segunda-feira, 28 de outubro de 2019

O Bolo do Fridirico


O Bolo do Fridirico

Lúcio Emílio do Espírito Santo


Naqueles tempos, a meninada deitava cedo e levantava mais cedo ainda. Pelo menos a meninada da Vila Militar. E olha que não era pouco menino. De cada casa saiam pelo cinco ou seis, de todas as idades e iam formando frojocas em vários pontos das três ruas daquele verdadeiro berçário do 7º Batalhão de Bom Despacho. Junto com o sol, que nascia alí pelos lados da Colônia dos Alemães, não demorava surgir, lá no comecinho da Rua do Meio, o cavalinho do Fridirico, um alazão mestiço, manso que nem gato de armazém. De cada lado da sela, pendiam quatro latões de leite fresco, um peso que chegava a vergar o lombo do animal. Fridirico era o leiteiro da Vila.
No início do século, um programa do governo federal cedeu terra a estrangeiros que desejassem se estabelecer no Brasil. Muitas famílias alemãs vieram residir nos arredores de Bom Despacho. Cultivavam a terra, criavam o gado e prosperaram com o trabalho duro. Fridirico vendia o leite na Vila. Um litro com uma haste era introduzido no latão e servido aos compradores. Muitos moradores reclamavam que a lata estava muito amassada e não continha um litro certinho. Mas o leiteiro nunca trocou a lata e os clientes preferiam confiar no alemão a criar encrenca com uma pessoa tão afável e honesta. Afinal, debaixo dos mais fortes temporais, dia santo ou feriado, sob o frio congelante, mal raiava o dia, as famílias recebiam o leitinho direto da fazenda.
Mas não era só essa fidelidade canina que fazia do Fridirico a figura mais amada, mais esperada, mais idolatrada da meninada da Vila. Todo dia ele trazia um bolo e dava a uma criança que gritava em volta do alazão. Todas tinham o seu dia. Ele memorizava bem os agraciados. Esse bolo escuro, quase preto, formato pão de forma, com quatro camadas, recheadas com um creme tipo patê, feito de fígado de ave. É o que eu penso, pois, o Fridirico nunca deu detalhes sobre o tão cobiçado bolo. Não sei dizer se era saboroso ou não, porque a alegria de ganhar o sonhado bolo me fez esquecer até que gosto ele tinha.
Virou divertimento da criançada rodear o leiteiro e, como um bando buliçoso de andorinhas, gritar repetidas vezes: Fridirico, cadê meu bolo? Com toda paciência do mundo, o alemão respondia incansavelmente: Ainda vem. E, assim, findando a manhã, com os latões vazios, para alegria do alazão, Fridirico sumia na esquina da Rua de Cima para reaparecer na manhã seguinte, com o bolo prometido.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Psicanálise e Educação: Contribuições da Psicanálise à Pedagogia


    Nesse livro motivado pela demanda dos professores em entender melhor o contexto atual da educação, onde muitos estão adoecendo,  Eduardo Lucas Andrade busca em Freud, Foucault, Dolto e Ferenczi seus principais referenciais para oferecer instrumentos aos professores para que consigam prosseguir em sua profissão com prazer.
      Pelo menos três pontos que Eduardo aponta são fundamentais: 1) o fato de que os jovens zombam do mais velho diante dos demais, mas em particular consideram aquele adulto como alguém muito importante; 2) menos é mais, muitas vezes é mais importante falar e ouvir mais, conversar com os alunos, saber suas histórias de vida, do que dar conteúdo; 3) o aluno que faz piadas, zomba do professor, provoca o profissional, é melhor do que o aluno calado, corpo dócil, que apenas copia. Nessa altura, Eduardo recorre a Foucault no que se refere ao processo de docilização dos corpos, embora ele relativize esse processo ao tratar da escola: trata-se de repensar a escola enquanto aparelho opressor do corpo e pensá-la como o lugar da transferência. Freudiano, Eduardo pensa a educação a partir desse processo.
      Nesse momento histórico em que toda uma vertente de extrema-direita assume o poder e quer impedir várias discussões na escola, entre as quais a educação sexual e o comunismo, Eduardo é bem direto e posiciona-se a favor do livre debate e da fala como proteção, inclusive, contra o suicídio. E é taxativo: "Os caras da esquina têm respostas para as perguntas sobre as quais vocês se negam a conversar" (ANDRADE, 2019, p. 62). Sobre a sexualidade, ele aponta os equívocos dos professores: dizer que a criança não vai entender. Mas se ela pergunta, está no tempo dela e é preciso dar uma resposta. E quando se diz que ela é inocente, logo em seguida vem alguém desejar por essa criança ou adolescente e gozar a partir dessa posição. Essa é a posição de Bolsonaro e seu grupo de extrema-direita ao falar da "ideologia de gênero" e "doutrinação comunista", quando fazem campanha pelo conservadorismo nos costumes enquanto bandeira eleitoral, muitas vezes falseando e difamando a prática dos professores, mas gozando ao obterem o papel de guardiões de uma pequena burguesia assustada com uma crise econômica que vem acompanhada de uma crise cultural.
   Eduardo não trata da polêmica política, mas escreve que "sexualidade não se limita a homem e mulher e de que isto é questão de construção social" (ANDRADE, 2019, P. 62).

   O livro tem, de fato, muita utilidade para os profissionais de educação, trata muito de nossa prática e de nossa fala, especialmente devido ao fato de que a maioria das escolas não têm um psicólogo que possa nos ajudar. Alguns pontos críticos podem ser observados, tais como o momento em que Eduardo aborda o "sadomasoquismo". Esse termo foi criticado por Deleuze, que não aceita essa unidade dialética que desfavorece o importante literato Sacher-Masoch, obscurecido em prol da literatura erótica de Sade. O próprio Foucault, ao prefaciar o anti-Édipo de Deleuze, refere-se a Freud como parte do passado. No entanto, é melhor fazer o que Eduardo fez: dar conta de questões centradas na transferência, com maestria e domínio dos temas, do que fazer um coquetel teórico eclético de autores contemporâneos. Nada disso, porém, é algo que prejudique a grande qualidade que demonstra o texto.



segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Era Adorno o Quinto Beatle?

"Toque o álbum branco de trás pra frente e ouça Adorno dizendo que o avanço da sociedade burguesa reduz a memória, o tempo, a uma coleção irracional de sobras do passado".
Leia  aqui o divertido artigo do The Guardian zoando Olavo de Carvalho.