quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Roberto Schwarz: Um Crítico na Mira

Roberto Schwarz: Um Crítico na Mira


O professor Antonio Candido, inspirador de Roberto Schwarz, dizia que “não se trata de aderir aos apocalítpticos, mas de alertar os integrados”. Schwarz achou melhor tornar-se apocalíptico. Alguns pensadores da Escola de Frankfurt são tão pessimistas, tais como Adorno, que chegam a ser chamados de niilistas.
Curiosamente, Machado tem uma veia niilista que abordagem marxista alguma consegue encobrir, e que lhe chegou via Nietzsche e Schopenhauer, o que não desmerece suas posições avançadas e seus acertos como romancista, contista, poeta e cronista. O comunista Otávio Brandão, provavelmente o primeiro crítico literário brasileiro de orientação marxista, centrou fogo em Machado, escrevendo um livro chamado O Niilista Machado de Assis. De fato, creio que Brandão notou um traço verdadeiramente presente. Schwarz não nega o nilismo em Machado, o revê como distanciamento positivo. Mas há uma crítica áspera ao nacionalismo romântico que ele exprime subliminarmente. Num artigo sobre Paulo Emilio, Scwarz se refere diretamente a Glauber: “No mesmo espírito imparcial, Paulo Emilio louva o profetismo de Glauber, lembrando que a função do profeta é profetizar, e não acertar...” (Schwarz, 1997, p.51). Já Glauber, ao falar na crítica machadiana, a repudia sem sutilezas marotas: “Machado é uma merda e a academia e o realismo pessimista eu não tou pra discutir flor do estilo (...). O estilo é a imaginação, o realismo pessimista, o criticismo decadente que fique com Machado.” (Rocha, Glauber. Apud: BENTES, Ivana, p.612, 1997). Pior é quando subentendemos que Schwarz está atacando Glauber, como no artigo Existe uma Estética do Terceiro Mundo? A pergunta deveria ser precedida por outra: existe um conceito melhor que Terceiro Mundo para definir as ex-colônias européias? O conceito de Terceiro Mundo, no sentido usado por Glauber, se refere ao mundo colonizado pelo Ocidente. Pessimista e demagógico, Schwarz afirma que o público brasileiro é “provinciano pela força das coisas” (Schwarz, 1997, p.127). O crítico machado-frankfurtiano se esquece que mesmo um “cartola na Senegâmbia” como Rui Barbosa soube opinar com firmeza nas questões francesas ao defender com pioneirismo o judeu Alfred Dreyfus. A estética do Terceiro Mundo oculta a luta de classes, afirma Schwarz, sem no entanto explicar porque ela foi contemporânea do período nos anos 60 em que a luta de classes no Brasil esteve mais transparente que nunca. Ao publicar Que Horas São, Schwarz analisa o filme Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho, com sua ótica que, embora esteja interessada nos oprimidos, não está interessada em seu folclore curupira. A postura “paternalista” do intelectual no tempo dos cepecês foi substituída por um “maternalismo” que acredita que o intelectual deve aprender com o povo e nada ensinar. O artigo sobre o filme é marcado por um desejo de não rever a posição assumida no ensaio recolhido no livro Pai de Família e outros Estudos: o nacionalismo é responsável pela derrota de 64. Nessa versão reacionária, comum a toda a analítica paulista, o nacionalismo e as bandeiras antiimperialistas se tornam responsáveis pela queda de Jango, o que equivale, por exemplo, a culpar os pobres pela imagem negativa do país no exterior. Nos anos 80, quando sobe ao poder uma tecnocracia desnacionalizada, Schwarz, que é de esquerda e da classe dominante, brada:

É como se momento mesmo em que a parte melhor e mais aceitável da burguesia brasileira assume o comando no país – um momento a ser saudado! – o filme também melhor dos últimos tempos anos dissesse, pela sua própria constituição estética e sem nenhuma deliberação, que num universo sério essa classe não tem lugar. Mas é claro que nem sempre a vida imita a arte. (SCHWARZ, 1997, p.77)

O que ocorre aqui é o corte no fio da meada, e é Schwarz, sociólogo e crítico literário, quem o realiza. Schwarz não consegue realizar uma diferenciação entre a revolução nos países imperialistas, nos países que oprimem outros povos, e a revolução nos países coloniais e dependentes. Nos países imperialistas, a burguesia é opressora de outros povos, e neles, a burguesia é contra-revolucionária em todas as etapas da revolução. Já nos países coloniais e dependentes, a burguesia pode apoiar o movimento revolucionário de seu país contra o imperialismo, pois há o fator nacional. Schwarz se esquece da correlação das forças de classe durante o governo Jango e tenta explicar tudo exclusivamente pela tática do PCB.
Possuidor de uma formação germânica rigorosa, o ex-orientando de Antonio Candido dá as costas para o pré-64, não vale a pena voltar atrás, nem em economia nem em cultura, assinala ele ao falar da relação artista/povo no filme de Eduardo Coutinho. O crítico paulista aproxima-se da postura de prescrever para o artista brasileiro o conformismo de criar uma arte imitada, subdesenvolvida, já que a estrutura determina a superestrutura. Roberto Schwarz possui resquícios de um determinismo que, desde o início dos anos 60, Glauber Rocha contestava em sua Estética da Fome. Glauber fica reduzido a um triunfalismo do atraso, junto com Oswald, no fundo por discordar que um país subdesenvolvido é obrigado a ter uma arte subdesenvolvida, conclusão deprimente que parece vir na esteira de uma leitura determinista dos textos sobre a dependência. E pior, Schwarz qualifica o cineasta indiretamente de profeta que não acerta, profeta incompetente. Quem erra, na apreciação, é Schwarz, pois só nos anos 90 se realizaram as profecias e posições de Glauber, como explica a professora Ivana Bentes em sua introdução ao livro Cartas ao Mundo:

Até hoje não se desfez o impacto de sua (de Glauber) declaração bombástica, muito repetida e pouco entendida, em carta de 31 de janeiro de 74 para Zuenir Ventura, publicada como depoimento na revista Visão. Na carta, Glauber dizia que Golbery do Couto e Silva, um dos mentores do golpe de 64, era ‘gênio da raça’ e os militares ‘legítimos representantes do povo.’ A idéia, ‘fora de hora’, ou ‘equivocada’, para muitos aparece claramente formulada numa série de cartas anteriores a 1974 e está perfeitamente integrada à lógica glauberiana e ao seu messianismo romântico. Duas cartas são importantes para se entender o Glauber ‘militarista’ que no seu imenso desejo de transformação via numa elite militar ‘esclarecida’, que acenava com a ‘abertura’, a possibilidade de uma virada política radical, não simplesmente a ‘abertura lenta e gradual’, como de fato aconteceu, por que não? Um militarismo revolucionário que realizaria as mudanças que a esquerda não soube ou não pode fazer. A idéia não vinha do nada e seduziu um Glauber disposto a encontrar na cultura militar brasileira um líder revolucionário popular, um Antonio das Mortes capaz de mudar de lado, passar de matador e torturador a defensor do povo. (BENTES, São Paulo: 1997, Teoria e Biografia na Obra de Glauber)

O profeta, portanto, estava comprometido com a atualidade e as transformações, percebendo que o dilema nos tempos da ditadura fora colocado em termos de liberalismo versus autoritarismo, e que no caso de vitória daquele, o modelo estatal seria ameaçado por uma democracia liberal colonizada. Com o passar do tempo fica claro o conteúdo nacionalista que possuem essas profecias, previsões com as quais Roberto Schwarz não podia mesmo concordar, por razões que detalharemos melhor mais adiante. Mesmo Oswald é compreendido por Schwarz com as lentes detratoras e finuras sutis de machadiano:

Articulado assim, o parti pris de ingenuidade e de ‘ver com os olhos livres’ algo tem de uma opção por não enxergar, ou melhor, por esquecer o que qualquer leitor de romances naturalistas sabia. Daí que os achados da inocência oswaldiana paguem a sua plenitude, muito notável, com um quê de irrealidade e infantilismo. (Schwarz, p.27, 1997)

Schwarz aparentemente omite um aspecto da obra de Oswald para poder sustentar essa abordagem: o fato de que Oswald iniciou a carreira com um romance realista, Alma, narrando as desventuras de uma prostituta. Não é ainda um romance alegórico, não referindo uma situação particular a uma totalidade, ou seja, a Alma do romance é baseada em Deisi, ex-amante de Oswald. O romance tem ampla base autobiográfica, portanto quando, neste primeiro livro, fala-se na personagem Alma, nem por isso ela representa a alma prostituída do Brasil. Isso foi percebido por críticos como Motta Filho: “o livro apanha a imoralidade sem ser imoral e guarda uma superioridade rara. O realismo de Oswald é um realismo de evocação sentimental, é um realismo dentro da mais perfeita compreensão estética”. (Motta Filho, apud: SILVA BRITO, Mário da. São Paulo: 1978, Círculo do Livro). Esse primeiro romance de Oswald, marcado pela tragédia, é no, entender do sociólogo francês Roger Bastide, “Machado é a introdução do amor romântico no interior da família burguesa, e Oswald é a decomposição desse romantismo amoroso” (Bastide, apud: SILVA BRITO, Mário da. São Paulo: 1978, Círculo do Livro).
Sobressai na obra de Schwarz o desdém da problemática nacionalista. Em 1979, em entrevista para a Revista Civilização Brasileira, ele afirmava: “E eu penso que se nós olharmos um pouco a vida ideológica brasileira, veremos que, com freqüência, o nacionalismo é a ponte que permite a pessoas com categorias e tradições de esquerda passarem para posições que se poderiam chamar de direita, entendendo por estas, posições que sobrepõem enfaticamente a questão da grandeza nacional à questão dos interesses dos oprimidos” (SCHWARZ, 1979, p.105). O entrevistador observa, concordando, que há as pessoas que foram integralistas e passaram para a esquerda (por exemplo, Roland Corbusier). Essa observação inclusive o desmente, pois indica que o nacionalismo também serviu de ponte para que pessoas com posições de direita entendessem o processo social e adquirissem uma nova consciência. Por outro lado, creio que a intenção de Schwarz é criticar Glauber Rocha sem citar-lhe o nome e ocasionar uma polêmica. Nas palavras de Schwarz, aparece a dissociação da questão nacional dos interesses dos oprimidos, um divórcio forçado entre tópicos que se completam: dada a dominação externa, o país inteiro se torna mais pobre, mas essa pobreza, para as massas do Terceiro Mundo, é uma desgraça pois vem acompanhada da expropriação material e cultural.
Mais adiante, Schwarz descarta explicitamente a historicidade da nação: “a nação, sob muitos aspectos, deixou de ser uma realidade relevante. Por outro lado, ela continua a ser o palco efetivo, o palco real da política, pelo menos de grande parte da política, de modo que ele não pode ser descartada. E essa é uma das razões pelas quais hoje se tem freqüentemente a impressão de que a política, de que o discurso e as discussões políticas estão no mundo da lua” (SCHWARZ, 1979, p.105). Desconhecendo a formulação materialista histórica do que é uma nação, ou seja, tendo descartado o conhecimento de que cada povo viveu por longo tempo em condições específicas, Schwarz observou com hostilidade a permanência da questão no plano político, ou seja, afirmando que a questão permanece pois quem a discute está no mundo da lua. Há indícios, entanto, que Schwarz desdenha boa parte da cultura brasileira sob o rótulo de nacionalismo, para assim poder ostentar uma posição avançada. Foi através da leitura da Teoria da Dependência, de FHC, que Schwarz estabeleceu os marcos teóricos de sua obra, e portanto o crítico literário se ressentiu do fato de que essa teoria, ao invés de se constituir um esforço de descolonização, enfatiza que o Brasil está condenado à dependência. Esse viés de FHC ignora que, em países como o Japão e a Alemanha do século XIX, diante da ameaça de dominação externa, as classes dominantes puseram em prática o que podemos chamar de um projeto nacional-desenvolvimentista. Algo diverso ocorreu no Brasil, país nascido da empreitada colonizadora européia, pois a burguesia nacional progressivamente abdicou de um projeto autônomo para se contentar em ser satélite e sócia menor do capitalismo internacional, processo de descontrução de um projeto de nação que começa em 64, com a negação da herança varguista, e culmina em 1994, com a tomada do poder pela coligação de centro-direita comandada por FHC. Isto posto, quando lemos Schwarz após vinte anos, dizendo que “a questão da independência nacional, hoje, propriamente de maneira enfática, não se coloca mais” (SCHWARZ, 1979, p.108), a frase tomou uma conotação de descompasso e desistência, senão de adesismo ao consenso neoliberal reinante.
Ora, é justamente a partir daí que Schwarz tenta se desvencilha da discussão: “O nacionalismo tem a virtude de ser antiuniversalista, mas tem o defeito de apresentar um preconceito em matéria do processo do eu sou parte, efetivamente. (...) Eu não tenho conhecimentos para afirmar isso com segurança, mas penso que, com o que se sabe hoje, pode-se dizer que já depois da morte de Getúlio, durante o governo Kubitschek, a questão do nacionalismo, no sentido enfático, tinha deixado de ser uma questão real” (SCHWARZ, 1979, p.108). Como vimos, embora Schwarz acuse de antiuniversalista o nacionalismo, ele próprio não aplica os conceitos de universal e de particular à cultura brasileira, desconstruindo também Antonio Candido: “Em lugar da contribuição local à diversidade das culturas, vem à frente a história da má-formação nacional, como instância da marcha grotesca ou catastrófica do capital” (SCHWARZ, 1997, p.169). Por hostilizar a tese pecebista nos anos 50/60, Schwarz e os paulistas chegam à conclusão derrotista que “a partir de Juscelino, a realidade fica com o capital, que foi para a internacionalização e – para atenuar, consolar a esquerda – a ideologia foi para o nacionalismo. Essas coisas tiveram até uma relação compensatória, eu penso.” (SCHWARZ, 1979, p.108) A revisão realizada por Schwarz e outros uspianos, ao invés de incidir sobre o determinismo da estrutura sobre a superestrutura, que indispunha a esquerda contra os artistas, dissolveu a questão da nação para não ter de abordá-la. As causas dessa antipatia pelo nacionalismo em São Paulo são, a meu ver, a derrota dos paulistas para o nacionalismo varguista em 1930, o fracasso reafirmado na revolução de 32 e o trauma do integralismo. A geração paulista de 45 foi marcada por um nacionalismo getulista ao qual votavam antipatia, e por um outro lado, um nacionalismo que ganhou pecha de nazifascista, o de Plínio Salgado. A geração seguinte, marcada pelos anos 60, naturalmente sente-se livre de um peso ao abandonar essa questão, inclusive matando dois coelhos de uma cajadada só: ao superar a dicotomia varguismo/integralismo, ultrapassou ao mesmo tempo o stalinismo, com sua formulação do “socialismo num só país”’, equivalente materialista dos nacionalismos dos anos 30. Outro fator é que a geração 68 viveu um momento de hipertrofia do conceito de “geração” em detrimento do conceito de “nação”.
O último trecho da entrevista, a meu ver, é o mais instigante, é aquele em que o interlocutor de Roberto Schwarz entrevê a parte de estrangeiro no supostamente nacional, e de copiado no original, revelando a que ponto o desajuste, ao qual que Schwarz se remete com tanta freqüência, é visível na figura do próprio intelectual:

Desajustes, descompassos. Roberto, você é brasileiro naturalizado, nasceu em Viena e veio para o Brasil com um ano de idade. Fez Ciências Socias, mas se considera ligado à crítica social. Estudou dois anos nos Estados Unidos e passou agora um bom tempo na Europa. Como se desenvolveu esse seu interesse pelo Brasil? (Roberto responde): Acho que ele foi durante muito tempo um interesse de estrangeiro: eu queria em apropriar de uma realidade que não estava em minha casa, mas estava em toda parte. (...) Deixe eu abrir um parênteses e fazer uma provocação: você não tem um ensaio sobre ‘Anatol Rosenfeld, um Intelectual Estrangeiro’. Afinal ele é sobre o Anatol ou sobre você? Inclusive no caminho percorrido pelo Anatol, do formalismo ao marxismo? (SCHWARZ, 1979, p.110).

Schwarz simplesmente negou as perguntas acima, respondendo com evasivas. Mas ainda hoje permanece a pergunta: Roberto Schwarz é um intelectual estrangeiro? O sociólogo Gilberto Vasconcellos a responde da seguinte maneira:

Houve até polêmica do Roberto com historiadora Maria Sylvia de Carvalho sobre o caráter tópico das idéias na sociedade brasileira. Se determinadas idéias aparecem por aqui é porque elas não couberam em algum lugar. Decerto não há nenhum lugar dono das idéias: o espírito sobre onde quer. (...) Roberto apenas imprime um toque ‘marxista’ à dialética cultural do localismo versus cosmopolitismo de Antonio Candido: relações de produção, desenvolvimento das forças produtivas, capital central-periférico, enfim, sociologia da dependência com marxismo weberiano à Fernando Henrique Cardoso. (...) Somente na visita ao peabiru paraguaio, com a perspectiva do vencido (ou será o genocídio da guerra do Paraguai mitologia anti-imperialista?) , é que pude atinar para a lógica de Glauber Rocha, dizendo que Roberto não era brasileiro em sua crítica. Enquanto Glauber viveu, Roberto não respondeu (VASCONCELLOS, 1997, p.256).

Na esteira dessa conclusão, a problemática da nação foi descartada; e Glauber ficou reduzido a um triunfalista do atraso, junto com Oswald; conclusões deprimentes que parecem vir na esteira de uma leitura fatalista de Dependência e Desenvolvimento na América Latina (1966) de Fernando Henrique Cardoso, leitura em que a superação da dependência é um interdito impensável:

Na década de 20, o programa pau-brasil e antropofágico de Oswald de Andrade também tentou uma interpretação triunfalista de nosso atraso. (...) Neste mesmo sentido, ainda que em registro onde piada, provocação, filosofia da história e profetismo estão indistintos (como aliás mais tarde em Glauber Rocha), a Antropofagia visava queimar uma etapa. (SCHWARZ, p.37, 1997)

Quando Schwarz se desembaraçou da “nação”, colocou-se numa postura equivocada. No mais, a questão voltou com força total nos estudos de Homi Bhabha, Edward Said, Benedict Andersen e outros, no terreno mesmo do debate intelectual sério.

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