quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

O Pensamento de Otávio de Faria entre Cristo e César

Nascido no Rio de Janeiro em 1908 e morto nesta mesma cidade em 1980, Octavio era filho de Alberto de Faria, escritor acadêmico. Na adolescência lia romances de Victor Hugo, Júlio Verne e Alexandre Dumas. Vivia num ambiente intelectualizado desde a infância, convivendo desde garoto com Alceu Amoroso Lima, Afrânio Peixoto e outros, como Vinícius de Moraes e Augusto Frederico Schmidt. Sobre estes dois últimos publicou um ensaio, Dois Poetas, pela editora Ariel, analisando-lhes a obra.

O pensamento de Octavio de Faria tem influências de Kierkegaard e León Bloy. Só que OF parte de Kierkegaard e se entrega à influência de Bloy. Kierkegaard era protestante. Octavio encontra em Bloy um “Kierkegaard de religião católica”. Só que, como disse Ernani Reichmann em seu livro sobre Octavio de Faria, “Léon Bloy continua onde Kierkegaard parou.” Cito Ernani Reichmann, autor do estudo “O Trágico em Otávio de Faria”. Reichmann é claramente católico e admirador do escritor.

Kierkegaard insiste que sua tarefa era aquela que Deus põe no extraordinário, à exceção. Sua responsabilidade era uma responsabilidade única e exclusivamente diante de Deus. Repetiu-se com ele exatamente o que escrevera sobre Abrão, com a diferença de que foi o Abrão e o Isac de si mesmo. Um Isac que não teve cordeiro algum para substituí-lo no altar do sacrifício. Abrão, o cavaleiro da fé, não podia gritar como os heróis trágicos, para que seu sofrimento viesse a ser compreendido e lamentado. Ninguém ousaria participar do sofrimento de Abrão. Mas Abrão acreditou para este mundo. Depois de submetido à prova, voltou a viver como antes do chamado de Deus, nos limites da ética ou do geral. A ordem do sacrifício de Isac, porém, marcou sua vida anterior e posterior. Se Isac fora uma graça de Deus, como poderia este mesmo Deus exigir-lhe o filho da esperança? Mas Abrão não duvidou um só instante(teve fé suficiente para não duvidar) que Isac lhe seria restituído. E saiu a cumprir a ordem do Senhor. A diferença que separa o herói trágico e Abrão, escreve K, em ‘Temor e Tremor’, salta aos olhos. O primeiro permanece na esfera da moral. Reduz a relação entre pai e filho ou entre filho e pai a um sentimento cuja dialética se refere à idéia de moralidade. Não se trata aqui, por conseguinte, de uma suspensão teológica da moral. Muito diferente é o caso de Abrão. Por seu ato, este franqueou o estádio moral.(...) O herói trágico, continua K, tem necessidade de lágrimas e as reclama. Com Abrão não se pode chorar. Aproximamo-nos dele com um ‘horror religioso’, como Israel se aproximava do Sinai.

Kierkegaard pôs o estético a serviço do religioso. É o que se pode ler em ‘Ponto de Vista Explicativo de Minha Obra’:

‘Não, não é possível destruir uma ilusão diretamente e só por meios indiretos se pode arrancá-la pela raiz. Se todos se iludem ao pensar que são cristãos e se é preciso lutar contra isso, a ação deve ser conduzida indiretamente e não por um homem que proclame em alto e bom som que é um cristão extraordinário, mas por um homem que, melhor informado, procure passar por como não-cristão’.

Diante dessas palavras de K, somos tentados a perguntar: teria Octavio de Faria colocado seus romances, desde o primeiro (de 1937), a serviço do religioso? A resposta a esta pergunta talvez pudesse ser dada nos seguintes termos: em certo sentido, sim. Noutro sentido, não. OF (acredito mesmo que jamais pensou numa coisa dessas) não faz romance para edificação de ninguém. Não coloca, como K, o estético a serviço do religioso. No entanto, sendo cristão, sua obra forçosamente reflete sua concepção da vida e do mundo. E, refletindo (aqui sucede algo curioso), pode servir à edificação, mas a uma edificação marginal aos propósitos do autor, toda ela por conta do leitor. Se alguém viesse a me dizer que se converteu ao catolicismo ao ler os romances de ‘Tragédia Burguesa’, creio que esta revelação não me causaria o menor espanto”.

Aqui Reichmann defende Octavio de uma possível crítica, a de submeter o estético ao religioso. Mas a visão de OF coloca a arte submetida a valores morais, tal como Tolstói e Platão. A posição de OF é oposta ao esteticismo de um Huysmans e de um Wilde. Só que a qualidade literária da prosa de OF não diminui quando ele expõe sua concepção de vida e do mundo. Otávio em momento algum faz propaganda da religião católica, mas como cria um universo paralelo que está em consonância com os fundamentos desta doutrina, tem a capacidade de convencer. Reichmann não se surpreende devido a isso.

“Há um conflito básico, um verdadeiro dilema kierkegaaardiano: uma vida chamando para o lodo das ruas e outra, para a sombra de Deus.

Só não sofrem o conflito aqueles que cedo são roubados à vida(caso de Carlos Eduardo) ou os que recebem a pureza como um dom de Deus. Esse o grande traço da concepção religiosa de Octavio de Faria e sobre ele assenta-se a construção da Tragédia Burguesa. (...) Os que tem escrito sobre Octavio de Faria procuram limitar-se à sua arte como criador de personagens e autor de romances, mas não se deram ao trabalho de descer um pouco mais nos segredos do seu pensamento, de suas experiência existencial, sempre presente nos romances, mas profundos demais para os críticos, pessoas extremamente versáteis e extremamente ocupadas.” (...) “A ordem cósmica para OF só pode ser entendida tendo por base o amor, que constrói ou destrói, mata. E o mundo, um mundo onde a redenção tornou-se possível pelo sacrifício de Cristo. Mundo sobrenatural, ao lado do mundo natural. Se estão subordinados, em termos doutrinários, não o estão na realidade, como esta surge na TB. Não fossem valores iguais, de igual grandeza, a TB seria obra de moralista e não de romancista trágico. Chega a ser espantoso o mundo da vida (natural) quando os personagens de TB topam com esse mundo dentro deles mesmos, numa condição que exige exclusividade. (...) O homem de OF tem duas dimensões. Uma é dada pelo natural. Outra, pelo sobrenatural. Uma terceira surge do conflito entre as duas primeiras. Na verdade, poder-se-ia dizer que, para o criador de TB, só o homem em conflito(consciente desse conflito), existe”(...) “Para OF, o homem deve manter acesa sua luta pelo impossível. (...) Existe uma falsa harmonia, construída artificialmente e é aquela que surge do acomodamento burguês. (...) O quadro, a moldura, de TB, incontestavelmente sempre é burguês.”

Esta última afirmação de Eichmann é muito acertada-a única classe retratada em pormenores na TB é a burguesia. E é a burguesia de um país em especial, o Brasil. Vale a pena anotar que essa burguesia tem impregnada nela o sentimentalismo sensual de origem lusitana. A burguesia no Brasil é constituída majoritariamente de descendentes dos colonizadores europeus em boa parte oriundos da península.

“Os grandes, os maiores personagens de OF são todos as vítimas da dissolução da burguesia. Os burgueses, esses, vivem comodamente suas pequenas vidas, preocupados com sua posição dentro da sociedade, falando de cátedra, comportando-se como vitoriosos, exatamente porque tudo, para eles, consiste em galgar esta posição.

O mundo católico vivia na órbita da aceitação da natureza com suas exigências materiais, terrestres, e, por isso, era preciso ultrapassá-lo. O corpo não devia existir. O corpo não existia. Dar-lhe realidade, admiti-lo como o outro lado da moeda, era transigir, era capitular, era pecar (nesta altura Branco é anti-nietzscheano puro). Deus era o ideal a ser atingido e não se caminhava em direção a Ele se jogavam amarras na terra ( o lar, a família, os segredos da alcova...)-se se aceitava a lei dos membros, do corpo corrompido.”

Nas Notas sobre Octavio de Faria, escreve Ernani Reichmann:

“Quais eram as preocupações de Octavio de faria em 1931, isto é, aos seus vinte e três anos de idade? Quais, em 1933 e em 1937? Responder a estas perguntas é, de certa maneira, mostrar o caminho percorrido pelo criador de ‘Tragédia Burguesa’, ou a sua posição diante de Cristo e de Cesar. Não excluiremos, porém, a possibilidade de uma opção, que parece fundamentar a concepção da vida nos romances de Octavio de Faria, desde ‘Mundos Mortos’, isto é, a partir de 1937.

Acreditamos não exagerar ao dizer que Octávio de Faria colocou a tônica inicialmente em Cesar. E, também, ao dizer que de ‘Machiavel e o Brasil’, a ‘Destino do Socialismo’, ele deu um passo, avançando do problema nacional para o mundial, mas sem que perdesse de vista o Brasil (NB-Essas obras tiveram como ponto de partida um trabalho que o autor retirou da lista de suas publicações. Trata-se de “Desordem do Mundo Moderno”, tese apresentada ao Centro de Estudos Jurídicos e Sociais, em 1930.)

Octavio escreve em Maquiavel e o Brasil: “é da reforma do homem que é preciso cuidar, antes ou concomitantemente com a reforma do ‘homem brasileiro’. É o homem que é preciso atacar e cercear, dominar e corrigir, orientar, vigiar, para que depois o homem no Brasil possa ser honesto diante do Estado, útil à sociedade, capaz na sua vida de família, forte diante de si mesmo.”

“Essa sociedade burguesa que não sabe e não ousa se defender, não merece outro fim. Diz com razão Tristão de Athayde: ‘O que vemos, porém, antes de tudo, é a agonia inconsciente da burguesia, é o suicídio sorridente da burguesia’.” (Ibidem, pg.188)

“Uma burguesia que vive sem cuidar que como classe social privilegiada está oprimindo (fazendo sofrer materialmente pelo menos) uma outra classe social. Um proletariado que já sonha com a opressão que vai exercer amanhã sobre os que o oprimem hoje. Uns e outros, apavorados com o sofrimento próprio-real ou possível-fogem covardemente. Uma sociedade perdida por todas as falências a fugir desesperadamente de um pouquinho de sofrimento, de meia dúzia de privações que a regenerariam talvez. É o Brasil.” (Ibidem, pg. 202).(...) “Essa crítica da burguesia, porém, não ficaria limitada a ‘Maquiavel e o Brasil’. Também em ‘Destino do Socialismo’ as críticas se fazem presentes.”

“A essa classe-a essa burguesia cega e desmoralizada, unicamente preocupada em conservar as suas vantagens para gozá-las o mais materialmente que lhe seja possível-de lutar com os seus meios, ineficientes e entretanto extremamente prejudiciais-pois cada dia envenenam mais o conflito que é preciso resolver-contra o socialismo revolucionário desencadeado.”(Ibidem, pg. 81).

A questão é que a burguesia deveria deixar de existir e com ela o capitalismo? Parece que para OF, não. Ela deveria mudar e combater o socialismo? Isso ela fez com eficácia no Brasil. Só não mudou no sentido que Octavio preferiria que ela mudasse-no sentido de viver os valores cristãos. Mas desde a Idade Média a burguesia começou a relegar os valores cristãos à posição de máscara ideológica que ela põe e tira à vontade. Octavio, por mais que tentasse, não conseguiria reverter tal processo. Há o agravante que o cristianismo brasileiro nos veio a reboque da colonização portuguesa e da Igreja Católica ibérica. Uma religiosidade que era mais afeita às cerimônias do culto, à fachada, ao brilho do ornamento do que da vivência de um espírito cristão. O problema que atormentava OF já vinha de longe, portanto.

“Não podemos indagar aqui das causas que levam a burguesia a esse verdadeiro suicídio.”(Ibidem, pg. 257).

“E é o mesmo Nietzsche quem nos mostra em Flaubert-intelectual típico da época-um obcecado pela estupidez burguesa, sempre encarniçado em persegui-la até os últimos limites.”(Ibidem, pg. 280).

“E como a observação do culto divino é a causa da grandeza de uma república, do mesmo modo o seu desprezo é a fonte de sua ruína.” (“Maquiavel e o Brasil”, pgs. 240-41)

Em “Machiavel e o Brasil”, analisa Reichmann, Octavio utiliza duas expressões, que depois levou às últimas conseqüências: “a moralização absoluta”e “o máximo de princípios religiosos”. A partir destas se desenvolve seu livro “Cristo e Cesar”(José Olímpio Editora, Rio, 1937). Ele próprio comenta:

“Cristo e Cesar, problema que não é possível afastar, desviar, evitar, mas que se deve resolver de frente conscientemente, por um sim ou por um não inequívocos segundo o preceito evangélico: problema que tem de ser resolvido não separando Cristo de Cesar ou Cesar de Cristo, mas na totalidade de relação de um com outro, face a face, com os símbolos que seus destinos contêm...”(Ibidem, pg. 63).

“O ensaísta rejeita a escolha entre Cristo e Cesar, rejeita-a pelo sangue cristão que lhe corre nas veias e pelas raízes humanas que o prendem à terra”, diz Reichmann. Octavio pergunta:

“Como se pronunciar, preferir, quando se trata de dois senhores, dos quais um é senhor do céu e da terra inteira, de tudo o que existe e existiu e o outro possui apenas, em cada momento histórico, um pobre rincão limitado numa misérrima parcela do universo?”

A partir deste livro a concepção da vida e do mundo de Octavio estará consolidada, e ele começará então a escrever uma série de romances aos quais daria o nome de Tragédia Burguesa. O primeiro da série e o único que pretendo analisar aqui é “Mundos Mortos”, de 1937. Em Cristo e Cesar, Otávio afirma que “Sem dúvida, existe a possibilidade de escolher o Cristo, deixando Cesar. Essa é mesmo, aos nossos olhos, a única escolha compreensível...”(Ibidem, pg.225). Reichmann, crítico superprotetor de OF, frisa pateticamente que não há escolha, mas esta frase da página 225 explicita que ela foi feita.

O que Octavio não esclareceu é que, se ele pode escolher o Cristo, outrem deve poder escolher Cesar. Trata-se de uma via de mão dupla? Isso fica subentendido no trecho acima, mas OF não acha a outra escolha “compreensível”. O que o ensaísta também não coloca é o fato de que, enquanto Deus não se interessa em tomar o posto de Cesar, por ter provalvelmente muito mais universos com os quais se ocupar, os Césares costumam assumir o posto de Deus. E em seus rincões o que vale é a lei do mais forte. Eles praticam a justiça tanto quanto a injustiça em nome de Deus. Geralmente eles nomeiam os porta-vozes divinos aqui na Terra ou “permitem” que a voz de Deus se manifeste através de suas bocas, dando expressão terrena às suas naturezas de deuses de carne e osso. Considero que a crítica de Octavio-como humanista católico-à desumanização do marxismo praticado na URSS é correta e válida. No entanto é evidente que ele superestimou a possibilidade de virmos a experimentar qualquer forma de experiência socialista aqui no Brasil. Ao concluir que só uma reação nacionalista poderia salvar o mundo do socialismo, Octavio talvez tenha acertado em cheio um tiro no próprio pé, à luz dos acontecimentos do leste europeu de 1989 em diante. O que Octavio cobrava dos nossos Césares era a presença de um estado forte e organizado para alavancar esta reação ao socialismo. Por outro lado, Octavio de Faria desprezava o burguês. Na biografia de León Bloy ele cita uma frase do “soldado de Deus”:

“Que é o burguês? É um porco que gostaria de morrer de velhice.”(Ibidem, pg.212).

OF critica a burguesia e nunca, inexplicavelmente, o capitalismo, o sistema econômico indissociável da classe que acima é execrada.

Hoje em dia vemos como a efervescência nacionalista costuma provocar tensões em um estado forte e organizado. Com a desintegração do Estado comunista no leste europeu, o nacionalismo gerou vários Estados, mas os habitantes destes têm em comum crenças, cor da pele, origens étnicas, é nisso que tentam se segurar. Os valores cristãos estão mais do que nunca em desgraça num contexto como esse. Os sérvios cristãos matam bósnios muçulmanos com um ardor de purificação. Neste contexto internacional, não caberia uma condenação tão veemente do que não é cristão como a que faz Léon Bloy. Na biografia publicada por Octavio há outra frase do “homem do Absoluto”:

“-Saiba, senhor León Bloy, que sou ateu e materialista.

-Muito bem, caro senhor, estou encantado por saber que estou em presença de um imbecil.”

Dito isso à pg. 269, sabe-se o tipo de influência à qual Octavio acabou se expondo, depois de ter passado uma fase mergulhado em Nietzsche e Gide. Para esclarecer definitivamente, cito mais uma de Bloy, selecionada também por Octavio:

“Tudo o que não é exclusivamente, perdidamente católico, não tem outro direito além do de se calar, sendo apenas digno de limpar os urinóis de hospitais ou de raspar a sujeira aderida às latrinas de uma caserna de infantaria alemã.”(Ibidem, pg. 232)

Reichmann coloca que os pontos principais do pensamento do OF são os seguintes:
1-Preocupação com o homem enquanto verdadeiro ponto arquimédico de toda a sua problemática;

2-Visão cristã do homem, como um ser decaído que deve ser cerceado em sua ação corruptora;

3-Permanência e equilíbrio entre os mundos de Cristo e de Cesar;

4-A liberdade como a mais legítima aspiração humana e distinção entre verdadeira e falsa liberdade; e

5-Possibilidade de uma escolha do mundo de Cristo, em detrimento do mundo de Cesar, como a única escolha possível.

Discordo daquilo colocado por Reichmann no terceiro e no quinto pontos; OF colocava a tônica em Cristo, e não em Cesar. O mundo de Cesar não está em equilíbrio com o mundo de Cristo. Ambos permanecem em sua obra, mas se contrapondo e não se harmonizando. O quinto ponto colocado por Reichmann tem o problema de estar em dissonância com o que foi dito por OF. A escolha do mundo de Cristo é a opção “compreensível”para o escritor-e não a única possível, como coloca Eichmann.

O que tornou possível o esquecimento da obra de Otávio nos dias atuais me parece claro. Sua opção por se deixar levar por um pensador e escritor como Bloy, em detrimento de Nietszche e Gide é lamentável. A impregnação conservadora de seu pensamento emerge quando ele prescreve os antídotos contra o bolchevismo e o materialismo: o nacionalismo e o cristianismo.

Por outro lado, em Mundos Mortos é notável a compreensão de OF da adolescência. Há, em Mundos Mortos, “poderosa compreensão humana da adolescência (...) Também este estudará no livro um caso de homossexualismo(Mário de Andrade compara a visão de Raul Pompéia com a de Otávio). O fará, porém, com uma intensidade, uma força do trágico bem rara na literatura nacional. É que Otávio de Faria trata com aproximação, simpaticamente, mesmo os personagens mais ruins, buscando-lhes descobrir as tendências todas, a luta do bem e do mal inatos, e a profunda seriedade humana com que são adolescentes. Época da vida em que todos reformamos o mundo para melhor...Raul Pompéia, ao contrário, maltrata com impiedade os colegas, distante, sem a menor simpatia, sem a menor compreensão esclarecida da juventude. O Ateneu é um livro de vingança pessoal”.

Em Mundos Mortos, por outro lado, OF é compreensivo com aquilo que é humano-tudo aquilo-mesmo aquilo que ele julga corrompido e mal; é no humanismo cristão que ele se inspira. O que desponta como moralismo cristão é a morte de Carlos Eduardo, ainda “puro”, sem saber sequer que era objeto do amor de Roberto Farias. Essa morte evidencia a visão cristã do mundo que o escritor adota. Dentro do mundo criado por Otávio de Faria as coisas são como deveriam ser para um cristão, e não como estão; aí se esconde uma sutileza do mundo de OF. O acidente que mata Carlos Eduardo passa a ter caráter de ato de origem divina, intervenção de Deus no mundo dos homens. Era assim também com os deuses gregos que intervinham na guerra de Tróia. Na obra de Homero temos a visão grega do mundo, um mundo aos olhos do homem grego. E em OF temos coisa semelhante. A realidade criada por eles dentro de uma obra de arte é que difere. O ato que matou Carlos Eduardo é necessário somente no romance. No romance ele é vontade de Deus. Um acidente de carro ocorre por acaso. Simplesmente se apresenta, simplesmente ocorre. Ele existiu, ocorreu num determinado local o evento que qualificamos de “acidente”. Em outra língua alguém poderia ter dito “acident”, designando o mesmo fato. Isso em nada alteraria o ocorrido. Quando nasce uma criança e os pais decidem chamá-la “Carlos”, seus pais dão um nome àquela criatura de forma arbitrária. Poderiam chamar o garoto de “abacate”ou “xzk”. Estariam somente dando um nome a uma coisa, a uma carne. A vontade divina estaria expressa na vontade dos pais de chamar o filho de “XZK”? E se essa vontade dos pais fosse a vontade de ter um filho e em seguida matá-lo? Se num romance de um autor católico uma criança é assassinada pelos pais, este ato é necessário àquela obra de arte. O acontecer de um assassinato nas mesmas circunstâncias no mundo real não nos daria nenhuma razão para saber se ele é necessário. Um cristão teria fé de que ele é necessário. Mas a fé é uma coisa louca, isto é claro nos evangelhos. Errado é querer dizer que ela é algo racional. Logo, um cristão teria de acreditar que o assassinato foi necessário, mas não de uma forma racional.

Otávio de Faria tem, portanto, uma visão de mundo, uma concepção sobre a vida e sobre a humanidade. Isso fica claro quando ele trata da questão do socialismo. Só que Otávio morreu em 1980 e sua obra caiu no esquecimento. Ele é mais conhecido hoje por sua ligação com Vinícius de Moraes, que foi influenciado por Otávio no início da vida. Mais tarde Vinícius se desligou do amigo, ao menos no que quer dizer à religião, pois o poeta se proclamava ateu.

Uma nova biografia de Vinícius, lançada em 1994, procura uma ligação de natureza homossexual entre OF e o poeta de Garota de Ipanema. O personagem Carlos Eduardo é dado como baseado em Vinícius. Devido a esta suposição do biógrafo a família de Vinícius boicotou o lançamento do livro. Otávio de Faria acaba sempre, como neste episódio, sendo lembrado mais pelos amigos famosos do que pela obra.

Otávio de Faria bem que merecia uma análise de sua vida e obra, hoje marginalizada. Claro que quando escolheu o catolicismo radical de Bloy fez uma escolha que resultou comprometedora para sua permanência como um escritor lido pelas novas gerações. “Deus hoje está fora de cogitação”, como disse Antônio Callado numa crônica da Folha de São Paulo, ao criticar a ausência de religiosidade-ou mesmo de sensibilidade religiosa-nos mais jovens. O pensamento de Otávio de Faria sofreu portanto a ação impiedosa do tempo. Mas sua obra artística conserva o fascínio, como podemos comprovar lendo Mundos Mortos. Este livro e os outros estão à espera de uma análise mais imparcial que a de Reichmann. OF igualmente deveria ser mais valorizado como sendo um artista que pensou o país, o que é raro no Brasil.

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