quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

O Futebol e a Cultura Brasileira

O futebol ocupa uma posição na cultura brasileira. E uma posição privilegiada: é o que os brasileiros fazem de melhor aos olhos do mundo.

Um país como a França tem uma relação com a filosofia muito interessante se comparada com a relação da cultura brasileira com o futebol. Filósofos como Roland Barthes e J-P. Sartre são “tão franceses quanto o croissant”. Um jogador como Pelé é igualmente tão brasileiro quanto o samba, e nos representa frente ao mundo. Só que a população francesa tem acesso a livros e em filósofos como Barthes e Sartre o próprio povo francês se reconhece.

A relação dos intelectuais com o futebol no Brasil já foi melhor. Coelho Neto, escritor da zona sul e fundador do Fluminense, “tinha uma visão olímpica do futebol. Comparava os arredores do campo do Fluminense à Grécia: a rua Farani eram as termópilas, a rua do Roso era a planície de Salamina, onde Temístocles derrotou os citas...A fé, que engrandecia os gregos, era o football, coisa de fortes, escolhidos, guerreiros e jovens atléticos-não fora criado para os esquálidos suburbanos de cor indefinida. Para estes, pedia o serviço militar obrigatório.”

Nossa primeira polêmica intelectual sobre o futebol foi essa de Lima Barreto contra Coelho Neto, de pretos suburbanos contra brancos ricos. Barreto compreendeu que as oligarquias iriam usar a bola como o “ópio do povo”. Não aceitava o nome “futebol”, por ser oriundo do inglês football e preferia chamá-lo de bolapé.

A discussão sobre o futebol não se polarizou desta forma século vinte afora; houve algumas intervenções esporádicas, como a de Nelson Rodrigues, que disse que nenhum dos personagens da literatura brasileira sabia bater um mísero corner. José Lins do Rego, porém, escreveu todo um romance sobre um craque do futebol que vê sua carreira entrar em decadência (Água-Mãe). Como diz Edilberto Coutinho:

“Essa ‘força maior’ de José Lins do Rego, certamente foi alimentada no contato direto com o povo, que nunca deixou de manter. ‘Vou ao futebol e sofro como um pobre-diabo’. Nesta sua frase, muitas vezes repetida, está todo o seu brasileirismo e mais, uma síntese de sua completa integração ao ambiente carioca e com o povo da cidade do Rio de Janeiro. Sobretudo porque a causa maior de seu ‘sofrimento’ eram as campanhas do Flamengo (...) Sua comunicação com o público, por outro lado, se fez mais incisiva, no Rio, pois voltou à prática assídua do jornalismo, com as crônicas para O Globo-‘Conversa de Lotação’-lidas, por vezes, nas viagens que se fazia nesses transportes coletivos (que deixaram de circular no governo de Carlos Lacerda) e escrevendo em O Jornal e Jornal dos Sports. Aos domingos, quase sempre acompanhado de seu amigo e editor, José Olympio Pereira, não perdia o espetáculo do futebol. Principalmente se era o espetáculo do Flamengo. Nos jornais, tanto se podia ver a sua fotografia num grupo de intelectuais, como entre jogadores rubro-negros, festejando com os rapazes com os rapazes as vitórias ou dividindo com eles as tristezas da derrota. Desempenhou cargo de direção no Clube de Regatas do Flamengo e no Conselho Nacional de Desportos, acompanhando várias delegações brasileiras de futebol ao exterior. (...) Da aproximação de José Lins com o ambiente esportivo, resultou, em proveito da literatura, (...) um romance em que ele narra a história de um craque, sua grandeza e suas misérias, seu esplendor e sua decadência.”

Fernando Gabeira expressa uma opinião diferente em seu Diário da Salvação do Mundo:

“(...) Antes da saída para o exílio, pensava nisso e admitia que os brasileiros mitigavam o desejo de participar de um todo maior, através das grandes torcidas de futebol. Era um espaço de transcendência. Mas limitado sob muitos aspectos: as torcidas não captavam mais do que um traço de união, a preferência pelo mesmo clube, e, além do mais, se faziam umas em oposição às outras, nos grandes estádios.”

Gabeira nos fornece uma visão crítica: se por um lado admite haver transcendência, encontra por outro traços insuficientes unindo cada grupo e ocorre a oposição entre as torcidas, que às vezes tem terminado em violência. Joel Rufino dos Santos (autor do livro A História Política do Futebol Brasileiro, incluído na bibliografia deste artigo) no entanto, analisa que os jornais começaram a falar de violência no futebol há muito tempo desde que a plebe passou a se tornar admiradora do ‘esporte bretão’.

Na revista Leia de Junho/1990 foi publicada a matéria “O Futebol na Palavra Escrita”. Lia-se à página 24:

“As polêmicas na esfera da pelota são muitas, tanto entre ficcionistas quanto entre estudiosos do tema. Oswald de Andrade, avesso à modalidade, e José Lins do Rego(flamengista doente) chegaram à agressão nas páginas dos jornais”. Dizia Oswald:

“Quem negará ao futebol esse condão da catarse circense com que os velhos sabidos de Roma lambuzavam o pão triste das massas? Esse novo ópio, enviado para cá(...)pelos amáveis civilizadores saídos do conúbio imperialista”.

Graciliano Ramos colocou-se entre os inimigos do esporte, profetizando ainda em 1921:

“Pensa-se em introduzir o futebol, nesta terra.

É uma lembrança que, certamente, será bem recebida pelo público, que, de ordinário, adora as novidades. Vai ser, por algum tempo, a mania, a maluqueira, a idéia fixa de muita gente. Com exceção, talvez, de um ou outro tísico, completamente impossibilitado de aplicar o mais insignificante pontapé a uma bola de borracha, vai haver por aí uma excitação, um furor dos demônios, um entusiasmo de fogo de palha capaz de durar bem um mês. (...)

Mas por que o futebol?

Não seria, porventura, melhor exercita-se a mocidade em jogos nacionais, sem mescla de estrangeirismo, o murro, o cacete, a faca de ponta, por exemplo?

Não é que me repugne a introdução de coisas exóticas entre nós. Mas gosto de indagar se elas serão assimiláveis ou não.

No caso afirmativo, seja muito bem-vinda a instituição alheia, fecundemo-la, arranjemos nela um filho híbrido que possa viver cá em casa. De outro modo, resignemo-nos às broncas tradições dos sertanejos e dos matutos. Ora, parece-me que o futebol não se adapta a estas boas paragens do cangaço. É roupa de empréstimo, que não nos serve.

Para um costume intruso possa estabelecer-se definitivamente em um país, é necessário que se harmonize com a índole do povo que o vai receber, mas que o lugar a ocupar não esteja tomado por outro mais antigo, de cunho indígena. É preciso, pois, que vá preencher uma lacuna, como diz o chavão. (...)

O futebol não pega, tenham a certeza. Não vale o argumento de que ele tem ganho terreno nas capitais de importância. Não confundamos. (...)

Estrangeirices não entram facilmente na terra do espinho. O futebol, o boxe, o turfe, nada pega.

Desenvolvam os músculos, rapazes, ganhem força, desempenem a coluna vertebral. Mas não é necessário ir longe, em procura de esquisitices que têm nomes que vocês nem sabem pronunciar.

Reabilitem os esportes regionais, que aí estão abandonados: a porrete, o cachação, a queda de braço, a corrida a pé, tão útil a um cidadão que se dedica ao arriscado ofício de furtar galinhas, a pega de bois, o salto, a cavalhada, e, melhor que tudo, o camba-pé, a rasteira.

A rasteira! Este, sim, é o esporte nacional por excelência!

Todos nós vivemos mais ou menos a atirar rasteira uns nos outros. Logo na aula primária habituamo-nos a apelar para as pernas quando nos falta a confiança no cérebro-e a rasteira nos salva. Na vida prática, é claro que aumenta a natural tendência que possuímos para nos utilizarmos eficientemente da canela. No comércio, na indústria, nas letras e nas artes, no jornalismo, no teatro, nas cavações, a rasteira triunfa.

Cultivem a rasteira, amigos!

E se algum de vocês tiver vocação para a política, então sim, é a certeza plena de vencer com o auxílio dela. É aí que ela culmina. Não há político que a não pratique. Desde s. ex.a o senhor presidente da república até o mais pançudo e beócio coronel da roça, desses que usam sapatos de trança, bochechas moles e espadagão da Guarda Nacional, todos os salvadores da pátria têm a habilidade de arrastar o pé no momento oportuno.

Muito útil, sim senhor.

Dediquem-se à rasteira, rapazes.”

Continuo citando a Revista Leia:

“Nas voltas irônicas da história, muitos estudiosos de hoje vêem nas posições de Oswald e Graciliano um ressentimento da intelligentzia nacional, que pretendia igualar-se à da metrópole européia pela caneta e não pelas chuteiras.(...)A paixão popular, por seu lado, deu o apito final que escalou o futebol na posição de tema literário, longe das futricas de gabinete. Assim, a emoção das torcidas, o linguajar de jogadores e técnicos, os pênaltis e os gols passaram a alimentar contos, crônicas e romances. Um bom e delicioso exemplo é ‘Corinthians 2 X Palestra 1’, que Alcântara Machado registra em Brás, Bexiga e Barra Funda.

Entre os autores que incursionaram nessa área, estão ainda Nélson Rodrigues, João Cabral de Mello Neto, Orígenes Lessa, Vinícius de Moraes, entre os muitos. Uma obra recente, digna de nota, é Sonata da última Cidade-Romance de São Paulo, do gaúcho/paulistano Renato Modernell, prêmio Jabuti de melhor romance de 1989. Modernell utilizou deliberadamente o futebol, as copas e seus heróis para demarcar épocas e prender a atenção do leitor.(...)

O ensaísta e crítico literário Anatol Rosenfeld levantou a bola dos principais temas de debate, em O Futebol no Brasil, publicado na Alemanha, em 1956, e só traduzido e editado aqui em 1974, na falecida revista Argumento. Rosenfeld narra a saga do esporte bretão no país, desde sua importação pelas elites até chegar às várzeas. Culmina com números sobre volume de jogos, torcedores e bilheterias do ano. A análise de Rosenfeld, que já recuperava os laços da negritude no nosso futebol, levantados por Gilberto Freyre, em Sociologia, foi aprofundada depois com novos eixos. O enfoque político, o antropológico e o psicanalítico são os principais.

É a partir de 1970, com tricampeonato no México, que aumenta ‘o medo do intelectual diante do gol’. O governo Médici militarizou o futebol dentro e fora dos estádios, criando o Estatuto do Atleta Convocado (que impunha o corte militar aos jogadores e proibia declarações políticas) e criou o ufanismo do ‘Pra Frente Brasil’. Atribui-se ao clima da euforia nacional parte da impunidade e do silêncio à repressão política, seus torturados e mortos. ‘Médici, no auge da ditadura, dava 80 no Ibope. Uma goleada’, anota o sociólogo José Esmeraldo Gonçalves. ‘A tese de que o futebol atenua as crises políticas e sociais é falsa. Fosse assim, Mussolini, que ganhou duas copas (34 e 38) não teria tido o fim que teve’, contesta o ex-técnico e jornalista João Saldanha. Aqui no Brasil há o exemplo de Jango, que era o presidente em 1962 quando o país venceu a Copa e nem por isso foi poupado do golpe de 64 e de ser o único presidente brasileiro a morrer no exílio.

O psicanalista junguiano Carlos Byington analisa o futebol a partir de duas mandalas rituais: a do gramado, inserida no estádio. A vivência ritualizada na mandala do estádio acompanharia o torcedor para além do jogo. ‘Os que vêem o futebol como ópio popular querem reduzir uma expressão cultural a outras. Essa análise é retrógrada. O símbolo (futebol) deve ser analisado diretamente com o todo e não com um segmento específico, como economia ou política, que tem seus símbolos próprios.’ Byington afirma que o futebol é revolucionário, pois substituiu o padrão patriarcal nos jogos de massa, no qual os embates eram individuais e o oponente acabava morto. Ele cita, em seu estudo, um caso histórico interessante: ‘Numa guerra entre Inglaterra e Escócia, em 1297, os soldados desobedeceram o comando e resolveram a guerra num jogo de futebol’. A base revolucionária do esporte, além de ser grupal e não letal, estaria ainda em ser praticado pelos pés, liberando o lado animal do homem contra o seu lado racional (representado pela parte superior do corpo), uma prática contrária às modalidades militares de interesse do Estado. O futebol, diz Byington, foi fortemente reprimido na Inglaterra do século quatorze ao dezesseis.

Encerro esta transcrição de trechos da hoje extinta Leia com o seguinte comentário do jornalista e escritor Renato Modernell, apaixonado por futebol:‘Qualquer forma de expressão cultural pode ser manipulada por governos. Até há alguns anos, os países desenvolvidos recebiam nossa seleção como se fosse o Balé Bolshoi ou a sinfônica de Nova Iorque. Não acredito que vamos desprezar isso. Eu posso até admitir que quem não torce esteja sendo mais lúcido. Mas no meu caso seria me privar de mais um prazer, num país onde há cada vez menos prazer em se viver.’ ”

Como diz Ivan Cavalcanti Proença, em seu livro Futebol e Palavra:

“Poderíamos convocar todo um time, entre veteranos e novos, composto de pessoas sensíveis, ases da intelligentsia brasileira, só para mostrar as relações de fecunda intimidade entre a vanguarda de nossa intelectualidade e o esporte dito das multidões. Aliás, isto constitui uma tradição que vem desde os tempos de Coelho Neto, que foi sócio fundador do Fluminense.”

São ligados ao tema os seguintes livros:

Sobre O Jogador:

-Infância (Macelo Miranda: O Sol Escuro)

-Ascensão (José Lins do Rego: Àgua-Mãe).

-Genialidade (Carlos Drummond de Andrade: Cadeira de Balanço).

-Ruína (Oduvaldo Vianna Filho: Chapetuba Futebol Clube)

Outros, sobre:

-O Técnico (João Saldanha: Os Subterrâneos do Futebol)

-O Clube (Paulo Mendes Campos: Homenzinho na Ventania)

-A Bola (Marques Rebelo: O Espelho Partido)

-O Pênalti (Antônio de Alcântara Machado: Brás, Bexiga e Barra Funda).

-O Gol (Mário Filho: O Romance do Futebol).

-A Goleada (Mário de Andrade: Gol de letra, organizada por Milton Pedrosa).

-O Juiz (José Condé: Gol de Letra, organizada por Milton Pedrosa).

Sobre o torcedor:

-Paixão (Mário Filho: O Romance do Futebol)

-Fanatismo (Nílson Rodrigues: A Falecida)

-Morte (Dias da Costa: De Tarde e Domingo)

-Belle-époque (Marques Rebelo: O Espelho Partido. Refere-se aos líricos e domésticos estadinhos de partidas domingueiras).

Bibliografia:

-Revista Leia, 1989

-Futebol e Palavra, Ivan Cavalcanti Proença-História Política do Futebol Brasileiro, Joel Rufino dos Santos

-Linhas Tortas, Graciliano Ramos

-O Diário da Salvação do Mundo, Fernando Gabeira

-O Romance da Cana de Açúcar, Edilberto Coutinho

Um comentário:

kk monte disse...

simplesmente show de bola!!!