quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Syd Barrett

Syd Barrett: o elefante efervescente não está na praça da apoteose

Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior

Comentar a respeito de Syd Barrett (1946-2006), o co-fundador do Pink Floyd, é tratar de um tempo em que a música popular era um universo efervescente de experimentação e o rock/pop não tinha se tornado, como hoje em dia, a Coca-Cola da música. Existia espaço para referências literárias e experimentalismos, que deram lugar, muitas vezes, ao império da mercadologia.
Criou-se toda uma aura mística em torno de Syd Barrett, gerando um mito que o compara a um Nietzsche de nosso tempo. Alguns anos antes, quando Barrett co-fundou o Pink Floyd com Roger Waters (que tocou recentemente na praça da Apoteose), Mason e Wright, o compositor deu um forte impulso à banda naquele início de carreira. Depois de ter lançado vários singles e The Piper in the Gates of Dawn, Barrett, que preferia o rythm and blues (o próprio nome Pink Floyd saiu de uma fusão dos nomes de seus jazzistas favoritos, Pink Andersenl e Floyd Consel) à fusão entre rock e música clássica, ou seja, o chamado progressivo. As razões de sua saída do Pink Floyd deram origem a muitas lendas, mas o fato é que Roger Waters assumiu a liderança e colocou David Gilmour como guitarrista no lugar de Barrett após a turnê norte-americana, em 1968.
Entre 1968 e 1972, Barrett partiu para uma mal sucedida carreira solo; lançou dois álbuns: The Madcaup Laughs (que contava com a maioria dos componentes da banda Soft Machine, com exceção de Kevin Ayers) e Barrett. Decepcionado, a seguir retirou-se completamente do universo da música. Um álbum de material inédito, Opel, saiu em 1988.
Ao falar sobre The Piper at the Gates of Dawn (O Flautista nos Portões da Madrugada), Syd respondia prontamente: “Wind in the Willows” (Vento nos Salgueiros, livro infantil de autoria de Kenneth Grahame). No referido álbum, a canção Chapter 24, por exemplo, saiu diretamente do I Ching, com muitas palavras retiradas diretamente do livro. Barrett gostava muito de canções simples, que atingissem muitas pessoas, podendo também ter mais de um sentido. Octopus (Polvo) foi uma canção que Barrett pensou e mentalizou durante seis meses, antes de chegar a realizá-la. Na canção, doze linhas são, cada uma, antecipando a próxima e remetendo a um tema comum. Funciona como uma combinação de palavras que se direcionou num sentido, para depois o refrão vir e mudar o tempo, dando uma unidade a toda a canção. O clima das canções de Barrett remetia muito à infância, aos contos de fadas e às rimas infantis, as chamadas nursery rhymes. As letras de Barrett eram colagens surrealistas. Numa entrevista realizada na época do lançamento do disco Madcaup Laghs (1970), afirmou que escutava Bo Diddley, Beatles e Stones e velhos discos de jazz. Nesta época, lia Shakespeare and Chaucer.
Numa das poucas entrevistas que deu após sua saída do Pink Floyd, em 1972, Barrett estava de cabelos curtos, quase como um skinhead. Sobre si mesmo, afirmou: “eu sou um pintor, estudei para ser pintor”.
A escrita de Barrett sempre foi voltada para canções e não para as longas peças instrumentais que o restante do Pink Floyd apreciava. “A escolha do material dos demais membros do Pink Floyd tem muito a ver com o que estudantes de arquitetura costumam pensar”, comentou Barrett após sua saída da banda. “Coisas pouco instigantes, primárias. Qualquer um que estivesse andando numa escola de artes poderia pensar coisas semelhantes, mas quem sabe eles estejam planejando voltar para a escola”.
O Pink Floyd gradualmente afastou-se de canções como See Emily Play. Syd afirmou que, no começo, os ruídos eletrônicos foram necessários, eram algo excitante. Para Syd, ser um grupo pop era fazer singles. Mas ele afirmou que sua saída não foi uma briga, foram alguns problemas. Syd negava a versão de que saíra da banda porque enlouquecera em meio a viagens de ácido, dizendo que isso nada tinha a ver com o trabalho musical propriamente dito. Barrett atribuiu tudo ao fato de ter morado em Londres. As canções, afirmava ele, transmitiam uma atmosfera, mais do que contar uma história.
Syd voltou a usar seu nome real, Roger Barrett. Passou o resto da vivendo anonimamente em Cambridge, indo à casa da mãe, pintando e fazendo jardinagem. O trabalho com o Pink Floyd continuou lhe rendendo direitos autorais e ele viveu com certa segurança. No entanto, raramente aceitou falar com os fãs e jornalistas que o procuraram durante todos esses os anos.
Em torno dele floresceram lendas sobre o fato de que o excesso de drogas o fizera enlouquecer e levara à total instabilidade mental, o que não correspondia à realidade. Após sua morte em 2006, sua irmã Rosemary, enfermeira de profissão, afirmou que “Roger” não entendia o contínuo interesse por seu trabalho com o Pink Floyd, tinha certa dificuldade com o convívio social, mas era muito popular entre os lojistas da vizinhança e as crianças. Estudava profundamente História da Arte, tendo deixado um livro inédito a respeito. Para ilustrar as letras de Barrett, segue abaixo então a tradução de três das canções de Madcaup Laughs: Octopus, Dark Globe e Golden Hair:
Polvo

Viajando para cima, para baixo, dentro e fora
Você nem tem palavras
Viajando, viajando num dragão de sonho
Que esconde suas asas numa torre fantasma
Velas arrebentando em cada prato que quebramos
Estouram por agulhas espalhadas
O gongo do minutinho
Soa e limpa sua garganta
Madame, veja bem antes de ficar
Olha, olha, nunca fique muito quieto
A velha marca original
A verde, herbácea banda
E o tom em que tocam é “confie em nós”
Então viaje para cima, para baixo, dentro e fora
Você nem tem palavras
Tire-nos daqui
Por favor, feche os olhos para a volta do polvo!
Não é mau estar perdido na floresta
Não é ruim na floresta, aqui é tão quieto
Significa menos para mim do que pensei
Com um doce monte de sementes
Potes de mel, comida mística brilhando...
Bem, o maluco riu para o homem na fronteira
Hey, ho, rufam os tambores
“Trapaça!” Disse ele chamando o canguru
É verdade que em suas árvores eles gritam
Por favor, deixem-nos aqui
Fechem os olhos para o passeio do polvo!
O maluco riu para o homem na fronteira
Hey, ho, rufam os tambores
Os ventos sopram e as ondas chegam em vagas
Eles nunca vão me colocar em sua bolsa
Os mares vão sempre ir e voltar
Quanto mais alto você voa, mais fundo você cai
O vento sopra no trópico
Os afogados sentam nas cadeiras
A porta guinchando vai sempre guinchar
Dois para cima, dois para baixo e nunca mais nos encontramos
Na viagem meramente esqueça meu lado
Por favor, tire-nos tire daqui
Feche seus olhos para a volta do polvo!

A capa de Madcap mostrou Syd agachado e pensativo no chão de uma sala vazia. No fundo, uma garota nua. A foto traz a atmosfera das canções, minimalistas, despreocupadas com a moda, sinceras, sem produção refinada, deixando que o ouvinte se concentrasse no efeito de fluxo de consciência. O trabalho engendrava um intimismo gentil e uma hesitante, mas intensa, consciência. Outra canção do mesmo disco foi Dark Globe (Globo Escuro):

Oh, onde estará
O salgueiro que sorriu para essa folha?
Quando eu estava sozinho você me prometeu seu coração de pedra
Minha cabeça beija o chão
Estava quase caindo, encostando na areia
Por favor, por favor, me dê a mão
Eu sou somente uma pessoa cujos braços batem
Nas mãos, que ficam pendendo no alto
Você sentiu minha falta?
Você sentiu minha falta no fim das contas?
O caminho dos passarinhos
Ao redor dos cafés
Marca sua língua
Minha cabeça beija o chão
Estava quase caindo
Por favor, por favor, me dê a mão
Eu sou só uma pessoa acorrentada no frio como esquimó
Tatuei meu cérebro afinal...
Você sentiu minha falta?
Você sentiu minha falta no fim das contas?

E, finalmente, o poema de Joyce que Barrett musicou, Cabelos Dourados (Golden Hair), letra originária do poema Chamber Music:

Abra sua janela, cabelos dourados
Eu vejo você cantando no ar da meia-noite
Fecho meu livro e não leio mais
Observando o fogo dançar no chão
Eu deixo o livro, eu deixo a sala

Desde que escutei você cantando na bruma
Cantando e cantando, um mero ar livre
Abra sua janela, cabelos dourados...

Ao todo, a carreira musical de Syd Barrett foi apenas de 1965 até 1972. Passou 32 anos recusando-se resolutamente a gravar qualquer música ou aventurar-se numa apresentação. Barrett começou a fazer música na adolescência, pouco depois da morte de seu pai, um médico. Seu estilo de tocar guitarra era singular. O primeiro single da banda, Arnold Layne, era sobre um sujeito perturbado que roubava roupas femininas dos varais locais em Cambridge. David Bowie adorou os climas ora claros ora escuros das canções de Barrett. Recentemente, Bowie juntou-se aos remanescentes do Pink Floyd para homenagear Syd, cujas músicas tiveram grande influência sobre ele.
Muitos viram em Jugband Blues (1968), última canção gravada de Syd com o Pink Floyd, um apelo de um homem frágil, que lutava contra a esquizofrenia. Essa perturbação mental foi a razão que Roger Waters apresentou para o afastamento de Barrett da banda. Num depoimento de Waters sobre Barrett, disponível no Youtube, ele elogiou o talento do Barrett pintor: “Barrett pintou um quadro com leões, arcos romanos e criou uma perspectiva muito estranha (o quadro comentado por Waters segue em anexo junto com esse artigo)”. Ele fez algumas apresentações com uma banda local chamada Stars no início de 1972, mas uma crítica negativa numa revista o desistir das ambições musicais e tornar-se um anti-social e recluso em tempo integral.
Seu fantasma continuou a fascinar muitas gerações de músicos de rock. O próprio Pink Floyd foi assombrado por seu espectro, conforme referências a ele em Dark Side of the Moon, Wish You Were Here e The Wall. David Bowie relançou a forma deslocada e bastante inglesa de projeção vocal em canções como The Bewlay Brothers. Em 1976, logo depois que John Lydon entrou nos Sex Pistols, Malcolm McLaren tentou convencer, sem sucesso, a banda a tocar canções de Barrett. A banda The Damned tentou fazer com que Barrett produzisse seu segundo álbum. Várias bandas da New Wave (tais como os Soft Boys) apropriaram-se do toque surreal de Madcaup Laughs como parte de sua estética. Ele tornou-se um flautista encantado para o rock independente dos anos 80, citado tanto Blur como por Brian Jonestown Massacre. No novo milênio, basta ouvir atentamente Libertines ou Babyshambles para saber que o diamante louco da música de Syd continua informando as escolhas criativas da última geração do rock e dos espíritos boêmios.

Bibliografia:

Syd Barrett Archives: www.sydbarrett.net/welcome.htm.

Roberto Schwarz: Um Crítico na Mira

Roberto Schwarz: Um Crítico na Mira


O professor Antonio Candido, inspirador de Roberto Schwarz, dizia que “não se trata de aderir aos apocalítpticos, mas de alertar os integrados”. Schwarz achou melhor tornar-se apocalíptico. Alguns pensadores da Escola de Frankfurt são tão pessimistas, tais como Adorno, que chegam a ser chamados de niilistas.
Curiosamente, Machado tem uma veia niilista que abordagem marxista alguma consegue encobrir, e que lhe chegou via Nietzsche e Schopenhauer, o que não desmerece suas posições avançadas e seus acertos como romancista, contista, poeta e cronista. O comunista Otávio Brandão, provavelmente o primeiro crítico literário brasileiro de orientação marxista, centrou fogo em Machado, escrevendo um livro chamado O Niilista Machado de Assis. De fato, creio que Brandão notou um traço verdadeiramente presente. Schwarz não nega o nilismo em Machado, o revê como distanciamento positivo. Mas há uma crítica áspera ao nacionalismo romântico que ele exprime subliminarmente. Num artigo sobre Paulo Emilio, Scwarz se refere diretamente a Glauber: “No mesmo espírito imparcial, Paulo Emilio louva o profetismo de Glauber, lembrando que a função do profeta é profetizar, e não acertar...” (Schwarz, 1997, p.51). Já Glauber, ao falar na crítica machadiana, a repudia sem sutilezas marotas: “Machado é uma merda e a academia e o realismo pessimista eu não tou pra discutir flor do estilo (...). O estilo é a imaginação, o realismo pessimista, o criticismo decadente que fique com Machado.” (Rocha, Glauber. Apud: BENTES, Ivana, p.612, 1997). Pior é quando subentendemos que Schwarz está atacando Glauber, como no artigo Existe uma Estética do Terceiro Mundo? A pergunta deveria ser precedida por outra: existe um conceito melhor que Terceiro Mundo para definir as ex-colônias européias? O conceito de Terceiro Mundo, no sentido usado por Glauber, se refere ao mundo colonizado pelo Ocidente. Pessimista e demagógico, Schwarz afirma que o público brasileiro é “provinciano pela força das coisas” (Schwarz, 1997, p.127). O crítico machado-frankfurtiano se esquece que mesmo um “cartola na Senegâmbia” como Rui Barbosa soube opinar com firmeza nas questões francesas ao defender com pioneirismo o judeu Alfred Dreyfus. A estética do Terceiro Mundo oculta a luta de classes, afirma Schwarz, sem no entanto explicar porque ela foi contemporânea do período nos anos 60 em que a luta de classes no Brasil esteve mais transparente que nunca. Ao publicar Que Horas São, Schwarz analisa o filme Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho, com sua ótica que, embora esteja interessada nos oprimidos, não está interessada em seu folclore curupira. A postura “paternalista” do intelectual no tempo dos cepecês foi substituída por um “maternalismo” que acredita que o intelectual deve aprender com o povo e nada ensinar. O artigo sobre o filme é marcado por um desejo de não rever a posição assumida no ensaio recolhido no livro Pai de Família e outros Estudos: o nacionalismo é responsável pela derrota de 64. Nessa versão reacionária, comum a toda a analítica paulista, o nacionalismo e as bandeiras antiimperialistas se tornam responsáveis pela queda de Jango, o que equivale, por exemplo, a culpar os pobres pela imagem negativa do país no exterior. Nos anos 80, quando sobe ao poder uma tecnocracia desnacionalizada, Schwarz, que é de esquerda e da classe dominante, brada:

É como se momento mesmo em que a parte melhor e mais aceitável da burguesia brasileira assume o comando no país – um momento a ser saudado! – o filme também melhor dos últimos tempos anos dissesse, pela sua própria constituição estética e sem nenhuma deliberação, que num universo sério essa classe não tem lugar. Mas é claro que nem sempre a vida imita a arte. (SCHWARZ, 1997, p.77)

O que ocorre aqui é o corte no fio da meada, e é Schwarz, sociólogo e crítico literário, quem o realiza. Schwarz não consegue realizar uma diferenciação entre a revolução nos países imperialistas, nos países que oprimem outros povos, e a revolução nos países coloniais e dependentes. Nos países imperialistas, a burguesia é opressora de outros povos, e neles, a burguesia é contra-revolucionária em todas as etapas da revolução. Já nos países coloniais e dependentes, a burguesia pode apoiar o movimento revolucionário de seu país contra o imperialismo, pois há o fator nacional. Schwarz se esquece da correlação das forças de classe durante o governo Jango e tenta explicar tudo exclusivamente pela tática do PCB.
Possuidor de uma formação germânica rigorosa, o ex-orientando de Antonio Candido dá as costas para o pré-64, não vale a pena voltar atrás, nem em economia nem em cultura, assinala ele ao falar da relação artista/povo no filme de Eduardo Coutinho. O crítico paulista aproxima-se da postura de prescrever para o artista brasileiro o conformismo de criar uma arte imitada, subdesenvolvida, já que a estrutura determina a superestrutura. Roberto Schwarz possui resquícios de um determinismo que, desde o início dos anos 60, Glauber Rocha contestava em sua Estética da Fome. Glauber fica reduzido a um triunfalismo do atraso, junto com Oswald, no fundo por discordar que um país subdesenvolvido é obrigado a ter uma arte subdesenvolvida, conclusão deprimente que parece vir na esteira de uma leitura determinista dos textos sobre a dependência. E pior, Schwarz qualifica o cineasta indiretamente de profeta que não acerta, profeta incompetente. Quem erra, na apreciação, é Schwarz, pois só nos anos 90 se realizaram as profecias e posições de Glauber, como explica a professora Ivana Bentes em sua introdução ao livro Cartas ao Mundo:

Até hoje não se desfez o impacto de sua (de Glauber) declaração bombástica, muito repetida e pouco entendida, em carta de 31 de janeiro de 74 para Zuenir Ventura, publicada como depoimento na revista Visão. Na carta, Glauber dizia que Golbery do Couto e Silva, um dos mentores do golpe de 64, era ‘gênio da raça’ e os militares ‘legítimos representantes do povo.’ A idéia, ‘fora de hora’, ou ‘equivocada’, para muitos aparece claramente formulada numa série de cartas anteriores a 1974 e está perfeitamente integrada à lógica glauberiana e ao seu messianismo romântico. Duas cartas são importantes para se entender o Glauber ‘militarista’ que no seu imenso desejo de transformação via numa elite militar ‘esclarecida’, que acenava com a ‘abertura’, a possibilidade de uma virada política radical, não simplesmente a ‘abertura lenta e gradual’, como de fato aconteceu, por que não? Um militarismo revolucionário que realizaria as mudanças que a esquerda não soube ou não pode fazer. A idéia não vinha do nada e seduziu um Glauber disposto a encontrar na cultura militar brasileira um líder revolucionário popular, um Antonio das Mortes capaz de mudar de lado, passar de matador e torturador a defensor do povo. (BENTES, São Paulo: 1997, Teoria e Biografia na Obra de Glauber)

O profeta, portanto, estava comprometido com a atualidade e as transformações, percebendo que o dilema nos tempos da ditadura fora colocado em termos de liberalismo versus autoritarismo, e que no caso de vitória daquele, o modelo estatal seria ameaçado por uma democracia liberal colonizada. Com o passar do tempo fica claro o conteúdo nacionalista que possuem essas profecias, previsões com as quais Roberto Schwarz não podia mesmo concordar, por razões que detalharemos melhor mais adiante. Mesmo Oswald é compreendido por Schwarz com as lentes detratoras e finuras sutis de machadiano:

Articulado assim, o parti pris de ingenuidade e de ‘ver com os olhos livres’ algo tem de uma opção por não enxergar, ou melhor, por esquecer o que qualquer leitor de romances naturalistas sabia. Daí que os achados da inocência oswaldiana paguem a sua plenitude, muito notável, com um quê de irrealidade e infantilismo. (Schwarz, p.27, 1997)

Schwarz aparentemente omite um aspecto da obra de Oswald para poder sustentar essa abordagem: o fato de que Oswald iniciou a carreira com um romance realista, Alma, narrando as desventuras de uma prostituta. Não é ainda um romance alegórico, não referindo uma situação particular a uma totalidade, ou seja, a Alma do romance é baseada em Deisi, ex-amante de Oswald. O romance tem ampla base autobiográfica, portanto quando, neste primeiro livro, fala-se na personagem Alma, nem por isso ela representa a alma prostituída do Brasil. Isso foi percebido por críticos como Motta Filho: “o livro apanha a imoralidade sem ser imoral e guarda uma superioridade rara. O realismo de Oswald é um realismo de evocação sentimental, é um realismo dentro da mais perfeita compreensão estética”. (Motta Filho, apud: SILVA BRITO, Mário da. São Paulo: 1978, Círculo do Livro). Esse primeiro romance de Oswald, marcado pela tragédia, é no, entender do sociólogo francês Roger Bastide, “Machado é a introdução do amor romântico no interior da família burguesa, e Oswald é a decomposição desse romantismo amoroso” (Bastide, apud: SILVA BRITO, Mário da. São Paulo: 1978, Círculo do Livro).
Sobressai na obra de Schwarz o desdém da problemática nacionalista. Em 1979, em entrevista para a Revista Civilização Brasileira, ele afirmava: “E eu penso que se nós olharmos um pouco a vida ideológica brasileira, veremos que, com freqüência, o nacionalismo é a ponte que permite a pessoas com categorias e tradições de esquerda passarem para posições que se poderiam chamar de direita, entendendo por estas, posições que sobrepõem enfaticamente a questão da grandeza nacional à questão dos interesses dos oprimidos” (SCHWARZ, 1979, p.105). O entrevistador observa, concordando, que há as pessoas que foram integralistas e passaram para a esquerda (por exemplo, Roland Corbusier). Essa observação inclusive o desmente, pois indica que o nacionalismo também serviu de ponte para que pessoas com posições de direita entendessem o processo social e adquirissem uma nova consciência. Por outro lado, creio que a intenção de Schwarz é criticar Glauber Rocha sem citar-lhe o nome e ocasionar uma polêmica. Nas palavras de Schwarz, aparece a dissociação da questão nacional dos interesses dos oprimidos, um divórcio forçado entre tópicos que se completam: dada a dominação externa, o país inteiro se torna mais pobre, mas essa pobreza, para as massas do Terceiro Mundo, é uma desgraça pois vem acompanhada da expropriação material e cultural.
Mais adiante, Schwarz descarta explicitamente a historicidade da nação: “a nação, sob muitos aspectos, deixou de ser uma realidade relevante. Por outro lado, ela continua a ser o palco efetivo, o palco real da política, pelo menos de grande parte da política, de modo que ele não pode ser descartada. E essa é uma das razões pelas quais hoje se tem freqüentemente a impressão de que a política, de que o discurso e as discussões políticas estão no mundo da lua” (SCHWARZ, 1979, p.105). Desconhecendo a formulação materialista histórica do que é uma nação, ou seja, tendo descartado o conhecimento de que cada povo viveu por longo tempo em condições específicas, Schwarz observou com hostilidade a permanência da questão no plano político, ou seja, afirmando que a questão permanece pois quem a discute está no mundo da lua. Há indícios, entanto, que Schwarz desdenha boa parte da cultura brasileira sob o rótulo de nacionalismo, para assim poder ostentar uma posição avançada. Foi através da leitura da Teoria da Dependência, de FHC, que Schwarz estabeleceu os marcos teóricos de sua obra, e portanto o crítico literário se ressentiu do fato de que essa teoria, ao invés de se constituir um esforço de descolonização, enfatiza que o Brasil está condenado à dependência. Esse viés de FHC ignora que, em países como o Japão e a Alemanha do século XIX, diante da ameaça de dominação externa, as classes dominantes puseram em prática o que podemos chamar de um projeto nacional-desenvolvimentista. Algo diverso ocorreu no Brasil, país nascido da empreitada colonizadora européia, pois a burguesia nacional progressivamente abdicou de um projeto autônomo para se contentar em ser satélite e sócia menor do capitalismo internacional, processo de descontrução de um projeto de nação que começa em 64, com a negação da herança varguista, e culmina em 1994, com a tomada do poder pela coligação de centro-direita comandada por FHC. Isto posto, quando lemos Schwarz após vinte anos, dizendo que “a questão da independência nacional, hoje, propriamente de maneira enfática, não se coloca mais” (SCHWARZ, 1979, p.108), a frase tomou uma conotação de descompasso e desistência, senão de adesismo ao consenso neoliberal reinante.
Ora, é justamente a partir daí que Schwarz tenta se desvencilha da discussão: “O nacionalismo tem a virtude de ser antiuniversalista, mas tem o defeito de apresentar um preconceito em matéria do processo do eu sou parte, efetivamente. (...) Eu não tenho conhecimentos para afirmar isso com segurança, mas penso que, com o que se sabe hoje, pode-se dizer que já depois da morte de Getúlio, durante o governo Kubitschek, a questão do nacionalismo, no sentido enfático, tinha deixado de ser uma questão real” (SCHWARZ, 1979, p.108). Como vimos, embora Schwarz acuse de antiuniversalista o nacionalismo, ele próprio não aplica os conceitos de universal e de particular à cultura brasileira, desconstruindo também Antonio Candido: “Em lugar da contribuição local à diversidade das culturas, vem à frente a história da má-formação nacional, como instância da marcha grotesca ou catastrófica do capital” (SCHWARZ, 1997, p.169). Por hostilizar a tese pecebista nos anos 50/60, Schwarz e os paulistas chegam à conclusão derrotista que “a partir de Juscelino, a realidade fica com o capital, que foi para a internacionalização e – para atenuar, consolar a esquerda – a ideologia foi para o nacionalismo. Essas coisas tiveram até uma relação compensatória, eu penso.” (SCHWARZ, 1979, p.108) A revisão realizada por Schwarz e outros uspianos, ao invés de incidir sobre o determinismo da estrutura sobre a superestrutura, que indispunha a esquerda contra os artistas, dissolveu a questão da nação para não ter de abordá-la. As causas dessa antipatia pelo nacionalismo em São Paulo são, a meu ver, a derrota dos paulistas para o nacionalismo varguista em 1930, o fracasso reafirmado na revolução de 32 e o trauma do integralismo. A geração paulista de 45 foi marcada por um nacionalismo getulista ao qual votavam antipatia, e por um outro lado, um nacionalismo que ganhou pecha de nazifascista, o de Plínio Salgado. A geração seguinte, marcada pelos anos 60, naturalmente sente-se livre de um peso ao abandonar essa questão, inclusive matando dois coelhos de uma cajadada só: ao superar a dicotomia varguismo/integralismo, ultrapassou ao mesmo tempo o stalinismo, com sua formulação do “socialismo num só país”’, equivalente materialista dos nacionalismos dos anos 30. Outro fator é que a geração 68 viveu um momento de hipertrofia do conceito de “geração” em detrimento do conceito de “nação”.
O último trecho da entrevista, a meu ver, é o mais instigante, é aquele em que o interlocutor de Roberto Schwarz entrevê a parte de estrangeiro no supostamente nacional, e de copiado no original, revelando a que ponto o desajuste, ao qual que Schwarz se remete com tanta freqüência, é visível na figura do próprio intelectual:

Desajustes, descompassos. Roberto, você é brasileiro naturalizado, nasceu em Viena e veio para o Brasil com um ano de idade. Fez Ciências Socias, mas se considera ligado à crítica social. Estudou dois anos nos Estados Unidos e passou agora um bom tempo na Europa. Como se desenvolveu esse seu interesse pelo Brasil? (Roberto responde): Acho que ele foi durante muito tempo um interesse de estrangeiro: eu queria em apropriar de uma realidade que não estava em minha casa, mas estava em toda parte. (...) Deixe eu abrir um parênteses e fazer uma provocação: você não tem um ensaio sobre ‘Anatol Rosenfeld, um Intelectual Estrangeiro’. Afinal ele é sobre o Anatol ou sobre você? Inclusive no caminho percorrido pelo Anatol, do formalismo ao marxismo? (SCHWARZ, 1979, p.110).

Schwarz simplesmente negou as perguntas acima, respondendo com evasivas. Mas ainda hoje permanece a pergunta: Roberto Schwarz é um intelectual estrangeiro? O sociólogo Gilberto Vasconcellos a responde da seguinte maneira:

Houve até polêmica do Roberto com historiadora Maria Sylvia de Carvalho sobre o caráter tópico das idéias na sociedade brasileira. Se determinadas idéias aparecem por aqui é porque elas não couberam em algum lugar. Decerto não há nenhum lugar dono das idéias: o espírito sobre onde quer. (...) Roberto apenas imprime um toque ‘marxista’ à dialética cultural do localismo versus cosmopolitismo de Antonio Candido: relações de produção, desenvolvimento das forças produtivas, capital central-periférico, enfim, sociologia da dependência com marxismo weberiano à Fernando Henrique Cardoso. (...) Somente na visita ao peabiru paraguaio, com a perspectiva do vencido (ou será o genocídio da guerra do Paraguai mitologia anti-imperialista?) , é que pude atinar para a lógica de Glauber Rocha, dizendo que Roberto não era brasileiro em sua crítica. Enquanto Glauber viveu, Roberto não respondeu (VASCONCELLOS, 1997, p.256).

Na esteira dessa conclusão, a problemática da nação foi descartada; e Glauber ficou reduzido a um triunfalista do atraso, junto com Oswald; conclusões deprimentes que parecem vir na esteira de uma leitura fatalista de Dependência e Desenvolvimento na América Latina (1966) de Fernando Henrique Cardoso, leitura em que a superação da dependência é um interdito impensável:

Na década de 20, o programa pau-brasil e antropofágico de Oswald de Andrade também tentou uma interpretação triunfalista de nosso atraso. (...) Neste mesmo sentido, ainda que em registro onde piada, provocação, filosofia da história e profetismo estão indistintos (como aliás mais tarde em Glauber Rocha), a Antropofagia visava queimar uma etapa. (SCHWARZ, p.37, 1997)

Quando Schwarz se desembaraçou da “nação”, colocou-se numa postura equivocada. No mais, a questão voltou com força total nos estudos de Homi Bhabha, Edward Said, Benedict Andersen e outros, no terreno mesmo do debate intelectual sério.

Encaixe Revista Piauí

Résille à Chenille (“Tecido de Seda”)
Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior (Bom Despacho/MG)

Moro numa casa ensolarada, amplas varandas com floreiras, onde Miele, meu gato, gosta de tomar banho de sol. Toda manhã, na casa em frente, a modelo Ésper, exercita-se brincando com Paco, um coelho cinza-claro. Já pensei em contratá-la para trabalhar na área de marketing da fábrica de tecidos de minha família. Só não levei adiante essa idéia porque o marido, Ocimar, me falou do temperamento explosivo e forte tendência à anorexia da jovem esposa.
Naquela manhã de sábado de aleluia, embalado pelos gritinhos e gemidos de Ésper, acabei dormindo na rede de tafetá azul estendida na varanda e tive um sonho: o jardim estava cheio de lagartas de todo tipo, lisas e veludosas, pretas e vermelhas, amarelas, moles ou com carapaças, cheias de ornamentos barrocos. Dei alguns passos e esmaguei muitos bichos da seda que babavam em meio a tafetás, gazes, Jerseys, popelines e mousselines. Depois eu estava na guerra com um trator sobre rodas envolvidas em esteiras rolantes. Mas o pior foi quando eu vi Miele perseguindo Paco: o coelho se debatia e eu, paralisado.
Esforçava-me por tirar Paco daquela enrascada, quando os pêlos do tornozelo dele grudaram na colcha de chenile. Miele avançou feito doido sobre Paco. Acordei.
Quando contei o sonho a Anabela, viu nisso uma premonição. “Você é cheia de não-me-toques”, ataquei, saltando para a cozinha.
Foi quando vislumbrei um vulto se esgueirando da cozinha para o jardim. Passou por baixo das alamandas amarelas e foi se esconder no roseiral. Mal pude acreditar no que vi. Miele havia matado Paco e se preparar para devorá-lo.Como iria explicar a tragédia aos meus vizinhos, Ocimar e Ésper? A dona do coelho certamente sofreria um troço.
Tomei Paco nas mãos, o corpo inerte. Lavei o coelho com cuidado e, cego de preocupação, enxuguei-o cuidadosamente com a colcha de chenille.
Recusei-me terminantemente a dizer qualquer coisa e deixei o corpo de Paco estendido no chão, na porta da casa de Ocimar e Ésper. Pedi a Anabela que não narrasse o fato a ninguém. Anabela, deprimida, bradou o mantra “faraooon”, colocou alguns anões a mais no jardim e reclamou porque a manta de chenille ficou suja de manchas marrons.
Ainda temi, durante algum tempo, que o casal vizinho me abordasse. No entanto, dentro em pouco, para meu alívio, eles se mudaram. A saúde de Ésper havia piorado. Anabela, sempre que se tocava no assunto, tornava-se sombria e cantava para si mesma alguns versos de uma canção melancólica de Jacques Prévert: “Ceux qui flottent e ne sombrent pas/Ceux qui ne prennent pas Le Pirée pour un homme...”
Algum tempo depois, encontrei Ocimar numa lavanderia próxima. “Como é que vão você e a Ésper?” Ele me contou que a mulher estava sofrendo alucinações, internando-se em clínicas. Ela ficou pirada com a morte do Paco.
“Você se lembra do Paco, meu coelhinho? Ele morreu envenenado por agrotóxicos e Ésper, após algumas pompas fúnebres, enterrou o bichinho no jardim. No entanto, algumas horas depois, o encontrou morto na soleira da porta. Paco foi enterrado vivo, desceu à mansão dos mortos e ressuscitou, tentou buscar nossa ajuda, mas morreu de novo”.
Eu, então, às tontas alegei um compromisso e despedi-me de Ocimar. Espero que ele leia esse texto.
Alice no Tribunal das Maravilhas

Lúcio Emílio do Espírito Santo

Os três bigodudos irromperam na sala de visitas, colocaram suas maletas de pelica sobre a mesinha de centro e fixaram os olhos nos olhos da assustada Alice. Ela mal pôde reparar a impecável gravata do mais grisalho, o primeiro a dirigir-lhe com firmeza a palavra. Até então Alice jamais pusera em dúvida a sua própria existência. Isso mesmo. O advogado grisalho lhe dizia seca e cruamente essa verdade.
— Alice, eu não sou mitômano. Alice, você não existe. Você não é você. Amanhã você deverá comparecer à Comissão Parlamentar de Inquérito e só há um meio de você se safar das acusações que pesam contra você. Negar, negar, negar. Aquilo é um tribunal político, entendeu? O mundo ali dentro não é o mesmo mundo daqui de fora. Mais parece a toca do coelho branco de olhos cor de rosa. A Alice que irá depor não é essa Alice...
Arquelau era o nome do habilidoso advogado, perito em escândalos políticos. Vangloriava-se de jamais haver perdido uma única ação judicial contra as mais engenhosas e milionárias roubalheiras. Na sua agenda, ao lado de prefeitos, deputados ou governadores, figuravam também nomes de burocratas de todo o país, empresários e golpistas de todo tipo, especialistas em saquear os cofres públicos. Há muito tempo, quando ainda lhe restava um pouquinho de escrúpulo, numa entrevista coletiva, deixara escapar aquilo que ele depois considerou uma grande asneira. Quando o repórter lhe perguntou se não tinha problemas de consciência pelo hábito de mentir tão descaradamente, afirmou que a culpa não era dele. Infelizmente, disse, a advocacia e a mitomania são irmãs siamesas.
Depois disso, passou a abominar a expressão mitomania. A primeira coisa que dizia a seus clientes, a quem deveria instruir na delicada arte de mentir, era um enfático eu não sou mitômano. Mas Alice não reparara na palavra estranha. Remoía absorta aquele “você não é você”, que o doutor Arquelau lhe metera na cabeça.
—Mas, doutor, eu sou apenas a mulher do Charles, sou casada com ele...
—Não, Alice, no plenário da Comissão Parlamentar, você é cúmplice do Charles, entendeu? Vocês não se casaram. Vocês formaram quadrilha. Esses carrões importados, o apartamento de 500 metros quadrados em Miami, as contas na Suíça e nas Bermudas, o jatinho, essa mansão aqui, não são fruto do trabalho. Isso é produto de roubo, de propina e de desvio de dinheiro público. Aquela respeitável dona de casa, dedicada esposa do Charles Jacaré, aquela mãe extremosa que toda manhã saía num BMW azul marinho, que fazia inveja ao pessoal do condomínio, Alice, essa mulher não existe mais. Quantos milhões de telespectadores estarão vendo a verdadeira Alice, cúmplice da maior camarilha de que se tem notícia neste país?
A transformação não podia fazer-se sem muita náusea, suores frios e desmaios. Charles Jacaré havia providenciado tudo, médico, remédios e até uma ambulância. Alice relutava em acreditar que teria que mentir. Depois de alguns minutos de silêncio, com o dedo em riste, pôs-se a esbravejar:
—O mentiroso é você, Arquelau. Você está mentindo. Vocês, advogados, são todos maníacos, falsos, fantasiosos...
Antes que a mulher desesperada pudesse porventura pronunciar a detestada expressão, Arquelau foi logo se antecipando:
—Mas, Alice, eu já disse que não sou mitômano!
Passava das dez horas da noite, quando Arquelau e seus assistentes deixaram a mansão dos Jacarés. Alice recolhera-se aos seus aposentos. Sentia-se um espantalho, um mulambo ambulante. Inadvertidamente, mirou-se no espelho de cristal que Charles fizera vir da Alemanha. Depois de algum tempo, a Alice do espelho foi se transformando num rei, de barbas ruivas e beca cinzenta. Impassível, perguntou com voz tonitroante:
—Que você sabe sobre o caso?
—Nada, respondeu Alice.
—Nada de nada? insistiu o rei.
—Nada de nada, disse Alice.
Não satisfeito, o rei tornou a perguntar:
—Alice, que sabe você sobre o caso?
Alice não se rendia. O dia já clareava quando, vencido pelo cansaço, o rei desfaleceu. A mulher também estava exausta e adormeceu, não sem antes pensar na Duquesa, ou seja, na moral que tudo isso poderia ter. Aí se lembrou da menina Alice, a garotinha que tanto gostava de ler histórias. Num suspiro dolente, concluiu:
—Alice, a do país das maravilhas, estava sonhando...e eu estou bem acordada.


Lúcio Emílio do Espírito Santo é coronel reformado da PMMG e autor do livro Entendendo a Nossa Insegurança.

Entre o Veneno a Cura

Entre a cura e o veneno: dificuldades do trabalho em Farmácia

Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior

A rotina de trabalho em uma farmácia sempre me pareceu divertida e interessante, principalmente devido a histórias pitorescas que um colega, que trabalhava numa delas, me contava: clientes que reclamavam do sabor amargo do medicamento ingerido, para depois descobrirem ter ingerido um supositório; senhoras que compravam anticoncepcionais e colocavam no filtro; gente que comia pomada com colher; loiras esculturais que pediam para tomar uma injeção, para então se revelarem travestis, entre outras excentricidades que dariam para escrever um livro.
Contando esses casos para o atendente da Farmácia Inconfidência, fui informado de que meu amigo exagerou e inventou bastante. Na prática, não é nada tão piadesco assim e existem, ainda, muitos riscos para quem atende o cliente. Ocorrem alguns casos em que a letra dos médicos é ininteligível e muitos medicamentos possuem nomes parecidos. Em caso de dúvida, o dono da Farmácia Inconfidência orientou seus funcionários a não venderem o produto, pois estão pondo em risco o bem estar da pessoa.
A maioria dos clientes não lê nem a bula nem a receita e confia totalmente no atendente da farmácia, que não é farmacêutico. O farmacêutico, que toda farmácia deve ter, ocupa-se dos remédios de tarja preta, chamados psicotrópicos. Os medicamentos numa farmácia são divididos em três grupos: os de venda livre, chamados OTC, os de tarja vermelha, que são vendidos somente com prescrição médica e finalmente, os que usam a tarja preta por causarem dependência: ansiolíticos, anti-depressivos, inibidores de apetite, derivados do ópio, entre outros. Eles devem ter sua receita retida para fins de fiscalização. Os efeitos colaterais desses são mais sérios.
Com freqüência, as pessoas pensam que podem usar o mesmo medicamento para o ser humano e para um animal. Eu mesmo pude presenciar um rapaz pedindo um calmante (Dramin) para um cachorro que estava agressivo. Um gesto assim pode sedar o animal ou até matá-lo. Para tratar dos animais, deve-se procurar orientação de um veterinário e não tentar experimentar por conta própria. Outra dica é que os injetáveis não são aplicados sem receita. Favor não insistir, conta o atendente, avisando que existem casos de pessoas que morreram após uma injeção inadequada. A propósito, todas as proibições surgiram depois que existiu um mau uso dos remédios: muitos foram usados junto com bebidas alcoólicas, produzindo efeito de droga. Por isso, a Secretaria de Saúde e o Conselho Regional de Saúde fiscalizam tudo: as notas, as compras, os livros de registro.
Muitas vezes, a mesma pessoa roda inúmeras farmácias, buscando alguém que resolva aquele quebra-cabeça. Os atendentes muitas vezes ligam para os médicos buscando decifrar tais enigmas. Quando as receitas são provenientes de médicos que atendem no serviço público, elas são ainda mais ilegíveis, rabiscadas com pressa, denotando um provável excesso de pacientes. E os profissionais, ao serem questionados a respeito, demonstram ainda maior impaciência.
A equipe da Farmácia Inconfidência sugere aos médicos locais que se rendam às delícias da era da Informática. Por enquanto, na cidade ainda são poucos os que usam desse recurso que facilita o trabalho nas farmácias e nas próprias profissões da área.

Necrológio

NECROLÓGI0

Mário Morais

--Rádio Difusora Bondespachense. Nota de falecimento. Faleceu hoje nesta cidade o senhor Mário Marcos de Morais. O extinto, de mais de noventa anos, deixa numerosa e conceituada família. Em próxima nota transmitiremos outras informações, inclusive sobre o local do velório e hora do sepultamento.
--Não estou ligando bem a pessoa com o nome, mas acho que o conheci.
--Conheci-o muito, mas há tempos que não o via. Parece que não andava bem de saúde Lembro-me bem dele, sentado em sua cadeira giratória, lá na agência da Minascaixa, uma agência de grande movimento.
--Com os seus noventa e tantos anos, já era mesmo hora de tirar o time e abrir espaço para outros. Já andava sem firmeza, cambaleante, amparando-se nos muros – falou o sujeito irreverente.
--Oh! Se o conheci. Nós, militares sem graduação, tínhamos dificuldades de crédito nas agências bancárias da cidade, mas com ele, na Minascaixa, era empréstimo na hora. Ele nos ajudou bastante.
--Nunca fomos amigos, nem nos cumprimentávamos. Nossos problemas de relacionamento são antigos. Ele exercia irregularmente uma atividade para a qual não estava legalmente habilitado e eu o denunciei ao Conselho competente. Certo dia ele me abordou na rua, exigindo explicações a respeito de não sei quê, de maneira muito agressiva. Tive a impressão de que estava armado. Liguei o motor do carro e o deixei gesticulando sozinho. Não é por que ele morreu que vou deixar de dizer o que sempre pensei dele: Um cara orgulhoso e antipático, metido a sebo - disse o velho barrigudo, que parecia guardar algum sentimento forte de mágoa, implacável até mesmo diante da morte.
-- Um grande sujeito, honesto, respeitável, trabalhador. Foi meu freguês a vida inteira e só comprava a vista. Nunca soube de nada que o desabonasse.
--Meu velho amigo e companheiro de mocidade, de nossos tempos de solteiro. Ficávamos horas e horas jogando sinuca e tomando uma cerveja. É com imenso pesar que recebo a notícia de sua morte, a cujo enterro não posso ir por falta de condições físicas. Com ele vai-se um pouco de mim, de velhas lembranças de um passado muito distante. Que Deus o receba em sua glória!
--Meu amigo e meu compadre, de saudosas lembranças. Seguindo caminhos diferentes, perdemos a convivência, mas, lembrando-o, retrocedo a um passado bem distante. Companheiros de trabalho, fomos vítimas, ao mesmo tempo, do ato discricionário de uma autoridade prepotente..Um grande amigo que se foi.
-- Meu parente e meu amigo. Ele dizia sempre que meu falecido pai não era apenas primo, mas irmão, e nessa condição convivia com a família dele. Sinto demais a morte dele.
--Não me esqueço de seu sofrimento quando de um desfalque na agência bancária em que era gerente. Angustiava-se com a idéia de que alguém pudesse pensar em seu envolvimento na fraude. E sei de alguém que chegou a pensar assim, mas o funcionário desonesto confessou tudo e família dele assumiu a responsabilidade pela falcatrua. Mas ele, apesar de inocente, sofreu humilhações com o que aconteceu, inclusive o depoimento em uma delegacia em Belo Horizonte.
--Fomos companheiros de atividades vicentinas. Naquele tempo o Conselho Vicentino não dispunha de veículo e ele punha o seu “Chevete” a serviço da entidade. Conduzia para toda a parte os assistidos e enfermos. Realizou um bom e humanitário trabalho.
--Trabalhei sob sua chefia por muito tempo na Minascaixa. Era muito mais amigo do que chefe. Tinha o nosso respeito e amizade.
--Nos velhos tempos de UDN e PSD, era udenista fiel, mas nunca quis assinar a ficha de filiação ao Partido, também nunca reivindicou nada. Por sua competência, foi nomeado contador da Prefeitura na administração do doutor Hugo Gontijo; mais tarde, em outra administração, foi exonerado do cargo por perseguição política. Como compensação por sua fidelidade, conseguimos nomeá-lo para gerente da então Minascaixa, cargo que desempenhou com brilho e competência. Uma longa amizade que a morte interrompeu. – assim falou velho político.
-- Se não teve em Bom Despacho o seu berço, ninguém mais que ele amava esta cidade. Aqui trabalhou, lutou, construiu família, envelheceu e ora nos deixa. Comovente sua paixão por esta terra, sua gente, sua história, que ele enalteceu em alguns escritos e a todo o momento por palavras – fala um velho e dedicado amigo.

Em redor do caixão, os filhos, chorosos:
--Foi o melhor pai do mundo!
Ausente do velório, por absoluta falta de condições físicas e psicológicas, a desolada viúva murmura:
-- Ele foi tudo para mim, na vida! Não sei como viver sem ele, mas será por muito pouco tempo. A qualquer momento estaremos juntos, na Eternidade!

(Texto redigido em 02/11/2005, Dia dos Mortos)

Paul Ricoeur (Tempo e Narrativa)

O Círculo Entre Narrativa e Temporalidade

A primeira parte da presente obra visa atualizar os pressupostos maiores que o resto do livro submete à prova das diversas disciplinas tratando seja de historiografia, seja de narrativa de ficção. Esses pressupostos têm uma raiz em comum. Quando se trata de afirmar a identidade estrutural entre a historiografia e a narrativa de ficção, como nós nos esforçaremos para provar na segunda e na terceira partes, onde se cuidará de afirmar o parentesco profundo entre a exigência de verdade entre um e outro modos narrativos, como nós faremos na quarta parte, uma pressuposição domina todas as outras, à saber que o engenho último da identidade estrutural da função narrativa da exigência da verdade de toda obra narrativa, é o caráter temporal da experiência humana. O mundo trabalhado por toda obra narrativa é sempre um mundo temporal. É a essa pressuposição maior que é consagrada nossa primeira parte.
Que a tese apresenta um caráter circular é inegável. É o caso de toda asserção hermenêutica. A primeira parte que aqui está tem por ambição colocar essa objeção. Nós nos esforçaremos no capítulo III por demonstrar que o círculo entre narratividade e temporalidade não é um círculo vicioso, mas um círculo onde os dois meios se reforçam mutuamente. Para preparar essa discussão, eu penso poder dar a essa tese a reciprocidade entre narratividade e temporalidade duas introduções históricas independentes uma da outra. A primeira (capítulo I) foi consagrada à teoria do tempo em Agostinho, a segunda (capítulo II), à teoria da intriga em Aristóteles.
A escolha destes autores tem uma dupla justificativa, nós nos propomos entrar independentes no círculo de nosso problema: de um lado pelos paradoxos do tempo, de outro pela organização inteligível da narrativa. A independência delas não consiste somente nas Confissões de Santo Agostinho e a Poética de Aristóteles pertencem a universos culturais profundamente diferentes, separados por muitos séculos e por problemáticas que não se sobrepõem. De maneira mais importante para nosso propósito, um se encarta da natureza do tempo, sem se cuidar de fundar sobre essa pesquisa a estrutura narrativa da autobiografia espiritual desenvolvida nos nove primeiros livros de Confissões. A outra constrói sua teoria da intriga dramática sem consideração pelas implicações temporais de sua análise, deixando à Physique de colocar a análise do tempo. É nesse senso preciso que as Confissões e a Poética oferecem dois acessos independentes um e outro ao nosso problema circular.
Mas essa independência das duas análises não retêm mais a atenção. Elas não se atêm em convergir contra a mesma interrogação a partir de dois horizontes filosóficos radicalmente diferentes: Elas engendram cada uma a imagem inversa da outra. A análise agostiniana deu do efeito do tempo uma representação na qual a discordância não cessa de desmentir o desejo de concordância constitutivo do animus. A análise aristotélica, ao contrário, estabelece a preponderância da concordância sobre a discordância na configuração da intriga. É esta relação inversa entre concordância e discordância que me parece constituir o interesse maior da confrontação entre as Confissões e a Poética –confrontação que me pareceu mais incongruente que aquela que vai de Agostinho até Aristóteles, no desprezo da cronologia. Mas eu pensei que o encontro entre as Confissões e a Poética, no espírito do mesmo leitor, será tornado mais dramático se ele é da obra ou predomina a perplexidade engendrada pelos paradoxos do tempo contra aquele onde leva o contrário a confiança no poder do poeta ou do poema de fazer triunfar a ordem sobre a desordem.
É no capítulo III desta primeira parte que o leitor encontrará a célula metódica cujo resto da obra constitui o desenvolvimento e talvez a revisão. Nós colocaremos em questão por ele mesmo – e sem outro cuidado de exegese histórica – o jogo inverso da concordância e da discordância que nós legou as análises soberanas do tempo por Agostinho e da intriga por Aristóteles.


As Aporias da Experiência do Tempo


A antítese maior em torno da qual nossa própria reflexão vai tornar a encontrar sua expressão a mais azeda no final do livro XI das Confissões de Santo Agostinho. Dois traços da alma humana se encontram confrontados, aqueles que o autor, com seu gosto marcado pelas antíteses sonoras, dá a mistura entre a intentio e a distentio animi. É esse contraste que eu compararei anteriormente com aquele do muthos e da peripeteia em Aristóteles.
Duas observações devem ser feitas antes. Primeira nota: eu começo a leitura do livro XI das Confissões no capítulo 14, 17 com a questão: o que é de efeito o tempo?” Eu não ignoro que a análise do tempo está encaixada numa meditação entre as relações entre a eternidade e o tempo, suscitado pelo primeiro versículo da Bíblia: em princípio foi feito Deus...
Nesse senso, isolar a análise do tempo dessa meditação, é fazer ao texto uma certa violência que não é suficiente para justificar o desejo de situar no mesmo espaço de reflexão a antítese agostiniana entre intentio e distentio e a antítese aristotélica entre muthos e peripeteia. De qualquer modo, essa violência encontra alguma justificação na argumentação mesma de Agostinho que, em se tratando do tempo, não se refere mais à eternidade que para marcar mais fortemente a deficiência ontológica característica do tempo humano, e se mede diretamente nas aporias que afligem a concepção de tempo de modo tal. Para corrigir um pouco esse corte feito no texto de Santo Agostinho, eu farei uma reintrodução da meditação sobre a eternidade em um estágio anterior da análise, no desejo de encontrar uma intensificação da experiência do tempo.
Segunda observação notável: isolada da meditação sobre a eternidade pelo artifício do método que eu venho ter, a análise agostiniana do tempo oferece um caráter altamente interrogativo e mesmo aporético, que nenhuma das teorias anteriores do tempo, de Platão a Plotino, não possuem a um tal grau de acuidade. Não somente Agostinho (como Aristóteles) procede sempre a partir de aporias recebidas da tradição, mas a resolução de cada aporia faz nascer novas dificuldades que não cessam de relançar a procura. Esse estilo, que faz que todo avanço de pensamento suscite um novo embaraço, coloca Agostinho na vizinhança dos céticos, que não sabem, dos platônicos e neo-platônicos, que sabem. Agostinho procura (o verbo quarere, veremos, aparece com freqüência no texto). Pode ser que ele deveria ir até o ponto de dizer que aquilo que chamamos a tese agostiniana sobre o tempo, e que qualificamos voluntariamente de tese psicológica para se opor àquela de Aristóteles e mesmo àquela de Plotino, é ela mesma mais aporética que Agostinho admitiria. É o meio que eu emprego para mostrar.
As duas observações iniciais que devem estar juntas: o encaixe da análise do tempo numa meditação sobre a eternidade dá à procura agostiniana o tom singular de um “germinar” pleno de esperança, que desaparece numa análise que isola o argumento propriamente dito sobre o tempo. Mas é precisamente destacando a análise do tempo de seu pano de fundo eterno é que ficamos sabendo dos traços aporéticos. Certamente, esse modo aporético difere daquele dos céticos, no sentido em que ele não impede uma forte certeza. Mas ele difere dos neo-platônicos, no sentido em que a raiz assertiva não se deixa jamais apreender em sua nudez próxima das novas aporias que ele engendra.
Esta característica aporética da reflexão pura sobre o tempo é para toda a seqüência da presente procura da maior importância. Em dois sentidos.
De início, deve-se avaliar que não existe, em Agostinho, uma fenomenologia pura do tempo. Pode ser que jamais existiu antes dele. Assim, a teoria agostiniana do tempo é ela inseparável da operação argumentativa através da qual o pensador corta umas após as outras as cabeças sempre renascentes das hidras do ceticismo. Então, não há descrição sem discussão. É porque ele é extremamente difícil – e talvez impossível –isolar uma raiz fenomenológica da sanha argumentativa. A “solução psicológica” atribuída a Agostinho não pode ser nem uma “psicologia” que pudéssemos isolar da retórica do argumento, nem mesmo uma “solução” que pudéssemos suster definitivamente no regime aporético.
Esse estilo aporético como uma outra significação particular numa estratégia de reunir na presente obra. Esta será uma tese permanente do livro que a especulação do tempo é uma ruminação inconclusiva à qual somente replica a atividade narrativa. Não que esse resolva e suplemente as aporias. Se elas os resolvem, é num sentido poético e não-teórico do termo. O colocar em intriga, diremos mais tarde, responde à aporia especulativa por um fazer poético capaz certamente de esclarecer (esse será o sentido maior da catharsis aristotélica) a aporia, mas não de sua solução teórica. Num certo sentido, Agostinho ele mesmo orienta contra uma resolução desse gênero: a fusão do argumento e do hino na primeira parte do livro XI – que nós vamos de início colocar em parênteses –já deixa entender que somente uma transfiguração poética, não somente da solução, mas questão ela mesma, libera a aporia de não-sentido que ela coteja.

A Aporia do Ser e do Não-Ser do Tempo

A noção de distentio animi, junto da intentio, não se desenlaça mais que lentamente e sofrivelmente da aporia maior que exerce o espírito de Agostinho: saber aquela da medida do tempo.
PAC prevê duplicação da BR 262 e vereança gratuita

Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior*


O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) criado por Lula no início do segundo mandato agora em curso (e que pretende realizar o famoso “espetáculo do crescimento”) prevê várias medidas e obras fazer o País crescer (para termos uma base de comparação, Venezuela e Argentina crescem muito mais que o Brasil).
Assim sendo, dentro da previsão de investimento em transportes, o PAC promete a duplicação da BR 262 – MG, entre Betim e Nova Serrana e a criação de uma linha de transmissão de energia elétrica entre Itumbiara e Bom Despacho. Foi destinada também uma ampla verba para a revitalização da bacia do Rio São Francisco (um milhão e seiscentos mil reais). Obtive esses dados no material preparado para a imprensa (secretaria de imprensa e porta-voz, Brasília, 22 de janeiro de 2007).
Para fazer diminuir o tal do “Custo Brasil”, o PAC prevê que as cidades com menos de 300 mil habitantes deverão ter vereança gratuita, ou seja, o cargo de vereador passará a não ser remunerado. Estaríamos retornando a uma situação que existia no passado.
A prevista vereança gratuita foi posta em debate num artigo de Sacha Calmon (O PAC e seus Óbices, Estado de Minas, 03/03/2007), advogado tributarista e professor titular de direito tributário. Segundo Calmon, trata-se de dos pontos controversos do PAC, que não são poucos. Essa medida não constou no material divulgado para a imprensa e, ao que tudo indica, não está sendo extensamente repassada para a opinião pública.
Segundo Calmon (que pouco escreveu a respeito da vereança gratuita em seu artigo, limitando-se a dizer que a medida está no PAC e ele deseja debatê-la), o plano é, no geral, positivo porque inaugura um planejamento integrado no país, sinaliza a continuidade da queda dos juros básicos, fragilizando os execráveis monetaristas encastelados no BC, além de relançar o desenvolvimento, acenando aos investidores e desonerando setores importantes da economia.

A Muchacha de Léon e o Ato Sexual do Monstro

A Muchacha de León e o Ato Sexual do Monstro

Ele sabia que aquilo a perturbava, mas se limitava a despir ao terno e dizer:
_Vai te fazer bem esquecer a você esquecer disso tudo, sorry, mi muchacha, yo soy un ombre sincero, o luar vai te fazer um bem...Vai ser muito melhor do que ler Althusser...Lendo este louco, você pode ficar achando que um dia vou chegar da rua e te estrangular, enquanto você assiste a novela das seis.
Che Guevara a espiava tirar a calcinha, o argentino ficava lá na parede de boca aberta, flácida, Che tudo olhava com os olhos fixos no infinito, era sempre assim, cósmico.
Isso enquanto seu marido murmurava docemente em sua orelha, mas mãos bobas buscando reentrâncias, ele torturava a carne da muchacha e ela estava impávida. Depois lhe arranhava as costas.
Daqui no passarán. Mas ele era um bruto, com os dedos ia avançando, seguia para o front, hay que endurecer pero sin perder la ternura, a baioneta, a trincheira, aquilo era a batalha do corpo a corpo, boca a boca. Cantando uma canción desesperada y otros poemas de amor.
Na manhã do dia seguinte, depois de fazer café, enquanto folheava na estante coisas cheias de letras como Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, O Capital, ela falava:
_O apartamento não tem espaço para essa coiseira toda, tem livro por tudo quanto é lado, mas a gente acabou de casar e o apartamento é muito apertado, é um ovinho.
Ela o olhava com hostilidade, como se fosse Paulo Francis _ isso de cheirar comunismo fazia mesmo mal _ e ainda citava Churchill cinicamente:
_Quem não é socialista aos vinte anos não tem coração, quem não é conservador aos quarenta anos não tem cabeça.
Ela o torturava com esta frase, sua carne era fustigável por palavras perfuro-cortantes. Ele retrucava com deixando fluir um falatório:
_Levantem-se, famélicos de todo o mundo, sassaricai agora como na hora da morte! Tesudos de todo mundo, uni-vos, nada tendes a perder, a não ser os seus culhôes, tesudos de todo mundo, sassaricai...
Tinha dia que ele danava a escrever uns textos descabelados assim para ela:
_O prazer orgástico de ouvir Guns and Roses em cristalino Compact Disc é destes da burguesia decadente e devassa, a reação entorpece com ópio. Oferecem cannabis sativa e tetas para os proletas. Os popstars niilistas são deuses para quem vocês fazem palhaçadas, seus ciberpanquis e neoripis de cabelos desgrenhados, vocês acham que Zaratustra falou e disse, né, bichos? Hein? Leram Paulo Coelho? Queriam fazer uma canção para fazer chorar de plástico enquanto dançam as bailarinas do Show da Morte, o Fantástico?
_Mas querido, isso é loucura, vê se pode!
Em resposta ao grito da moça, começou outro discurso:
_Estamos aqui conversando, mas ainda há pouco matavam iraquianos em nome de um aiatolá qualquer. Enquanto isso uma maluca está tramando uma nova religião, cujo primeira mandamento será: “ Enquanto não finda o mundo, transai altas loucuras”.

O Show dos Beatles nas Filipinas

· Paul Rabbitt
· Miguel
· J. C. Rabonú
· Henry Ford Cristo


No terraço de um hotel quatro estrelas no centro de Belo Horizonte.


CENA 1

(Paul e Miguel acabaram de chegar dos EUA e estão no terraço do Othon Palace em BH, bebendo muito).

Miguel (entra cantarolando): “E o som dos Beatles na vitrola...Será, que algum dia eles vêm aqui? Cantar as canções que a gente quer ouvir?”

Paul Rabbitt (irritado): Miguel, há algo dos Beatles que nunca foi dito e que você não sabe. Vou revelar agora.

Miguel: Ah, fala o meu grande guia espiritual.

Paul Rabbitt: Os Beatles só fizeram um concerto em país de Terceiro Mundo: as ilhas Filipinas. E eles não fizeram reverência ao ditador local, Ferdinand Marcos. No dia seguinte, foram vaiados ao ir fazerem o show. O show foi terrível!

Miguel: Oh! O show dos Beatles nas Filipinas!

Paul Rabbitt: e John Lennon gritou: nunca mais iremos a um país como esse! Esse país é um hospício!

Miguel: então foi por isso que os Beatles não vieram ao Brasil nem Lennon cumpriu a promessa de vir dançar fantasiado o carnaval de máscara, para que ninguém o reconhecesse!

Paul Rabbitt: não acabo de te dar a luz, Miguel?

Miguel: Siiiim! Este país é um hospício! Salve o lindo pendão das minhas pernas que a brisa do Brasil beija e balança!


CENA 2 (Paul e Miguel conversam no quarto de hotel, agora sóbrios).

Paul Rabbitt: Miguel, Miguel, você ligou para a editora hoje?

Miguel: Liguei. Eles vão estar mandando o adiantamento em breve.

Paul Rabbitt: “Vão estar mandando”. Não suporto esse gerundismo de Telemarketing. Copiado do inglês.

Miguel: Desculpe, desculpe, vou providenciar tudo, pode ficar descansado e ir escrevendo seu livro.

Paul: estamos aqui no Brasil para conhecer o tal Rabonú. Nesse meio tempo, enquanto não falo com ele, vou visitando uns parentes aqui. A viagem será proveitosa...

Miguel: Você está escrevendo sobre a segunda vinda de Cristo, não é?

Paul: Pois é. Mas, se não encontrar inspiração aqui vou para Los Angeles ou o sul da França. Há anos meus livros de auto-ajuda e esoterismo são um sucesso nos Estados Unidos e Europa.

Miguel: Rabonú é, pelo que soube pelos e-mails, um mau profeta, um arrogante dono da razão.

Paul: Você acha que ele pode ter alguma novidade utilizável em meu livro, não é?

Miguel: Claro! Eu já estou entrando em contato com ele via telefone e telepatia, não se preocupe.

Paul: Será que ele se diz uma reencarnação de Cristo? Se não disser, não presta! Eu sou como o Paulo Francis.

Miguel: Vejamos se esse contato vai ser proveitoso.

Paul: É bom, senão...Você tem outro emprego em vista? (Paul sorri, sarcástico, servindo-se de uísque e gelo).


CENA 3

Paul Rabbitt: Veja, Miguel, estou compilando informações sobre a Segunda Vinda. Já reuni as citações bíblicas sobre a volta...

Miguel: Ficou só na Bíblia, até agora?

Paul Rabbitt: Não, já soube da vinda de um suposto Cristo-mulher, da crença russa de que Cristo reencarnou num corpo de soldado e depois foi morto. Li também a respeito de um beberrão e blasfemo italiano que passou alguns dias em um mosteiro e saiu convencido de que ele mesmo era Cristo, tendo reunido um bom número de fiéis e causado confusão Itália afora.


CENA 4

(Paul e Miguel encontram-se com Rabonú em Ouro Preto).

Paul: Foi preciso vir a essa praça suja, essa feira bagunçada?

Miguel: Vai ser legal, aí, de boa...

Paul: Há tantos anos costumo ir só a Champs Elysées e ao Central Park em New York...

Miguel: Olhe, lá vem ele.
(Rabonú aproxima-se com roupas de hippie. Ele tocava junto com um conjunto de músicos peruanos a canção If I Could, de Simon and Garfunkel).

Paul (falando baixo para Miguel): Mas é um coitado! É só um pobre diabo!

Rabonú (encara muito sério Paul Rabbitt e Miguel): O Hercóbulus está chegando!

Paul: O que é isto? É o nome do novo Cristo?

Rabonú: Naaaaaão! O planeta Hercóbulus está chegando! Eu sou o profeta da chegada de um planeta vermelho e gigante que está afetando a Terra!

Miguel (aflito): Se você é profeta, é a reencarnação de Cristo?

Paul: Deixe-o falar, Miguel, vamos ver se presta.

Rabonú: Calem-se! Agora vocês escutarão minhas sábias palavras. As mudanças climáticas pelas quais a Terra está passando são fruto da aproximação de um planeta cinco ou seis vezes maiores do que Júpiter! E vocês têm pouco tempo para seguir meus ensinamentos e apagar seus defeitos psicológicos para poderem ser salvos.

Paul: Mas não seria culpa do Bush?

Miguel (cantarola): and who is the fascist? Bush, Bush, Bush, Bush!

Rabonú: Sim, o planeta está chegando com extraterrestres que já vivem numa sociedade mais adiantada, a sociedade socialista. Eles só salvarão alguns dentre nós.

Paul Rabbitt: Rabonú, os extraterrestres socialistas vãos nos ajudar?

Rabonú: Os terrícolas crêem que é tudo brincadeira, mas realmente é princípio do fim do planeta Terra. Ninguém, no entanto, poderá deter o cataclismo.

Paul: Não há nada que possamos fazer, senão esperar o apocalipse? Mas não virá nenhum Jesus, nenhum sinal?

Rabonú: Hercóbulus tem sua humanidade, tão perversa quanto a daqui. A nossa ciência não poderá atacar os Hercobulusianos porque eles se defenderão e fim será mais rápido ainda.

Miguel: Então existe vida inteligente fora da Terra?

J. C. Rabonú: Os cientistas vão rir feito asnos zurrando, pois infestaram o planeta com armas atômicas e não levaram em conta que existe Deus e sua Justiça Divina.

Paul: Mas nenhum cientista avisou-nos da chegada desse planeta? Por que eles estão nos escondendo esse fato?

Rabonú: O que está acontecendo agora, com todos procurando ganhar dinheiro a todo custo, aconteceu na Atlântida, numa época em que Deus era o dinheiro.

Paul: Existiu um culto ao Deus-dinheiro? Nunca ouvi falar.

Miguel (cantarolando): Money makes suffer downer, money makes the world go roooound!

J. C. Rabonú: O eixo da Terra está fora do seu lugar e com tremores, terremotos, maremotos, acabará por deslocar-se e virá o afundamento.

Paul: E os ETs? Não se importam com nosso destino?

J. C. Rabonú: Os ETs são super-homens e sábios! Tenho ido, em meu corpo astral, a Vênus e Marte. Consigo descrever essa maravilha de habitantes, com sabedoria, cultura e vida angélica muito superiores às daqui.

Miguel: Vinde conosco para a Feira Literária de Parati, a FLIP, onde o Sr. Paul Rabbitt deve em breve fazer a leitura de um capítulo do livro dele. E terá oportunidade de advertir a humanidade, pois lá existem repórteres de todo mundo.

J. C. Rabonú: Vamos, vamos! Os fatos não se fazem esperar e é preciso prevenir a humanidade. No mais, não há tempo a perder em coisas ilusórias.


CENA 5

(Miguel, Rabonú e Paul estavam no hotel, fazendo os preparativos para partida até Parati, peregrinando na Estrada Real, quando encontram Henry Ford Cristo).

Paul: Miguel, Miguel, já estão prontas as malas?

Miguel: já está quase tudo pronto, Paul.

Paul (voltando-se para outro lado): Rabonú, você vai partir conosco?

J. C. Rabonú: Sim, partirei em peregrinação junto a vocês e alertarei a pobre humanidade.

Henry Ford Cristo (entra com coroa de espinhos, largas roupas brancas e barba de profeta): A Humanidade será alertada por mim, não por você! Sou o Cristo que regressou!

Paul (extático): É você quem eu estava esperando!

Henry: Eu já renasci em vários lugares e ainda não fui aclamado Salvador. Eu renasci em Bristol, fui preso, supliciado e novamente morto no pelourinho. Fui um bêbado na Itália, no século dezenove, depois me revelei o Salvador, mas novamente fui supliciado. Apareci na Rússia também, filho de uma camponesa e de um ancião de cem anos, mas o Czar me mandou crucificar frente ao Kremlin. Depois, renasci como um louco gaguejante em Novrogod, para ser novamente preso e supliciado junto com os anti-czaristas. Deus muitas vezes utiliza a máscara da imbecilidade. Eu fui um cozinheiro negro de um vagão restaurante nos Estados Unidos, profetizei que era o Jesus Negro, mas fui morto outra vez, no Sul dos EUA, pela Ku Klux Klan. Agora vim para a Segunda Vinda definitiva, nasci em Belém do Pará no Brasil e lá fui preso pela polícia, revivendo meu martírio. De lá, parti para fundar minha Igreja em torno de Brasília, cidade fonte futura de um jorro universal de leite e mel...

Paul: Mas ora você vem como Cristo-homem, ora como Cristo-mulher?

Miguel (cantarolando Ney Matogrosso): Se Deus é menina e menino, sou masculino e feminino...
Henry Ford Cristo: Sim, já fui a camponesa Ana Lee. Eu já fui um Cristo-mulher, eu fui presa e interrogada, mas comecei a falar em todas as línguas conhecidas. E profetizei que na Américas nasceria a coisa nova, um mundo sem maldade! Minha porção mulher foi derrotada, mas eu renasci em Belém! Desta vez, para triunfar!

Paul: Escute Henry Ford Cristo, tenho uma proposta para lhe fazer...Gostaria muito de ir te entrevistando...

Henry Ford Cristo: Como já disse, na minha primeira aparição em Belém do Pará, invadi uma catedral para arrebentar com o bonequinho. E expulsei o falso sacerdote.

Paul: Que bonequinho?

Henry Ford Cristo: Para mim, a figura do Cristo crucificado não significa nada! Eu sou o Cristo renascido! De nada vale um Cristo morto. O povo brasileiro precisa de um Cristo vivo, audacioso, andando entre nós...

Paul: Glauber Rocha, em seu último filme, também enfocou o mito Cristo. Em Idade da Terra tinha Cristo militar, que era o Tarcísio Vieira, existia o Cristo guerrilheiro e vários outros Cristos que lutavam contra Brahms, o símbolo do imperialismo.

Henry Ford Cristo: Mas mito eu não sou! Quando fiz minha primeira ação cristã, expulsando o falso sacerdote da Igreja, ele chamou a polícia, me chamando de louco, esquizofrênico. Sou feito de carne e não de mito!

Paul: E esse nome americanizado? Cristo made in Usa! Lennon dizia que, se vivesse no mundo antigo, gostaria de viver em Roma, mas como vivia no mundo moderno, vivia em New York como eu…

Henry Ford Cristo: Então, Paul, ele perderia minha primeira vinda e nem ficaria sabendo...

Paul: Genial! Está vendo, Miguel, que achado esse homem!

Miguel: Pois é... Agora vamos para Parati, para a FLIP, como vamos fazer?

Paul: Senhor, venha comigo e lhe apresentarei para uma platéia cheia na Feira Literária de Parati.

Henry Ford Cristo: Em verdade vos digo: minha resposta é sim e irei contigo.

Paul: Que bom! Iremos conversando sobre esses assuntos, sobre essa sua nova vinda...

Miguel (falando baixo para Paul): Mas esse cara é maluco, Paul.

Paul (dando uma cotovelada em Miguel): Miguel, informe ao meu motorista que estamos partindo agora! Miguel, pegue as malas de Henry Cristo, o salvador que se apresentou a mim na estrada real de Parati, a nova estrada de Damasco! (e falando baixo para Miguel): Miguel, vou apresentar esse sujeito na Feira e vai ser um sucesso, além de colher material para o meu livro! Agora vá pegar as malas dele, vá...

Miguel: já vou, já vou.


CENA 6 ( Horas depois, viajando no carro de Paul, os quatro chegam a um bar em Tiradentes).

Miguel (à parte no bar, dirigindo-se para Paul): Paul, acho que não foi boa idéia trazer esses malucos junto da gente.

Paul: Mas são dois profetas!

Henry Ford Cristo: Ah, sei. Estive ali olhando a sinuca desse bar...Vamos jogar uma partida?

J. C. Rabonú: Devemos abandonar todas as ilusões enquanto o Hercólubus não chega...E penso que não há problema em nos divertirmos um pouco. Eu, com um saltinho já fico flutuando...

Henry Ford Cristo: Então você tem superpoderes?

J. C. Rabonú: Não, isso é coisa de cientistas que ficam zurrando burrices. Desenvolvi capacidade de sair de meu corpo carnal e fazer viagens astrais.

Miguel (conciliador): Pessoal, vamos jogar uma partida de sinuca para relaxar, que tal? (Paul, Rabonú e Henry Ford Cristo concordam e passam a debater entre copos de cerveja e tacadas de sinuca):

Henry Ford Cristo: Eu tive uma visão, vi uma porta aberta no céu, uma voz falara comigo.

Rabonú: Eu não tive uma visão, saí do corpo em viagem astral.

Paul: O que vocês acham do messias Lula?

Rabonú: Lula não é o messias esperado pelo povo brasileiro. Eficácia definitiva, só na Justiça Divina, que nos enviou o Hercólubus, que agora está chegando.

Paul: Os messias não resolvem! Vejam os índios Morales e Chávez...

Henry Ford Cristo: Eles decidiram, pelo menos, enfrentar o império americano decadente. Com eles, e com os aiatolás atômicos, com os mexicanos na fronteira do muro da morte, começarão as invasões dos doces bárbaros.

Miguel (cantarola): Afoxé, lindas canções, nossos planos são muito bons!

J. C. Rabonú: Chávez e Evo Morales são índios que conspiram contra o branco. De nada adiantará esse forte apego material. Pior ainda que se eles se ligarem ao selvagem materialismo científico do comunismo...

Henry Ford Cristo: Chávez e Morales são manifestações de um Cristo popular, um Cristo cósmico, glauberiano. Chávez é novo gênio da raça!

J. C. Rabonú: Estoy com Diogo Mainardi, sou pelo ufanismo da calamidade. De nada adiante resistir, se o mundo acabará dentro em pouco. O presidente do Irã é da maldosa humanidade de Hercólubus. Ele está no meio de nós.

Henry Ford Cristo: A Amazônia deverá ser preservada com a espada de Cristo. Estamos vivendo os últimos tempos que se estendem da minha Ascensão até a minha volta enquanto Juiz. O que, aliás, já ocorreu.
Rabonú: Henry, você não é o salvador, você quer fazer a revolução dos idiotas!

Paul: Em meu novo livro, falarei sobre o messianismo religioso, mas não sobre o messianismo político. A América Latina já sofreu muito com seus líderes e caudilhos carismáticos...

Miguel (cantarolando): Enquanto os homens exercem seus podres poderes, padres, bichas, adolescentes e mulheres fazem o carnaval. Ah, a incompetência da América Católica, que sempre precisará de ridículos messias.

Rabonú: carismáticos como Hitler.

Paul: Eu não queria chegar até aí.

Henry Ford Cristo: Chávez é muito diferente de Hitler. O nacionalismo de direita de Bush, que faz guerras de conquistas, é que se aproxima do de Hitler.

Paul (gritando): Cheeega! Moooorrram! Tomara que vocês morram no meio de uma frase, como disse Nelson Rodrigues em Anti-Nelson Rodrigues.


CENA 7 (Paul aparece no telefone, fora do bar, onde se ouvem, ao longe, rumores de sinuca, copos e a discussão acalorada de Rabonú e Henry Ford Cristo).

Paul: Olhe, como eu lhe disse, estou trazendo dois profetas impressionantes para compor a mesa comigo em julho. Sim, sim, estamos fazendo a Estrada Real....Sim....Estou recolhendo material para meu novo livro...Sim, sim, sim, vai ser muito interessante, vocês vão ver...Pois é, pois é, já estou avançado. É sobre a Estrada Real. A estrada real agora é meu caminho de Santiago...


CENA 8 (Em Parati, os três hospedados em um hotel luxuoso, conversando no Hall, sentados em poltronas).

Henry Ford Cristo: Parati, enfim. Vim, vi e venci.

Paul: Gostaram da chegada na cidade?

J. C. Rabonú: O Brasil é um país tão jovem, tão criança, mas já está decrépito o suficiente para a chegada do Hercólubus. É uma civilização nova, mas que tem todas as taras de uma Grécia ou de uma Espanha em decadência. É como se o Brasil tivesse nascido de barbas brancas...

Henry Ford Cristo: Nós somos um país invadido culturalmente pelo imperialismo dos United States, Rabonú, e você é um índio lúmpen, um alienado pela cocaína mística, diferente da coca dos cocaleros de Morales, que é libertadora. Sua coca é um entorpecente que lhe faz esperar incólume o Hercólubus...

J. C. Rabonú: Você não passa de um falso profeta, um falso Cristo dentre muitos que já apareceram. Um Antônio Conselheiro tupiniquim, um Pai João sem Contestado. Seu Contestado é a mitologia anti-imperialista. A livre competição dos terráqueos com os hercolubusianos lhes mostraria o que é uma humanidade mais maldosa, mais competitiva e mais ligada à livre iniciativa.

Henry Ford Cristo: Indiota! Você receberá os sacramentos católicos em seu leito de morte, sem a chegada do seu Hercúlubus! Her-CÚ-lu-bus! Para você, todos os índios e todos os brasileiros deveriam ter a cara maldosa do Diogo Mainardi. Os herculubusianos seriam colunistas da revista Veja, economistas liberais que deram um drop out na escola, portanto, todos teriam a cara maldosa do Diogo Mainardi. Todos caindo fora da escola!

J. C. Rabonú: Aguarde e logo você queimará no fogo do Hercólubus, seu blasfemo!

(Dito isto, Henry Ford Cristo começa a acender velas em seu quarto de hotel, um atrás da outra).

Paul: o que é isto, Henry?

Henry Ford Cristo: Para espantar o cheiro de enxofre e o mau agouro.

Miguel: Como assim? Vamos acabar sendo expulsos do hotel. Isso não é permitido.

Henry Ford: Como o tal do Hercólubus está chegando, igualmente como o presidente norte-americano está prestes a chegar, a nos visitar.

Paul: Para quê tantas velas?

Miguel: Deixe-me apagá-las, Paul.

Henry Ford Cristo (dando um berro): Nãaaaaaaao! É preciso nos livrar do cheiro de enxofre que vem do presidente norte-americano, fora a energia negativa advinda da vaidade dos escritores que estão aqui na Feira Literária de Parati! A fogueira das vaidades desses escritores!


CENA 9 (Do lado de fora do hotel, barulho de sirenes, ambulância, algazarra de pessoas conversando).

Paul: Oh, meu Deus! Cadê o Henry Ford Cristo?

Miguel: Aquele maluco fugiu! Eu te disse, eu te disse!

Paul: A culpa foi sua, Miguel, você não apagou as velas que Cristo ia deixando no quarto...

Miguel: Você é que teve essa idéia de trazer esses malucos aqui para Parati! Não tinha como vigiar esse pirado do Henry Ford Cristo, eu tinha que fazer contatos com seus agentes literários, preparar a mesa para sua conferência. Além do mais, não estava previsto que o Rabonú e o Henry Ford Cristo iam falar, pô! Tudo eu!

Paul: Henry Ford Cristo, Henry Ford Cristo, por que me abandonaste? Por que puseste fogo em nosso belo Hotel Parati? Lemi, Lemi, Lamá Sabactani!

(Neste momento, Rabonú entra gritando, fugindo do hotel em chamas)

Rabonú (berrando e olhando para as chamas): O Hercólubus chegou! Chegou! Ahhh, pobre humanidade sofredora, sofra a última vez, ainda! (Dito isto, Rabonú tomba aos pés de Paul e Miguel).

Paul: Pobre Rabonú! Miguel, busque socorro para ele! Ah, meu Deus, pelo amor de Henry Cristo, o que farei agora?

Miguel (ao sair de cena, grita para Paul Rabbitt): Você vai superar, Paul, você vai superar.

Paul (com voz chorosa): Como irei superar a perda desses dois profetas! Perdemos Henry Cristo e Rabonú! Perdi a Feira Literária Literária de Parati!

Miguel (enquanto volta com uma maca e enfermeiros vestidos de branco, cantando uma canção dos Beatles): We can work it out, we can work it out. Life is very short, there is no time for fusing and fighting my friend.


CENA 10 (Paul Rabbitt está numa mesa sozinho. Flashes espoucam e microfones o cercam por todos os lados):

Paul (para os microfones): Agora muita atenção. Vou ler um trecho de meu novo romance, A Segunda Vinda, para vocês: enquanto andava pela Estrada Real numa peregrinação mística, encontrei-me em Diamantina, no início de minha peregrinação, o profético índio J. C. Rabonú, fazendo suas profecias a respeito da chegada do planeta Hercólubus, um planeta vermelho e gigante que chegará para justiçar os cientistas burros do nosso planeta pequeno. Para destruir a Terra, esse planeta pequeno!
Eis que surge, eis que surge o Messias em pessoa. Ele atendia pelo nome singelo de Henry Ford Cristo. Era um Cristo perfeito, já renascia crucificado, com coroa de espinhos e tudo. Ele trazia uma verdade, duas verdades, muitas verdades de esquerda. Ele estava em Ouro Preto. Ele me contou que já renasceu em vários lugares e ainda não foi aclamado Salvador. Ele renasceu em Bristol, fui preso, supliciado e novamente morto no pelourinho. Foi um bêbado na Itália, no século dezenove, depois me revelou-se o Salvador, mas novamente fui supliciado. Apareceu na Rússia também, filho de uma camponesa e de um ancião de cem anos, mas o Czar mandou crucificá-lo frente ao Kremlin. Depois, renasceu como um louco gaguejante em Novrogod, para ser novamente preso e supliciado junto com os anti-czaristas. Deus muitas vezes utilizou a máscara da imbecilidade. Ele foi um cozinheiro negro de um vagão restaurante nos Estados Unidos, profetizaram que era o Jesus Negro, mas foi morto outra vez, no Sul dos EUA, pela Ku Klux Klan. Agora virá para a Segunda Vinda definitiva, renascerá em Belém do Pará no Brasil e lá será preso pela polícia, revivendo seu martírio. De lá, partirá para fundar sua Igreja em torno de Brasília, cidade fonte futura de um jorro universal de leite e mel... Bom, esse é o trecho que posso divulgar e adiantar para vocês. No mais, planejo para breve uma nova peregrinação mística: irei viajar pela ferrovia transiberiana acompanhado de Mãe Santinha do Cantuá, uma mãe de santo de minha devoção...
(A fala de Paul Rabbitt é interrompida pela canção Across the Universe, na versão da banda eslovena Laibach, e, quando a canção acaba, TREVAS).

Violetas de Aleluia (poemas)

Violetas de Aleluia
Poemas






























-Mariposas de Plástico-

Formosas senhoritas sinto informar
Mas na cama fria é que será o nosso affair
São as mariposas de plástico
Aprendendo a voar.
Seus saltos altos deságuam na parede
& você com seu sorriso de pele nos lábios
Ossos cheios de curvas, mãos de rosa a me rasgar.
Nos teus cabelos uma selva oculta a toca
Onde dorme a língua-fera.
Folhas de avenca irão fazer manta para seu corpo vazio
& uma linda peruca para uma mente confusa.
***





















-Gravata e Borboleta-

Vamos entrar numa sala
Começar do início, se isso existisse
Mandando a sombra embora
Vou ver a foto de Dylan Thomas
Ele ajeita a gravata e borboleta
& escreve um templo tailandês.
Entram dançarinas de can-can
Depois um canto religioso entoado pelos punks japoneses
Na santa época do natal budista.
Enfim uma chinesa bota duas azaléias num copo de àgua
E dorme suada encostada no meu cadáver.

***






























-O Crisântemo-

Manchas na pele --solares
Algas vermelhas, peixes em transe
Guarda-chuvas rodopiam, fantasias na caixa
Uma aranha tece a teia, tirei as sandálias
Um sol amarelo surgiu na fumaça para os ávidos carnívoros
Naquela tarde em que em que eu sentia nas mãos meu crisântemo.
***





















-Uma Carta Para Elizabeth-


Então você caiu de cama
Naquele dia em que o rei sanguinário
Exibia seu pálido sorriso.
Vieram avalanches luminosas
Dominar a cidade...

Meu aniversário foi estranho,
Música e musgo
Na noite.
Mais cadáver do que nunca, não vejo novidade em viver nem em morrer
O natal foi frio.
Você já esteve apaixonada em outros tempos.
Agora quando sente a leveza insustentável da pluma
Sabe que somos personagens da peça.
Tigres de papel sorrindo o tempo todo
Todos estamos só ensaiando para quando cair o pano
Mas por que só você não sai do palco e ri?
As lágrimas emudecem o sofá?
Sombras furtivas no eclipse
Procuram seu nome...
***












-Memórias Emersas em Boa Hora-

Boa hora esta para escavar respostas
Nos postais da parede
Nos dias de um eterno ontem

As tulipas da Holanda a agradaram tanto

Boa hora para reler o diário do cativeiro
ou explodir a pele das ondas.

***




















-Domingo Empalhado-

Entre a Coca-Cola e o frango-xadrez
Um jogo de perguntar e responder.
Parede caiada, vasos em flor
Um rosto devastado.
Remédios para dormir...se agora é minha vez...
Eu me calo.
***































-Galeria Brilhante-

Ó querida, vamos subir...
Explodiu!
Estamos levitando. Agora nossos pés flutuam
Sopra o vendaval e vamos lá.
Estou vendo o planeta negro circundado de anéis
Toque a nota musical certa e faça da água cristal
Ouça a voz sussurar para o tapete: “Da fruta que tu comes o caroço é o caroço que eu quero”;
Mas é só o piano de asas de bronze.
Luzes verdes definham no escuro da noite
Nascem sombras de renda no teto.
No mar uma pequena onda, trêmula e fria
Molha a palma das mãos do mármore.
Do outro lado do planeta, um lago sereno, cheio de cisnes
Imita o céu risonho, bailam silentes as libélulas na superfície.
No fundo o olho do relógio transborda de verde úmido.
Lá na cidade as abelhas oram contra os pratos
& afogam os ferrões
nos dedos de quartzo.
A mariposa de veludo nem bem suspira no relâmpago
& o pescoço já entrou no cio.
Enfim as bananas perguntam às violetas:
“Mas é inútil a verdade absoluta?”
***










-Eu Sei-
Eu sei do cinza, existe uma tempestade
Eu sei do medo, do fim do mundo, daquele cheque não ter fundo
Andorinhas riscam o ar, existe o mar distante
Eu sei que meus olhos estão cheios de sangue
E meus braços nem te alcançam, há gelo ao redor
Eu sei da lua que não vai surgir.

***
























-Balada Crua-

Flor majestosa, taça do vinho mais fino
Tens pistilos dourados, tuas pétalas giram no cálice alvo
Ouço os silvos dos grilos, este é um canto cortês
Queria também ter um violino nos joelhos
Ah, eu tocaria as baladas mais cruas
Como neste entardecer, com o brejo em flor.

***






























-Ulysséia-

Tinhas olhos de azul leve como o ar, nuca diáfana e cabelos de seda
Agora és pedaços de nuvem ancestral
& libelicópteros
sobrevoam o mar
te procurando
A língua de vento era plena de veneno
E derrubou teu metálico abrigo, caíste enfeitiçado.
Se o teu nariz não sangrava em Brasília
Sangra agora na gruta submarina, entre o cérebro de netuno e os corais de marfim
Então o Eremita Paguro busca tua boca para concha
Anêmonas devoram tuas carnes tenras, teu braço é envolvido por um invertebrado
Teus olhos azuis já cerrados servem de almoço para peixes venenosos.
Na praia de areia alva eu piso medusas, choro as lágrimas que as areias devoram ávidas
Se me lembro de ti, me viro pras dunas, sei que tua alma está entre as ondas,
Misturada nos mares.
***














-Existência-

Existem no céu astros em chamas, pode olhá-los agora
Existem cinzas quentes ainda em mim, pode pisá-las
Existem gritos lancinantes na floresta, você sabe, lá estou
Existe uma moça vestida de negro, entre os círculos de fogo, sabemos quem é.
Existe uma jovem que voa com pele de loba, deixem-na só.
Existe uma lua truculenta que comanda marés, ela está em você esta noite
Mas solte-me, já morri mesmo, minha cabeça cai e está roída de cupins, no ar voam morcegos com unhas de mulher, eu quis sangrar e não fugir...
Meu amor, volta aqui e bica minha carne
Nasceste da espuma das ondas feito Afrodite
Fecundaste a areia sensual
Então senta-te hoje entre os bêbados de vida
Coma conosco de um certo fruto-envenenado-é claro...
E exista!
***





















-Cine Regina-


Este cinema, encaixado nas duas lojas.
Uma de tecidos, Cine Regina, uma barbearia.
Este cinema
Flutuando com seu branco letreiro,
Pisca na madrugada,
No abismo,
Sempre piscando.
Na grade, círculos verdes tecem quadrados intrincados.
Na verdade
A entrada é franca.
Entrada tá fechada, vidro fosco.
O vidro fosco abraça as grades.
O Cine se esconde em frágeis andares
De um prédio de ruivas nas janelas.
Quadrados minúsculos seguem feito facetas
Da asa multicor de uma borboleta.
Sentados no meio-fio
Garotos estão vendendo cigarros de menta.
Quisera eu entrelaçar tal cenário
Numa foto em pretos e branco retintos.
Para esfregar a imagem nos narizes metálicos
Da metrópole surda-muda& nua.






-Universo em Desencanto-


Budas de nylon, duendes de isopor
Se o terceiro olho você abrir, terá sucesso, é só comprar...
E faça rezas para os santos surdos
Alegria a 3 prestações, sem juros.
Ao seu lado um rosto turvo
leva a tranqüilidade em frasco.
Cristais energizantes vão te mostrar
Cósmicas imagens do nosso azar.
E os anos farão a Nova Ordem Mundial em cinzas
Virá eufórica Nova Era, travada de sonífero, levantando do sepulcro,
Olhando as horas...
Para encontrar os querubins, não vou de mago
Quero escrever árvores, adiar milagres.
Farei flores num armário,
No lugar de cama, deserto lunar.
Onde em paz vão me deixar, enfim.












-A Estatueta-

Eu achava que um botão de sua roupa tinha um brilho de cem sóis.
Mas chegou a maré e fiquei te imaginando
Entre cisnes do além, cismada.
Eu sou estatueta
Você pomba
Minha boca é cimento
Tuas asas...
Portanto não deixe passar o vento
A brisa bruta arranca a janela...
E suma nas nuvens de fumaça
Ou num desastre morra, quem sabe naufrágio.
Ah, onde iríamos eu e você, se tivéssemos outros mundos?

















-A Moça-

A moça estava a se mirar num espelho
Seu cabelo a faiscar
Quem dera deitada no azulejo glacial
Boca de esmalte, noite emplumada,
Posição fetal.
A vida escorrendo pelos canos,
Saliva sabendo a cisne do esgoto
Olhar de dejeto industrial me fincando
Meus pés são barbatanas, ouço ruflar de asas
Descubro moças no muro com caramujos
Damas que servem veneno em jarras de jade.




















- Juramento-

Peguei o trem sibilante, Cérbero de guia turístico
Um cicerone dos infernos!
Lá uns adolescentes tremem em nuvens de doce fumaça
E há lua crescente nas selvas, uma ou outra estrela opaca.
Sacerdotes em desespero buscam saída duma vida insossa
E eu perdido no labirinto, sobre abismos
Flutuo
























-Galeria Praça 7-



O luminoso de verde olhar faz ressoar as espirais
São escadas subido ao céu de Novembro
E é céu denso, fúnebre
Nuvens são destroços flutuantes
Se ao menos o sol me queimasse...
Entre globos reluzindo, um natal é de alumínio
E brilha no espelho da ótica evangélica.
Mas não é permitido sentar no mundo, tudo tem que girar, fazer trapos de angústia.
A lei é dura, lura dex led sex.



















-Feliz Natal-

Feliz natal para todos--e para ninguém
Feliz natal, sinos badalam canções, badalos gemem para a lua
Feliz natal, os corpos dos enforcados pendem maduros na árvore
Então feliz natal para vocês todos.
Para aqueles que perambulam drogados aguardando os dentes do cliente feroz
E para aqueles que espetam veias à meia-luz.
Natal! Nesta época do ano os xópins se enchem de seres bizarros
Que não são humanos.
Só para que o Cristo se encha de amor espetado no poste frio do subúrbio.





















-Anjo Exterminador-

Madrugada_ sombras solitárias, rua morta
Não era mórbido o sorriso púrpura do menino
Mas o gavião cravou unhas de foice na pomba de seda
& o ar ficou pesado, choveu outra vez
Vai chover de novo
O espectro flutuou transido nas colinas de mármore
E da própria garganta saiu o grito do assassino de si
Foi o deleite final do Anjo Exterminador.
Das trevas surgem gêmeas siamesas dizendo, blasfemando:
“Dorme, dorme pálida criança, calma e vasta repousa a cidade
Cerra teus olhos enquanto o céu se abre
Em estertores vermelhos”.














-O Crepúsculo do Anjo-

Eu andava na praia, mar pedregoso.
Achei a concha brilhante, posta na àgua ela o revelou:
Um habitante de pele avermelhada, olhos de antenas.
Ao vê-lo sair de seu abrigo, um peixe de cabeça negra
Olhou de sua caverna, girou olhos discóides, atacou o caracol
Fisguei? Puxando vi o peixe fora d’água.
Eu o embrulhei num lençol. Quando ele enfim se aquietou
Eu o pus na boca, que ficou cheia de penas cinzentas
Pois o peixe virou ave, andorinha aquática
Terminei mastigando uma asa que ficou me pendendo do lábio sujo de sangue
Parei para pensar, fui refletindo
Mas aí era tarde demais, engoli o que restava entre dentes.


















-Um Fim de Ano-

Num fim de ano
Uma lágrima no meu rosto carrancudo
Empapa o papel. Folhas roídas, brotos amarelos.

























-Motz El Son-

Música e palavras, rosto visto através de vidro fumê.
Música, rosas multiplicadas ao infinito, espelhos dentro do espelho.
Palavras, física quântica das cerejas, nariz aspira gás hilariante
& inala o perfume vermelho, a boca exsuda uma gota da baba de dadá.

























-Um leque e o Arco-

A tempestade está vindo, rapaz. Você pode entregar para ela
Se for capaz, uma manhã de céu cinzento, um leque, o arco, telegrama e lamento.
Gemendo o nome para o ar, no seu tenso falar, todo mundo saberá deste último dia,
Das luas nascendo em agonia.

























-Caligo-

Borboleta Caligo que esvoaça nos bosques, nuvens, calçadas
Pouse no canto da janela, à direita da estante:
Fique como musa por uns instantes-acho que vejo a coruja
que formam os desenhos cubistas
Das suas asas.
























-Rock Shelter-

O sol cai por terra,
Sua luz se espatifa
E é quando sobem negras cortinas em júbilo.
Surgem então luzes postiças, inventadas pelos homens.
& uma névoa mortífera.
Nós queremos é a tulipa negra.
Pois a vida é gruta imensa
Nela estamos sem lanternas.
Nesta vida é noite agora.
Nesta noite faremos um abrigo de pedras
Sobre a caverna.


















-Petúnia-

Singela é a história de Petúnia
Ela era uma boca banguela
Nem fria nem bonita, classe média mediana.
Dava duro numa fábrica de dentaduras,
Um dia se casou com um tronco dum rapaz
Chamado Elmo e foi feliz.
Seu para sempre durou até que ele_ator_topou fazer pornô.
Neste dia o amor de Petúnia se acabou, sem dores
Então chorou um rio que foi batizado pelo fogo
E recebeu o nome de Danilo.
Mas um dia um sádico geógrafo
Decidiu pegar a fita métrica e sair por aí, perigas ver
Cruel loucura, matou Danilo de desgosto
Fazendo saber a todos que o rio Amazonas é mais caudaloso.
Depois que Danilo secou, Petúnia trancou as pétalas
E dizem que vive até hoje arisca, comendo doces da Cica.



















-Entre Guarânias & Boleros-



Eu te pedia para meu corpo acostumado
E amarrava meu jegue numa coluna grega.
Fomos juntos ver se o vento voltou...
Você dizia que as ovelhas gritavam quebrando o silêncio dos inocentes
Mas eu já estava longe
Eu só via cult-movies.
O fim da picada e de um amor delicado.
Meu cotovelo doía, sentávamos na praça
Observando caírem as folhas secas
Eu me sentava com os cabelos entre dedos
Você só queria ajudar &
Esmagar minha carcaça.































-Aneurisma-



Aneurisma é uma bolha
que quando estoura em vermelho
Afoga em sangue sereno
Todos os nossos sonhos mais simples.







































-Este Nome-



Teu nome saltou em um fluxo de consciência
Brilhando em letras lúbricas
Azuis como veias num corpo macio
Eram letras escritas em fúria
E por isso mesmo
Talhadas com fogo
Com olhos chispantes
Este nome eu escondi
Nas corolas esmaecidas de umas margaridas de rua
Este nome
Guardei na gaveta que um girassol ofereceu
Depois este nome
Se fez pólen de lírios
Que deixei o vento
Salpicar pelas vitrines.


















-...E as Papoulas Vermelhas do Campo-



E as papoulas vermelhas do campo
Como sinos repicam
Após a chuva
Do alvorecer
Dissimuladas cortesãs do rei narcótico
Sutis sonâmbulas tecendo
Delicados véus orientais
Heroínas da dança
Dos sete ventres.









-Um Satã em Botão-

Eu queria ser amável
Para ter um amigo falador
Que me perseguisse
Com seus cabelos ruivos.
Como dor & espanto. Meu camaradinha faria minhas namoradas se perderem em seus braços.
Encheria meu rosto de lágrimas leprosas
As gotas cresceriam marcando
Um gelado caminho
Seria neve na geladeira.











-O Sol de Oito de Abril-

Eu me lembro de dias de sol.
Nunca se pode olhar direto para Abril.
Sempre distante, nunca estou nos lugares certos
Mas sei que o diabo e o bom Deus brincam com nossas almas.
Se o riso da madrugada é doído,
Lembre que as pessoas fazem coisas.
E é difícil perdoá-las, pois nem sabem que vivem.
Elas vão ficar por aí, apodrecendo com seus cérebros de espantalhos.
Quando provo o sabor amargo do tempo, ouço o relógio canibal
Conspirando com a ampulheta e a areia eu grito:
“Acorda, acorda que está na hora da escola”
E a dor me fere feito faca cortando a fruta.
















-Flores-



Violentas violetas esvoaçam sobre meus pés
Rosas ameaçam meu corpo
Trepadeiras me aprisionam
Galhos cruéis amordaçam meu pescoço
Espinhos impiedosos sangram meus braços
Folhas amargas silenciam minha boca
Frutos ácidos cobrem meus olhos
Sementes brotam-me nos cabelos
Raízes aveludadas se espalham
Estão sedentas do meu sangue
Pelas minhas entranhas crescem plantas estranhas
E surge a flor amarelada
Ela emerge na boca
Vem subindo da minha garganta sangrenta.



























-Rosas de Pedra-



As rosas são de pedra
As pedras de azul profundo
Mas você sente a dor
As pessoas olham e fogem
Mas vou ficar
É bem possível que meus lábios sorridentes
Digam palavras loucas.
É possível, é possível.

































-O Pastiche é um Pastel Quente-



Ei, John, eu não esqueço
O pastiche é um pastel quente
E aquela garota tinha círculos subindo pela cuca
Indo até a raiz
E rasgando a auréola.
Eu tenho injeções de anilina espetadas nas pupilas
Ela tem um canteiro de violetas plantado na esquina.
Arranquei das suas unhas
Uma jazida de prata.
Ela até que se acostumava
Com os vestidos de seda cósmica.
Eu sou máquina e só ando em frente.
A saudade no meu peito ainda mora.