sábado, 22 de dezembro de 2007

O que nos quer o Barroco?

O barroco persegue os mineiros, embora a frase “o que me quer o Brasil que me persegue” seja do poeta baiano Gregório de Mattos. As cidades coloniais mineiras são um espaço onde o passado se faz matéria concreta, onde a história se faz sentir, petrificada. No entanto, Haroldo de Campos definiu o barroco como “uma das constantes da sensibilidade brasileira” (CAMPOS, 1962: p. 83/94.)

Para além do estilo de época, o barroco é muitas vezes considerado um componente atuante na própria identidade nacional, pois remete ao impuro, ao mestiço. Do Modernismo de 22 em diante, ganhou muito prestígio a versão de que a identidade do Brasil é ser uma mistura, um país híbrido, sincrético. Diz da questão nacional o professor paulista Enio Squeff:

No Brasil continua-se a discutir o nacionalismo: tanto falam dele os que escancararam as portas do país às multinacionais como os que pretendem que o nacionalismo suponha algumas soluções de caráter nasserista, ou francamente fascista (...). A questão do nacionalismo é ambígua, não porque muitos se proclamem nacionalistas tendo soluções antagônicas; mas porque a verdadeira solução não coloca o problema do nacionalismo como uma prioridade abstrata. (...). Alguns nacionalistas de hoje não raro fazem uma música que só tem a ver com um conceito específico de música nacional. Nacional é o exótico, isto é, tudo que recebe o alvará da indústria cultural multinacional. Tal nacionalismo excluiria, a priori, todas as realidades amplas de um país; ( WISNIK e SQUEFF, O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira, 1982, p. 17)

Na busca da identidade nacional, creio que precisamos ter uma certa cautela e, sem exclusão das fontes estrangeiras, manter um distanciamento crítico em relação a estas fontes. Existem vários nacionalismos e cada classe irá entender de maneira diferente a questão nacional, fazendo com que atenda a interesses distintos, conforme inclusive o momento histórico em que o problema for colocado. No caso do texto supracitado, Wisnik aproxima o “nasserismo” do fascismo, hipótese estranha, pois Nasser foi um dos líderes mais ativos na descolonização da África. Daqui por diante vamos pesquisar esse laço que une o barroco e a problemática da nação.

O barroco e o Rococó precederam o século das luzes, e a postura filosófica iluminista pôs a escolástica barroca em descrédito. Agora, no final do século XX, o barroco é retomado em plena crise da razão. Em nosso país esta postura foi adotada pelo movimento concretista, e o poeta e ensaísta mineiro Affonso Ávila incorporou algumas de suas propostas, mas desde os anos 60 já tinha divergências com Pignatari. Anelito comenta a respeito:

A tese do poeta-crítico paulista é duramente replicada por Affonso Ávila, que, embora a considere uma das contribuições mais sérias apresentadas ao Congresso, acusa-o de ressaltar apenas algumas coordenadas do problema, focalizadas às vezes dentro de um ponto de vista unilateral, excessivamente doutrinário, deixando de considerar o panorama poético nacional em sua totalidade, na sua complexidade, no seu conjunto de indecisões e constrastes que bem definem o instante de crise, a fase de transição, o nebuloso mundo de experiências e pesquisas para o qual não se abriu ainda a clareira vivificadora da criação. Ávila classifica de arbitrária a ‘linha de evolução do processo poético brasileiro’ que Pignatari apresenta, chegando mesmo a afirmar que o ‘raciocínio crítico’ que a possibilitou estava ‘contruído sobre equívocos’. O ponto alto dessa réplica é, contudo, quando Ávila desperta furiosamente a questão do relacionamento Concretismo/realidade brasileira, solicitando que ‘Décio Pignatari e seus companheiros confessassem o seu erro de perspectiva’, que teria conduzido a uma poesia alienada, desligada da realidade. (OLIVEIRA, Anelito de. A Aurora das Dobras. p. 51: 1998)

Assim dizendo, Ávila fez uma observação que permanece pertinente para o melhor entendimento e apreciação crítica do Concretismo, e que se aproxima da postura de Gullar em Vanguarda e Subdesenvolvimento (1969):

Décio Pignatari, para reparar o erro de perspectiva do concretismo, a alienação de que só agora procura redimir-se, utiliza o exemplo da experiência participante de Carlos Drummond de Andrade e do verso engajado de João Cabral de Melo Neto para preparar o que chama de ‘o pulo da onça’. Ora, sabemos todos nós que o concretismo, do qual publicamente reconhecemos a procedência de muitas das formulações críticas, encaradas é claro no plano da pesquisa em torno da linguagem poética, jamais se preocupou com o valor conteudístico da poesia, com a criação-situação no tempo e na realidade brasileira. Não seremos nós, propugnadores de uma expressão literária nacional autônoma e portanto participante, que iremos subestimar a importância dos novos propósitos do grupo concreto de São Paulo. Entretanto, preferiríamos que Décio Pignatari e seus companheiros confessassem o seu erro de perspectiva e se propusessem, na oportunidade deste Congresso, um novo programa, claro, definido, sem subterfúgios, a que não furtaríamos nosso humilde apoio, a modesta contribuição de experiência participante do grupo ‘Tendência’ (1956), o qual não tenta o ‘pulo da onça’, porquanto há muito nos engajamos na responsabilidade social e humana do artista, para usarmos uma expressão de Décio Pignatari. (Ávila. Apud: OLIVEIRA, Aurora das Dobras, p.51: 1998)

A questão da identidade nacional, esboçada nos textos de O Poeta e a Consciência Crítica, coletânea de ensaios organizada cronologicamente, foi desenvolvida em prol da discussão de uma tradição criativa no que se refere à linguagem e demonstra que aos poucos, na medida em que a década de 60 vai chegando ao fim, o autor vai partindo para tópicos mais atraentes, como a possibilidade de associação do barroco do século XVI e do XVII a uma vertente dita “pós-moderna”, ou “neobarroca”. Reconhecemos a pertinência dessa discussão, mas assumimos a seguinte postura: não há uma nova cultura depois dos anos 60, pois não há uma nova sociedade, uma sociedade pós-industrial. Ocorre então uma reformulação do capitalismo, que na nova etapa passa a estetizar a vida. O que há de inteiramente inédito são formas culturais novas, de origem norte-americana, que obtiveram aceitação universal. No final da década de 60, Ávila passa a enfatizar outras questões e resgata o Barroco para os tempos atuais com os seguintes argumentos:

O homem barroco e o do século XX são um único e mesmo homem agônico, perplexo, dilemático, dilacerado entre a consciência de um mundo novo – ontem revelado pelas grandes navegações e as idéias do humanismo, hoje pela conquista do espaço e os avanços da técnica – e as peias de uma estrutura anacrônica que o aliena das novas evidências da realidade – ontem a contra-reforma, a inquisição, o absolutismo, hoje o risco da guerra nuclear, o subdesenvolvimento das nações pobres, o sistema cruel das sociedades altamente industrializadas. Vivendo aguda e angustiosamente sob a órbita do medo, da insegurança, da instabilidade, tanto o artista barroco quanto o moderno exprimem dramaticamente o seu instante social e existencial, fazendo com que a arte também assuma formas agônicas, perplexas, dilemáticas. (ÁVILA, O Poeta e a Consciência Crítica, 1969, p.17).

No texto acima citado, Affonso Ávila deseja trazer a poesia seiscentista, os livros de emblema, a ópera e outras manifestações de séculos passados diretamente para a apreciação imediata do leitor e do público do final do século XX. Uma avaliação influenciada simultaneamente por Mcluhan e pelo estruturalismo e que permite tanto a transposição atemporal quanto o paralelo com a cultura de massa. Os possíveis anacronismos cometidos nessa transposição a-histórica não são problematizados. A cultura de massa não é vista em sua relação ambígua para com a cultura popular e erudita, mas é para Ávila um sinônimo de progresso cultural e tecnológico.

O poeta adere portanto a uma postura que Umberto Eco chamou de “integrada” em seu famoso livro, Apocalípticos e Integrados. Naquele momento (1968), Affonso resgata o barroco por notar sua atualidade. Ao citar Umberto Eco, refere-se à teoria da obra aberta, sem discutir a teoria da comunicação do autor italiano; observa apenas que Eco vira no barroco uma primeira manifestação, ainda que inconsciente, de abertura da arte, de quebra de padrões fixos que faziam da criação clássica um objeto artístico rigorosamente delimitado no seu simetrismo, na sua beleza sublime mas aristocraticamente distante, quase imparticipável. Umberto Eco não acredita que existiu uma idade de ouro antes da cultura de massa, mas também questiona seriamente a massificação que dissemina internacionalmente e entre as várias classes sociais uma cultura padrão: a cultura média.

A noção de participação na arte, o adensamento da linguagem estética, o primado do elemento visual e as concepções da poesia de vanguarda estariam já presentes, segundo o poeta mineiro, em sua essência, nas obras barrocas. Affonso Ávila critica rapidamente Benedetto Croce, que classificou o barroco de arte de degenerescência. Croce define a degenerescência como o momento em que prevalece o jogo ilimitado com as formas estéticas, abusando com gratuidade lúdica dos expedientes e das soluções de linguagem.

A poesia concreta a partir de meados da década de 70 ganha cada vez mais ressonância, graças à sua passagem para uma sintaxe visual num contexto de expansão dos meios audiovisuais. A poesia entra uma crise profunda pois passa a escassear a figura do leigo que lê poesia: os talentos neste setor em geral se direcionam para a música popular, uma arte que possibilita uma melhor perspectiva comercial. Assim como Joyce preferiu barroquizar o romance no momento em que este gênero estava perdendo leitores, e Glauber Rocha radicalizou sua estética no caminho do barroquismo e do delírio visual em seu filme A Idade da Terra (1980), a poesia concreta atuou de maneira semelhante, buscando radicalizar um formalismo já anteriormente cristalizado.

Affonso Ávila avança no sentido de propor uma “linha de tradição brasileira”, que iria de Aleijadinho a Niemeyer, um elo inventivo que uniria e espelharia nossa postura criadora, nossa índole redutora e antropofágica em relação ao Barroco europeu. A linha mais criativa da literatura brasileira viria de Gregório de Mattos a Padre Vieira, Matias Aires em Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens, Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, Macunaíma, de Mário de Andrade. A grande obra da ficção moderna brasileira, segundo Ávila, será o Grande Sertão Veredas, de compleição francamente barroca em sua grandeza cervantina. Assim, prossegue Ávila, João Cabral tem um “remordimento formal barroco”, em Jorge de Lima há uma “poesia de desinência barroquista”, e por fim, a “angústia barroca da paixão contida” estaria até em Carlos Drummond de Andrade e Cláudio Manoel da Costa. Nesta busca dos elementos barrocos Affonso Ávila aparentemente estabelece os seus predecessores mineiros, o seu próprio cânone.

Num outro momento, Ávila demarca o território e demonstra que certos autores deverão ter sua importância relativizada pelo estudo de casos de autores injustiçados, gestando um novo cânone que irá valorizar o barroco:

Assim, ao indianismo gonçalvino sucede a antropofagia de Oswald de Andrade, ao abolicionismo sentimentalizado de Castro Alves, o negrismo etnográfico de Jorge de Lima, tônicas de uma preocupação com o homem e a natureza que se estende à obra interessada de outros poetas e culmina no romance nordestino. Enquanto se opera esse reatamento com as motivações telúricas, prossegue a nossa importação de técnicas, já também passíveis de ser digeridas, reduzidas num sentido crítico pelo trabalho do artista. E é dentro desse quadro que se queria afirmar nacionalmente autônomo que iríamos exumar do período colonial o primeiro traço de tradição realmente válido para nossa pretendida arte brasileira: o barroco. (ÁVILA, O Poeta e a Consciência Crítica, 1969, p. 48)

A tentativa de reescrever a história da literatura nacional a partir da busca das desinências barroquizantes e incluindo nela casos de autores excepcionais redescobertos (Sousândrade, Severiano Rezende e Pedro Kilkerry) permanece inacabada. A vertente concretista não fez um trabalho de fôlego neste sentido, preferindo polemizar em questões pontuais, como Haroldo de Campos em O Seqüestro do Barroco. Antonio Candido justifica a omissão nos seguintes termos:

Embora tenha permanecido na tradição local da Bahia, ele não existiu literariamente (em perspectiva histórica) até o Romantismo, quando foi redescoberto, sobretudo graças a Varnhagen; e só depois de 1882 e da edição Vale Cabral pôde ser devidamente avaliado. Antes disso, não influiu, não contribuiu para formar o nosso sistema literário e tão obscuro permaneceu sob os seus manuscritos, que Barbosa Machado, o minucioso erudito da Biblioteca Lusitana (1741-1758), ignora-o completamente, embora registre quanto João de Brito e Lima pôde alcançar (I, 18). Muito tarde, já em pleno século XIX e depois da Independência, Ferdinand Denis tampouco o menciona no Resumo da História Literária de Portugal e do Brasil; a sua inclusão na cronologia literária do século XVII é, pois, um dos mais espantosos exemplos de involuntária mistificação histórica que se podem apresentar. (CAMPOS, Haroldo de. O Seqüestro do Barroco, Salvador, Casa Jorge Amado, p. 8, 1989)

A perspectiva histórica adotada por Candido é definida por Haroldo de Campos como ideológica, via Jacques Derrida. O conceito metafísico de história, segundo o filósofo franco-argelino, envolve a idéia de linearidade e a continuidade. É um esquema linear de desenrolamento da presença, obediente ao modelo “épico”. Pode, portanto, redundar num historicismo, na substituição do estético por uma ideologia. Ora, dizer que o barroco é uma das constantes da sensibilidade brasileira e tentar construir uma tradição a partir dele envolve também esta idéia de linearidade e continuidade, que além de tudo também seria, nesse viés, metafísica. Se Gregório não foi lido pelos árcades (incluindo Cláudio Manoel da Costa) e românticos, para Candido não há como tornar o poeta, ainda que tenha muitos méritos, um emérito componente do único traço de tradição realmente válido para a literatura brasileira, como pretendeu Affonso Ávila. Affonso também revê a história literária não somente conforme critérios estéticos, mas também dirige sua avaliação conforme o leitmotiv de que o barroco é a tradição que devemos continuar.

Affonso Ávila não fez mais sonetos depois de seu primeiro livro, despindo o excesso discursivo, a sobrecarga metafórica de sua poesia. Dilacerado entre o soneto, forma neoclássica muito utilizada pela geração de 45, e a implosão da linguagem engendrada pelo concretismo, Affonso Ávila adotou a sintaxe visual. Foi do soneto ao poema-piada. Mudou de versos como:

A carne dadivou-se em florações,

Terço cipó nos caules, sinto a febre

De procriar-me e ser meu guardião

(ÁVILA, Sonetos da Descoberta, In: Encontro com Escritores Mineiros. p. 32, 1993)

Para versos como:

Teoria dos Coroas

A realidade é a dos coroas

A real idade é a dos coroas

A hilariedade é a dos coroas

(Sua filosofia é o civismo

Sua filosofia é o cinismo

Sua filosofia é o si mesmo)

(ÁVILA, Encontro com Escritores Mineiros, p. 19, 1993)

Neste poema, Affonso Ávila busca sintonizar com a geração mimeógrafo, os poetas marginais e seus consumidores. A utilização da gíria “coroa”, demarcatória em relação a uma geração mais velha, dá ao texto um sabor datado, mas o poema poderia tranqüilamente ser incluído numa antologia dos jovens poetas marginais publicada na época.

Ele também faz uma abordagem do paradoxo das antíteses mineiras, esboçando uma psicologia cultural de Minas Gerais:

Nos meandros da dita mineiridade, eu procurei identificar as raízes de Minas, a dicotomia mineira, os lados contrastantes que há na alma mineira, que às vezes é aberta, esperançosa, progressista, livre, às vezes é reacionária, rancorosa, repressiva, obscurantista. Procurei então, na poesia e no ensaio daquele instante, sublinhar, deixar à minha maneira ver exatamente esses dois pólos do paradoxo mineiro. (Ávila, p. 30, Depoimento. Apud: BUENO, Antônio Sérgio (org.). Encontro com Escritores Mineiros, 1993.)

O escritor Pedro Nava tratava a mesma questão numa perspectiva diversa, reduzindo Minas ao núcleo central onde se concentram as cidades coloniais, desenvolvendo a idéia de Minas como uma pátria interna, autêntica:

No fundo, bem no fundo, o Brasil para nós é uma expressão administrativa. O próprio resto de Minas, uma convenção geográfica. O Triângulo já não quis se desprender e juntar-se a São Paulo? Que se desprendesse...E o Norte já não pretendeu separar-se num estado que se chamaria Nova Filadélfia e teria Teófilo Otoni como capital? Que se separasse...(NAVA, 1978, p. 103 e 111)

A questão que é preciso enfrentar é que especificidade local brasileira foi descartada desde o início dos anos 60 em prol de uma inserção da literatura brasileira nos processos universais.

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