quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Alice no Tribunal das Maravilhas

Lúcio Emílio do Espírito Santo

Os três bigodudos irromperam na sala de visitas, colocaram suas maletas de pelica sobre a mesinha de centro e fixaram os olhos nos olhos da assustada Alice. Ela mal pôde reparar a impecável gravata do mais grisalho, o primeiro a dirigir-lhe com firmeza a palavra. Até então Alice jamais pusera em dúvida a sua própria existência. Isso mesmo. O advogado grisalho lhe dizia seca e cruamente essa verdade.
— Alice, eu não sou mitômano. Alice, você não existe. Você não é você. Amanhã você deverá comparecer à Comissão Parlamentar de Inquérito e só há um meio de você se safar das acusações que pesam contra você. Negar, negar, negar. Aquilo é um tribunal político, entendeu? O mundo ali dentro não é o mesmo mundo daqui de fora. Mais parece a toca do coelho branco de olhos cor de rosa. A Alice que irá depor não é essa Alice...
Arquelau era o nome do habilidoso advogado, perito em escândalos políticos. Vangloriava-se de jamais haver perdido uma única ação judicial contra as mais engenhosas e milionárias roubalheiras. Na sua agenda, ao lado de prefeitos, deputados ou governadores, figuravam também nomes de burocratas de todo o país, empresários e golpistas de todo tipo, especialistas em saquear os cofres públicos. Há muito tempo, quando ainda lhe restava um pouquinho de escrúpulo, numa entrevista coletiva, deixara escapar aquilo que ele depois considerou uma grande asneira. Quando o repórter lhe perguntou se não tinha problemas de consciência pelo hábito de mentir tão descaradamente, afirmou que a culpa não era dele. Infelizmente, disse, a advocacia e a mitomania são irmãs siamesas.
Depois disso, passou a abominar a expressão mitomania. A primeira coisa que dizia a seus clientes, a quem deveria instruir na delicada arte de mentir, era um enfático eu não sou mitômano. Mas Alice não reparara na palavra estranha. Remoía absorta aquele “você não é você”, que o doutor Arquelau lhe metera na cabeça.
—Mas, doutor, eu sou apenas a mulher do Charles, sou casada com ele...
—Não, Alice, no plenário da Comissão Parlamentar, você é cúmplice do Charles, entendeu? Vocês não se casaram. Vocês formaram quadrilha. Esses carrões importados, o apartamento de 500 metros quadrados em Miami, as contas na Suíça e nas Bermudas, o jatinho, essa mansão aqui, não são fruto do trabalho. Isso é produto de roubo, de propina e de desvio de dinheiro público. Aquela respeitável dona de casa, dedicada esposa do Charles Jacaré, aquela mãe extremosa que toda manhã saía num BMW azul marinho, que fazia inveja ao pessoal do condomínio, Alice, essa mulher não existe mais. Quantos milhões de telespectadores estarão vendo a verdadeira Alice, cúmplice da maior camarilha de que se tem notícia neste país?
A transformação não podia fazer-se sem muita náusea, suores frios e desmaios. Charles Jacaré havia providenciado tudo, médico, remédios e até uma ambulância. Alice relutava em acreditar que teria que mentir. Depois de alguns minutos de silêncio, com o dedo em riste, pôs-se a esbravejar:
—O mentiroso é você, Arquelau. Você está mentindo. Vocês, advogados, são todos maníacos, falsos, fantasiosos...
Antes que a mulher desesperada pudesse porventura pronunciar a detestada expressão, Arquelau foi logo se antecipando:
—Mas, Alice, eu já disse que não sou mitômano!
Passava das dez horas da noite, quando Arquelau e seus assistentes deixaram a mansão dos Jacarés. Alice recolhera-se aos seus aposentos. Sentia-se um espantalho, um mulambo ambulante. Inadvertidamente, mirou-se no espelho de cristal que Charles fizera vir da Alemanha. Depois de algum tempo, a Alice do espelho foi se transformando num rei, de barbas ruivas e beca cinzenta. Impassível, perguntou com voz tonitroante:
—Que você sabe sobre o caso?
—Nada, respondeu Alice.
—Nada de nada? insistiu o rei.
—Nada de nada, disse Alice.
Não satisfeito, o rei tornou a perguntar:
—Alice, que sabe você sobre o caso?
Alice não se rendia. O dia já clareava quando, vencido pelo cansaço, o rei desfaleceu. A mulher também estava exausta e adormeceu, não sem antes pensar na Duquesa, ou seja, na moral que tudo isso poderia ter. Aí se lembrou da menina Alice, a garotinha que tanto gostava de ler histórias. Num suspiro dolente, concluiu:
—Alice, a do país das maravilhas, estava sonhando...e eu estou bem acordada.


Lúcio Emílio do Espírito Santo é coronel reformado da PMMG e autor do livro Entendendo a Nossa Insegurança.

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