quarta-feira, 5 de junho de 2013

Arthur Koestler: um intelectual exemplar do século XX?



Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior[1]

RA: 2322919


RESUMO



Esse artigo busca debater o romance O Zero e o Infinito, de Arthur Koestler. O texto ficcionaliza um episódio marcante do século XX, os chamados Processos de Moscou. Koestler apresenta uma versão dos acontecimentos considerada, em linhas gerais, tida como historicamente correta pelo historiador Tony Judt em Koestler, um intelectual exemplar, artigo de um dos últimos livros de Judt, Reflexões sobre um século esquecido. Aqui problematiza-se essa relação entre história e ficção elaborada por Koestler: Merleau-Ponty criticou-a, dizendo-a uma visão liberal, humanista abstrata, que não levava em conta o fato de que estamos condenados à violência, o necessário seria escolher a que tipo de violência, se uma retrógrada ou progressista.. Merleau-Ponty aceita a violência revolucionária, mas também julgava que os Processos de Moscou julgavam opositores políticos, não pessoas realmente culpadas. Orwell julgou que Koestler estava próximo de uma visão conservadora pessimista, generalizando que toda revolução está fadada a terminar mal. Mesmo Orwell criticou Koestler por essa generalização. Não é, no entanto, consensual entre os historiadores a versão adotada por Koestler a respeito dos Processos de Moscou: existem, também, os que acreditam que eles foram justos. A versão histórica que embasou a ficção de Koestler seria, então, falsa.



Palavras-chave: ficção, história, Processos de Moscou, O Zero e o Infinito, marxismo



1 INTRODUÇÃO



Arthur Koestler (1905-1983) foi, juntamente com o filósofo Merleau-Ponty e o também George Orwell, um dos principais autores do século XX a tratar do que eles chamavam de “problema comunista”. Koestler celebrizou-se principalmente devido ao sucesso de seu livro O Zero e o Infinito (Darkness at Noon) tematizando os famosos Processos de Moscou na Rússia, entre 1937 e 39. É considerado um libelo contra Joseph Stálin.

Recentemente, Koestler foi objeto de análise de um ensaio do prestigiado historiador inglês Tony Judt (1948-2010), em seu livro Reflexões sobre um Século Esquecido. Judt considerou-o um intelectual exemplar do século XX por seus múltiplos trabalhos sobre vários assuntos, mistura de várias culturas e inúmeras viagens pelo mundo. Ao mesmo tempo, essa abordagem é polêmica, pois recentemente Koestler foi bastante criticado numa biografia de Casarani. O intento de Judt foi defender Koestler, com quem aparentemente se identifica e sente admiração, diante das críticas de Casarani: Koestler seria egoísta, alcóolatra, obcecado por sexo ao ponto de ter sofrido acusações de assédio sexual e violação.

            Nosso ponto aqui é ir mais além da crítica do biógrafo Casarani e do debate de Judt, é fazer uma crítica à versão dos fatos históricos apresentada no texto Zero e Infinito, texto publicado em 1940, introduzindo para tanto uma nova historiografia. O texto se vale da ficção para entrar na mente de um comunista preso ao tempo dos processos de moscou, Rubachov, acompanhando sua prisão, sua forma de pensar e sua condenação. Ao acompanhar a mente de um comunista, o narrador assumiu uma posição de onisciência, apresentando de forma altamente crítica a posição de Rubachov. Koestler não menciona diretamente a Rússia, mas os personagens têm nomes russos. O texto ficou famoso por apresentar uma visão interna dos processos, revelando, supostamente, os seus meandros: Rubachov, comunista ortodoxo, confessa tudo em nome do partido e é condenado, mesmo sendo inocente. É, portanto, um texto que se baseia numa determinada visão histórica de um evento histórico polêmico: os Processos de Moscou.

Koestler, sem mencionar diretamente sua referência à União Soviética (a não ser na dedicatória), fez um livro que afastou muitas pessoas de Marx, Lênin e Stálin. Mostrou o marxismo como um tipo de pensamento mecanicista que sacrifica as pessoas a ideais e desumaniza, tendendo a analisá-lo como um problema psíquico, uma neurose. O texto foi intensamente criticado em sua época –e não só por comunistas, mas também pela esquerda em geral, uma vez que o ano em que foi publicado (1940) o nazismo estava muito forte, prestes a invadir a França e a Inglaterra. Koestler escreveu esse livro em inglês, embora ele fosse de origem húngara e tivesse também vivido na Áustria e em Paris. O título em inglês, Darkness at Noon, refere-se ao momento em que Cristo morreu e disse a famosa frase: “Senhor, por que me abandonaste?” Assim, o condenado no Processo de Moscou é associado a Cristo.

A narrativa se embasa nesse fato histórico dando a entender que existe uma verdade evidente sobre ele, o que até hoje não é verdade. Trata-se de uma discussão histórica que ainda está em aberto, portanto, a narrativa pode ser repensada a partir de outro ponto de vista: como postulam alguns historiadores norte-americanos como Grover Furr e Arch Getty, não surgiram provas mostrando que os Processos de Moscou são falsos, ao contrário do que postula O Zero e o Infinito. Essa hipótese será, portanto, aqui problematizada, juntamente da hipótese levantada pelo texto.



1 INTERPRETAÇÃO DO MARXISMO EM O ZERO E O INFINITO



A visão de Koestler sobre o marxismo é que ele era um “salto de fé”, um instrumento para decodificar a experiência social conforme a grade de suspeita: as coisas não são o que parecem ser, mas só quem pode interpretá-las seriam os iniciados. Koestler aproximou-se do marxismo durante um período, através do partido comunista alemão, mas deixou o partido em 1938 e logo a seguir escreveu O Zero e o Infinito.

            Koestler também publicou o texto O Deus que Fracassou (1949) já em plena Guerra Fria, falando sobre fé e desilusão comunista. Depois de desiludido com o comunismo, Koestler passou para a parapsicologia, assim como fez especulações sem muitas preocupações científicas e escreveu reportagens, sendo basicamente um jornalista.

Nas palavras de David Cesarani: “Pela força de seus argumentos e do exemplo pessoal, Koestler emancipou milhares de pessoas da servidão a Marx, Lenin e Stalin” (CESARANI, apud: JUDT, 2008, p. 59). Para ele, nenhum ideal abstrato pode justificar o sacrifício individual. Depois de preso na Espanha durante a guerra civil espanhola, Koestler fez críticas racionalistas ao marxismo-leninismo, ambicionando desmontar o materialismo dialético. Para Cesarani, biógrafo de Koestler, usar a crítica materialista contra um pensamento materialista é uma gafe.

Simone de Beauvoir dá uma opinião contraditória sobre Koestler ao tempo em que a Tchecoslováquia tornou-se comunista: “Ele sente remorso por não ser mais comunista, pois agora eles vão ganhar, e ele queria estar do lado vencedor (...). Koestler teve uma educação marxista medíocre” (BEAUVOIR, apud: JUDT, 2008, p. 65).

A versão adotada por Koestler dos Processos de Moscou era a corrente na imprensa do Ocidente na época e até hoje é citada até mesmo por historiadores prestigiados como Hobsbawn: os processos seriam forjados e encenados para reforçar o poder do ditador Stálin. Eles prendiam comunistas sinceros e fiéis ao partido.

Como atualmente a tendência é revisar a história da II Guerra Mundial contra a URSS, o biógrafo Cesarani impacienta-se com a demora de Koestler em abandonar o comunismo. Mesmo Judt pondera que 1938 não era a hora de sair criticando o partido, pois os nazifascistas estavam em alta. No entanto, esse livro de Koestler, O Zero e o Infinito, teve certamente um papel em municiar a propaganda antissoviética, e isso em pleno ano de 1940, quando os nazistas e fascistas estavam conquistando toda a Europa, invadiram a França e bombardeavam intensamente a Inglaterra. Cesarani, seu biógrafo, o protege dizendo que ele prometeu não “abandonar a fidelidade” à União Soviética. Mas o livro Zero e o Infinito é justamente o contrário. E, conforme um intelectual marxista dissidente como Lukács, a melhor forma de combater o nazismo, no período, era no partido comunista. A linha da política internacional da Inglaterra e da França era de jogar Hitler contra a União Soviética. Essa reflexão está presente até mesmo em Gorbachev.

O Zero e o Infinito foi o livro mais duradouro de Koestler, foi muito influente e vendeu, só na França, 420 mil exemplares nos anos 50, impulsionado, claro, pela polarização da Guerra Fria, pois o livro servia muito bem aos interesses das potências ocidentais de combater a União Soviética e, em especial, destruir “o mito soviético”. Esse livro tornou Koestler rico e famoso. Se não fosse por ele, não estaríamos lendo sua biografia.

Koestler baseou o livro em sua experiência de prisão na Espanha e em seu conhecimento pessoal de Bukharin e Radek. O personagem Nicholas Salmonovitch Rubachov, um velho bolchevique que acaba vitimado pelos expurgos de Moscou, é inspirado neles. Rubachov se opôs à linha do partido, tendo então abandonado suas ideias e pensamentos individuais em prol do que ele supõe que é a grande narrativa da história. Assim, o texto de Koestler tem um pressuposto: Bukharin e Radek teriam sido presos apenas por estarem fazendo oposição política. Essa informação que se pode depreender é fundamental, porque hoje em dia a historiografia tende a esquecer esse fato e supor somente que “Stálin fuzilou a velha guarda para aumentar seu poder”. O historiador Grover Furr diz a respeito disso em seu texto Evidências da Colaboração de Trotsky com os Nazis e os Japoneses:


O depoimento dos réus nos Julgamentos de Moscou é rotineiramente descartado como falsa. Os acusados dizem ter sido ameaçados, ou torturados, ou de alguma outra forma induzidos a confessar crimes absurdos que eles não poderiam ter cometido. Isto está tudo errado.

Não há nenhuma evidência digna do nome de que os réus foram ameaçados, torturados ou mesmo induzidos a dar confissões falsas por promessas de algum tipo. Em Kruschev, novamente sob Gorbachev e, de fato, até hoje a posição oficial a respeito da parte de ambos os regimes, tanto o soviético como o russo, tem sido que as confissões dos acusados são falsas. Os materiais de investigação, todos, mas uma pequena fração dos que são ainda classificados na Rússia hoje, estão ausentes de qualquer prova que possa desacreditar os processos e provar que as confissões dos réus eram falsas. Mas nenhuma evidência tenha sido descoberta. É esta a razão pela qual podemos estar razoavelmente confiantes de que não existe tal evidência (FURR, 2013).


            No texto, bastante longo, de onde foi retirada a passagem acima, Furr ainda detalha evidências de que Trotsky, um dos supostos inspiradores da narrativa de Koestler, junto a Bukharin, Trotsky e Radek, teria de fato feito parte de uma conspiração para derrubar o governo da União Soviética. Em 1992, durante o curto período de “transparência” no governo de Yeltsin, os apelos ao Tribunal do Soviete Supremo de dez dos réus dos Julgamentos de Moscou foram publicados no Jornal Izvestiia. Todos os réus em questão haviam sido condenados à morte com base nas suas próprias confissões e nas acusações de outros réus. Se eles nunca tentaram retirar suas confissões e proclamar inocência esta seria a sua última chance de fazê-lo. Nenhum deles o fez. Cada um deles confirmou a sua própria culpa.

Dr. D.D. Pletnev, um réu de menor importância no Julgamento de Março de Moscou de 1938, foi tema de inúmeros artigos que o declaravam uma vítima inocente de torturas, alegando que ele proclamou a sua inocência na prisão após o julgamento. Mas um estudo de todos estes artigos e dos fragmentos de correspondência de Pletnev que eles publicaram mostra que isso era falso. Pletnev nunca alegou inocência do crime ele foi condenado por no julgamento. Os artigos estão cheios de contradições e declarações desonestas. Não há nenhuma base para reivindicar que Pletnev foi torturado.  No caso de alguns dos réus mais proeminentes, Zinoviev e Bukharin, há boas evidências de que eles não foram ameaçados ou mal tratados.

A maioria das pessoas que desconsidera as confissões dos réus nos Processos de Moscou nunca estudou as transcrições destes ensaios. Eles os desprezam porque eles foram informados de que as confissões dos réus foram fabricadas. Na realidade, não há evidência de que isso foi assim.

Grande parte dos réus nos Julgamentos de Moscou declarou que Trotsky estava colaborando com a Alemanha ou o Japão. A maioria destas testemunhas disse que tinha sido informado da colaboração de Trotsky por outros. Mas alguns dos acusados testemunharam que eles tinham sido informados da colaboração pessoalmente por Trotsky, pessoalmente pelo filho de Trotsky, Leon Sedov, ou em notas ou cartas de Trotsky ou Sedov.

O estado deste testemunho, portanto, é mais direto. N nos concentrar no testemunho em primeira mão da colaboração de Trotsky. Nós não iremos rever todas as evidências indiretas ou de segunda mão em detalhe. Vamos, no entanto, dizer algo sobre esta prova no final do artigo, observar como ela corrobora a evidência em primeira mão. Sobre Bukharin, Furr comenta em um texto que se chama Uma Evidência a Mais da Culpabilidade de Bukharin, trazendo a fala de Humbert Droz a respeito do caso:


Antes de partir fui a ver a Bukharin por última vez, sem saber se voltaria a vê-lo em meu regresso. Tivemos uma conversação longa e franca. Ele me colocou em dia a respeito dos contatos realizados por seu grupo com a fração de Zinoviev-Kamenev a fim de coordenar a luta contra o poder de Stalin. No lhe ocultei que eu não estava de acordo com este vínculo entre as oposições. A lucha contra Stalin não é um programa político. Combatemos com razão o programa dos trotskistas sobre as questões essenciais, o perigo dos kulaks na Rússia, a luta contra a frente única com os socialdemocratas, os problemas chineses, a míope perspectiva revolucionária, etc. No dia seguinte de la vitória comum contra Stalin, os problemas políticos nos dividirão. Este bloque é um bloco sem princípios que será derrubado antes de atingir algum resultado.

“Bukharin também me disse que haviam decidido utilizar o terror individual a fim de livrar-se de Stalin. Sobre este ponto, também lhe expressei minhas reservas: a inserção do terror individual nas lutas políticas nascidas da Revolução Russa correm fortemente o risco de voltar-se contra aqueles que os empregam. Nunca foi uma arma revolucionária. “Minha opinião é que devemos continuar a luta ideológica e política contra Stalin. Sua linha levará em um futuro próximo a uma catástrofe que abrirá os olhos dos comunistas e dará lugar a um câmbio de orientação. O fascismo ameaça a Alemanha e nosso grupo de charlatães será incapaz de resistir a ela. Diante da queda do Partido Comunista de Alemanha e a expansão do fascismo a Polônia e França, a Internacional deve mudar sua política. Esse momento será então nossa hora. É necessário, pois, seguir sendo disciplinados, aplicar as decisões sectárias depois de haver lutado e nos ter oposto aos erros e medidas de esquerda, mas seguir lutando no terreno estritamente político.

Bukharin, sem dúvida, havia compreendido que eu não me uniria cegamente à sua fração cujo único programa era fazer desaparecer o Stalin. Esta foi nossa última reunião. Era evidente que ele não tinha confiança na tática que lhe propus. Também sem dúvida sabia melhor que eu os crimes de que era capaz Stalin. Em poucas palavras, aqueles que, depois da morte de Lenin e com a base em seu testamento, podiam destruir politicamente Stalin, buscavam, ao contrário, eliminá-lo fisicamente, quando este tinha firmemente em suas mãos o Partido e o aparato policial do Estado (FURR, 2013).


O Zero e o Infinito se valeu do grande evento midiático que foram os Processos de Moscou. Koestler escreveu um romance que baseia-se naquilo que saía nos jornais a respeito dos julgamentos, fazendo, é claro, um texto em sintonia com a mídia ocidental, que então propagandeava, devido à sua hostilidade à União Soviética, que os julgamentos eram falsos e encenados. No entanto, alguns na época estiveram convencidos de que os processos eram convincentes, alguns norte-americanos, inclusive. Rubachov, no romance, confessa porque “o partido quer”. Ivanov e depois Gletkin buscam convencer Rubashov a confessar pelo bem do partido. O romance captura a visão da mídia de como funciona o comunismo e a confirma por dentro, a partir dos pensamentos de um personagem. O Zero e o Infinito ao mesmo tempo mostrava os julgamentos como adulterados pelo regime ditatorial como dava uma face humana ao indivíduo que supostamente “caiu na armadilha do comunismo”.

Apesar de inspirado na caça às bruxas e na inquisição, o romance não reforça a hipótese hoje tão comum de que os condenados de Moscou confessaram sob tortura. No romance não há tortura, praticamente não se encontra violência. Os comunistas não usariam a tortura física para extrair suas curiosas confissões. Eles convenceriam os processados de sua culpa. Koestler tenta criar diálogos supostamente dialéticos, mas mesmo Gletkin usa ameaças e a força quando necessário. Tony Judt espanta-se com isso que lhe parece concessão de Koestler ao comunismo, reafirmando a versão de hoje em dia que os regimes comunistas recorriam à tortura e à violência. Pode-se supor que Koestler dialogava com a opinião pública de seu tempo, em que a falsidade dos processos de Moscou não era, ainda, de aceitação universal. Judt se pergunta se Koestler sabia que a versão histórica em que Koestler se baseava era falsa nesse ponto. E, logo a seguir, responde à sua própria pergunta: Koestler não escreveu um texto sobre os Processos, mas sim sobre os comunistas. Em O Deus que Fracassou, ele afirma a respeito do período:


Como nossas vozes estrondeavam de justa indignação, denunciando falhas nos procedimentos da justiça em nossas confortáveis democracias; e, como permanecíamos em silêncio quando nossos camaradas, sem julgamento nem provas concretas, eram liquidados no sexto socialista do planeta. Cada um de nós mantém um esqueleto no armário de sua consciência; reunidos, formariam galerias de ossos mais labirínticas que as catacumbas de Paris (KOESTLER, apud: JUDT, 2008, p. 33).


            Koestler, então, é um intelectual ex-comunista que busca trazer outros intelectuais para o anticomunismo através de sua própria linguagem: o objetivo dele é mostrar que o comunismo persegue os intelectuais e eles conspiram para sua própria humilhação. Ele apresenta os supostos crimes do comunismo como frutos de uma deformação intelectual essencial. O ponto principal dele é: a lógica de determinados pontos de vista foi fatal, uma vez que não considerou o indivíduo e sua capacidade de julgamento independente. Assim, homens inteligentes podem ser atropelados por grandes ideais. Koestler afirma, dando crédito aos interrogadores como pessoas que agiam de boa fé:


O Partido promete apenas uma coisa: após a vitória, no dia em que não puder causar mais nenhum dano, o material dos arquivos secretos será publicado. Então o mundo saberá o que havia nos bastidores deste programa de Punch & Judy,* * Tradicional apresentação cômica de marionetes na Inglaterra, com comportamento violento e anárquico. (N. da E.) como você o chamou, no qual tivemos de agir conforme os livros didáticos de história [...]. E depois você, e alguns de seus amigos da geração mais jovem, receberão a solidariedade e a compaixão que lhes negamos hoje (KOESTLER, apud: JUDT, 2008, p. 32).


            Em termos históricos, os Processos de Moscou nunca tiveram seus arquivos abertos. Alguma coisa vazou depois do fim da União Soviética, num curto período de transparência sob Yeltsin, mas apenas isso. Não surgiram, no entanto, provas de que sejam falsos, embora a intelectualidade ocidental presuma sua falsidade e encenação. O historiador Tony Judt, pelo contrário, julga que Koestler é, do ponto de vista de hoje em dia, muito moderado, fazendo muitas concessões aos comunistas. Para Judt, Koestler agora é objeto histórico.

            O que se pode dizer, conforme Judt, é que o comunismo, para Koestler, era bem mais interessante do que os demais regimes autoritários. Para esse historiador, o gênio de Koestler não está em sua análise do comunismo e sim em seu brilho como polemista contra os comunistas. Depois da II Guerra, Koestler participou do chamado “Congresso para a Liberdade Cultural”, hoje tido como financiado pela CIA para cooptar os intelectuais de centro-esquerda. Koestler, no entanto, é bastante admirado por Judt por ser corajoso e dizer verdades impopulares. Ele, em 1950, estava bastante obcecado com a luta contra o comunismo, era intenso e previa táticas truculentas.



2 MERLEAU PONTY E KOESTLER



O filósofo Merleau-Ponty escreveu, em 1947, um texto crítico a Zero e Infinito de Koestler: Humanismo e Terror. Para Merleau-Ponty, ao contrário de Koestler, a questão não é escolher entre violência e pureza, mas sim entre espécies de violência, ou seja, Merleau-Ponty aceita a hipótese da violência revolucionária (MERLEAU-PONTY, 1968, p. 121).

Merleau-Ponty considera que O Zero e o Infinito é um texto que faz uma crítica feroz ao governo de Stalin, que teria julgado e executado seus executores políticos. Segundo Merleau Ponty, no romance de Koestler, a estrutura social é tudo, a consciência não representa nada, não se podendo falar em humanismo na sociedade comunista. O Zero e o Infinito propõe, portanto, trocar o modelo comunista pelo liberalismo político, pois somente o liberalismo implementaria o homem como um ser infinito.

Merleau-Ponty pondera, contra Koestler, que o liberalismo ocidental está assentado sobre os trabalhos forçados das colônias e uma série de guerras com intuitos dominadores. A questão não seria optar ou não pela violência e sim optar por uma violência progressista.

Merleau-Ponty adota uma posição curiosamente intermediária: ele nem acredita na versão oficial soviética, dizendo que existia de fato uma conspiração na União Soviética, nem na versão liberal apresentada por Koestler, que ignoraria que os Processos de Moscou seriam revolucionários. Para Merleau-Ponty, o que faziam os acusados dos Processos de Moscou seria atividade oposicionista de caráter político. Ele refuta, todavia, o fato de que Bukharin, Radek e outros também tivessem cometido crimes sérios como sabotagem, traição em relação a potências estrangeiras e espionagem, assim com fizessem parte de uma conspiração política. Para Merleau-Ponty, ao contrário de Koestler: “O marxismo não é nem negação da subjetividade e da atividade humana [...] – ele é sobretudo uma teoria da subjetividade concreta” (MERLEAU-PONTY, 1968, p. 51).

Para Merleau-Ponty, mesmo o fato de que a União Soviética precisou erradicar a quinta-coluna para vencer a guerra –e ele deixa de lado o fato de que mesmo assim existiu uma quinta-coluna na URSS, com desertores como o general Vlassov –não é suficiente para que Merleau-Ponty reconsidere os Processos de Moscou como sendo jurídicos e não políticos. No entanto, ele avança ao considerar, pelo menos, que o problema tem que ser colocado não em termos de humanismo abstrato, como o faz Koestler, mas que o marxismo é uma teoria concreta da subjetividade. Para Koestler, a história é feita de fatos justapostos e decisões individuais, o que Merleau-Ponty rejeita.

Mesmo assim, Merleau-Ponty se posiciona a favor da violência como uma das formas de conquistar uma sociedade mais humana e dá o exemplo dos resistentes franceses ao nazismo. Ao mesmo tempo, Merleau-Ponty critica o regime soviético por não assumir claramente que estava fazendo um tribunal revolucionário ao impedir a oposição e sim querer apresentar os condenados como criminosos comuns. Aqui ele se equivoca. Os condenados de Moscou eram apresentados como participantes de uma conspiração que, dentro da URSS, cometia sabotagens e atentados.

Mas mesmo essa posição moderada é hoje em dia vista como extremada pela maioria dos intelectuais, para quem se deve combater como totalitários tanto o nazismo quanto o comunismo, em nome da liberdade.

Tony Judt já valoriza Arthur Koestler nem tanto por seu valor literário, mas por seu papel na demolição do mito soviético. A avaliação de Koestler de Judt é baseada nesse feito. O texto é hoje considerado um dos clássicos do século. Paulo Francis disse a respeito desse livro:


A personagem central, Rubashov, tem a aparência física de Trotski e, mais ou menos, um prontuário de combate como o dele, e o pensamento e modos de Bukhárin. O marxismo de Rubashov é um tanto mecanicista, para dizer o mínimo (FRANCIS, apud: BELÉM, 2013).


            Para Francis, Koestler teria sido sempre de esquerda, mesmo quando publicou textos anticomunistas. Judt apresenta Koestler como um homem que trocou a esquerda pelo anticomunismo, mas teria continuado como um intelectual independente. Para o trotsquista Irving Howe, em posição semelhante à de Francis, o romance era uma descrição aterradora e incontestável dos mecanismos da mente comunista. No entanto, Howe, que é tido por Judt como “neotrotsquista”, não concordou totalmente com a visão de Koestler a respeito do stalinismo enquanto fenômeno social.

            Rubashov é apontado como um retrato fiel, historicamente, a Bukharin. Rubachov/Bukharin teriam sido convencidos a confessar acusações inventadas contra ele para evitar despertar simpatia e pena na população em geral. O despertar desses sentimentos seria perigoso para a causa comunista. Segundo Euler de França Belém, Bukharin teria confessado para salvar a vida de seu filho e sua jovem mulher, Anna Larina.

            Em relação ao relato de Koestler, Judt pensa que ele é falso ao não registrar cenas de tortura física por parte dos comunistas e diz “há provas abundantes de que os regimes comunistas foram tão brutais e sanguinolentos quanto as outras tiranias modernas”. Mas se Koestler quer denunciar o comunismo, por que não denunciou isso? Para Judt, o romance não é sobre as vítimas do comunismo e sim sobre os comunistas. A confissão de Rubashov é muito associada àquela realizada pelo personagem Winston Smith de George Orwell. A seguir será tratada a forma como Orwell tratou desse seu romance de Koestler, esse seu contemporâneo que tinha muito a ver com ele.



3 ORWELL E KOESTLER



A posição de George Orwell sobre o romance O Zero e o Infinito de Koestler foi altamente favorável – e não poderia ser diferente: tinha em comum com o que Orwell escrevia. Orwell, inclusive, dizia que ser preso na Inglaterra era estar nas mãos de amadores (Koestler chegou a ser preso nesse país durante a guerra, por ser estrangeiro, mas foi liberado rapidamente). Na União Soviética, afirmou Orwell, ao ser preso, Koestler seria obrigado a várias outras confissões falsas. Ao comentar os diálogos entre Ivanov e Rubachov, Orwell diz que Gletkin era um jovem interrogador já crescido na União Soviética e que acreditava que somente pensar em cometer um atentado contra Stálin já era cometê-lo. Ele admite, então, indiretamente, que ao menos um atentado contra Stálin deve ter sido pensado.

Note-se como a questão progride: o senso comum de hoje em dia reproduz a ideia de que Stálin matou seus “amigos” apenas para obter maior poder. Os autores que viveram o período já dizem algo diferente: quem foi morto ou preso, na realidade, estava fazendo oposição política. E Orwell, por exemplo, admite que esses opositores políticos tenham pensado num atentado. Orwell explica, no entanto, que Gletkin, ao contrário do primeiro interrogador, Ivanov, que era um velho bolchevique da mesma idade que Rubachov (que aparentemente foi expurgado de repente também), é uma mente totalmente forjada no totalitarismo e a única forma de crítica que ele consegue imaginar é o assassinato. Para Orwell, os novos bolcheviques seriam uma “nova raça de monstros”.

Para Orwell, O Zero e o Infinito oferece uma compreensão interior de métodos totalitários e é o melhor registro desses Processos. Orwell impacienta-se e registra que houve aceitação, no ocidente, dos processos de Moscou, que foram processos abertos e que tiveram correspondentes ocidentais. Para Orwell, foram casos encobertos com ansiedade por intelectuais ocidentais na imprensa de esquerda. Para ele, era óbvio que os acusados tinham sido torturados ou ameaçados de tortura, mas ele acredita que a explicação é mais complexa. Koestler, como Boris Souvarine, pensa que os acusados dos Processos de Moscou confessaram pelo bem do partido. O Zero e o Infinito é, portanto, segundo Orwell, pouco mais do que um pesadelo que acontece na União Soviética.

Orwell entusiasmou-se com Koestler, afirmando que não existia literatura de desilusão antissoviética na Inglaterra e que os debates sobre os Processos de Moscou tinham provocado polêmica sobre a culpabilidade dos acusados. Os ingleses, então, estavam muito envolvidos com panfletos e literatura política. Por isso, ele louva O Zero e o Infinito, que seria um tipo de texto aparentado aos textos de Malraux e Souvarine. Seu tema é a decadência das revoluções, numa perspectiva antistalinista que o levou a uma posição de conservador pessimista. Koestler, afirma Orwell, não escapa da atmosfera de pesadelo em outros textos que escreveu (Testamento Espanhol, Os Gladiadores, A Escória da Terra, etc). Dos cinco livros, a ação de três ocorre totalmente ou quase inteiramente na prisão. Orwell acredita que o texto de Koestler sobre a Espanha era falso e marcado pela ortodoxia da frente popular dos anos 30. Ele não teria escrito com honestidade sobre a luta interna dentro do governo. Para Orwell, um esquerdista tem de ser ao mesmo tempo antifascista e antissoviético (que para ele é sinônimo de totalitário). Koestler chegou perto disso, mas colocou uma máscara para fazê-lo, por não se sentir à vontade para tanto (ainda segundo Orwell).

Orwell reprova bastante o livro Os Gladiadores, em que Koestler ficcionaliza a rebelião de Spartacus na Roma Antiga, projetando esse personagem histórico como a versão primitiva do ditador proletário. O tema principal de Koestler é: revoluções sempre dão errado. Orwell julgou, pois, essa suposição bastante irreal.

Na prisão, o personagem Rubachov debate com um czarista e também com seu interrogador, Gletkin, que considera que tem uma mente totalmente totalitária. A mente de Rubachov seria, então, uma mente burguesa.

            O Zero e o Infinito, é, portanto, um livro político, que oferece uma posição dos eventos em questão. Como, nos Processos de Moscou, as confissões foram publicadas na imprensa e foram altamente convincentes, Koestler respondeu que elas eram falsas, mas mesmo assim produzidas por raciocínios e diálogos sofisticados. Orwell comenta que a resposta de Koestler é muito próxima de imaginar que toda revolução é má por natureza. Para ele, Lenin leva a Stalin e todas as formas de regenerar a sociedade por meio da revolução levam aos porões da polícia política soviética. Orwell comenta que Koestler abandonou o comunismo, mas não aderiu ao trotsquismo. Ele busca, por outro lado, mostrar que crenças revolucionárias são racionalizações dos impulsos neuróticos. Em outro de seus livros, Partida e Chegada, o impulso revolucionário do protagonista é psicanalisado como tendo se originado no gesto infantil de cegar o irmão bebê. O jovem nazista no livro de Koestler faz a observação de que algo está errado no movimento socialista devido à feiúra de suas mulheres. Isso é muito grosseira até para Orwell, que argumenta contra, afirmando que nada isso não invalida as críticas de Marx e dos socialistas em geral.

            Koestler demonstra, segundo Orwell, uma tendência ao hedonismo em seus escritos, principalmente depois de romper com os comunistas. Ele pensa que as revoluções sempre levam aos expurgos. Busca, então, manter-se fora da política, cultivando o hedonismo. Até mesmo Orwell não pode aceitar que todas as revoluções sejam parte da mesma falha, ainda que ele também aceite que todas as revoluções falham.



CONCLUSÃO



            Esse artigo buscou debater o romance O Zero e o Infinito no contexto da atualidade. O ponto de partida foi Reflexões Sobre Um Século Esquecido, de Tony Judt. O historiador revisita Koestler apenas para reforçar o ponto de vista já presente na obra. Pode-se dizer, no entanto, que a narrativa histórica que embasa o texto de Koestler tem de ser analisada sob um outro prisma, uma vez que existem pesquisas recentes, como a do professor Grover Furr, que mostram que a narrativa histórica não foi bem como Koestler aproveitou para basear o romance. Ou que, pelo menos, há controvérsias.

Existe a hipótese de que os Processos de Moscou foram justos. Essa hipótese é uma interessante possibilidade de leitura de O Zero e o Infinito que, embora não os considere justos, não os iguala aos fascistas, talvez pela grande influência do partido comunista em sua época. Os comunistas não teriam usado tortura e sim convencido suas vítimas a confessar em nome do partido, essa é a explicação à qual Koestler se apegou quando escreveu o texto, em 1940. Koestler foi bastante criticado por Merleau-Ponty em 1947: o filósofo julgou que seu texto colocava as questões políticas em termos falsos e abstratos: entre ser violento ou não-violento. Para ele, o dilema é escolher entre diferentes tipos de violência, mas estamos condenados a ela. Merleau-Ponty, que tinha vivido a experiência da resistência francesa, apoiou a violência revolucionária e criticou o colonialismo dos liberais. Por fim, Orwell também criticou as generalizações que fez Koestler, supondo que toda revolução fracassa e aderindo ao conservadorismo pessimista. Por fim, pode-se dizer que Koestler fez um romance sobre comunistas, não sobre os Processos de Moscou.






REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



BELÉM, Euler de França. O escritor que revelou como o comunismo entorpece a mente de seus militantes. Disponível em: . Acesso em 02 de abril de 2013.



FURR. Grover. Evidências da Colaboração de Trotsky com a Alemanha e o Japão. Disponível em: . Acesso em 13 de março de 2013.



_______________. Dobrov, Vladimir: Uma evidência mais da culpa de Bukharin. Disponível em: . Acesso em 13 de março de 2013.



JUDT, Tony. Arthur Koestler, o intelectual exemplar. IN: Século XX, o século esquecido –Lugares e Memórias. São Paulo: Edições 70, 2008.



MERLEAU-PONTY. Humanismo e Terror: ensaio sobre o problema comunista. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968.



ORWELL, George. Por que estou lutando. Disponível em: . Acesso em 02 de abril de 2013.



[1] Aluno do Curso de Letras, da Universidade de Santo Amaro/FASF, Polo de Luz/MG.