sábado, 22 de dezembro de 2007

O Caso Inês

Introdução

Farei aqui uma abordagem do romance Um Crime Delicado, de Sérgio Sant’ana. Pretendo analisar este romance como uma realização estética, artística evidentemente, mas que deixa transparecer algo da situação sócio-cultural do Brasil dos anos 90.

O texto de apresentação do livro que está na contracapa (num livro que tem uma contracapa e uma capa plenas de signos enriquecedores) já é um “enclave” de crítica na obra:

Misturando trama policial e um erotismo insólito numa narrativa que contêm em si sua própria crítica, Um Crime Delicado expõe de modo sutil os atritos entre arte e crítica como dois modos distintos e possessivos de representação da vida.1

Tal texto apócrifo me fornece uma porta de entrada na obra, através da qual pretendo acompanhar o relacionamento entre o crítico (Antônio Martins) e Brancatti (o artista), mediado pela modelo Inês. A manca Inês, este obscuro objeto do desejo, é a esfinge que devora o crítico que não sabe bem decifrá-la, é uma mulher enigmática, ambivalente, é quem transita entre estes modos distintos de representar a vida, sofrendo um dilaceramento constante.

Embora Inês, esta esfinge com segredo, seja o foco do romance, o atrito e o confronto principal está na rivalidade Martins versus Brancatti. Eles representam o embate entre arte/crítica. Tanto a arte quanto a crítica tentam se devorar, na “busca onívora de apreensão do mundo”. Ao mesmo tempo, esse romance também funde crítica e arte. Há “atritos e simbioses entre vários registros: a ficção, a crítica, a memória, o ensaio”. O que para mim evidencia que há um dilaceramento inerente: o narrador da obra é o tempo todo seu próprio crítico.

Essa mistura de gêneros, configurando no plano geral um romance, é uma preferência contemporânea. A impregnação policial da trama tem um objetivo questionador no tocante à relação com a verdade. Não se trata do romance policial como fala dele Fábio Lucas, como um espaço onde “ se efetiva a perfeita correlação do modelo racional de busca da verdade, com os pressupostos da intencionalidade ideológica.2”

Fábio Lucas está neste texto criticando o gênero policial, pois acredita que ele valida o modelo racional de busca da verdade, sem mostrar suas limitações, configurando portanto uma utilização ideológica da razão, ideológica no sentido de que oculta uma ideologia de classe.

Do Artista ao Crítico

As relações entre a arte e o pensamento crítico se tornaram turvas neste final do século XX. A arte faz um recorte sentimental da realidade, sua apreensão da vida não é distanciada da criação. O artista é preso ao sentimental, ao inconsciente, ao sensorial. Em geral, se identifica com suas criações, a visão delas sob outro ângulo que não o puramente estético se lhe afigura desagradável, assustadora ou repugnante. Sua reação diante dessa avaliação é passional, dada a proximidade com o objeto. Estou generalizando, mas creio que esta explicação basta como premissa para o personagem-artista (Brancatti) do romance de Sant’anna.

O crítico é um intelectual, não um artista. Embora tenham existido escritores-críticos de grande valor, como Ezra Pound, por exemplo, não é muito comum as duas atribuições conviverem num mesmo indivíduo. Um crítico necessita de conceitos, idéias para aplicar a determinada obra de arte, e fazer dela uma avaliação, necessidade que o artista não tem - e que, em nosso tempo, começa a ter com o advento da chamada “arte conceitual”.

Antônio Martins se define logo às primeiras páginas do romance:

Sou crítico. Tal declaração mesmo diante da gravidade de certos fatos a serem aqui narrados, me faz rir por todas as conotações da palavra. Mas foi justamente por essa ambigüidade que quis definir-me assim, já que poderia ter esclarecido, desde logo, que sou um crítico profissional de teatro, como muita gente sabe pela notoriedade que adquiri - não principalmente por escrever para jornais, mas pelo que os jornais acabaram publicando sobre mim. Mas a profissão talvez explique muitas coisas em meu comportamento e na minha forma de viver, em minha personalidade, enfim, embora eu não saiba dizer se foi esta personalidade que me conduziu naturalmente à crítica, ou se foi o exercício desta que terminou por contaminar meu comportamento e minha personalidade.3

Embora seu espírito crítico seja ostensivo desde as primeiras páginas do livro, aqui o personagem Antônio Martins define a profissão que exerce, assumindo a crítica extrema, dissolvente, impiedosa, como sua atitude diante deste mundo. “A ironia é um veneno que vitima também aquele que o utiliza”, dizia Voltaire. Antônio Martins também sofre em sua própria vida, em seu dia-a-dia, as conseqüências de sua crítica indiscriminada, que não parte de uma ideologia claramente assumida, mas que tem clara ligação com o racionalismo e iluminismo. Ele se afasta de uma perspectiva religiosa, marxista ou liberal clássica ostensiva. Pratica uma racionalidade extremada, agressivamente apegado ao logos platônico e ao cogito cartesiano. Suas exigências estéticas são elevadas, e ele domina bem o ofício que exerce, escrevendo com clareza e claros parâmetros, frisando sempre sua tentativa de manter relativa isenção ideológica. Ele remete à terminologia consagrada no meio teatral, a uma especificidade que aumenta a precisão das análises e afasta o público que deseja o mero sensacionalismo, os ataques pessoais e passionais. Martins exige que seu leitor acompanhe seu raciocínio.

Suponho que as peças que o crítico vem a assistir são significativas para o enredo do romance, não são escolhidas ao acaso. Podemos saber muito sobre Martins ao ler sua visão a respeito delas. Podemos também imaginar que tipo de texto Martins escrevia no jornal. Eis alguns trechos de seu depoimento:

Um espetáculo manifestadamente de texto, em que um homem ainda jovem se debatia em movimentos espasmódicos de encontro a uma mulher, também jovem, ora acusando-a por suas desilusões existenciais, artísticas, sexuais, ora procurando retomar um momento qualquer em sua trajetória, no qual julgava ter sido feliz com ela. Queria retornar àquele tempo que o próprio autor-diretor, faça-se-lhe justiça, deixava ver, por meio da personagem feminina, nunca ter existido (...). Ora, ser crítico é um exercício da razão diante de uma emotividade aliciadora, ou de uma tentativa de envolvimento estético que devemos decompor, para não dizer denunciar, na medida do possível com elegância. (...) Porém, qual de nós poderá dizer que nunca foi capturado pela coisa sentimental?4

A referência a esta peça aparece no relato junto com comentários a respeito da identificação que Martins sente com o texto Folhas de Outono, que ele em seguida analisa detalhadamente, numa crítica impiedosa, mas, segundo ele, predominantemente favorável:

Ao jovem dramaturgo eu indicava, não sem ironia, é claro, a saída a que ele próprio recorrera para escapar da sua prisão. A janela. Não da maneira trágica e melodramática como o fizera, aliás antecipada pelas óbvias folhas secas, de inspiração europeizada, que eram vistas a cair intermitentemente, através da referida janela, quando a ação ou inação da peça se dava durante a tarde, não bastasse o título da obra: Folhas de Outono (...). O curioso era que o autor-diretor, talvez a despeito de si mesmo e por não ter dado a palavra ao feminino, deixava-o em liberdade silenciosa, propiciando ao espectador mais atento uma possibilidade de avistar por si a saída, até que o autor e encenador a fechasse, paradoxalmente no momento em que fazia abrir a janela, de um só golpe...e mortal! Mas antes que tal acontecesse era possível ver em cena aquela mulher vivendo o seu cotidiano com forte e às vezes melancólica serenidade (...) que se revelava transformadora em atos tão simples e domésticos como o de modificar constantemente as formas dentro do apartamento, trazendo novos objetos para a cena, desfazendo-se de outros ou mudando a disposição deles no espaço (sim, escrevi também tais coisas, que se revelaram antecipadoras de outras, reais, estas verdadeiramente dramáticas ou patéticas), enquanto o homem falava e falava.5

A peça está estrategicamente colocada no romance, funcionando como antevisão dos acontecimentos que virão a seguir. A figura do autor-diretor que sufoca a atriz é notável pelo fato da sua possível analogia com este relato: o autor que instaura a obra é protagonista do drama narrado, e portanto ele vê esta realidade com um determinado ponto de vista que o tempo todo é passional, é subjetivo, é parcial. Ele procura se defender, driblar acusações e fazer valer seu ponto de vista como verdadeiro, persuadindo o presumível interlocutor. Ele espera que esse interlocutor esteja o tempo todo desconfiado de sua pessoa e busca aliciá-lo. Isso ocorre em decorrência da situação em que Martins se envolveu (o crime delicado que dá título ao romance).

O diálogo de Inês e de Antônio Martins é desde cedo marcado pela desconfiança mútua. Martins tenta esconder seu desconforto, afirmando a crítica como forma de arte:

Expliquei que o crítico é um tipo muito especial de artista, que não produz obras mas vai apertando o cerco em torno daqueles que o fazem, espremendo-os, para que eles exijam de si sempre mais e mais, na perseguição daquela obra imaginária, mítica, impossível, da qual o crítico seria co-autor. Algo assim. Eu falava ao sabor do momento e, em outras ocasiões, poderia explicar a coisa de modo inteiramente diverso.6

Antônio Martins, conciliador, inventa ao sabor do momento uma concepção de arte que faz as pazes com a crítica. Pretende assim mostrar-se afável com Inês, agradá-la, exibindo-se verbalmente, e seduzi-la. Posteriormente, Martins é convidado por Inês para a exposição dos “Divergentes”, grupo de artistas assim definido pelo crítico:

A mostra justificava o nome. As obras, quase todas, divergiam -- e não apenas pelo suporte - não só dos melhores valores e tendências contemporâneos, apesar de ser difícil detectar tendências e valores nítidos neste final de século, ao contrário de seu princípio, como divergiam muito entre si, fiquei pensando se os expositores não haveriam se unido sob aquele rótulo apenas por terem sido rejeitados pelo mercado, galerias e salões7.

Martins, apesar de ser apenas um crítico teatral, não se furta a avaliar de maneira impiedosa e cruel as obras expostas. Neste momento Martins desenvolve sua idéia de que artistas são naturalmente pessoas vaidosas, que desejam se expor, principalmente devido à idéia de que a obra de arte é uma realidade verdadeira, uma síntese do real na busca da perfeição. Esse conceito nos pareceu referir-se a Aristóteles. A arte foi criticada por Platão por ser cópia da cópia, já que para o filósofo ateniense este mundo terreno é apenas cópia do mundo das idéias. A arte ficou como um produto inferior, diluído, do mundo das idéias. Já Aristóteles analisa que a criação artística nasce do impulso formativo e da ânsia pela expressão emocional, e está ausente dos animais inferiores. A imitação que o homem inventa busca imitar não o aspecto interno das coisas, mas seu significado profundo, buscando a realidade das coisas. A partir das idéias de Platão, Aristóteles chega a uma conclusão bem mais favorável ao belo e o estético. A mais alta forma de prazer que o homem pode experimentar é a oferecida pelo belo e pelo estético. A catarse nos proporciona que emoções acumuladas em nós sobre pressão das restrições sociais sejam libertadas numa inofensiva peça de teatro.

Martins recebera uma carta de Inês e, tentado, resolvera comparecer ao Centro de Expressão e Vida onde os Divergentes expunham. Os Divergentes, a seu ver, seriam auto-marginalizados e pretensiosos. Outro elemento a ser notado é o caráter subcultural da exposição. Lá encontra o artista plástico Brancatti e Lenita, e vê o quadro do italiano em que o “divergente” utilizara Inês como modelo. Chocado, Martins observa que a obra ilustra sua fantasia do dia anterior, quando levou Inês ao apartamento dela e a viu seminua. Perturbado, troca algumas palavras com Lenita, derruba licor na própria camisa e se retira irritado, tomado por ciúmes de Brancatti.

Martins, remoendo certo rancor de Inês, vai a trabalho para o teatro, escrever sobre a peça Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues. Sua crítica é a seguinte:

É notório que a obra de Nelson, tendo sido ele o único grande dramaturgo nacional, vem sofrendo montagens de todos os tipos através dos tempos no país, em geral equivocadas, por parte de diretores que, incapazes de exprimir as particularidades estéticas e morais do universo rodriguiano, pretendem acrescentar uma visão pessoal quando não adornos a uma dramaturgia contundente e exata, além de freqüentemente entregarem seus personagens a intérpretes sem a vivência e a maturidade necessárias para encarná-los.8

Neste momento Martins anota um fenômeno fácil de ser observado, as interpretações espúrias que Nelson Rodrigues tem sofrido desde sua revalorização no início dos anos 80. Um Crime Delicado em determinados momentos pretende depor a respeito do meio artístico brasileiro, denunciá-lo, apontar algumas de suas características, sua fragilidade e seus defeitos. Neste capítulo, Martins descreve como se envolveu com Maria Luísa, uma atriz exuberante e “televisiva”. Maria Luísa representava o papel de Lúcia em Vestido de Noiva. Martins critica a peça nos seguintes termos:

Mas, para o que interessa aqui, basta dizer que o seu diretor - cujo nome não vejo por que citar agora - fazia as duas jovens atrizes que interpretavam as irmãs Alaíde e Lúcia (sendo que a primeira, na trama, já estava morta) trocarem uma com a outra, em cena, o Vestido de Noiva, ficando nuas no palco por longos momentos, num óbvio sensacionalismo comercial que jamais constou das rubricas do autor. Pelo contrário, toda a carga de dramaticidade e erotismo, contida nesta como em outras peças de Nelson, provém muito mais de sua atmosfera de pecado, dos véus das proibições e convenções, que explodem surdamente. Neste sentido, quase não há lugar em seu teatro para a pornografia ou nudez ostensivas. No máximo, decotes, ligas, combinações, que funcionam como poderosos fetiches.9

Notamos que na peça Vestido de Noiva, duas irmãs disputam o mesmo homem. O que ocorre a seguir é que Martins sai com Maria Luísa para o Café onde estivera com Inês, esperando encontrá-la. A receptividade de Maria Luísa o incomoda. Ele acaba sofrendo também uma frustração sexual, o que o deixa deprimido e na iminência de ser ridicularizado e humilhado em fofocas no meio teatral.

Nas páginas seguintes, Martins escreve uma matéria sobre Vestido de Noiva extremamente elogiosa, para tentar evitar maiores constrangimentos. Ele chama para sua casa uma amiga, ex-jornalista, Maria Clara, e faz amor com ela. Recupera definitivamente a segurança escrevendo a crítica de Albertine, uma peça baseada na obra de Marcel Proust. Como o próprio relato de Martins também é um relato memorialístico de acontecimentos passados, dentre outras coisas, vale a pena anotar um ponto de sua crítica:

Se a liberdade com os cânones literários ocidentais, ou o completo desrespeito a eles, tem sido uma das opções recentes - e algumas vezes saudável - de um certo teatro brasileiro que se quer sempre na linha de frente da inovação e da experimentação, nem sempre sua prática consegue contornar uma encruzilhada cujas vias conduzem, uma, ao formalismo e, a outra, a uma tradição bem brasileira: a de uma tendência vocacional para a farsa, a galhofa, que atinge seu ápice na chanchada, não sendo raro que as duas vias se reencontrem numa mesma criação, como se dava em Albertine.10

Observamos que Antônio Martins tenta ser, além de crítico teatral, um crítico cultural. Deseja extrapolar o meio teatral, comentando sociologia, literatura, artes plásticas. Subentende-se que busca uma visão totalizante do mundo (ainda que em momento nenhum conseguimos dele uma pista de sua ideologia ou posição política). Há indícios também de que sua formação é humanista clássica, é um leitor voraz e sente antipatia da hegemonia dos meios audiovisuais e veículos de comunicação de massa que se estabeleceu dos anos 60 em diante.

Os Divergentes: Martins X Brancatti

A divergência principal entre o crítico e o artista contemporâneo é em torno de valores. A relação Brancatti/Martins ilustra perfeitamente esta tensão. O crítico analisa da seguinte forma a obra do artista:

A uma crítica precipitada, de primeira impressão, bastaria aquela crueza naturalista para se rejeitar o quadro como um figurativismo de terceira categoria, aquém da arte, não subsistisse o fenômeno incômodo e escorregadio de vivermos o final de um século em que as fronteiras dos valores acabaram por se diluir, propiciando que os padrões da subarte, subteatro e subliteratura fosse trazidos à tona e recuperados, de certa forma, por uma intenção de referência, crítica ou não. E não seria lícito falar-se também de uma subcrítica associada a esta subarte?11

Martins, crítico especializado, recorre a uma demarcação de valores para poder exercer seu trabalho. A diluição e o gosto duvidoso lhe incomodam, desagradam. Brancatti, o artista (ou sub-artista) é quem se beneficia com esta diluição, é quem pretende que ela seja eterna e imutável. Brancatti se dirige de certo modo para a valorização do feio e do acintosamente agressivo: a calcinha e o sutiã, além da perna defeituosa e o sexo, representados no quadro, demonstram claramente um desejo de agredir, de mostrar o aberrante, de flertar com a feiúra. É uma característica da arte pós-moderna o abandono do belo, partindo para a busca explícita do feio. A arte do século XX proclamou o fim do realismo, depois do figurativismo, depois até da separação arte/vida. Processo semelhante fez a filosofia contemporânea francesa, que primeiro abandonou o marxismo, depois a história, para chegar finalmente ao cenário atual onde até os conceitos básicos de ‘sujeito’, ‘autoria’ e ‘responsabilidade’ estão em questão; o pensamento pós-estruturalista se permite desconstruir o humanismo, embora já há algum tempo Derrida tenha proclamado que os direitos humanos são indesconstrutíveis. Nasceu também a proposta de uma “literatura menor” (Deleuze). Foucault, um dos pensadores que iniciam este processo, fala do crepúsculo do humanismo e o descreve poeticamente da seguinte maneira:

Como a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente, o homem é uma invenção de data recente. E talvez esteja aproximando-se do fim. Se aquelas disposições viessem a desaparecer tal qual apareceram, se, por algum acontecimento de que podemos quando muito pressentir a possibilidade, mas de que no momento não conhecemos ainda nem a forma nem a promessa, se desvanecessem, como aconteceu, na curva do século XVII com o solo do pensamento clássico - então se pode apostar que o homem desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto desenhado na areia.12

Ao que me parece, não por mera coincidência, o quadro estampado na contracapa de Um Crime Delicado é tema de um ensaio de Foucault, As Palavras e as Coisas. Segundo José Guilherme Merquior, Foucault trata do quadro As Meninas, de Velásquez, para apresentá-lo como um ícone da “elisão do sujeito”. Merquior comenta:

Que dizer de Las Meninas? Para começar, este quadro não tinha este título ao tempo de Velásquez. E seu nome original, ‘A Família’, diz muito sobre o significado verdadeiro de seu sujeito deslocado. É como se Velásquez desejasse prestar uma vibrante homenagem, despida de solenidade, a seus amados soberanos. No centro da cena, iluminada por seus cabelos louros e seu esplêndido traje de seda, ele colocou a infanta Margarida Maria, primogênita do segundo casamento do rei. A meio caminho da escada do fundo, pintou o intendente das tapeçarias da rainha, um primo do pintor, José Velásquez (...). O pintor da corte representa a si próprio numa modéstia digna, trabalhando num retrato do casal real. Como poderia mostrar também este último, sem lhe diminuir a majestade? Por isso, não o faz; satisfaz-se com associar seu parente à homenagem e, acima de tudo, com dar destaque à filha querida dos monarcas, cercada por suas damas de honra, sua aia e seus bufões. (...) Assim, Las Meninas significa menos a ocultação de um sujeito que o respeito por ele. Para Foucault, no entanto, o quadro sintetiza ‘a representação da representação clássica’: um sistema epistêmico em que aquilo em torno do qual gira a representação deve necessariamente permanecer invisível. Velásquez, a infanta e seu séquito acham-se, todos, empenhados em olhar para o rei e a rainha - e estes para eles. O rei só aparece no espelho na medida em que não pertence ao quadro. Seus olhares são recíprocos; seus status, desigual. O casal real é o objeto (sujeito) da representação, porém não pode (nas circunstâncias do quadro) ser ele próprio representado...

Não haveria nenhum denso mistério se Foucault tivesse aceito, como faz a história da arte, que, em última análise, Las Meninas é um auto-retrato de Velásquez, pintado em homenagem ao rei. (...) No fundo, Foucault não está ‘lendo’ Las Meninas; em vez disso, está projetando na tela célebre um importante postulado teórico de seu livro. Que postulado? O axioma de que, na episteme clássica, o sujeito está destinado a fugir à sua própria representação.13

O autor presente em Um Crime Delicado é quem narra toda a história, não do ponto de vista onisciente, mas de um dos protagonistas. Está como Velásquez no quadro Las Meninas. O postulado de Foucault, e não a contestação de Merquior, é o que interessa para entender Um Crime Delicado. O ponto de vista de Antônio Martins é passional, é parcial, ele a todos julga, a todos critica, e encena a própria auto-crítica. Está, como Velásquez, dentro do próprio quadro. A brecha que subsiste é que, a mesma história, contada por outro dos personagens, teria um sabor completamente diverso; e o crítico agressivo, aristocrático e demasiadamente afirmativo provoca reações exaltadas, num tempo em que os parâmetros se esvaziaram e a ética de consumo tomou conta das manifestações artísticas.

O caráter subcultural da exposição dos Divergentes, notado por Antônio Martins, é de novo frisado quando ele analisa a obra de Brancatti. Prosseguindo a reflexão, acredito que os padrões de sub-arte e subcultura não só foram resgatados, como lançados no mainstream do universo cultural, nos países avançados, a partir dos anos 60/70. A valorização do kitsch que demonstravam os tropicalistas é parte desse fenômeno. Os padrões subculturais, levantados como bandeira pelos adeptos da chamada contracultura, eram minoritários e se tornaram hegemônicos.

Um Crime Delicado me parece conter também uma ironia com o meio artístico e cultural brasileiro, e demonstra como ocorrem os embates nesse meio. O escândalo do crítico “vampiro”, e “estuprador”, torna-se também um espetáculo, fenômeno de mídia. Enfim, ocorre o abaixo-assinado dos artistas contra Antônio Martins, e que o próprio Antônio julga interessante por explicitar a idéia do crítico como estuprador da arte.

Um exemplo de como acontecem as polêmicas em nosso meio cultural - e que também se tornou espetáculo de gosto duvidoso - foi a polêmica entre Bruno Tolentino e Augusto de Campos, que ocupou as páginas culturais da imprensa paulistana em setembro de 1994. A discussão teve troca de insultos e teve também um abaixo-assinado dos amigos de Augusto de Campos. Suponho que a maneira que Sérgio Sant’anna apresenta o famigerado “Caso Inês” é inspirada nas páginas culturais de nossos jornais.

Contexto da Ficção Brasileira Contemporânea

A ficção brasileira atual enfrenta o contexto adverso da cultura no país, com sua internacionalização já acelerada. A literatura brasileira desde os seus primórdios teve romances que elaboravam a história de nosso país. Este veio engloba desde Iracema e O Guarani, de José de Alencar, até experimentações arrojadas como Macunaíma, de Mário de Andrade e Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. No entanto, o conceito de nacional hoje está em xeque devido às teorias da desconstrução, e abalado e questionado em seus pressupostos epistemológicos por agressivos movimentos político-sociais. A busca de identidade de grupos minoritários (mulheres, negros, homossexuais, grupos religiosos) implica o julgamento de que as divisões sócio-políticas do Ocidente, junto com as respectivas políticas nacionais, são apontados por eles como responsáveis pela exclusão. Ora, essa teoria é questionável, principalmente porque a “diferença” de que tratam é incomunicável, e a maior parte dos multiculturalistas repudia o híbrido, o mestiço, em prol da apologia de lobbies de minorias que também funcionam como segmentos de um mercado consumidor, encenando o esvaziamento do espaço da cidadania – em seu lugar, surgem as reivindicações dos direitos dos consumidores.

A problemática acima esboçada é essencial para entendermos as questões que surgem nas obras dos porta-vozes dos grupos minoritários, e que estão compondo boa parte da ficção brasileira contemporânea. Estes representantes de minorias, em sua ânsia de engajamento, retomam um tipo de proselitismo político que atropela questões estéticas e comete anacronismos. E estes grupos políticos mostram simpatia pela globalização e pela expansão final do capitalismo, processos triunfantes de nosso tempo, aos quais eles não temem aderir, contando inclusive com o apoio do empresariado multinacional. E, como a problemática das minorias brotou na New Left americana dos anos 60, estes grupos têm os EUA como modelo.

Silviano Santiago diz o seguinte sobre este processo de desconstrução, que para ele é a desconstrução dos conceitos de nacional e de universal:

Como decorrência desse trabalho de desconstrução dos conceitos de nacional e universal, o modo atual, tanto do texto literário quanto da prática política, de representar o real é a fragmentação (...). A primeira certeza que o discurso ficcional perdeu é a de poder, ainda hoje, representar o nacional como identidade (o que, no otimismo reinante na década de 20, foi genialmente feito pelos grandes escritores modernistas, haja vista, por exemplo, as grandes alegorias do Brasil moderno que são o romance Macunaíma, de Mário de Andrade, e a coletânea de poemas Pau-Brasil, de Oswald de Andrade). A segunda certeza que ele perdeu é a de poder narrar uma estória com princípio, meio e fim, cronologicamente (como o faziam decentemente o romance burguês do século XIX, no estilo de Madame Bovary, de Gustave Flaubert, ou ainda o romance da decadência moderno, no estilo de Thomas Mann, ou no estilo ‘ciclo da cana de açúcar’, do paraibano José Lins do Rego).14

O romance de Sérgio Sant’anna parece desejar fugir aos dilemas da literatura culturalista, “engajada com as minorias” e encaixa um tema universal (confronto arte/crítica) no cenário da cidade do Rio de Janeiro, cidade que tantas vezes simboliza o Brasil. Num romance que demonstra influências do romance policial e da narrativa cinematográfica, busca falar de um affair que remete ao estado das artes nacionais e aos processos universais que estão em curso no país. A atenuação do senso crítico, fenômeno que marca o Brasil dos anos 90, é confrontada com a presença de uma personalidade extremamente crítica, e que conseguiu obter um nicho na imprensa escrita. Dessa contradição é que brota o romance: uma individualidade que se contrapõe, por questões geracionais, de classe e de formação, a um meio social anestesiado, que não só permite o não-saber como forma de vida socialmente viável, mas o incentiva e defende com unhas e dentes.

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