sábado, 26 de fevereiro de 2022

Annie Ernaux: entre “a memória dos outros” e a escrita de si mesma

 


* Por Luciene Guimarães *

Na mesma década em que nasceu a  escritora Annie Ernaux,  na Normandie, em 1940, que Marguerite Duras, nascida em 1914, começava a publicar sua obra. Em 1985, Duras vence o prêmio Goncourt, pela publicação de O amante. Em 2017, Annie Ernaux recebe o prêmio Marguerite Yourcenar pelo conjunto da sua obra. Bem que as duas escritoras não sejam contemporâneas e a obra de Duras possa se imbuir de um espírito transgressor, as duas escritoras se aproximam pela mesma tradição literária que as consagrou: escrever suas memórias.

Em três livros de Ernaux que chegaram às mãos do leitor, O lugar, Os anos e O acontecimento, (Editora Fósforo, os dois primeiros com tradução de Marília Garcia),  a narrativa da autora vai desenrolado um enorme novelo de um tempo linear, a memória subjetiva e familiar que se mesclam com a memória coletiva. Em O lugar, a história começa nos anos 20, e em Os anos, as memórias se desenrolam desde sua infância, na década de 40, até os anos 2000.

O lugar dessas memórias é justamente  a Normandia, origem de sua família, mas também o lugar que ficou para sempre na História, marcando o fim da Segunda Guerra. As crianças “guardavam na memória todas aquelas histórias”, casos contados pelos adultos, “época fabulosa – da qual entenderiam mais tarde a ordem dos acontecimentos, a Debacle, o Êxodo, a Ocupação, o Desembarque, a Vitória.” No dia em que ficou conhecido como “o dia D”, Annie Ernaux ainda era criança, mas anos mais tarde entendeu o que tudo aquilo significou. A Normandia é também o lugar de Marguerite Duras e que tanto nutriu sua obra e seu processo criativo. Também o lugar onde viveu e trabalhou, escrevendo e filmando, em Trouville, à beira mar, onde passava os verões.

A documentarista Michelle Porte, amiga pessoal de Marguerite Duras, publicou nos anos 70 um livro de entrevistas com a autora sobre os seus lugares, Les lieux de Marguerite Duras. Porte, a mesma que entrevistou Duras, publicou também Le vrai lieu, entrevista com Annie Ernaux. Ao aceitar o convite, como comenta no avant-propos, Ernaux diz estar convencida que o lugar geográfico e social, onde nascemos e vivemos, oferece aos textos escritos, não uma explicação, mas um cenário de fundo da realidade, onde mais ou menos eles são enraizados. Se para Proust, a vida é a própria literatura, para Ernaux, como ela mesma diz a Porte, “a literatura é ou deveria ser a própria iluminação ou a opacidade da vida”.

“A memória dos outros fazia com que fizéssemos parte do mundo”  

“Milhares de palavras vão sumir de repente, palavras que serviram para nomear coisas, rostos de pessoas, ações e sentimentos. Palavras que serviram para organizar o mundo, disparar o coração e umedecer o sexo (…) Tudo vai se apagar em um segundo, o vocabulário acumulado, do berço ao leito final, será eliminado. Restará somente o silêncio, sem palavra alguma para nomeá-lo.”

Em Ernaux, a palavra dá sentido ao mundo, escrever é uma tentativa quase desesperada de agarrar o tempo fugidio da memória familiar, que escapará com os anos e que está atrelada à memória coletiva, “assim como milhares de imagens que estavam na cabeça dos avós mortos há meio século e dos pais também mortos.” É na ânsia de contar essas memórias, e que podem desaparecer, a familiar, a coletiva , onde o lugar da autora se afirma, o que motiva o narrador de Os anos.  Só a escrita pode guardar o que é contado, como se paralisasse a ampulheta do tempo, mas também como se pudesse recuperar o tempo que se esvaiu. “Assim como o desejo sexual, a memória nunca se interrompe. Ela equipara mortos e vivos, pessoas reais e imaginárias, sonhos e história.” O que revela a voz do narrador, que o vivido pode ser organizado numa narrativa.

Em O lugar, em que a autora narra a vida do próprio pai; o avô é também lembrado: “Sempre que me falavam do meu avô, começavam dizendo que ele ‘não sabia ler nem escrever’, como se sua vida e sua personalidade não pudessem ser compreendidas sem esta informação básica.”

Marguerite Duras trataria a memória de forma diferente, pois em Duras, a narrativa da memória é fragmentada e atravessada pelo esquecimento, pelo silêncio, pela dor, pelo trauma, como um testemunho do seu tempo. Já para Annie Ernaux, essa memória se desenrola de forma linear, o tempo é um guia que se detém à narrativa. A história coletiva não se desvencilha da familiar, nem quando são as memórias infantis que prevalecem. Ela tarz crianças que escutam os assuntos da vida dos adultos, na mesa de jantar, por exemplo. “A memória dos outros fazia com que também fizéssemos parte do mundo”, diz o narrador. É assim que o texto de Os anos e O lugar, tecido pelas memórias, é construído. Para o narrador de Os anos, a história familiar e a história coletiva são uma única coisa. Através dos anos, fatos, objetos, eventos da cena francesa do pós-guerra emerge: “A França era imensa e formada por populações que se diferenciavam de acordo com as comidas e os modos de falar. Em julho, os ciclistas do Tour de France atravessavam o país inteiro e nós acompanhávamos o percurso no mapa Michelin preso à parede da cozinha.” À medida que o fio se estende na evolução dos acontecimentos, outras imagens surgem, o desalento da guerra: “Em velhos cartazes, a imagem em três por quatro do general Charles de Gaulle usando um quepe, com o olhar perdido.”

Se em Duras, é através da descrição de uma fotografia que o narrador de O amante começa a desvelar o passado, da mesma forma, em Ernaux, o narrador de Os anos, se vale de fotografias antigas para contar memórias. Annie Ernaux, muito provavelmente leitora de Duras, revela entre as camadas do palimpsesto da escrita, sua influência. Eis onde os processos criativos se encontram. Para Marília Garcia, tradutora arrebatada pela obra de Ernaux, tanto Annie Ernaux quanto Marguerite Duras fazem parte de uma mesma tradição literária, mesma fonte onde bebeu também Proust. Memória involuntária proustiana, memória oscilando entre esquecimento e lembrança durassiana e a memória linear de Ernaux, são modalidades que se divergem. Entretanto, a memória linear de Ernaux evoca também o gênero de Montaigne, o ensaio, como lembra Marília Garcia. Assim, o leitor aprende que nos anos 70 a influência dos anúncios publicitários criava uma sociedade cada vez mais adepta ao consumismo. A sociedade agora tinha um nome, “sociedade de consumo”. Era um fato sem discussão, uma certeza que, gostando ou detestando, não tinha mais volta. “O aumento do preço do petróleo deixava a todos atônitos. O clima de consumo estava no ar e havia uma apropriação das coisas e dos bens. Comprávamos uma geladeira duas portas, um Renault R5 no impulso, uma semana no Club Hôtel em Flaine, um studio em Grande-Motte.” Em contrapartida, os ideais de maio 68 impregnaram toda a geração jovem, o feminismo e a conquista do aborto viraram bandeira de protesto pela emancipação feminina. Até que ponto maio de 68 – que ela tem a impressão de ter perdido, pois a vida já estava estabelecida demais – está na origem da pergunta que a deixa sossegada? “Será que eu poderia ser mais feliz se levasse outra vida?” Começa a imaginar a si própria fora da situação conjugal e da família.

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A seguir, entrevista com Marília Garcia, tradutora e também poeta. Depois de traduzir O lugar Os anos, ela trabalha na tradução de A vergonha , que também sai pela Fósforo.

Como foi ou está sendo sua relação com a obra de Annie Ernaux? Antes de traduzir, você já era leitora da autora? Ela era inédita no Brasil? Descobri Annie Ernaux através da tradução, a partir do convite da editora, e a autora já havia sido traduzida, pela editora Objetiva, nos anos 90, mas apenas um livro, A paixão simples. A narrativa de Ernaux me cativou de imediato. O lugar, livro que em ela conta a vida familiar, a história do pai  me comoveu, uma tradução que ao terminar, não pude conter as lágrimas. Por uma questão de agenda, não pude me dedicar à tradução de O acontecimento, [traduzido por Isadora Pontes], livro em que o tema central é o aborto nos anos 60, época em que ainda era proibido na França, um livro que foi adaptado para o cinema [filme de Audrey Diwan, Leão de Ouro no Festival de Veneza] mas estou trabalhando na tradução de A vergonha, o próximo a ser publicado pela Fósforo.

O que você tem a dizer do processo tradutório? Alguma dificuldade no texto de Ernaux? O processo tradutório exige sempre uma releitura, uma “segunda mão”, e esse processo tradutório, pelo menos o processo material, pode ser comparado a uma pintura, que inacabada, precisa de retoques. Como o texto de Annie Ernaux  é impregnado de muitas referências culturais, da cultura francesa, há sempre um cuidado com algumas expressões que aparecem e com as próprias referências. Mas as várias ferramentas de pesquisa que a própria Web proporciona, ajuda bastante.

Há alguma semelhança entre Marguerite Duras e Annie Ernaux. Você crê que Ernaux sofreu influência ou era leitora de Duras? Certamente. É possível que Annie Ernaux tenha conhecido bem a obra de Duras, ou mesmo que ela não tenha lido tudo, elas compartilham da mesma tradição literária.

Você acha que “traduzir é perder”, ou seja que ao verter o texto para outra língua, há algo que se perde? Como poeta, traduzir prosa e poesia impõe diferentes procedimentos? É uma boa pergunta… Talvez haja uma perda porque é impossível fidelidade ao texto de partida, mas há também ganhos, que talvez estejam na recepção da obra, pois o leitor ganha o que não pôde ler em outra língua. Quanto à traduzir prosa e poesia, há uma forma,  ritmo, rima, métrica que se impõe no poema, eis o  desafio.

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Foto de Annie Ernaux: Catherine Hélie (c) Editions Gallimard 

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Duas Cartas de Pedro Rogério Couto Moreira

 


 

A propósito da coluna da semana passada, recebi duas cartas de um importante jornalista que viveu em Bom Despacho, Pedro Rogério Couto Moreira (nascido em 1945, repórter da Globo entre 1978 e 1986, como se pode encontrar no site Memória Globo), o “Pedrim do Sô Benigno”, atualmente residente em Brasília. Pedro publicou os seguintes livros: “Hidrografia Sentimental – Aventuras sem malícia de um repórter na Amazônia”; “O almanaque do Pedrim”; “Bela noite para voar – Um folhetim estrelado por JK”; “Jornal Amoroso”; “Jornal AmorosoEdição Vespertina”; “Amor a Roma, amor em Roma”; “Memórias da diverticulite: Geografia sentimental de Miguel Torga em Minas”; “Passeio pela magia na história de Carlos Magno”; “Palavras cruzadas”; “Diário da falsa Cruz de Caravaca. Sob o céu de Belo Horizonte”; “O livro de Carlinhos Balzac e Fortuna Biográfica de Vivaldi Moreira”.

 Pedro viveu em Bom Despacho entre 1951 e 58. Pedro Rogério foi praticamente o co-autor do livro de Zé Toniquinho, tendo “preparado os originais” desse texto tão marcante para nós. Seguem as cartas:

            No recente artigo “Maura Lopes Cançado: Nossa Maior Escritora”, de autoria do excelente jornalista Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior, foi dito que o meu romance “Bela Noite para Voar” inspirou a minissérie da TV Globo sobre a vida do presidente Juscelino Kubistchek. Há aqui um engano. Na verdade, o livro foi a base do roteiro do filme dirigido por Zelito Viana, com o mesmo título, estrelado por Mariana Ximenes.

            A figura singular de Maura Lopes Cançado foi o molde da criação de Princesa, personagem do meu romance “Bela Noite para Voar”. Maura Lopes Cançado vive no coração de todas as mineiras que amam os desafios da vida.

                A outra carta, encaminhada por Pedro Rogério, mas de outro autor, é de um bondespachense que reside no Rio, o advogado José Márcio Machado Brandão Couto, neto do seu Benigno, que foi coletor federal de 1940 a 1960 em Bom Despacho. Recentemente, depois de ver as fotos de nossa cidade atual, escreveu:

            Só não tinha visto o Campinho do Padre e o pré-Seminário. Desde o final dos anos 80, Bom Despacho tenta modernizar-se. Primeiro, as Tvs e suas novelas tiraram a pureza de uma juventude recatada e avessa a excessos, depois a entrada dos computadores com seus sites acessados sem limite de idade. Engenheiros, querendo tornar a cidade uma megalópole, projetaram e realizaram obras absurdas pro tamanho de Bom Despacho, tais como prédios residenciais altíssimos que, num sinistro de fogo, nenhuma escada Magirus conseguiria salvar alguém. Tragédia à vista.

            Só nos resta mesmo a saudade de uma época lúdica –para nós –quando, inocentes, soltávamos papagaio e jogávamos finca na praça.

            Nem a chegada da cidade foi preservada: da estrada via-se a majestosa torre da igreja matriz; hoje, o cimento de dois espigões empana as bençãos que dali mesmo já recebiam seus visitantes ou simples passantes.

 

 

 

 

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

A Nossa Maura Lopes Cançado: Nossa Maior Escritora

 


 

            Em nossa cidade não faltam artistas e, em especial, escritores. Na cidade há a Academia Bom-Despachense de Letras e até  mesmo um editor anda por aqui, recentemente homenageado pela Câmara Municipal: Eduardo Lucas Andrade, da Editora Literatura em Cena. No entanto, a escritora de renome nacional que já viveu aqui, e pouco celebramos, foi Maura Lopes Cançado. Precisamos dar mais atenção a esse nome. Quem tem esse sobrenome na cidade é parente dela. A esposa do Dr. Clodomiro, Dona Ângela, é parente afastada dela e Rodrigo Anaya Rojas, meu tio, comentou sobre o assunto falando comigo falando na “tia Maura”.

            Maura era filha de um fazendeiro rico de São Gonçalo de Abaeté, ela veio aqui, ainda nos anos 40, aprender a pilotar no bairro São Vicente, então Campo de Aviação – que na época era realmente um aeroporto. Como ela conta em sua “autobiografia” Hospício é Deus, editado pela primeira vez em 1965 e reeditado em 2015 pela Editora Autêntica, ela uma vez quis tentou jogar o avião em cima de uma casa. Ao tentar justificar-se, ela afirmou ser fascinada pela idéia de causar um acidente de avião. Ela não cita Bom Despacho no livro, mas o jornalista Maurício Meireles citou nossa cidade como importante na formação da escritora no prefácio que escreveu para a editora Autêntica.

 Maura, então apenas uma menina de dezesseis anos (ela nasceu em 1929), dividia sua paixão por aviação com Jair Praxedes, filho do famoso Coronel Praxedes (também da mesma idade). Ela contou, em seu diário de hospício, ter sido casada durante um ano com Jair Praxedes, mas ter-se apaixonado pelo seu sogro, desiludindo-se do casamento. Ambos tiveram um filho chamado Cesarion Praxedes O jornalista Pedro Rogério Couto, que vive em Brasília, afirmou que Maura foi uma das fontes inspiradoras de um romance chamado Bela Noite para Voar (2001, Thesauros), livro em que foi baseado um filme de Zelito Viana. A vida e obra de Maura inspiraram também o romance A Origem da Água, de Ana Cristina Braga Martes. A partir dos anos 60, fixou-se no Rio de Janeiro, onde trabalhou no jornal Correio da Manhã e, segundo ela, Fernando Sabino foi quem a indicou para sua primeira editora.

No Rio, conheceu artistas tais como Tônia Carrero, por quem disse, em carta a Vera Brant, ter se sentido desprezada. Maura vivia entrando e saindo de internações em clínicas psiquiátricas. Torquato Neto, jornalista e letrista da tropicália, ficou no mesmo hospital, em Engenho de Dentro (título aproveitado por ele), e citou Hospício é Deus. Em crise, dilapidava heranças, brigava com os amigos, perdia empregos. Depois de sua morte, em 1993, foi lembrada em artigos por Carlos Heitor Cony, Reinaldo Jardim, Nelson de Oliveira e Ferreira Gullar, entre outros. Hoje na internet existem vários vídeos, lives, e várias dissertações de mestrado sobre sua obra.

            Em 2011, no último de nossos festivais de inverno, realizei o roteiro de um vídeo sobre Maura chamado Hospício é Deus, junto do cineasta Sérgio Villaça. Curiosamente, o  vídeo foi colocado no canal de um membro da família Lopes Cançado e teve 3.200 visualizações. Eu convido vocês a verem o vídeo e a sonharem com novos festivais de inverno:

Endereço do vídeo no canal de Jorge Lopes Cançado: <https://www.youtube.com/watch?v=-9KDTXnXbZ4>>.