quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Paul Ricoeur (Tempo e Narrativa)

O Círculo Entre Narrativa e Temporalidade

A primeira parte da presente obra visa atualizar os pressupostos maiores que o resto do livro submete à prova das diversas disciplinas tratando seja de historiografia, seja de narrativa de ficção. Esses pressupostos têm uma raiz em comum. Quando se trata de afirmar a identidade estrutural entre a historiografia e a narrativa de ficção, como nós nos esforçaremos para provar na segunda e na terceira partes, onde se cuidará de afirmar o parentesco profundo entre a exigência de verdade entre um e outro modos narrativos, como nós faremos na quarta parte, uma pressuposição domina todas as outras, à saber que o engenho último da identidade estrutural da função narrativa da exigência da verdade de toda obra narrativa, é o caráter temporal da experiência humana. O mundo trabalhado por toda obra narrativa é sempre um mundo temporal. É a essa pressuposição maior que é consagrada nossa primeira parte.
Que a tese apresenta um caráter circular é inegável. É o caso de toda asserção hermenêutica. A primeira parte que aqui está tem por ambição colocar essa objeção. Nós nos esforçaremos no capítulo III por demonstrar que o círculo entre narratividade e temporalidade não é um círculo vicioso, mas um círculo onde os dois meios se reforçam mutuamente. Para preparar essa discussão, eu penso poder dar a essa tese a reciprocidade entre narratividade e temporalidade duas introduções históricas independentes uma da outra. A primeira (capítulo I) foi consagrada à teoria do tempo em Agostinho, a segunda (capítulo II), à teoria da intriga em Aristóteles.
A escolha destes autores tem uma dupla justificativa, nós nos propomos entrar independentes no círculo de nosso problema: de um lado pelos paradoxos do tempo, de outro pela organização inteligível da narrativa. A independência delas não consiste somente nas Confissões de Santo Agostinho e a Poética de Aristóteles pertencem a universos culturais profundamente diferentes, separados por muitos séculos e por problemáticas que não se sobrepõem. De maneira mais importante para nosso propósito, um se encarta da natureza do tempo, sem se cuidar de fundar sobre essa pesquisa a estrutura narrativa da autobiografia espiritual desenvolvida nos nove primeiros livros de Confissões. A outra constrói sua teoria da intriga dramática sem consideração pelas implicações temporais de sua análise, deixando à Physique de colocar a análise do tempo. É nesse senso preciso que as Confissões e a Poética oferecem dois acessos independentes um e outro ao nosso problema circular.
Mas essa independência das duas análises não retêm mais a atenção. Elas não se atêm em convergir contra a mesma interrogação a partir de dois horizontes filosóficos radicalmente diferentes: Elas engendram cada uma a imagem inversa da outra. A análise agostiniana deu do efeito do tempo uma representação na qual a discordância não cessa de desmentir o desejo de concordância constitutivo do animus. A análise aristotélica, ao contrário, estabelece a preponderância da concordância sobre a discordância na configuração da intriga. É esta relação inversa entre concordância e discordância que me parece constituir o interesse maior da confrontação entre as Confissões e a Poética –confrontação que me pareceu mais incongruente que aquela que vai de Agostinho até Aristóteles, no desprezo da cronologia. Mas eu pensei que o encontro entre as Confissões e a Poética, no espírito do mesmo leitor, será tornado mais dramático se ele é da obra ou predomina a perplexidade engendrada pelos paradoxos do tempo contra aquele onde leva o contrário a confiança no poder do poeta ou do poema de fazer triunfar a ordem sobre a desordem.
É no capítulo III desta primeira parte que o leitor encontrará a célula metódica cujo resto da obra constitui o desenvolvimento e talvez a revisão. Nós colocaremos em questão por ele mesmo – e sem outro cuidado de exegese histórica – o jogo inverso da concordância e da discordância que nós legou as análises soberanas do tempo por Agostinho e da intriga por Aristóteles.


As Aporias da Experiência do Tempo


A antítese maior em torno da qual nossa própria reflexão vai tornar a encontrar sua expressão a mais azeda no final do livro XI das Confissões de Santo Agostinho. Dois traços da alma humana se encontram confrontados, aqueles que o autor, com seu gosto marcado pelas antíteses sonoras, dá a mistura entre a intentio e a distentio animi. É esse contraste que eu compararei anteriormente com aquele do muthos e da peripeteia em Aristóteles.
Duas observações devem ser feitas antes. Primeira nota: eu começo a leitura do livro XI das Confissões no capítulo 14, 17 com a questão: o que é de efeito o tempo?” Eu não ignoro que a análise do tempo está encaixada numa meditação entre as relações entre a eternidade e o tempo, suscitado pelo primeiro versículo da Bíblia: em princípio foi feito Deus...
Nesse senso, isolar a análise do tempo dessa meditação, é fazer ao texto uma certa violência que não é suficiente para justificar o desejo de situar no mesmo espaço de reflexão a antítese agostiniana entre intentio e distentio e a antítese aristotélica entre muthos e peripeteia. De qualquer modo, essa violência encontra alguma justificação na argumentação mesma de Agostinho que, em se tratando do tempo, não se refere mais à eternidade que para marcar mais fortemente a deficiência ontológica característica do tempo humano, e se mede diretamente nas aporias que afligem a concepção de tempo de modo tal. Para corrigir um pouco esse corte feito no texto de Santo Agostinho, eu farei uma reintrodução da meditação sobre a eternidade em um estágio anterior da análise, no desejo de encontrar uma intensificação da experiência do tempo.
Segunda observação notável: isolada da meditação sobre a eternidade pelo artifício do método que eu venho ter, a análise agostiniana do tempo oferece um caráter altamente interrogativo e mesmo aporético, que nenhuma das teorias anteriores do tempo, de Platão a Plotino, não possuem a um tal grau de acuidade. Não somente Agostinho (como Aristóteles) procede sempre a partir de aporias recebidas da tradição, mas a resolução de cada aporia faz nascer novas dificuldades que não cessam de relançar a procura. Esse estilo, que faz que todo avanço de pensamento suscite um novo embaraço, coloca Agostinho na vizinhança dos céticos, que não sabem, dos platônicos e neo-platônicos, que sabem. Agostinho procura (o verbo quarere, veremos, aparece com freqüência no texto). Pode ser que ele deveria ir até o ponto de dizer que aquilo que chamamos a tese agostiniana sobre o tempo, e que qualificamos voluntariamente de tese psicológica para se opor àquela de Aristóteles e mesmo àquela de Plotino, é ela mesma mais aporética que Agostinho admitiria. É o meio que eu emprego para mostrar.
As duas observações iniciais que devem estar juntas: o encaixe da análise do tempo numa meditação sobre a eternidade dá à procura agostiniana o tom singular de um “germinar” pleno de esperança, que desaparece numa análise que isola o argumento propriamente dito sobre o tempo. Mas é precisamente destacando a análise do tempo de seu pano de fundo eterno é que ficamos sabendo dos traços aporéticos. Certamente, esse modo aporético difere daquele dos céticos, no sentido em que ele não impede uma forte certeza. Mas ele difere dos neo-platônicos, no sentido em que a raiz assertiva não se deixa jamais apreender em sua nudez próxima das novas aporias que ele engendra.
Esta característica aporética da reflexão pura sobre o tempo é para toda a seqüência da presente procura da maior importância. Em dois sentidos.
De início, deve-se avaliar que não existe, em Agostinho, uma fenomenologia pura do tempo. Pode ser que jamais existiu antes dele. Assim, a teoria agostiniana do tempo é ela inseparável da operação argumentativa através da qual o pensador corta umas após as outras as cabeças sempre renascentes das hidras do ceticismo. Então, não há descrição sem discussão. É porque ele é extremamente difícil – e talvez impossível –isolar uma raiz fenomenológica da sanha argumentativa. A “solução psicológica” atribuída a Agostinho não pode ser nem uma “psicologia” que pudéssemos isolar da retórica do argumento, nem mesmo uma “solução” que pudéssemos suster definitivamente no regime aporético.
Esse estilo aporético como uma outra significação particular numa estratégia de reunir na presente obra. Esta será uma tese permanente do livro que a especulação do tempo é uma ruminação inconclusiva à qual somente replica a atividade narrativa. Não que esse resolva e suplemente as aporias. Se elas os resolvem, é num sentido poético e não-teórico do termo. O colocar em intriga, diremos mais tarde, responde à aporia especulativa por um fazer poético capaz certamente de esclarecer (esse será o sentido maior da catharsis aristotélica) a aporia, mas não de sua solução teórica. Num certo sentido, Agostinho ele mesmo orienta contra uma resolução desse gênero: a fusão do argumento e do hino na primeira parte do livro XI – que nós vamos de início colocar em parênteses –já deixa entender que somente uma transfiguração poética, não somente da solução, mas questão ela mesma, libera a aporia de não-sentido que ela coteja.

A Aporia do Ser e do Não-Ser do Tempo

A noção de distentio animi, junto da intentio, não se desenlaça mais que lentamente e sofrivelmente da aporia maior que exerce o espírito de Agostinho: saber aquela da medida do tempo.

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