sábado, 22 de dezembro de 2007

O Outro Lado do Paraíso: Os Anos Verdes e Amarelos

Monjas lunares/os lírios rezam de mãos postas/pelos cravos degolados/cujas cabeças estão içadas nos chuços das hastes/Escorrendo o sangue das pétalas./ Corusca a lâmina jalde do grande sol carrasco/entre a guarda régia/dos girassóis guerreiros, escamados de ouro./Fremem ao vento os paveses das glicínias. (...) E contra o monstruoso atentado/apenas se ergue na sombra/timidamente/o protesto aromal das violetas.

Jardim Tropical, Menotti del Picchia

Esquecido no panorama da literatura pós-64, a obra do escritor, jornalista, dramaturgo (e atualmente editor) Luiz Fernando Emediato traz claramente as “marcas do que se foi”. Verdes Anos, um de seus contos (no início da década de 80, transformado em filme por Giba Assis Brasil e Carlos Gerbase), inicia-se do seguinte modo: “Em 1970 eu tinha 18 anos, vivia no interior de Minas e considerava o general Emílio Médici um homem sincero e justo”(EMEDIATO, 1984, p.9). O conto trata da descoberta dos drogas e do sexo por um adolescente, no início dos anos 70. Essa relativa liberação se chocou com a brutal polícia da cidade interiorana, que prendeu o rapaz junto com uma menina, no momento em que faziam o “amor livre” nas ruas. A infância do mesmo personagem, relatada em outro conto, o Outro Lado do Paraíso, revelou uma família que balançou em sua função paterna, devido ao fato de que o pai simpatizou com o governo Jango:

--O Jango vai fazer a reforma agrária.

--Ai, meu Deus –mamãe disse, levando a mão à cabeça.(...)

--Quer dizer, então –falou mamãe –que o governo vai tomar todas as terras?

--Papai olhou para mamãe e disse:

--Vai tomar principalmente as do seu pai, aquele velho bruto. Você não sabe o que é a reforma agrária?

--Coisa de comunista –interveio dona Marocas, fechando a cara e fazendo o sinal da cruz (EMEDIATO, 1984, p.28)

Nessa infância, surgiu o balanço da função paterna que caracterizou o personagem Nando vida afora. Para Lacan, o pai é um significante que vem substituir um outro; o pai interdita o corpo da mãe para o filho, obrigando-o a tornar-se um sujeito. O golpe de 64 foi a derrota e desautorização daquele pai. Isso não fica claro no filme de Gerbase e Giba, ambientado no Rio Grande do Sul, mas subentende-se essa ruptura geracional, uma vez que o Rio Grande era muito mais marcado pelo trabalhismo de Vargas/Jango/Brizola, quando do golpe de 64, do que a Minas de Magalhães Pinto e Israel Pinheiro. O personagem Nando, em outro conto ambientado no tempo de Médici, O Despertar da Primavera, observou a cisão politizada entre mãe/pai:

Meu pai estava nervoso, tinha acabado de ler o jornal e discutia com minha mãe por causa de alguma coisa que o irmão dela, prefeito, tinha arrumado na prefeitura. Uma injustiça, dizia meu pai indignado, seu irmão é um ditador selvagem, a história não perdoará seus desmandos. Que é isso, pai, eu disse, ele é só um velho careta, nunca matou ninguém.

--Mas compactua com os assassinos do povo, disse meu pai, gordo e vermelho, e isso não se perdoa. Olhei para o meu pai e tive saudades daquele tempo em que ele andava pelo mundo em busca de aventuras e nós junto, como ciganos. O tempo é cruel e muda as pessoas, pensei com meus pobres botões. (EMEDIATO, 1984, p.52)

No texto acima, foi colocada a crise da autoridade do pai, com a tomada de partido da mãe e da família materna, possivelmente católica e udenista. Abrindo um abismo entre pais e filhos, Nando vivia a revolução dos costumes, sexo, droga e rock and roll, ao mesmo tempo em que aceitava o ufanismo conservador e pró-americano dos generais. Na situação acima, “em virtude da incomunicabilidade da experiência entre gerações diferentes, percebe-se como se tornou impossível dar continuidade linear ao processo de aprimoramento do homem e da sociedade” (SANTIAGO, 1989, p.46). Isso equivale à exclusão do paternalismo como processo conectivo entre gerações; a história não é mais vista enquanto tecendo uma continuidade entre a vivência do mais experiente e a do menos.

O problema maior nos contos de Luiz Fernando Emediato reunidos sob o título de Verdes Anos me parece ser o seguinte: o narrador já está convertido ao combate ao autoritarismo da ditadura militar, mas o personagem Nando vive conformado com o regime:

Quando chegamos no Náutico e o Brazilian Boys estava mandando tudo num rock da pesada, mas antes de começar pedi ao Teco umas bolas e enchi a cara, pois estava mais lerdo que propriamente vivo por causa do fumo (...). A Valdete então encostou sua barriguinha no meu pinto, ficamos ali nos esfregando no meio de toda aquela gente dançando, a luz meio apagada, e então não aguentei: quando ela aumentou os gemidos eu gozei e minhas pernas bambearam (...). Somos mesmo uns vermes, filosofei, espantado com minha capacidade reflexiva. Nada restará de nós no final dos séculos. (EMEDIATO, 1984, p. 56-57)

A contradição mais pungente dos anos 70 no Brasil está presente nesse trecho: um período de repressão convivendo com a maior liberação sexual já ocorrida. Observamos que as questões que movimentaram o Brasil desde o golpe, passando pela abertura até a primeira eleição presidencial em 1989, foram em boa parte neutralizadas na década de 90, mas permanecem ainda mal resolvidas. Ao nosso ver faltou uma referência à televisão, cuja expansão de influência nos anos 70, principalmente entre a juventude, teve um efeito avassalador sobre a cultura brasileira, praticamente subjugada pela programação da telinha.

No filme Meteorango Kid, de André Luiz de Oliveira, ambientado em 1968, e realizado em 1974, reencontramos os mesmos temas da prosa de Emediato: a narrativa focalizando Lula, um jovem de classe média, às voltas com problemas de família, sexo e drogas. Aqui há mais clara discussão política: o rapaz começa por romper com o movimento estudantil da escola. Em casa, almoça descontente com os pais, até que explode, sintomaticamente, depois que a mãe comenta que viajou toda a Europa, mas que como a nossa terrinha não há lugar igual. A ruptura se encena às claras: para matar a mentira cultural da mãe, identificada com o nacionalismo, Lula assume a identidade de Batman, personagem da indústria cultural norte-americana, mata a mãe (e se intitula Batmãe, assimilando o nome da mãe), depois o pai, sem não antes mostrar-lhe um baseado, ao que pai grita desesperado: “delinqüente!” Nesta seqüência, a ruptura do laço conectivo entre gerações não se deu indiretamente, com nos contos de Emediato, mas às claras, com radicalidade.

Há uma seqüência, mais adiante, em que Lula e seus amigos hostilizam um militante que lhes pergunta se eles são da linha chinesa ou soviética. Lula e seus amigos vão para a casa de um deles, fumar um baseado. Enquanto fumam maconha, uma música ao fundo fala de discos voadores. Lula se torna, uma vez drogado, agressivo. Mata um colega numa seqüência violenta, e passa sabão em seus cabelos (?). Aí se estabeleceu uma perniciosa ligação da maconha com a violência, que remete ao moralismo das campanhas anti-drogas do regime militar. Lula também tenta ser cineasta (num lance de metalinguagem) e visita algo como uma estatal do cinema (será o cinema marginal negando a Embrafilme?). Um cineasta com quem ele conversa lhe diz que para ganhar dinheiro, basta colocar “tiro prá diabo, porrada, peito, bunda. Não tem nada a ver esses filmes de arte aí, não”. A receita é a mistura de sexo/violência, perfeitamente adaptada a um neocapitalismo. Lula ouve tudo entediado e sai decepcionado.

Logo depois, ao tentar relaxar, batendo papo com os amigos num terraço, ele não suporta ouvir um gay comentar a novela Beto Rockfeller e humilha publicamente o homossexual, que se suicida. Logo a seguir vemos a cena do velório do homossexual. Lula conversa com o defunto, comentando que teve relações com a irmã do falecido, sempre atirando as cinzas de seu cigarro sobre o corpo inerte. Aí o rapaz demonstra, ao mesmo tempo, homofobia e desgosto com a novela de TV. O desgosto obsessivo de Lula com o Brasil, num desejo subreptício de identificação com os jovens europeus e norte-americanos, pontua o final do filme, em que Lula come uma maçã com catchup enquanto o discurso de Caetano contra os estudantes universitários (quando da apresentação de É Proibido Proibir) faz o fundo sonoro. A cena do encerramento ocorre com Lula de volta na casa da família, que continua viva (ou seja, Lula continua assombrado com a herança familiar). Enquanto Lula emite gritos que ninguém escuta em meio à festa da família para ele, como trilha sonora da cena ouvimos uma canção de Caetano em inglês, The Empty Boat. Como na canção de Caetano, Lula termina vazio, sem saída, retornando a uma família que abomina, como deixa claro mais uma vez nesses últimos instantes do filme. Assim, “Nando” e “Lula” simbolizaram a juventude brasileira na passagem dos anos 60 para os 70, conflituosa e sempre em atrito com o meio que a circunda, por estar vivenciando o momento em que o Brasil sofria violentas transformações.

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