“Uma porrada”, foi como Paulo César Sarraceni descreveu esse livro em Por Dentro do Cinema Novo: Minha Viagem :“Todos esperavam a chegada do Dotô, que, junto com João Coelho Neto, o Preguinho, filho do escritor Coelho Neto, bancava e orientava aqueles vários times vencedores dos últimos cinco anos, de 1946 a 1951. O Dotô, que chegava da Europa, era o escritor Octavio de Faria, romancista da Tragédia Burguesa, romance cíclico que prometia: quinze volumes. O dobro de Proust. Além do mais, Octavio era crítico de cinema e fundara o Chaplin Club e a primeira revista de crítica de cinema do Brasil. E isto no tempo do cinema mudo! No campo, ninguém sabia que eu sabia das coisas. Naquele tempo eu lia escondido. Somente com o Ghigia eu falava de cinema e arte. Minha emoção era diferente da dos demais jogadores, pois eu tinha lido o primeiro volume da Tragédia Burguesa, Mundos Mortos, livro que eu tinha achado de ler na casa do tio Rui. Vi o nome de Octavio de Faria, peguei o livro e não larguei mais. Foi uma porrada, quase tão forte como uma outra que eu tomei mais tarde, em 1954, em São Paulo, vendo o filme Greed (Ouro e Maldição), de Stroheim”.
Posso dizer que Mundos Mortos foi um romance que li da primeira vez recuperando uma formação católica; tempos depois, resolvi relê-lo com uma ótica ateísta, certo de que não ficaria pedra sobre pedra. Espanto. Os personagens fincavam pé, não queriam voltar para o tinteiro, de onde nasceram. Mesmo sob a luz perversa de um sol negro, mesmo depenados em suas possibilidades angelicais, suas bocas de papel estavam repletas de sentimentos, não se calavam nunca, nunca. E os sentimentos é que são históricos. Mesmo que eu arrancasse o Deus-tomada que os potencializava, no escuro da minha memória eles permaneciam como se fossem peixes dentro do aquário da noite. Dou como exemplo um trecho: “Agora, era diferente. Queria a continuação do que tivera, e não aquilo (...). Aos primeiros carinhos de Lina, sucedera o contacto mais forte de sua carne com a outra carne, amiga e dócil. Vira-se subitamente transportado, precipitado em regiões de cuja existência nunca suspeitara. Atirara-se cegamente a esse mundo. Estaria sonhando, delirando? Estaria realmente sendo precipitado, de abismo em abismo, entre chispas de fogo, rios caudalosos e estrelas que caíam dos céus fragorosamente, carregando-o como se estivesse pregado a elas? (...) Quando dera acordo de si, estava tranqüilamente estendido ao lado do corpo de Lina, quase adormecido, uma cortina de nuvens muito tênues separando-o de tudo mais (...). Antes, cem vezes, continuar ali, descansando, separado de tudo por aquela cortina de nuvens leves. A tristeza, no entanto, era que as nuvens já estavam desfazendo por si mesmas. Era preciso voltar ao mundo, retomar o seu lugar na sala de Mme. Ninon”.
No romance, os temas mais embaraçosos são abordados: iniciação sexual no prostíbulo; com empregadas; ciúme e traição entre amigos adolescentes; atração pelo mesmo sexo; dilaceramento do protagonista Ivo entre a namorada e as prostitutas. Esses temas, que habitualmente via tratados com grossura, ou demasiado velados, ganhavam em Mundos Mortos uma dimensão sagrada, profunda e etérea. E o encontro com aquele livro vivo me encheu de vontade de arrancar da sordidez da vida, lapidar, no meu cotidiano vulgar, uma poesia daquele quilate.
Enfim, esse é um livro que me tocou, que pretendo reler vida afora, e acho que pode falar a outros, como falou a mim, de nosso abismo, que está aí, aberto. Enfim, creio que, se o texto para mim é inesquecível, é possível que também o seja para outros.
Um comentário:
Obrigado pela resenha de "Mundos Mortos". Pretendo ler também e ser 'nocauteado'... rs.
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