sábado, 22 de dezembro de 2007

Beco do Escarro: Fragmentos Inéditos de Oswald de Andrade

Decifra-me ou Devoro-te: Fragmentos inéditos de O Beco do Escarro

Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior

Os textos que aqui apresentamos são fragmentos garimpados no arquivo CEDAE/UNICAMP, local onde está o acervo de Oswald de Andrade (foram consultados os cadernos 1272, um caderno marca Guarany 1280 e um caderno azul-marinho, número 1264). São apontamentos esparsos de um romance incompleto. Eles comporiam o terceiro volume do romance cíclico Marco Zero, do qual foram publicados dois volumes: Revolução Melancólica e Chão. Estavam reunidos num caderno de trezentas páginas, mas com anotações somente no início e no fim, sob o título de Beco de Escarro. Em Marco Zero, Beco do Escarro um aglomerado de bares do centro de São Paulo onde viviam os desvalidos da metrópole, bêbados, fracassados, vagabundos e boêmios. São as inúmeras notas para “Beco and After”, datadas de 29-11-1947 e maio de 1948, Oswald fez as seguintes anotações, num conjunto mais substancioso, que foram debatidas aqui. Oswald mesmo afirmou que Beco era o “recomeço de trabalho longo tempo desviado” (ANDRADE, 1947).

Foram textos escritos sob o signo dos reveses que se acumularam para Oswald no fim da vida. Rompido com os comunistas, Oswald ficou numa posição difícil, combatido tanto pela esquerda oficial quanto pelos conservadores, para os quais não era confiável. Para agravar mais o quadro, seu estado de saúde foi piorando entre o final dos anos 40 e o início da década de 50. O primeiro fragmento de Beco do Escarro descreveu o momento em que foi encontrado o corpo da personagem Lindáurea, vítima da “devoração universal”:

Junto ao muro, o boneco de engonço pendia sobre o pequeno saco largado, preso no escuro das árvores. Seguira-se um silêncio de devoração, onde o cigarro do homem não (...) mais. Um automóvel passava estrídulo, luzes vermelhas ativas. O boneco descera, duro, enorme, sobe o saco espedaçado. Lindáurea despendia-se dos braços do homem (...). Um bafo de jasmin inundara a rua deserta (ANDRADE, 1947)

A imagem acima descreveu um corpo tornado objeto, coisa inerte, ou seja, uma denúncia de um processo de desumanização. Todos os fragmentos foram marcados por cenas de mulheres rebeldes: a rebelião contra a vida de Lindáurea, a rebelião de Miguelona contra seu destino e contra a família, a rebelião da filha de Diná, uma adolescente rebelde que teria lido Freud, Schopenhauer e Nietzsche aos 14 anos, que se atreveu a dar “lições de psicanálise”, por supostamente conhecer muito bem esses autores: “Ela (a filha de Diná) retrucou: --você é um imbecil e mamãe é uma cretina. Ela é bonita e moça e podia muito bem ter dez amantes (...). Um atrasado como você, um besta e um chato. Se eu fosse a mamãe te corneava todos os dias!” (ANDRADE, 1947).

A cena seguinte foi montada também de modo a apresentar o universo de um movimento em um fórum como sendo também frio e desumano, além de repleto de contrastes sociais:

Aquilo ali era o Palácio da Justiça. Uma grande construção nova abafada de casas da velha cidade. Miguelona Senofim entrava hipertensa seguindo um grupo de homens. Havia outra mulher no elevador. Saiu atrás dela no último piso. Ali era a secretaria do tribunal. E ela pôs-se a descer, a subir escadas, a percorrer corredores escuros, a espiar as salas abertas e ativas no tumulto do dia jurídico. Tinha tudo dum palácio, a grandiosidade e o aperto, mas parecia uma feira, tal o movimento de pessoas de todos os aspectos sobraçando pastas, levando papéis, saindo, correndo (...).

O elevador despejou-se com ela no primeiro piso. Os circunstantes sorriam. E durante alguns minutos a velha de óculos pateteou pelos páteos, pelos corredores até que um grilo levou-a ao vasto peristilo central e lhe mostrou a porta do júri fechada.

--Está de férias!

Largou-a ali como uma criança abandonada. Ela perdera o objetivo. Encaminhou-se para a saída lateral, mas alguma coisa a retinha. Era impossível que a justiça dormisse enquanto andavam soltos e impunes os assassinos, os traidores e os ladrões de sua classe.

Mais adiante, Miguelona sentiu a “tragédia econômica” de sua vida, pois sua irmã, D. Europa, fora mais sabida do que ela: “Ela nunca mexera com o que tinha recebido – aquele renque de casinhas operárias da rua Espósito.” Já a parte de Miguelona, uma vila numa ponte terrosa da Móoca e os dois sobradinhos na Rua dos Estudantes, ela trocou pelas terras imaginárias do Major. Chorando e xingando, Miguelona repetiu para todos no fórum seu infortúnio: “Stô na Formosa pratando argodó di meia. Fui lá que o Índio Cristo deu em cima da Vesguinha e fiz morrê inforcada a Maria Pedrão. Agorra vim aqui e o júri tá fechado! Depois que mitomaro as terra tirrei as lágrima dos óio. Fui robada do Majó! Nigócio com gente grande non faço mais. Donde é a cadeia? Quero i na cadeia (ANDRADE, 1947).

Segue-se um corte e, mais adiante, já estamos na “Vila Miguelona”, espaço criado pela cínica D. Europa. O conflito nessa passagem foi entre a mulher de Zico Venâncio e Maria Parede, um conflito que espelhou o confronto entre a operária e a sedutora comunista de origem burguesa, provocando a revolta da mulher do operário:

Fora roubado (seu homem), primeiro pela causa comunista. Não pudera assistir à agonia do filhinho em 32. Tinham vindo buscá-lo e soltaram-no no final da revolução (...). Crescera seu entusiasmo (de Zico) pelo comunismo como se visse na adesão da burguesa instruída e bonita (Maria Parede) uma confirmação de seu destino político. O comunismo era bom para os ricos, que podiam se esconder, fugir, pagar advogados, receber na prisão a comida dos restaurantes e a visita dos parentes. E não eram espancados. Havia uma porção de gente fina metida com os operários. Era gente formada, mas o Dr. Torres lhe dissera que tudo aquilo era falso. Faziam por vaidade, para terem vida interessante (ANDRADE, 1948).

O tema acima foi recorrente em Beco do Escarro: a crítica ao comunismo. Na prática, continuou existindo a divisão entre pobres e ricos, até mesmo dentro da luta comunista; Maria Parede veio trazer mais problemas para o lar ao seduzir o marido operário:

Estudar a psicologia profunda. A história do homem é a história da sua fome. O homem depois de satisfeita a sua fome tem outra história, outras necessidades daí virem as superestruturas e a divisão em classe. O trabalhismo, a desorientação comum. O sectarismo e a inquietação do proletariado. Prestes abúlico e reformista. Está perdida a grande militância.. A seguir, há uma nota chamada Marco Zero e a Comédia Humana. Oswald escreveu: “Balzac psicanalisa os personagens imediatamente. Tudo isso é pinto perto de O Muro (ANDRADE, 1947).

Outra figura feminina rebelde e insatisfeita com seu casamento foi Stella. Ela surgiu mais adiante, num fragmento intitulado “Via Sacra”, que contou a história de amor entre Stella e Vinícius. Oswald buscou parodiar os diálogos Kitsch de uma fotonovela, inclusive com um diálogo humorístico em que o apetite sexual foi equacionado com a fome orgânica. O drama foi reduzido ao mínimo, numa narrativa simples: Vinícius era casado e Stella, apaixonada, sofria com isso. Logo quando se encontraram, Vinícius disse:

--Bravo, Stella! Uma vez mais você é pontualíssima nos nossos públicos encontros! Faremos novamente a mesma via sacra, apreciando os mesmos programas que este jardim nos oferece (...).

--Vamos ver os peixinhos?

--Porque não? Quantas horas em seu relógio?

--7,30, criança!

--Você disse criança? Por que?

--Irrefletidamente. Sinto-me tão bem (...). Sabe que gosto de versejar?

--Sei também que você não há de querer chegar tonto em casa!

--Ironia?

--Não. Fome. Cansaço. Não está cansadinho?

--Não. Tem fome? Quer amor?

--Não, obrigada. Sinto-me tão bem que nem nisso penso, além de que, nenhum sintoma de apetite.

--Amo-o muito, muito e muito.

--Obrigado, querida. Seja feliz. Que Deus a abençoe (ANDRADE, 1948).

Mais adiante, a moça ingênua, quase tola, contou para o padre de seu amor por um homem casado e levou um cômico sermão. Além dessa verdadeira paródia de uma fotonovela ou dramalhão, onde o oposto do pecado é aquilo que o antropófago mais fez: desejar o alheio. As cenas escritas para Beco do Escarro caracterizaram-se por conter brigas de família, polêmicas e discussões. As figuras de mulher, sempre problemáticas, reaparecem aqui e ali: “O pobre milionário que acumulou fortuna sente-se doente e cansado aos 40 anos e impotente para vencer a turma de Ubaldos e de Fúlvias que tem em casa. A mulher uma pata-choca” (ANDRADE, 1948).

Finalmente, podemos dizer que Oswald buscou onde estavam as deficiências nacionais para aí atacar e produzir uma obra. Primeiro inovou na literatura, produzindo poemas e romances. Depois tentou o teatro e finalmente quis inserir a filosofia como motivo-guia de seus romances. A filosofia, no final de sua vida, foi uma força que o impulsionou. Dela tratou o personagem Dago Lima, nos seguintes termos:

Eu deixaria de ser Eu (nota prerrogativa. Eu quer dizer Kierkegaard, Nietzsche ele). Se não agisse assim. Em pânico diante do Nada que se levanta e opõe em meus caminhos. Como Kierkegaard, a minha verdade está na derrelição metafísica (...). Eu defendo a Gioconda. Identificação de classe. O primeiro sorriso burguês! Era muito fácil, no entanto, recorrer ao humanismo (ANDRADE, 1948).

E assim o texto prosseguiu, com referências às questões existenciais e ao Idiota de Dostoievski, a Sartre, entre outros. Oswald seria um detector de áreas problemáticas da vida artística nacional. É para essas áreas que ele dirigiu seu espírito crítico, sabendo-as carentes de desdobramentos no futuro. Ainda que deixado apenas no esboço, Beco do Escarro serviu como um interessante esboço da paixão de Oswald pela filosofia. Ele buscou, naquele momento, debater o que de mais atual existia na Europa: o existencialismo. Resta-nos investigar o que sobrou de seus experimentos e debater a forma de humanizar o homem, envolvido agora em devorar a si mesmo e ao planeta Terra, como mostram fenômenos como a globalização e o aquecimento global.

Bibliografia:

ANDRADE, Oswald de. Beco do Escarro (fragmentos inéditos produzidos entre 1947 e 1948). Campinas: CEDAE/UNICAMP, 2007.

____________________. Chão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.

___________________. Estética e Política. Rio de Janeiro: Globo, 1992.

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