quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Encaixe Revista Piauí

Résille à Chenille (“Tecido de Seda”)
Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior (Bom Despacho/MG)

Moro numa casa ensolarada, amplas varandas com floreiras, onde Miele, meu gato, gosta de tomar banho de sol. Toda manhã, na casa em frente, a modelo Ésper, exercita-se brincando com Paco, um coelho cinza-claro. Já pensei em contratá-la para trabalhar na área de marketing da fábrica de tecidos de minha família. Só não levei adiante essa idéia porque o marido, Ocimar, me falou do temperamento explosivo e forte tendência à anorexia da jovem esposa.
Naquela manhã de sábado de aleluia, embalado pelos gritinhos e gemidos de Ésper, acabei dormindo na rede de tafetá azul estendida na varanda e tive um sonho: o jardim estava cheio de lagartas de todo tipo, lisas e veludosas, pretas e vermelhas, amarelas, moles ou com carapaças, cheias de ornamentos barrocos. Dei alguns passos e esmaguei muitos bichos da seda que babavam em meio a tafetás, gazes, Jerseys, popelines e mousselines. Depois eu estava na guerra com um trator sobre rodas envolvidas em esteiras rolantes. Mas o pior foi quando eu vi Miele perseguindo Paco: o coelho se debatia e eu, paralisado.
Esforçava-me por tirar Paco daquela enrascada, quando os pêlos do tornozelo dele grudaram na colcha de chenile. Miele avançou feito doido sobre Paco. Acordei.
Quando contei o sonho a Anabela, viu nisso uma premonição. “Você é cheia de não-me-toques”, ataquei, saltando para a cozinha.
Foi quando vislumbrei um vulto se esgueirando da cozinha para o jardim. Passou por baixo das alamandas amarelas e foi se esconder no roseiral. Mal pude acreditar no que vi. Miele havia matado Paco e se preparar para devorá-lo.Como iria explicar a tragédia aos meus vizinhos, Ocimar e Ésper? A dona do coelho certamente sofreria um troço.
Tomei Paco nas mãos, o corpo inerte. Lavei o coelho com cuidado e, cego de preocupação, enxuguei-o cuidadosamente com a colcha de chenille.
Recusei-me terminantemente a dizer qualquer coisa e deixei o corpo de Paco estendido no chão, na porta da casa de Ocimar e Ésper. Pedi a Anabela que não narrasse o fato a ninguém. Anabela, deprimida, bradou o mantra “faraooon”, colocou alguns anões a mais no jardim e reclamou porque a manta de chenille ficou suja de manchas marrons.
Ainda temi, durante algum tempo, que o casal vizinho me abordasse. No entanto, dentro em pouco, para meu alívio, eles se mudaram. A saúde de Ésper havia piorado. Anabela, sempre que se tocava no assunto, tornava-se sombria e cantava para si mesma alguns versos de uma canção melancólica de Jacques Prévert: “Ceux qui flottent e ne sombrent pas/Ceux qui ne prennent pas Le Pirée pour un homme...”
Algum tempo depois, encontrei Ocimar numa lavanderia próxima. “Como é que vão você e a Ésper?” Ele me contou que a mulher estava sofrendo alucinações, internando-se em clínicas. Ela ficou pirada com a morte do Paco.
“Você se lembra do Paco, meu coelhinho? Ele morreu envenenado por agrotóxicos e Ésper, após algumas pompas fúnebres, enterrou o bichinho no jardim. No entanto, algumas horas depois, o encontrou morto na soleira da porta. Paco foi enterrado vivo, desceu à mansão dos mortos e ressuscitou, tentou buscar nossa ajuda, mas morreu de novo”.
Eu, então, às tontas alegei um compromisso e despedi-me de Ocimar. Espero que ele leia esse texto.

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