsessivo demonstra, a meu ver, a presença do modelo negativo:

Depois de Rio, 40 Graus, eu e José Telles, com mais o resto dos amigos poetas, resolvemos fazer um filme. Fomos pedir ajuda a Hélio Machado. Lá encontrei Ariovaldo Matos. Ele mesmo conseguiu 50 contos com Heitor Dias, verba com a qual eu ia pagar O Pátio, mais tarde. Ari me chamou para colaborar no Momento e eu, que era meio integralista, fiquei orgulhoso e passei para a esquerda.33

O livro de Caetano Veloso também revela que suas primeiras contribuições para a cultura brasileira, antes de se tornar um cantor e compositor conhecido, foram artigos criticando as posições de José Ramos Tinhorão, crítico que acusava a bossa-nova de subserviência ao modelo cultural americano:

Mas o primeiro artigo longo que escrevi em minha vida - muito mais longo do que qualquer crítica de cinema que eu tenha escrito antes - foi uma catilinária sobre o livro de José Ramos Tinhorão sobre música popular. Este era um ensaio de sabor sociológico em que a bossa nova aparecia, por um lado, como submissão cultural ao modelo americano e, por outro, como apropriação indébita da cultura popular pela classe média. Era a defesa articulada do ideário nacional-popular que permeava todos os julgamentos dos esquerdistas brasileiros. Escrevi o artigo para uma revista universitária porque achava intolerável que aquelas idéias fossem aceitas sem discussão pelos alunos mais inteligentes da universidade.34

Cito, então, trechos do artigo de José Ramos Tinhorão referido por Caetano:

Num determinado momento chegou a parecer que o samba não existia mais. No entanto, bastou a cantora Nara Leão transformar em coisa bem cantar os sambas de compositores de camadas populares (Zé Keti, João do Vale) e logo, com os espetáculos Opinião e Rosa de Ouro, se verificou que o samba de linha tradicional continuava a ser cultivado inclusive por compositores que já tinham uma aura de sucesso há trinta anos atrás. (...) As novas camadas urbanas brasileiras, representadas essencialmente pelos moradores da zona sul do Rio sentiram o esgotamento do modelo norte-americano. As suas sessões de jazz se transformaram em samba-sessions, nas quais temas melódicos de músicas brasileiras do momento eram tratados em forma de jazz.

Por volta de 1958, esses grupos de músicos jovens descobriram que estavam também num beco sem saída. A saída foi fornecida pela estilização rítmica descoberta pelo violonista e cantor João Gilberto. (...) Nesse momento, estava criado um tipo de jazz, mas num sentido inteiramente original: a matéria-prima era brasileira e a forma, americana. Ora, como é regra geral nas relações de países mais desenvolvidos com países menos desenvolvidos, o segundo entra com a matéria-prima e o primeiro lhe devolve o produto manufaturado. Seria, portanto, uma contradição que a bossa nova continuasse a exportar para os Estados Unidos um produto que afinal era norte-americano.35

Contra a argumentação de Tinhorão, Caetano opunha uma “linha evolutiva da música popular brasileira”. Segundo ele, seu trabalho e o de Gil davam continuidade à inovação realizada pela bossa nova, fundindo o iê-iê-iê e a MPB. Um questionamento que ficou no ar, e que deveria ser feito ainda nos tempos que correm, é onde está essa linha evolutiva hoje em dia. Depois que o tropicalismo foi introduzido no mundo do mercado e tornou-se uma moda, sua transgressão passou aos poucos a ser aceita, primeiro pelos meios de comunicação, depois pelos júris dos festivais e finalmente, pelas universidades, especialmente a USP. Gil, em meio às reações dos nacionalistas, reagiu fazendo a defesa dos tropicalistas contra:

A crise de insegurança que, gerando outros preconceitos, tomou conta da música popular brasileira e ameaçou interromper a sua marcha evolutiva. Crise que se aguçou nos últimos tempos, com a sintomatologia do temor e do ressentimento, ante o fenômeno musical dos Beatles, sua projeção internacional e sua repercussão local na música da jovem guarda. (Gil, 1982: 19)

Diante da explosão do rock nacional na mídia brasileira, ocorrida por volta de 1985, Gilberto Gil renova seu otimismo em observar que a tropicália abriu espaço para o rock brasileiro, fez o serviço de tratoragem, de revolver terra. As questões postas em pauta com a voga do tropicalismo voltam continuam a ser debatidas nos anos 80, mas nessa década a questão da defesa das singularidades nacionais contra a massificação da indústria cultural sediada nos EUA e Inglaterra vai se tornando paulatinamente um tópico esvaziado e sai de pauta dos debates intelectuais sérios.

Com o sinal trocado, José Ramos Tinhorão resume o mesmo processo de um modo inteiramente diverso:

(...) o tropicalismo (...) não deixou de cumprir seu papel de vanguarda do governo de 1964 na área da música popular: rompidas as resistências da parte politicamente consciente da classe média universitária, que tentava a defesa de uma música de matrizes brasileiras, as guitarras do som universal puderam completar sua ocupação do mercado brasileiro. E assim, a partir da década de 70, em lugar do produto musical de exportação prometido pelos baianos com a ‘retomada da linha evolutiva’, instalou-se nos meios de comunicação e da indústria do lazer, definitivamente, a era do rock. O qual, aliás, muito tropicalisticamente, o espírito satisfeito dos colonizados passaria a chamar, a partir da década de 1980, de rock brasileiro. (Tinhorão, 1986: 267)

Notas:

1. Veloso, Caetano. p. 245: 1997.

2. Idem, p. 249-250: 1997.

3. Idem, p.250: 1997.

4. Idem, p.252: 1997.

5. Idem, p. 254: 1997.

6. Rocha, Glauber: 1965.

7. Veloso, Caetano, p. 260: 1997.

8. Idem, p.200: 1997.

9. Idem, p. 261: 1997.

10. Idem, p.268: 1997.

11. Roaunet, Sérgio, p.12: 1992.

12. Vasconcellos, Gilberto, p.215-216: 1997.

13. Brito, Antônio Carlos de. p.699: 1972.

14. Wisnik, José Miguel: 1982.

15. Mir, Luís, p.18: 1994.

16. Rocha, Glauber. IN: Vasconcellos, Gilberto. p.210: 1997.

17. Veloso, Caetano. p.210: 1997.

18. Varela, Dailor. p. 190-191:1972.

19.Andrade, Carlos Drummond de, p. 210: 1978.

20 Ferreira, p.107: 1978.

21. Campos, p.124: 1978.

22. Calado, Carlos. p. 109: 1997.

23. Calado, p.112: 1997.

24. Schwarz, Roberto, p.33: 1984.

25. Villa-Lobos, Heitor, p. 88-89: 1987.

26. Jabor, Arnaldo, p.16: 1978.

27. Salgado, Plínio, p.266: 1937.

28. Jabor, Arnaldo, p.19, 1978.

29. Jabor, Arnaldo, p.93, 1978.

30. Salgado, Plínio, 1972.

31. Rocha, Glauber. Revista Istoé, 2/09/82.

32. Veloso, Caetano, p. 114-115: 1997.

33. Tinhorão, José Ramos, 1965.

34. Calado, Carlos, p.201: 1997.

35. Rocha, Glauber. Revista Manchete, 1968.

Referências Bibliográficas::

1. Veloso, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.245.

2. Idem, p.249-250, 1997.

3. Idem, p.250, 1997.

4. Idem, p.252, 1997.

5. Idem, p.254, 1997.

6. Rocha, Glauber. Uma Estética da Fome, 1965. IN: Arte em Revista, São Paulo: Editora Kairós, 1979, p.17.

7. Veloso. Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.260.

8. Idem, p.200, 1997, p.200.

9. Idem, p.261, 1997, p.261.

10. Idem, 268, 1997, p.268.

11. Roaunet, Sérgio Paulo. O Mal-Estar na Modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.12.

12. Vasconcellos, Gilberto. O Príncipe da Moeda. Rio de Janeiro, Editora Espaço e Tempo, 1997, p. 215-216.

13. Brito. Antônio Carlos de. Tropicalismo, Sua Estética, Sua História. Ano 66, número 9, 1972, p. 699.

14.Wisnik. José Miguel. Estado, Arte e Política em Villa-Lobos, Vargas e Glauber. Folhetim número 283, São Paulo, 20-06-1982.

15. Mir, Luís. A Revolução Impossível. São Paulo: Editora Best-Seller, 1994, p.

16. Rocha, Glauber, 1974-79. IN: O Príncipe da Moeda, Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1997, p.210.

17. Veloso, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p.210.

18. Andrade, Carlos Drummond de. In: Ferreira, 1978, p.210.

19. Varela. Dailor. Da Tropicália ao Lamê. Revista Vozes, número 3, 1972. p.190-191.

20. Ferreira, p.107, 1978, p.107.

21 Campos, p.124, 1978, p. 124.

22. Calado, Carlos. Tropicália, São Paulo: Editora 34, 1997, p.109.

23. Idem, 1997, p.112.

24. Schwarz, Roberto. Que Horas São. São Paulo, Companhia das Letras, 1984, p.33.

25. Villa-Lobos, Heitor. IN: O Pensamento Vivo de Villa-Lobos, São Paulo: Editora Martin Claret, 1987, p.88-89.

26. Jabor, Arnaldo. Tudo Bem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p.16.

27. Salgado, Plínio. O Estrangeiro, Rio de Janeiro: José Olímpio Editora, 1937, p.266.

28. Jabor, Arnaldo. Tudo Bem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p.19.

29. Jabor, Arnaldo. Tudo Bem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p.93.

30. Salgado, Plínio. Aparte ao discurso de Menotti del Picchia na Câmara dos Deputados, quando das comemorações dos cinqüenta anos da Semana de 22. IN: Amaral, Aracy. As Artes Plásticas na Semana de 22. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1972.

31. Rocha, Glauber. Autobiografia escrita por Glauber em 1962, Revista Isto É, São Paulo, 2/09/1981.

32. Veloso, Caetano. Verdade Tropical, São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.114-115.

33. Tinhorão. José Ramos. Revista Civilização Brasileira, número 3, 1965. IN: Arte em Revista, ano 1, número 1, janeiro/março de 1979.

34. Calado, Carlos. Tropicália. São Paulo: Editora 34, p.201, 1997.

35. Rocha, Glauber. Revista Manchete. São Paulo: 1968.