Um observatório da imprensa para a cidade de Bom Despacho e os arquivos do blog Penetrália
sábado, 29 de maio de 2010
Rebecca no Trem Fantasma
Conheci Rebecca na abertura duma exposição: ela era a estrela da festa, embora seus quadros não estivessem expostos. Talvez devesse ter mantido distância dela. Foi ela quem se insinuou, meiga, quase esvoaçante:
- Está gostando?
- Acho que está muito eclético.
- O curador é péssimo. Foi ligando para as pessoas, deixando os artistas trazerem o que quisessem...Para uma exposição que pretendia mostrar os artistas dos anos 80 e 90...Vocês mineiros têm dificuldades em fazer escolhas.
- Talvez precisemos de mais existencialismo aqui em BH.
- Ah, quem sabe.
Eu pretendia testar a moça e extrair dela maiores informações.
- Tem trabalhos seus aí?
Ela me olhou espantada. Com um tom mais arrogante, respondeu:
- Não...Vou expor um quadro meu na semana que vem...
Eu julgava que aquela moça tinha um sotaque que me parecia familiar.
- Você é de Belo Horizonte?
- Não, sou do triângulo.
- E não se considera mineira?
- Não, nós somos um outro estado.
- Verdade? Disse eu, irônico, carregando no “r”.
Ela pareceu impaciente, e mudou de assunto:
- Estou também trabalhando com vídeo.
- Gosta de cinema?
- Não, quero fazer videoarte.
- Como é seu nome?
- Rebecca Matos, artista plástica.
- Eu sou Arcanjo, jornalista e trabalho no jornal O Debate.
Isso não intimidou Rebecca. Ela foi logo ao assunto:
- Estou fazendo um vídeo.
- E daí?
Não sei porque topei, mas logo eu estava andando pela cidade afora no automóvel de Rebecca. Eu senti um certo fascínio por aquela mulher madura, vestida à européia, cabelos com corte chanel. O sotaque do interior mineiro, por outro lado, me irritava. O ar em torno de Rebecca era carregado, como se ela drenasse energia. Isso me incomodava e me dava vontade de falar, falar coisas.
- Sabe, Rebecca, não sou crítico porra nenhuma.
- Como assim?
- Sou jornalista, mas trabalho na seção policial.
- Nossa, nunca leio...
- E o que você lê.
- Ah, eu sou mística.
A minha fala, a respeito de suas leituras, era intencionalmente agressiva. Eu queria ferir com palavras: havia Lauro Trevisan e Richard Bach no porta-luvas do carro.
- Está aprendendo a usar o poder infinito da sua mente?
- Como?
Silenciei por longos momentos. Ela dirigia dispersa, eu temia um acidente.
-Basta negar seus problemas e eles sumirão.
Rebecca soltou a frase de repente. As palavras me pareceram pombos saindo da cartola.
- Isso é irracionalismo.
E foi a vez de Rebecca se calar. Estávamos chegando ao parque. Eu não quis revelar minha atividade no jornal O Debate. Aliás, O Debate era um tigre de papel, vivia decadente, dependendo de verbas da Assembléia Legislativa para se manter. E eu conseguira um trabalho: ligava para as casas das pessoas pegando os dados dos falecidos. Fazia a seção de óbitos. Era bem pior do que a seção policial.
- Eu costumava jogar cartas.
- Verdade?
Esta palavra, dita por ela sem sotaque e sem ironia, ganhava um sentido insuspeitado: Rebecca acreditava em mim.
- Só de brincadeira...Ganhei do meu tio um livro místico. Falava de celtas, druidas, essas coisas. E junto veio um baralho.
- Ah, Arcanjo, eu acho que acredito em tudo...Nossas almas, elas vieram de outros planetas. Existiu um planeta chamado Antares, e as almas dos habitantes vieram penar aqui, neste vale de lágrimas.
Devido a meu nome, Rebecca passou a achar que eu era religioso. Começamos a fazer as imagens de seu videoarte. Eu tinha sugerido um parque de diversões bem afastado, pobre e mambembe.
Começamos: eram ingênuas, naïf, exageradas, mas eram cenas que mostravam algo entre a cultura popular e a cultura de massa. Tinham algo de destroços de um mundo antigo, fósseis de uma pureza que calava fundo. A primeira tomada foi no trem-fantasma, um caixão se abria, exibindo um esqueleto que se levantava. Lá dentro, mesmo na penumbra, pude ver uma gata e sua ninhada de gatinhos. O estofo vermelho e convidativo a trouxera até ali. O cenário era um cemitério nevoento, com árvores esgalhadas ao redor. Outros esqueletos se erguiam, mortos-vivos, numa dança macabra em homenagem àquele que renascia. A gata miava pungente. Aquilo doía, sei lá por quê.
A seguir veio uma teia, contendo uma aranha negra enorme. O quadro pintado ao fundo insinuava que a aranha estava próxima a uma casa tranqüila, uma casa de campo. A aranha tremia na teia de plástico. Suas patas e o corpo tinham a aparência da aranha-caranguejeira, paradoxalmente, uma aranha não-venenosa. Seria essa aranha um símbolo da genitália feminina? Os criadores do trem-fantasma não deviam conhecer Freud - e deviam temer igualmente aranhas, comunistas e cobras.
Um macaco gigantesco, inspirado em King-Kong, era a imagem seguinte. Rebecca teve medo e eu tive de fazer a maior parte das tomadas. Os olhos do símio se tornavam vermelhos quando o trem estava ligado. Naquele filme antigo, o macaco era nitidamente masculino, e seqüestrava uma mulher bonita. Julguei que a criatura do trem-fantasma era um austrolopitecus fallicus. O olho do animal enchia a tela; a cena em que ele estava encaixado fazia com que pudéssemos vê-lo na semi-escuridão, com leves tons de vermelho a tingir-lhe a cabeçona que se erguia do chão. A imagem, vista de relance, emergia de algum lugar do cérebro e não de um brinquedo de parque infantil.
Decidimos terminar por ali as imagens. Eu e Rebecca nos despedimos, e eu lhe dei meu endereço e telefone.
- Em breve uma obra minha entrará em exposição no Palácio das Artes. Quero ter ver no coquetel, disse ela.
Esta última afirmação me passou desapercebida, e fora feita de maneira enérgica. Eu resmunguei qualquer coisa e deixei-a no ponto de ônibus. Ela me deu um beijo bem próximo da boca, segundos antes de chegar aquele bólido vermelho:
- A gente se vê.
Dias depois, recebi um pequeno desenho, emoldurado em papel bege. Tinha uma mensagem escrita a caneta no verso, com uma letrinha miúda e escorreita:
Anjo:
Penso que, se com minha arte eu puder trazer alegria à nós, filhos de Deus, este é meu dever. Amo este mundo, acho que este mundo é lindo e cheio das coisas de Nosso Senhor e às vezes estou alegre, às vezes triste. Estes momentos de solidão são parte da vida e não devemos reclamar. Estou esperando você, quero que vá ver a exposição que inauguro no próximo dia 13. Não se importa que eu o chame de “anjo”, somente? Tomara que não...
Beijos carinhosos da Rebecca
BH, inverno de 1997
Do outro lado, havia um desenho do viaduto da Lagoinha. Era um singelo desenho com tinta guache, mas anunciava mais do que um flerte com a pintura abstrata, arte que para mim não merece muito mais consideração do que quaisquer rabiscos infantis. No desenho o viaduto se desmilingüia numa névoa cinza e alaranjada. O viaduto em si se tornava, no quadro, uma espécie de rio gelatinoso cercado de palitos ameaçadores e sombrios. Afastei a ilustração com desprezo e tédio.
Dias depois, entrei no Palácio das Artes, disposto a ver a obra de Rebecca. Tropecei num carrinho de supermercado que estava sendo exposto. Continha grama e torrões de terra. “A verdadeira instalação é o mundo”, pensei, me lembrando dos catálogos da Bienal de São Paulo.
- Quero ver a face feminina de Deus.
Minha amiga Rebecca começou a me revelar com mais profundidade seus conhecimentos místicos. Eu ouvia tudo silencioso, complacente:
- Sempre quando estou pensando em algo prejudicial, coloco a unha do indicador no polegar e aperto até machucar, até que este pensamento passe.
- Fale mais sobre a deusa com a qual você quer se encontrar...
- Não é deusa. É Deus. As grandes religiões, o judaísmo, o islamismo e o cristianismo têm sacerdotes homens. Os homens impõem os dogmas.
Silenciei de novo. Eu ouvia tudo como quem ouve uma confissão. Rebecca usava uma camiseta onde se lia I love New York e tênis puídos.
- Olhe aquela obra ali. Chama-se O Círculo de Giz Caucasiano.
Olhei naquela parede, sem disfarçar minha preguiça e displicência. Vi ali um quadro onde um círculo fora traçado com pinceladas violentas, com tinta vermelho-hemoglobina, sobre um fundo branco. Em cima do círculo pintado, Rebecca havia pregado outro círculo, este de arame, e que ultrapassava os limites da tela. Aquele quadro me pareceu ilustrar uma ausência completa de regras e limites que devia fazer parte da personalidade de Rebecca. Desviei o olhar para outra obra, uns molhos de macarrão mofados que jaziam em cima de prateleiras. Observando meu desinteresse, Rebecca sentiu-se atingida:
- Há três tipos de amor, Eros, Philos e Ágape. Se vocês jovens puderem fugir da hipocrisia do amor que tinha a geração passada, poderão usufruir do Eros bom. O Eros é o amor carnal, o Philos é a amizade, e Ágape é o amor destruidor, devorador.
Dada a diferença de idade existente entre mim e Rebecca, senti que se dizia de uma outra geração. Ela já revelara que fora hippie e desbundara alegremente nos frenetic dancin’ days.
- Não quer me levar até lá em casa?
Finalmente, Rebecca fez a pergunta lancinante. Logo que subi ao apartamento, um novo convite sucedeu o primeiro:
- Não quer ficar para um vinho?
Após várias taças, nos deitamos no sofá para ouvir seus discos de canto gregoriano. O estado eufórico provocado pelo álcool me fez bolinar Rebecca, ela logo estava se abrindo toda. Insisti para que ela desligasse o som e apagasse a luz, mas Rebecca estava já obcecada com a comunicação não-verbal do sexo. Deitou-se e misturamos nossos doces quentes.
Na manhã seguinte me despedi de Rebecca e peguei um táxi até o centro da cidade. Ela tentou me segurar mais tempo, mas me sentia cansado, exausto, e a sensação, além de física, era espiritual. Quando o táxi passou diante do lugar onde estivemos no dia anterior, decidi descer, pois meu dinheiro não dava para finalizar a viagem. O passeio em frente ao Palácio das Artes se fez fantástico: senti que havia um mistério na Grande Galeria, um mistério que levantava agora o véu para que eu o pudesse contemplar. Num piscar de olhos eu estava diante do quadro que eu vira na noite anterior, o Círculo, e o chão me fugia aos pés. Aquele círculo vermelho era um útero aberto, sangrento, um berço esplêndido, o círculo de arame representava o corpo carnal e efêmero, e a imagem do útero resplandecia, o grande mistério ali repousava mas não se entregava a mim nem assim, escancarado, fingido, representado. Eu me vi na pele de um César que abria a barriga da mãe e encontrava, assombrado, uma lufada de vento quente ali trancada.
Fugi assustado, com as roupas empapando de suor, perambulei como um zumbi pelas ruas do centro da cidade, meu corpo funcionava no piloto automático. Somente depois de chegar ao meu apartamento me acalmei, e me dei conta de que vivera aqueles últimos instantes como as formigas da minha infância, as formigas saúvas das quais eu arrancava a cabeça, e restava delas o corpo tremendo, mexendo as patas sem sentido, andando para lugar algum, sem remédio.
segunda-feira, 19 de outubro de 2009
Tudo azulzim...
http://tudoazulzim.blogspot.com/
E um texto que a dona do blog, professora, me pediu:
NOTAS SOBRE O TEATRO DE GERALD THOMAS: UMA DESCIDA NO MAELSTROM
Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior
RESUMO
Esse texto busca analisar a trilogia do encenador Gerald Thomas iniciada com Rainha Mentira (Queen Liar), Terra em Trânsito e, no ano de 2008, enriquecida pela blognovela O cão que atacava mulheres: Kepler, the dog, além de Bate-Man, monólogo escrito para Marcelo Olinto. O texto analisa a virada autoral de Thomas, que passa a partir desses textos a fazer relatos marcadamente autorais, senão autobiográficos, como mais uma forma de cultivar a sua assinatura enquanto autor, mais próximo, segundo ele, do cinema de Glauber Rocha do que realizam, no teatro, os chamados diretores teatrais, um título que Thomas desconsidera e julga figurativo. A partir do texto original da blognovela, escrito por Gerald em seu blog, desvendamos um pouco de seu processo criativo: ao encenar a peça, Gerald Thomas substituiu um texto mais lúdico e coloquial, ligado ao cotidiano, por imagens derivadas do inconsciente inspiradas nos símbolos que criava Beckett.
Palavras-chave: dramaturgia, Terra em Trânsito, Queen Liar, Kepler, Gerald Thomas, blognovela, teatro, Ópera Seca, pós-modernismo
ABSTRACT
This text analyzes the works of the encenador Gerald Thomas initiated with Rainha Mentira (Queen Liar), Land in Transit and, in the year of 2008, his blog´s soap opera named The dog that attacked women: Kepler, the dog. The text analyzes the authorial turn of Thomas, who pass from drama director from authorial and autobiographical dramasas as a form to cultivate its signature while author, next according to it of the cinema of Glauber Rocha of what of they carry through it, in the theater, his teatrical managing calls, a heading that Thomas disrespects and judges figurative. From the original text of blog´s soap opera, congregated in his blog,this work unmasks a little of his creative process: at the moment where it was staged, Gerald Thomas substituted a text more ordinary and playful for images derived from the unconscious one inhaled in the symbols that Beckett created.
Key-words: Land in Transit, Queen Liar, Kepler, Gerald Thomas, blognovela, theater, Dry Opera, post-modernism
INTRODUÇÃO
O início dos anos 80 foi o momento em que o Brasil reconheceu o talento de encenador de Gerald Thomas. O contexto em que sua peça Quatro Vezes Beckett fez sucesso era de redemocratização e abandono das preocupações políticas dos anos 70. A partir de então, transformou-se o contexto em que boa parte dos diretores e dramaturgos brasileiros tinham sido primordialmente brechtianos, mas vivia-se um momento em que Brecht foi perdendo, paulatinamente, sua influência.
Essa pesquisa visa estudar e verificar uma importante mudança ocorrida na carreira do encenador Gerald Thomas desde meados dos anos 2000: Gerald decidiu não mais encenar textos de outros autores, esforçando-se agora por encenar e redigir sua própria dramaturgia. A primeira experiência dessa nova fase foram as peças Terra em Trânsito e Rainha Mentira (Queen Liar). Ele se aproxima, portanto, do traço autoral de um Glauber Rocha, que sempre escrevia e dirigia seus filmes, tendo todos eles a sua marca, sua assinatura autoral e muitas vezes, como em Idade da Terra, sua presença física e voz propriamente ditas.
Nos anos 90, o crítico David George Thomas já considerava Thomas como mais do que um diretor e sim um encenador surgido a partir de uma visão original das obras de Beckett nos anos 80. É comum nas peças de Thomas a interferência da própria voz do encenador. Por exemplo, em Queen Liar, a narrativa autobiográfica apresenta constantemente a voz do encenador que faz intervenções narrativas. Essa voz narrava, por exemplo, que a personagem da avó se assemelhava a uma personagem do pintor Otto Dix (expressionista alemão que protestou contra guerra pintando os mutilados e mortos). Já Terra em Trânsito, que Gerald considera a mesma peça, refere-se claramente a Terra em Transe, filme de Glauber Rocha: cita-se, por exemplo, o apaixonado por ópera Paulo Francis, enquanto Terra em Transe era o epitáfio do jornalista e poeta ficcional Paulo Martins. Em Terra em Trânsito, uma cantora de ópera se vê presa em seu camarim e entra num processo de enlouquecimento enquanto escuta um discurso reacionário Francis no rádio e desespera-se enquanto alimenta um ganso para fazer foie gras. Trata-se de uma oscilação freqüente na obra de Gerald Thomas e que talvez seja o drama do artista contemporâneo: ele oscila entre um ceticismo neopositivista (“nada prova nada”) e o desespero ultra-romântico (a diva em crise na carreira, Hamlet/Paulo Martins).
Recentemente, em 2008, Thomas realizou mais uma peça que continua essa trilogia iniciada com Terra em Trânsito: a peça O cão que atacava mulheres, Kepler, the dog, inspirada numa blognovela realizada por Gerald Thomas juntamente com os participantes de seu blog no provedor Ig, internet gratuita. Nela, um cão de nome Kepler perambula entre um cenário de pesadelo que, dentre muitos outros personagens, vê imagens que fazem lembrar as torturas nas bases norte-americanas de Abu Ghraib e Guantánamo, assim como um executivo suicida, a busca do Santo Graal, etc. O cão (Fabiana Gigli) está na coleira do personagem do executivo (Duda Mendonça), mas faz referência à imagem, muito recorrente na mídia, da militar norte-americana no Iraque trazendo um prisioneiro iraquiano na coleira, imagem associada a uma mulher dominadora da imagética sadomasoquista, a dominatrix. A dramaturgia de Thomas possui, portanto, referência a um universo de referências muito particular e caro ao autor: Living Theatre, Stoppard, Orwell, Kafka, Kantor, Duchamp, Haroldo de Campos, Oswald de Andrade, às montagens do próprio Gerald Thomas, entre outros.
Gerald Thomas é um enigma, mas não um enigma vazio, como alguns querem que seja a arte contemporânea. Para o crítico norte-americano David George, Gerald realiza uma antropofagia wagneriana. Enquanto isso, no Brasil, devido à sua posição polêmica dentro do teatro brasileiro, é acusado de fazer imperialismo cultural. David George estabelece uma linha de influências para Gerald Thomas no Brasil: José Celso Martinez Corrêa e Antunes Filho, assim como a dramaturgia de Nelson Rodrigues, em homenagem a quem Thomas dirigiu uma peça chamada “Asfaltaram o Beijo”. Ele seria o principal divulgador do pós-modernismo no teatro brasileiro. Mas Thomas vai bem além e é um agitador cultural que exerce muito bem o seu talento para o jornalismo, diferente da tendência de Beckett para escrever poemas e prosa mais extensa. Thomas, por sua vez, é show man: atua como colunista em veículos como Ig, Folha Ilustrada, comentarista no prestigiado programa de TV Manhattan Connection, etc.
2 DE BECKETT A KEPLER
Gerald Thomas começou como seguidor de Beckett e com ele ainda possui muito em comum. Em primeiro, ele surge de uma revisão de Brecht e do teatro político, que terminava não alcançando as camadas populares a quem dirigia seu discurso. Além dessa inabilidade de chegar às camadas populares, e diretamente associada a ela, uma outra dificuldade tem caracterizado uma considerável parcela do teatro dito político: a predominância do compromisso didático em detrimento das preocupações estéticas. Isto é, um desequilíbrio entre conteúdo e forma. Apesar de Brecht enfatizar por diversas vezes em seus escritos teóricos que o teatro engajado não precisaria, nem deveria, excluir o caráter de diversão próprio a essa arte, muitos dos seus seguidores incorreram nesse erro e construíram espetáculos sisudos, excessivamente intelectualizados e de pouco apelo para o grande público. Como explica o encenador Gerald Thomas:
Pouco foi dito sobre isso, mas o efeito de distanciamento, de esfriamento, de racionalização e de didatismo sobre uma arte que é, essencialmente, fabulesca e metafórica começou como uma saudável doença de alerta e acabou por se tornar seu vírus mais fatal (THOMAS apud GUINSBURG et al FERNANDES, 1996, p. 37).
Diante desses impasses, em um mundo pós-muro de Berlin, o teatro político tem sido impelido a redimensionar seus objetivos e suas práticas. O próprio trabalho de Boal evidencia uma busca por um novo posicionamento teórico. Quando comparado ao Teatro político de Piscator, por exemplo, percebe-se que no Teatro do Oprimido já não há um enfoque explícito na questão da luta de classes. A "revolução" de que fala Boal pode também significar uma radical modificação interna do indivíduo-espectador. É a partir da necessidade desse tipo de modificação e da dificuldade em obtê-la é que está o traço que podemos notar em Beckett e Thomas.
Para explicar Thomas, tratemos de Beckett. Em The Rhetoric of Fiction, Wayne Booth utilizou, numa edição revista, a novela Company de Beckett como exemplo de sua teoria do autor implícito, aplicando-a em uma narrativa contemporânea. Como definir Beckett e aquilo que pode ter influenciado Thomas? Tomemos as palavras de Peter Brook:
Talvez a escrita mais intensa e pessoal de nosso tempo venha de Samuel Beckett. As peças de Beckett são símbolos no sentido exato da palavra. Um símbolo falso é mole e vago; um símbolo verdadeiro é duro e claro. Quando dizemos “simbólico” frequentemente queremos dizer enfadonhamente obscuro; já um símbolo verdadeiro é específico, é a única forma de expor uma certa verdade. Os dois homens esperando ao lado de uma árvore seca, o homem gravando a si próprio em fitas, os dois homens escravos de uma torre, a mulher enterrada na areia até a cintura, os pais em latas de lixo, as três cabeças nos vasos: essas são invenções puras, imagens frescas, agudamente definidas – e funcionam no palco como objetos. São máquinas teatrais. As pessoas sorriem delas, mas elas ficam firmes: são à prova de crítica. Não chegaremos a lugar nenhum se esperamos que elas nos sejam explicadas, entretanto cada uma tem uma relação conosco que não podemos negar. Se o aceitamos, o símbolo nos provoca uma grande e pensativa exclamação (BROOK, 1970, p. 57).
Assim como em Company não é preciso explicar de onde vem a voz que sugere ao personagem que imagine, Gerald busca símbolos que não precisem ser explicados nem entendidos racionalmente e sim imagens que falem direto ao inconsciente, símbolos tais como Beckett fazia: e símbolos duros. São símbolos poderosos presentes nas peças recentes de Thomas: em Queen Liar, a figura distorcida da avó que era como um personagem de Otto Dix, a cantora de ópera em crise e seu ganso em vias de virar foie gras, um cão em forma de mulher que diz um texto filosófico enquanto defeca no chão.
Os pontos em comum entre Gerald Thomas e Samuel Beckett ficam mais claros quando se avalia alguns pontos da análise de Wayne Booth a respeito da novela Company. Em alguns momentos, é como se ele estivesse falando da blognovela que ora estamos estudando. O texto de Beckett é um “texto para nada”. Essa forma de limitar artificialmente as palavras imaginadas para fazer um quebra-cabeças minimalista é presente nas peças de Thomas e de Beckett. Para se ter uma idéia, Company inicia-se com a enigmática frase: “Uma voz chega para alguém no escuro. Imagine” (BECKETT apud BOOTH, 1983, p. 445). Tanto o mestre quanto o herdeiro tratam da falta de sentido do mundo. O mundo, em seus textos, é predestinado a ser sentido, e o recurso de escrever sobre ele, “para ter companhia”, está destinado ao fracasso insignificante, produzindo não mais do que falência supérflua e miséria. Ambos buscam estabelecer um equilíbrio delicado entre criar situações que complexas e que geram perplexidade, mas que não são tão confusas ao ponto de não despertarem a curiosidade e demandarem uma interpretação.
3 A VOZ AUTORAL EM KEPLER, O CÃO QUE ATACAVA MULHERES
Gerald Thomas foi uma voz autoral desde o início de sua carreira. Sua interpretação das peças de Beckett já tinha uma assinatura própria. “Julian Beck morreu durante uma voz que ele ouviu, gravada por ele mesmo e ouvida por ele próprio” (THOMAS, 2008), referência em off que entra com a voz de Gerald Thomas quando o personagem de Duda Mamberti está em cena na peça O cão que atacava mulheres: Kepler, the dog e que refere-se à montagem de um texto que Beckett escreveu para Julian Beck quando este já era paciente terminal de câncer (All Strange Away e The Time). O texto em off, surgido devido a exigências extra-artísticas em Nova York, onde, para se apresentar uma peça é preciso depositar pagar um valor vultoso para o ator a título de seguro, encarecendo a peça e obrigando o diretor a ter a voz do ator ao invés de tê-lo presente, passou a ser usado de forma muito inovado como recurso anti-realista por Thomas, num lance verdadeiramente antropofágico, revertendo o desfavorável em favorável e fazendo da voz em off um de suas marcas autorais mais importantes.
Tanto nas peças que ele escreve quanto nos textos que dirige, Thomas busca acionar uma simbólica profunda, vinda do inconsciente, criando símbolos e imagens fortes como os que estão presentes na obra de Samuel Beckett. Quando Thomas surgiu, o Brasil vivia um momento onde se buscava novos caminhos para a dramaturgia. A problemática coletiva dava lugar às questões individuais. O trabalho de Thomas não se filia nem a Brecht nem a Stanislavski, nem segue ortodoxamente os métodos nem de um nem de outro. Thomas recusa tanto o método épico-didático de Brecht (não transmite conteúdos socialistas, prefere polemizar com a esquerda) quanto o método de Stanislavski, que segundo ele não seria apropriado para o teatro (pois o teatro exigiria principalmente projeção de voz), adequando-se melhor ao cinema (a propósito, ele cita o Actor´s Studio, estúdio norte-americano que aplicou amplamente em Hollywood o método do russo, ajudando a criar atores tais como Marlon Brando). Marcelo Alcântara comentou a respeito na revista A Bacante:
(...) Muitas das características do que se vê na tela são facilmente relacionáveis ao nome e à obra de Thomas - uma montagem textocêntrica e sem linearidade, entrecortada por milhares de assuntos, embalada por imagens construídas com rigor, muita fumaça, jogos de luzes e narração em off dublando personagens em cena. Nada disso é novidade, mas aqui há muito mais do que a tradicional relação forma/conteúdo: ganha força também o fator meio (nã-não, não o centro, tô falando do medium por onde o espetáculo é transmitido) - e as influências que esse meio impõe à forma do que é produzido (...). Mas diferente dos roteiros escritos por Samuel Beckett para a TV, por exemplo, Kepler, The Dog visto pela mediação da tela do monitor não passa de um espetáculo concebido para o palco - ainda que sua realização visasse a transmissão pela rede. Por mais que tenha surgido a partir da internet e só faça sentido considerando este fato, o primeiro capítulo da blognovela de Gerald Thomas ainda é teatro filmado, com toda a importância que o registro da efemeridade do palco pode ter, mas também com toda a precariedade e ingenuidade de câmeras que tentam dar conta de captar o todo de forma documental e com pouco diálogo com o meio a que a obra se destina (vale ressaltar que a busca por atores via internet, por meio do envio de vídeos, dialoga muito mais com o meio do que o próprio resultado final). Para os próximos episódios desta blognovela, fica a expectativa de que além da inspiração na atividade colaborativa, haja maiores apropriações (e por que não questionamentos e subversões?) da tecnologia como forma de transformação (e não apenas reprodução/propagação) da produção teatral - além da torcida para que o produto final transmitido pelos precários serviços de banda larga brasileiros seja minimamente estimulante a quem não está num teatro escuro cheio de fumaça (e cujos focos de atenção não estão condicionados a seguir os movimentos de luz e som que ocorrem em cena) (ALCANTARA, 2008).
Divergimos da crítica acima no seguinte ponto: a blognovela foi concebida primeiramente como texto literário, somente depois foi encenada, de maneira totalmente repensada, pela Companhia Ópera Seca e pensado simultaneamente para ser encenado no palco e transmitido pela internet. Diz Mau Fonseca a respeito do “teatrocinema da blognovela”, quase como se estivesse respondendo às críticas acima elencadas por Marcelo Alcântara:
O teatro visto por uma tela pequena de computador sujeito às entropias da exibição intra-pessoal (algo que não seja pessoalmente) é como a comunicação diária no blog. Todos são íntimos distantes, sujeitados a uma entropia diária - a mensagem é verdadeira, mas os formatos criados (os nicknames e as técnicas) dentro do blog são falsescas, tal como na produção cinematográfica. Então, por associação, o blog é como o cinema também, mesmo parecendo absurdo. A encenação da peça ao vivo, como num ensaio, era teatro apenas pra quem estava na platéia, o cenário, elenco, a fumaça, a interação e o peso dos corpos e sons. Ao público em casa, era também uma peça teatralizada porque não houvera montagem anterior, seguia-se obviamente um roteiro, mas a montagem era ao vivo (o plen-air impressionista) - portanto teatro. E a criação foi com base teatral, Gerald é homem do teatro, e sua cia. faz parte do universo teatral. Nossa visão se deslocava na tela do computador procurando pontos focais, sendo que em determinados momentos a tela se escurecia, um corte cinematográfico e teatral. É o teatrocinema ou nenhum dos dois...de repente não é uma coisa ou outra, é apenas uma obra audiovisual, como uma vídeo arte ou "Performance Body Art" que poderia ser reproduzida em paredes de museus ou encostas de morros, laterais de prédios, projetada por grandes projetores interferindo na paisagem, o que aumentaria a percepção e ao mesmo tempo provocaria outras interferências perceptivas em relação ao tema. Afinal, as idéias ou conceitos eram mais importantes que o formato, o que deveria ser relevante era a mensagem. E foi justamente a mensagem que prevaleceu e sendo assim funcionou, não importando quão complexa a linguagem. Quando no cinema o diretor filma várias tomadas da mesma atriz, de costa, perfil, diagonal, de cima, com mão no joelho, no cabelo, boca entraberta, etc e etc, busca-se o excesso da imagem e o detalhismo para construção rica na tela grande. O teatro funciona melhor no minimalismo pra causar a impressão, ao mesmo tempo que limpa a imagem deixando o objeto exposto de forma nua (...). Há ganhos e perdas, seja qual for o meio, a importância de renovar é relevante. Vivemos uma época que se pode pensar - tudo já foi criado e não nos sobrou espaços para mais nada. A ousadia não foi repelida e nossa capacidade talvez ainda exista. Tem que se quebrar espelhos sem medo das pragas do azar e fuçar os escombros do mundo arruinado (FONSECA, 2008).
A blognovela seria, portanto, um gênero híbrido entre a literatura, o teatro e o cinema. Diferente do que Alcântara supôs, Gerald pensou a peça não só como teatro, até porque ele define o que faz como cinema para o palco, assumindo a influência de Glauber Rocha.
Embora conhecido como diretor, recentemente Thomas decidiu que seria preciso dirigir e encenar somente seus próprios relatos para garantir sua assinatura própria. Thomas leva bastante a sério esse direcionamento em seu trabalho: embora tenha de fato recolhido as falas e comentários dos freqüentadores do blog para realizar a blognovela, ao encená-la preferiu uma outra solução: homenagear os mais fiéis freqüentadores do blog através da citação de seus nomes em cena, o que de fato ocorreu, e não utilizar literalmente suas palavras e falas no texto, que foi praticamente todo alterado. Do texto original da blognovela, Thomas manteve a idéia da figura de um travesti, símbolo da ambivalência e da androginia. Um exemplo do texto original:
Gerald: Bom, eu queria reunir todos vocês aqui pra tentar encenar….
(sou interrompido)
Fabio:…Gérald,…?!..Que tal falar da Dóroty Stang, Chico Mendes, o Joãzinho trinta, o “almirante” negro da revolta da chibata, o madãme satã, o dom Élder Cãmara,o Antônio Conselheiro……..!!!!!! Tem tãnto brasileiro BOM e PÓBRE, esquecido ……! Claro que o Mandela e o Bill são legais….! Mas eles não precisam de fãma ou espaço, eles já Os TEM, E MUITO..!..São RECONHECIDOS EM VIDA..! isso é muito legal. Os que CITEI, SE FUUUUUderam em VIDA E NINGUÉM TÁ NEM AÍ COM ELES..!(desculpe o palavrão)
Gerald: Peraí Fabio, calma. Eu nem falei ainda sobre o que trata esse espetáculo! Além do quê tudo já foi escrito sobre Dorothy Stang, Chico Mendes virou filme com Raul Julia e Dom Helder Câmara foi uma das pessoas mais conhecidas e reconhecidas de sua época. Mas estou aqui pra tentar montar uma peça inédita que escrevi pra vocês, do Blog. É uma espécie de remontagem de um espetáculo…. (sou interrompido de novo e vejo que o Vamp esta atacando fisicamente o Fabio). (...). Obs: todos estão mudos no espaço de ensaio. Mau Fonseca tentava dizer alguma coisa tipo “a humanidade é horrivel” mas murmurava, ninguém o ouvia. Sandra tentava socorrer o coitado do Fabio que já flutuava a mais de 30 cm de altura do chão e estava sangrando. Eu me escondia, covarde que sou, atrás da única pilastra de concreto que havia no espaço (...).
Gerald - Cacá, tudo bem, tá ótimo. Justo o que você falou aí, muito justo. Mas eu estou aqui com vocês pra remontar o espetáculo M.O.R.T.E (movimentos obsessivos e redundantes pra tanta estética - aquele que o Haroldo de Campos montou uma tese em cima e que viajou o mundo)….lembram? Nao lembram? Bem foi em 1990 e a segunda versão foi em 1991. Não lembram. É, falta cultura à essa falta de cultura. Falta memória a essa falta de memória!
Gerald – Mas Fabio, eu já disse que…..
Vamp: se voce falar mais uma palavra com esse Fabio eu saio por aquela porta ali e nao volto nunca mais!
Gerald - Mas Vamp…..
Vamp: NUNCA MAIS entendeu? NUNCA MAIS!!!!
(ouve-se uma porta batendo, a luz desce em resistencia e Fabio sussurra: “poxa, perdi meu melhor amigo.. eh a MORTE!)
Fim do Capitulo 1 de uma longa novela da blogosfera! (THOMAS, 2008).
No texto da blognovela, Thomas valorizava a oralidade da fala cotidiana, os assuntos do momento, agindo como se estivesse realmente dirigindo uma peça, refletindo, pensando alto e revendo momentos de sua própria trajetória. Ao transpor a blognovela para o palco, reduziu significativamente o texto, refazendo-o para que ele pudesse trazer referências a dilemas fáusticos sobre a relação, presente no trabalho de Thomas, entre o poder e a arte, tal como o seguinte fragmento: “Não é o que vocês estão pensando. De alguma forma, é o que vocês estão pensando. De alguma forma, o que vocês estão vendo é isto. O que vocês estão vendo confirma o que vocês estão pensando” (THOMAS, 2008).
A essa altura pode-se ver pessoas dependuradas de cabeça para baixo, com um chapéu panamá pendurado no alto de seus corpos pendentes. O chapéu panamá refere-se a um quadro de Magritte e ao trabalho de Reinaldo Azevedo, jornalista e blogueiro da revista Veja e com quem Gerald Thomas polemizou, mas conseguiu reverter a antipatia inicial, travando com ele relações de amizade, numa peripécia que muito abalou os seguidores de ambos na internet, tendo todos entrado em guerra e realizado a paz juntamente com seus “mentores”. Reinaldo Azevedo possui uma relação de oposição radical ao governo Lula, no que existem confluências com a rebeldia anárquica e oposicionista proposta por Thomas. Azevedo, no entanto, alimenta-se da crescente impopularidade do governo Lula entre parte das elites e da classe média, devendo a esse governo boa parte de sua repercussão. E ele concorda, por exemplo, que o governo Lula deve manter sua política econômica. As relações entre Reinaldo Azevedo e o governo Lula fazem lembrar a tragédia Lacerda/Getúlio, inclusive possuem algo que podemos chamar de um resquício de uma dialética. Gerald Thomas diferencia-se de Azevedo por sua posição liberal em relação a costumes, especialmente no que se trata de ecologia e liberdade sexual. Para além dessa discussão, a revista Bacante referiu-se à blognovela como “teatro filmado” e descartou-a como inferior a trabalhos como Quádos, de Beckett (como uma forma de evitar a verve polêmica de Gerald: afinal, ele não se diria melhor do que Beckett, deve ter pensado Marcelo Alcântara). No entanto, Kepler vai bem além de um teatro filmado como habitualmente se faz na televisão brasileira e é teatro agudamente experimental, fazendo jus às influências recebidas de Beckett: é um espetáculo que marca pela sobriedade e despojamento minimal e cujo claro e escuro permanece em nossas mentes. Escreveu Alberto Guzik a respeito de Kepler, the Dog:
É muito poderoso o novo trabalho de Gerald Thomas, "o cão que insultava as mulheres, Kepler, the dog". Vi ontem e ainda está girando na minha cabeça. as imagens, a força das idéias. tudo muito simples, muito despojado, e extremamente requintado. Não parece o gerald capaz de inventar máquinas cênicas complicadíssimas. Este gerald está interessado em explorar o palco nu, a caixa cênica desventrada, sem nenhuma moldura que a enfeite. O resultado é magnífico porque sofre o impacto da visão de mundo lúcida e arguta do encenador. Fabiana gugli está esplêndida, cada vez mais precisa e senhora do palco. E também brilham Duda Mamberti e Pancho Capeletti, dominam a cena com extrema segurança. Mas é das idéias do espetáculo que se precisa falar (...) (GUZIK, 2008).
Na primeira versão da blognovela, o próprio Thomas era, ao mesmo tempo, diretor e ator: ele falava como um dos demais personagens e atuava de fato como um diretor dos demais, sendo partícipe da narrativa, mas resguardando-se a posição daquele que determina a direção que a narrativa deveria tomar. Era uma espécie de “Deus intra machina”. A decisão de antropofagizar até mesmo os comentários dos leitores e trazer à luz imagens que são, como dizia Freud, unmheimlich, ou seja, ex-estranhas, foi a decisão de Gerald tomou para unificar e manter sua assinatura própria, seu gesto e escritura autoral. Rui Filho associou a peça à problemática fundamental da identidade (que ligaremos, aqui, com a de autor e autoria):
Tentar diagnosticar nossa identidade, já seria um desafio imensurável. Tratar o diagnóstico, então, pelo prisma da arte, associando esta ao poder, torna a abordagem ainda mais complexa. Tudo inicia na exposição de corpos dependurados. Escolha anunciada do próprio criador. “Porque eu coloquei ali” (...). Como responder, então, o paradoxo entre “a arte tem a cara do poder” e “o poder tem a cara da arte”? O que parece ser a mesma coisa, expõe uma problemática crucial para chegarmos a tal da identidade. Na primeira questão, a arte é colocada como artifício, instrumento de determinação de uma ordem pela subjetividade da estética; na segunda, o poder se fantasia de subjetividade para esconder sua manipulação. Mas nem tão distantes estão. Equilibram-se na existência do próprio homem como fruto responsável por ambas, já que tanto arte quanto o poder são atributos da necessidade humana de superar o meio, seja ele simbólico (e portanto cultural e natural, entendendo que a origem etimológica das duas palavras são a mesma) ou político. E é esse homem, essa figura, transformada em mulher, que vemos surgir da figura do cão. Se deus é o criador de tudo e todos, então a mulher é responsável pela continuidade da vida. É ela igualmente criadora. A humanidade se configura, portanto, na existência da criação como instrumento de adoração do criador. Adoração exposta em desejo ao próprio corpo, como o strip-tease do ator (metáfora da necessidade de abdicarmos de nossas máscaras sociais para nos reencontrarmos puros e originais), como a idolatria ao inacessível, ao inquestionável, ao que cala, representado pelo Santo Graal (face existencial de criador supremo) (FILHO, 2008).
Vale a pena registrar um ponto importante: o fato da dramaturgia ancorar no “autor”, em se tratando de Thomas, não é garantia de não-decifração. O autor mesmo possui diferentes falas conforme o momento. Em algumas situações ele é “O Rebelde Revolucionário do Teatro Carioca”, em outras ele é “Conservador Realista Norte-americano”, em outras ele fala alemão, inglês, francês. Thomas parece vivenciar, enquanto autor, a dissolução do sujeito de que trataram Nietzsche e Foucault.
A virada autoral de Thomas talvez tenha se dado no momento da grande polêmica gerada por Tristão em Isolda em 2003. Naquele momento, o gesto do autor de protestar diante das vaias da audiência foi extensamente noticiado, assumindo maior importância até do que o debate – que deveria acontecer – sobre a montagem. Na montagem, os elementos que surgiam por associação livre adquiriam maior relevância que a narrativa clássica. Podemos dizer que Gerald Thomas é pós-modernista no sentido em que Fredric Jameson analisou essas formas culturais de origem norte-americana em seu livro A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio: o pós-modernismo surge como uma aceitação e valorização do momento presente, representando, portanto, um abandono praticamente total das utopias da modernidade. Por isso em seu Tristão e Isolda aparece Freud cheirando cocaína, junto a desfiles de moda, etc. A modernidade (Freud, Wagner) foi ali problematizada e, em boa parte, desconstruída. Sua direção foi entendida no Brasil, muitas vezes, como provocação hermética “chata” ou “pretensiosa”, assim como proclamação do vale-tudo nas artes, o que é um grande equívoco.
Minha hipótese é que, a partir da enorme repercussão do gesto autoral ao final de Tristão e Isolda, Thomas tenha decidido tecer sua obra a partir da autobiografia e dos gestos autorais conscientes. O gesto de protesto do encenador em Tristão e Isolda resultou em um processo para Gerald Thomas, processo ao qual ele respondeu politizando os ataques aos quais foi submetido: a era Lula, do tão esperado governo “de esquerda”, favorecia uma nova censura e acusações de elitismo contra ele. O processo acabou arquivado, mas suponho que, mais do que a visão da queda das Torres Gêmeas em 2001, seja esse fato que pode fazer o papel de navio que nos pode guiar para o maelstrom (redemoinho) que é a obra de Gerald Thomas.
Para uma melhor compreensão dessa obra multifacetada é preciso ouvir a voz do autor. Mas esse é um dos enigmas de Thomas: o próprio autor se define como um significante tantalizado, ou seja: o Holandês Voador. Ele assume uma identidade multinacional, não desejando representar a arte de nenhum país, a não ser, quem sabe, a América mestiça e de muitas vozes. Ele é anfótero: conforme o meio, ele assume o papel de ácido ou de base.
Como comentou o crítico Alberto Guzik, em Kepler Gerald Thomas deixou limpa a cena, deixando a “máquina cênica” quase nua, ele que já elaborou complicadas máquinas cênicas tal como em Carmen com Filtro. Essa clareza cênica não implica a ausência de alguns estilemas que celebrizaram o encenador: a voz em off do encenador que substituiu a voz de um ator que está em cena (Duda Mamberti), o texto oscilando entre a simplicidade e o hermetismo, a iluminação que faz sobressaltar o jogo do claro e escuro, as referências eruditas (Susan Sontag), misturando-se às de massa (Led Zeppelin) e às artes plásticas (Magritte), assim como uma reflexão sobre o poder. A reflexão fáustica sobre o poder é muito presente na obra de Gerald Thomas e ele mesmo assume que não dissocia política e estética, tal como Jameson teoriza em A Lógica Cultural do Pós-Modernismo: a superestrutura, no capitalismo tardio, perdeu boa parte da autonomia anterior.
4 A VOZ AUTORAL EM BATE MAN: O AUTOR COMO ISCA DE SI MESMO
Bate-Man, espetáculo mais recente de Gerald Thomas, revê, com precisas variações, questões que tratamos acima. Nessa peça o autor reflete sobre os processos que fazem sua arte através da apropriação de seu próprio trabalho e de suas criações passadas. Iconoclasta por vocação e desejo, era de se esperar que, em algum momento, fosse ao extremo de si mesmo para se recompor. Muitas são as referências paralelas a montagens recentes. As garrafas vazias (Ventriloqüist), o chão estéril de terra (Nowhere Man), as caixas e o encontro com os segredos históricos metaforizados em seus conteúdos de restos humanos (Circo de Rins e Fígados), o desfile de moda (Nietzsche x Wagner), o porão como lugar não-identificável (O Príncipe de Copacabana), os remédios e vitaminas (Terra em Trânsito), o corpo dependurado pelos pés (O Cão que Insultava Mulheres, Kepler, the Dog). Com paciência, papel e caneta chegaríamos a mais tantas outras. E o que isso quer dizer? Assim como assinala o argumento de Bate Man – o homem isca –, Gerald se fisga num panteão simbólico por ele criado, na última década, onde a construção de vocabulário particular identifica autoria e destreza. Poucos são, verdadeiramente, os artistas a constituírem um discurso preciso e particular, mesmo entre os bons artistas. Quase sempre nos defrontamos com apropriações circunstanciais, estímulos produtificados de alfabetos comuns e gerais. Gerald, não. Faz do palco e cena a expressão de um complexo sistema de metáforas organizadas a partir de percepções próprias dos fatos históricos, reavaliando suas origens através de provocativas reinterpretações sígnicas. O autor, mais do que tudo, conserva os valores deturpando qualquer possibilidade de estagnação histórica, levando os fatos e circunstância a constituírem um elaborado jogo de origens e conseqüências, como que nos avisando de haver muito mais no ontem na constituição do agora. Nessa perspectiva, por que deveria ele abrir mão de si mesmo? Bate Man argumenta, portanto, a favor do autor determinando sua particularidade e individualidade, tanto estética quanto argumentativa, em um panteão contemporâneo estéril de pessoalidades e olhares originais.
As garrafas de vinho tinto espalhadas pela cena oferecem ao espectador a possibilidade de contextualizar-se à história. E não qualquer história. A que nos torna piores do que desejamos ser. São vinhos originados em sangue humano produzidos durante a ascensão e queda do Terceiro Reich. Mas não devemos nos limitar ao tal período. A guerra hitlerista é outra vez argumento simbólico. Gerald fala de todas, identificando o horror inerente ao espectro maior do Holocausto. Assim, o homem isca, retorna à sua função de traduzir o coletivo, a face comum que nos identifica, num jogo metafórico digno de Charles S. Peirce e semioticistas de plantão. Está na guerra a maior atrocidade humana, o princípio destruidor que nos iguala e distancia, paradoxalmente. E Gerald, insistente sobre isso, vem tramando, sucessivamente, espetáculos cujo foco primordial é compreender em que momento desse paradoxo tombamos ao distanciamento. Se por um lado, o teatro reserva a comunhão dionisíaca, por outro, o discurso que se pretende questionador desagrada ouvidos. Gerald se utiliza da artimanha do humor, ou melhor, do ridículo para nos aprisionar interessados. Na construção de circunstâncias absurdas, revela o mais próximo de nossas idiossincrasias. O patético em ser humano. E a culpa histórica e religiosa configurada no absurdo da surdez autista. Um homem banha-se e serve-se voluptuosamente de vinho de sangue humano decorrente de guerras, assassinatos e atrocidades históricas. E rimos disso sem perceber que abrimos diariamente as mesmas garrafas, embriagados que estamos pelas manipulações. Enquanto nos distanciamos do ontem, na perspectiva errônea do novo, prostituímo-nos ao silenciar de toda e qualquer responsabilidade por nossos atos. Sim, nossos. Não o do indivíduo, mas de toda a humanidade. Somos, assim, iscas de um teatro ainda pior, maior, orwelliano. Nas guerras encenadas de Gerald Thomas, a humanidade é culpada por omissão, e em Bate Man, o homem devaneia embriagado pela crueldade da consciência. Como o homem de Dostoiévski, em Notas do Subterrâneo, o de Gerald opta por permanecer isolado, porém bêbado, travestido de estética e futilidade, conduzido ao sofrimento de Prometeu pelo exercício da reflexão.
Gerald exercita um saboroso monólogo sobre o silêncio, apoiado na consistência da trilha de Patrick Grant e das alongadas notas de guitarra. Não há como suprir a voz calada, nem mesmo como calar o som estridente e persistente. Bate Man mostra que estamos afundados em nossas ausências. E nada mais coerente, então, do que o autor, encenador, cenógrafo e iluminador, buscar socorro em si mesmo. O mundo se tornara excessivamente absurdo. E beber sangue humano não me parece nada além de uma possibilidade futura dentre as demais.
Gerald Thomas propõe trocadilhos para além das palavras em seu Bate Man, em cartaz do Espaço Sesc, em Copacabana, como se a ação, ou inação, do homem submetido ao “banho de vinho tinto de sangue” fizesse parte do jogo das inevitabilidades do nosso tempo. O indivíduo, torturado pela banalidade da violência, transformado numa peça de carne pendurada numa exposição de atrocidades, se esvai pelas frestas de uma realidade de sentidos duplos e aparências enganosas, que o imobiliza e atrai a sua perplexidade. Vejamos uma passagem do texto:
(Vira de costas e toma mais banho de vinho.
Murmura pra si mesmo.)
Sabe que… eu acho nunca vi….
Sinceramente.
Eu vou dizer uma coisa para vocês…
Ai…
Sinceramente.
Ai….
(pigarreia algumas vezes, como se preparando para falar.
Murmurando.)
Acho que….
Eu nunca achei que agradar a Burguesia seria desperdiçar aquilo, aquilo que eles acreditam ter de melhor. E agora? Que eu fiz tudo isso aqui.
Qual será a próxima?
(tempo, pensando.
Conclui.)
Um banho de caviar?
Banho de caviar.
(olha para baixo e vê caixas de caviar.
Encontra caixas de caviar.
Se assusta com a surpresa.)
Ahhh (...).
E OLHA QUE LOUCURA ESSA AGORA!
MEU DEUS DO CÉU.
Roupas FASHION!
Não posso acreditar.
Um John Galiano direto da próxima coleção de verão!
WOW!
(entra música. Bate Man se veste e começa a desfilar) (THOMAS, 2008).
Portanto, o que resta a esse homem, bêbedo do real, mas que desconhece as razões para o que vive, encharcado de incoerência e de culpa. No teatro de meias verdades ou de mentiras cínicas, interpreta o papel do bufão ensangüentado que bebe vinhos de safras incontornáveis e participa, como foi visto acima, de patético desfile de moda, numa antropofágica deglutição da imensa solidão do silêncio dos tempos.
Nas metáforas da existência na atualidade, Gerald Thomas não abandona as citações, a busca de representar o momento com fatos do passado, de reinterpretar significados e reverberar a imobilidade ruidosa. A escrita cênica de Gerald Thomas capta a intensidade com que expõe as suas próprias dúvidas e inflexiona a arte contemporânea. A capacidade de criar identidade visual para suas montagens permite que o autor, diretor e cenógrafo deixe, a cada espetáculo, a sua marca também na ambientação. Em Bate Man, a semi-arena coberta de areia, com caixas de vinho espalhadas pelo chão e um simulacro de palco ao fundo, cuja cortina se abre para desvendar atrocidades, confirma a sua mão firme para o desenho da cena.
CONCLUSÃO
A obra de Gerald Thomas é uma obra de signos em rotação. Concluímos aqui que entrou numa rotação ainda mais intensa recentemente, acelerando o seu maelstrom de referências. O “turning point” da obra, supomos, foi o gesto autoral de protesto em Tristão e Isolda. O resultado foi a guinada para relatos intensamente autorais ou até mesmo autobiográficos que realizou o autor em Terra em Trânsito e Rainha Mentira (Queen Liar). Analisamos também, brevemente, a blognovela O cão que atacava mulheres ou: Kepler, the dog, considerada por Gerald Thomas como continuação da trilogia iniciada em Terra em Trânsito e Rainha Mentira. A blognovela passou por uma transformação entre o seu formato original no blog e a encenação. Nessa mudança, investigou-se o traço autoral de Thomas. Ao verter a peça, originalmente apenas literária, para o teatro, Thomas tornou-a algo marcado pela preocupação em, com imagens de pesadelo, buscar mobilizar o inconsciente, refletir as relações entre arte e a política no mundo atual, referindo-se indiretamente a episódios de tortura em Abu Ghraib, por exemplo. Em Bate Man, ele continua esse trabalho autoral de encenação de si mesmo em um monólogo escrito para o ator Marcelo Olinto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBUQUERQUE, Severino J. O Teatro Brasileiro na Década de Oitenta. Latin American Review. No. 25.2 (Spring 1992), p. 23-36.
ALCANTARA, Marcelo. Crítica: O cão que insultava as mulheres: Kepler, the dog. Revista Bacante. Disponível em:
BOOTH, The Rethoric of Fiction. Chicago University Press: 1983.
BROOK, Peter. O Teatro e seu Espaço. Rio de Janeiro: Vozes, 1970.
FILHO, Rui. Kepler, o cão atordoado. Disponível em:
FONSECA, Mau. O Teatrocinema da blognovela. Disponível em:
GEORGE, David. Gerald Thomas postmodernist theatre: a wagnerian antropofagia? Luso-brasilian Review, XXXVII, 1998.
GUINSBURG, Jacó et. FERNANDES, Sílvia. Um encenador de si mesmo: Gerald Thomas. São Paulo: Editora Perpectiva, 1996.
GUZIK, Alberto. O Impacto de Kepler. Disponível em:
JAMESON, Fredric. A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo: Ática, 1996.
MACKSEN Luiz. Texto pretensioso de Gerald Thomas expõe crueldade de nosso tempo. Disponível em:
REIS, Luís Augusto. Piscator, Brecht, Boal e Artaud – Considerações sobre o teatro político. Disponível em:
THOMAS, Gerald. Press. Disponível em:
segunda-feira, 20 de outubro de 2008
Jorge Fernando dos Santos: Um grande escritor mineiro
http://www.jorgefernandosantos.com.br/blog/
terça-feira, 23 de setembro de 2008
Um Excelente Blog Literário
http://acasadacolina.blogspot.com/
sábado, 16 de agosto de 2008
Um Bom Blog de Literatura
http://festadeaguias.blogspot.com/
Textos sobre Pound, Dante, entre outros. Vale a pena conferir.
sexta-feira, 13 de junho de 2008
Penetrália na Escola
Eu falei que o livro foi uma surpresa para mim mesmo. Muitos relacionam o título com penetração e coito, com sexualidade. Mas não é nada disso. Penetralia é a palavra latina para parte íntima da casa. Quase todos os contos se passam na intimidade da casa ou do apartamento. Em português existe a palavra "penetrais", que é sinônima.
Mas eu não inventei nada. Ao mesmo tempo, Penetrália é o nome de um disco de banda de heavy
metal norueguês e um soneto de Olavo Bilac. Na Roma Antiga existia um Lucius Emilius. Era um general romano que era de uma região da Itália chamada Emília.
Eu disse também os contos foram influenciados por Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu e Oswald de Andrade.
Você se julga um escritor modernista? A professora perguntou. Sim.
O livro ficou "emo", falei com eles. "No sentido de emocionalmente pesado, não de gay". Penetrália não é leve como as crônicas do Dilermando. Na época eu ouvia Caetano, via Glauber Rocha, tropicália. Mas o livro saiu emotional hardcore, emo, depressivo. Antes dos emo, existiam os darks, com suas roupas pretas e curtiam a depressão.
O que vc faz no jornal Folha, perguntou uma menina.
Indico blogs, mas aproveito para dar uns toques. Jornalismo é diferente de literatura hoje, é algo que está mudando. Mesmo na Veja, ninguém tem carteira assinada, são free-lances, frilas, ninguém tem segurança no emprego.
quarta-feira, 11 de junho de 2008
Horóscopo Horizontal (Um Oráculo de Palavras Cruzadas)
Áries 21/3 a 20/4
Presa entre o ímpeto da paixão e a sensatez_a sigla de Alagoas! Abreviatura de toda a questão social: radiopatrulha. O coração humano ser o centro do mundo é uma situação existencial que propõe um grande paradoxo. Fique na sua.
Touro 21/4 a 20/5
E ela começa a amar...A parte profunda da psiquê é o Rubídio,
Gêmeos 21/5 a 20/6
Há motivos para a alegria e motivos para a serenidade. O Golfo e mar da Arábia parecem empurrá-lo para a ação ou para a interjeição mineira de espanto. Espere um pedaço de vidro quebrado transmutar-se em veículo de transporte coletivo ou no Deus do craque Sócrates. Responda e você compreenderá que não havia dureza alguma.
Câncer 21/6 a 21/7
As soluções são as mesmas de ontem. Os bons amigos se revelam. O santo padroeiro dos ferreiros, Nat King Cole, é cantor e pianista. Muitas coisas acontecem somente com a ilusão que o ilusório cria. Tentar beber o mar de Aral vale a pena_mas dá torpor. Fique na sua.
Leão 22/7 a 22/8
A ti_mulher ilustre_corre-se o perigo de confundir o umbigo com o coração. Ou com a parte inferior da perna. A tarde repousava lenta sobre cores poentes, enquanto a alma sutil buscava sons rouxinóis. Mas fique na sua.
Virgem 23/9 a 22/10
O equilíbrio está em algum lugar no meio de tudo. Oslo é a cidade ideal para você passar o seu verão. O sol está na sua cova, que é a dos Leões. O prefixo é ignorado, mas se estiver a fim ligue assim mesmo, desbunde, faça o que lhe der na telha_mas não esqueca o conselho mais essencial-fique na sua.
Libra 23/9 a 22/9
Sinto a bravura de meu apartamento, ainda impregnado do aroma de Selma. O Xenônio, em Química, ajuda na composição das bonecas Barbie enquanto os faraós constroem a ponte do rio Kwai. Lady Di é a fêmea alada da saúva. Veja como os animais estão sempre na deles e...
Escorpião 23/10 a 21/11
Calma, vou usar o raio hipnotizador! Ocupe-se de estabilizar seus interesses. E com o meu cinto de utilidades vou te transformar em galinácea, Vera Fischer! Bons amigos às vezes se revelam bons inimigos, só que isso não ocorre necessariamente de forma festiva. Diga a eles que fiquem na deles e quanto a você...preciso repetir?
Sagitário 22/11 a 21/12
Se não conseguir se fazer entender, suas razões são poderosas mesmo. Se não, pegue o telefone e disque o DDD: “já foi”. Mas escute aqui...você tem ligações com o jogo do bicho? Então fique na sua.
Capricórnio 21/12 a 21/1
Melhor ficar num ponto médio, algum lugar entre a bissetriz e a mediatriz. Através de perspectivas amplas é que você irá perceber a diferença entre Picasso e Jackson Pollock. Sou kobra kryada, tenho saúde de vaka premyada e quero ser livre como as bruxas & as borboletas. O amigo da onça geralmente é de natureza íntima e por isso mesmo você deve ficar na sua, urso do espaço!
Aquário 21/1 a 19/2
Prenda seus talentos e recursos ao medo de perdê-los...Trabalhe para cachorro e enfie a cabeça na areia como um avestruz, seu junkie! Fique na sua, no seu sangue! Isso evitará que ele fique coagulado.
Peixes 20/2 a 20/3
Amã é a capital do reino da Jordânia, onde você poderá viajar no inverno, para esquiar na neve arenosa da península arábica. O templo e o paraíso dos compristas brasileiros tem respostas que você ainda desconhece! Marte, Vênus e Mercúrio estão em quadratura, Urano, Plutão e Netuno são o trio calafrio. Se você levar sua cósmica vida a sério sem ser chato...Bom, seu signo é de pessoas que só ficam na deles. Nadando!
quinta-feira, 15 de maio de 2008
Uma Carta do Costa Lima
Agradeço-lhe o envio de resenha que não conhecia. Se nem sempre concordamos
- e muitas vezes assim sucede - estamos contudo de pleno acordo quando diz
que tv algum dia o pp História. Ficção. Literatura venha a ser considerado
uma obra híbrida, migrante.
Com o agradecimento de Luiz CL
N. b. Apenas umas pequenas observações: se o livro assinala uma mudança de
parceiros no ato do diálogo, essa mudança não se deu agora, mas se vem
cumprindo desde o Mímesis e modernidade, de 1980! Quanto a Os Sertões,
lembro que escrevi todo um livro sobre ele: Terra ignota. A construção de Os
Sertões (Civilização Brasileira, 1997).E quanto ao amadorismo dos estudos
culturais: embora H. Bhabha pouco tenha além de um blablablá de segunda mão,
não seria a ele que acusaria de amadorismo mas sim aos praticantes,
americanos e brasileiros dos chamados estudos culturais. Por fim, vindo aos
dados biográficos, devo lhe dizer que pertenço ao Dept. de História da PUC
por opção pessoal, pois pertencia ao Dept de Letras, havendo participado dos
professores que fundaram sua Pós-Graduação.
Atenciosamente, Luiz CL.
On 5/15/08 1:34 PM, "Lucio"
> Caro professor: encaminho uma resenha de um livro seu.
>
> http://penetralia-penetralia.blogspot.com/2008/01/resenha-de-fico-histria-lite
> ratura-luiz.html
>
> Com admiração e respeito, atenciosamente,
> Lúcio Jr.
>
>
>
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008
Uma Mentirinha da Pilar Fazito
mingo, Janeiro 13, 2008
Decepcionante para uns...
Certa vez, o Marçal (o Aquino) disse que "todo escritor deveria freqüentar sebos para ver o que os ácaros e a poeira fazem com a gente".
Como ainda não publiquei nada em papel e a internet é mais prática, vez por outra jogo meu nome no google para ver o que há de novo sobre a minha pessoa; ver o que os críticos, os plagiadores e os vírus fazem com a gente.
Demorou, mas finalmente achei minha primeira crítica negativa declarada. Oba! Diz o douto blogueiro que me achou por conta de um texto que enviei para o primeiro concurso de frases da Piauí. Veio fuçando e acabou parando aqui, neste blog "decepcionante". O curioso é ter deixado um comentário simpático num dos meus posts anteriores e deixar o "decepcionante" apenas no dele.
O blogueiro em questão, ao menos, é muito corajoso. Depois desse vídeo, achei o "decepcionante" um enorme elogio. (Nada pessoal, colega.)
http://www.google.com/search?hl=pt-br&q=*Pilar+Fazito*&btnG=Buscar
segunda-feira, 14 de janeiro de 2008
Resenha de Ficção, História, Literatura (Luiz Costa Lima)
Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
O livro História. Ficção. Literatura (Companhia das Letras, 2006) de Luiz Costa Lima é um texto onde o autor buscou elaborar e aplicar esses três conceitos referidos logo no título. O autor, trabalhando a história e a linguagem sucessivamente, transitou entre esses campos, a bem dizer, por todo o livro. Inicialmente, ocupou-se em aproximar aedos e historiés, que a historiografia habitualmente afastava. Afastou também a inclusão do ficcional no literário, encontrando para ele uma categoria própria e afastando a conceituação medieval da “fictio” como fraude. A literatura seriam “textos oscilantes”. No entanto, se a princípio, quando se tratava de Homero, Heródoto e Tucídides, foi preciso aproximar poesia e história, minorar o ataque que eles fazem a uma base comum (Homero), mais adiante, porém, foi preciso fazer uma separação entre história e literatura para melhor definir Os Sertões.
Para Costa Lima, literatura e ficção não são sinônimos. A reflexão foi também movida pela situação de Costa Lima, que leciona ao mesmo tempo no Instituto de Letras da UERJ e no Departamento de História da PUC-RJ. Ele não é tão estranho ao meio como parece. Se é um estranho no ninho, é um estranho aceito.
A aceitação da mímesis abre para uma relação do crítico literário tanto com a sociologia quanto com a história. Mas Costa Lima claramente optou pela história: a sociologia foi deixada de lado, juntamente com as vertentes dos Estudos Culturais e da crítica sociológica. Para Costa Lima, o problema fundador da história (“tudo remetia à verdade, à verdade do sucedido”) (COSTA LIMA, 2006, p. 104) mais adiante, transformou o princípio (a poesia) em aporia (história). A aporia da história deve considerar que seu conteúdo, a verdade, é sempre incerto. Permaneceu intocada, além da questão de saber porque os homens guerreiam, um mau tratamento da res facta e da res ficta.
Tempos depois, no Renascimento, ainda existia distância entre poesia e literatura, poesia era um termo específico e literatura era algo geral; foi quando Schlegel, autor da admiração de Costa Lima, aproximou esses conceitos. O hístor apresentava semelhanças com a formulação verbal da poesia e da literatura, das quais ele procurava se distinguir. Para Costa Lima, o historiador não se liberta de uma certa mímesis: existe uma marca do tempo que a fez e um lugar social que aí ocupava. A mímesis do historiador é mímesis-estigma e a do “poeta ou de ficcionista” (nessa passagem, se equivalem, p.156) é mímesis ativa. Se o historiador não consegue mesmo se libertar de uma certa mímesis, o crítico literário pode optar por mantê-la cativa e ativa, a propósito de alimentar a partir dela a “sua” questão.
No decorrer das reflexões sobre a narrativa e a história, Barthes é evitado, mas não só por ser escritor e não crítico, mas também ser anti-mimético. Iser é polemizado por não concordar nesse ponto, mas seus conceitos são levados mais a sério: a ficção ganhou um alto estatuto com Iser. A mímesis, afinal, não é a imitatio, ela faz a seleção de aspectos da realidade que desorganizam a representação de mundo seja porque não é sua repetição, seja porque não obedece a seus campos de referência. Para Costa Lima, a mímesis “fixa a ancoragem do ato ficcional no interior de um quadro de usos e valores e, portanto, de valores vigentes em uma certa sociedade” (COSTA LIMA, 2006, p. 291). A obra, no caso a de um escritor como Herman Broch, salva-se ao se esquivar da ficcionalidade na qual nasceu. A ficcionalidade é “poiesis em estado puro, a ficcionalidade concentra-se em uma forma discursiva que retira de si a possibilidade de exercício do poder” (COSTA LIMA, 2006, p. 310).
Em História. Ficção. Literatura, Costa Lima vai dos gregos ao Big Brother. É assim a linha de raciocínio que levou ao “show de realidade”: a existência de uma moldura (frame) mesmo mínima, identifica um discurso. Por isso, embora multiforme, o discurso do cotidiano contêm modalidades reconhecidas. É o discurso da moda, o discurso televisivo, diverso do discurso midiático em geral. Daí a industrialização do privado, em programas em que um grupo de anônimos é trancado durante meses, enquanto o público, reduzido à situação de voyeur, tem o direito de ver e acompanhar o que fazem durante todo o dia. Se, do ponto de vista do cotidiano em geral, a delação é considerada detestável, aqui ela se torna uma regra. Voto pela exclusão de X porque...qualquer razão é válida. Todos os motivos são aceitáveis, salvo um: ninguém dirá que o excluído será menos um a concorrer no recebimento do prêmio reservado ao último sobrevivente. Á delação oficializada se acrescenta a hipocrisia, não menos solidificada como regra de conduta (COSTA LIMA, 2006, p. 77).
Se, nos textos dos anos 70, os conceitos marxistas que impregnavam algumas passagens de Dispersa Demanda, por exemplo, esses conceitos conflitavam com a vocação anti-mimética da Escola de Constança (Iser, Jauss, entre outros), mais próxima de um subjetivismo que de um realismo crítico. Com o passar dos anos, parece que Costa Lima deixou o diálogo com Roberto Schwarz e Lukács e decolou para as galáxias de Haroldo de Campos. Costa Lima fez um longo percurso que partiu por Benveniste e chegou a Austin. Ele comentou: ao lado dos atos locucionários correspondentes aos enunciados, a frase ou conjunto de frases transmitem um significado; Austin distinguia a possibilidade do ilocucionário e do perlocucionário. O locucionário seria realizar o ilocucionário. Essa digressão formou uma ilha linguística em meio aos continentes conceituais da história, ficção e literatura.
Costa Lima aventurou-se com paixão aos domínios da escrita da história, mergulhando nos meandros entre a poesia e a história, aproximando-as. Quando ele enfocou a história, citou a aplicação dos métodos narratológicos por Mieke Bal (que nada mais faz do que aplicar um apanhado daqueles autores que Costa Lima substituiu por Iser e Jauss no passado: Barthes, Bremmond, Greimas, entre outros). A razão pela qual Costa Lima não se interessou pelos Estudos Culturais talvez seja porque ele está voltado para algo permanente (quase uma fome de absoluto): a herança cultural greco-romana. Não vejo, no entanto, como obras como Orientalismo, de Edward Said, e outras de Benedict Andersen e Homi Bhabha, que se incluem nos chamados Estudos Culturais, poderiam ser consideradas amadorísticas, como considerou Costa Lima quando afirmou que os Estudos Culturais estariam “cumprindo o papel de profissionalizar o amadorismo” (COSTA LIMA, 2006, p. 28).
Mais adiante, o crítico debruçou-se sobre objetos estéticos, o que só fez no final de História. Ficção. Literatura. Para isso ele tomou Memórias do Cárcere e Os Sertões, “romances” permeados de uma narrativa não-ficcional, a história. Nessas passagens, como em algumas sobre Saint-Beuve e Proust, sente-se menos o criar e lapidar de conceitos dos capítulos sobre história, escrita da história e ficção do que a análise crítica de inegável brilho.
Há um ensaio sobre Euclides da Cunha onde história e ficção são imbricadas novamente – e fatalmente o serão ao se tratar de Os Sertões. Para a análise, Costa Lima levou demasiadamente a sério um apontamento ligeiro de Mário de Andrade, que considerou a epopéia fantasiosa, construída sem fundamentos reais a partir do sol do Nordeste e da miséria pura.
Difícil compreender porque o texto fala tanto sobre poesia-história, depois poesia-literatura, mas quando se trata de analisar um texto literário, analisa apenas prosa. E ele deu muito realce a uma observação a nosso ver superficial de Mário sobre Euclides. Mário ao chegar ao Nordeste e não encontrar messias rebeldes, cangaceiros em fúria e cidades sublevadas devastando guarnições do exército, desmereceu Euclides seria preciso uma linguagem despida de luxo e requinte, seca como ela – e tal como os romancistas de 30 teriam realizado.
Depende do ponto de vista de onde se olha: do ponto de vista de um sertanejo como Fabiano, personagem de poucas palavras em Vidas Secas, o vocabulário do livro que o retratou seria pleno de luxo e de requinte. Do ponto de vista de quem fala português não-padrão, essa literatura se encaixa melhor no padrão culto.
O luxo e o requinte da linguagem precisariam (uma vez que Costa Lima concordou com Mário de Andrade) de se encaixar num padrão realista. Padrão que a rapsódia Macunaíma não seguiu. A linguagem deveria exprimir “miséria pura” e não “epopéia”.
No entanto, poder-se-ia dizer o contrário: a grandeza e a força de Euclides foi ver a grandeza da batalha que se travou e a importância histórica daquele levante para as lutas do povo brasileiro. A linguagem usada em 1902 não era “neoparnasiana”, mas parnasiana de boa cepa. Se Euclides usasse outra linguagem, talvez não tivesse obtido a recepção que obteve em seu tempo. Seria um Sousândrade, um Kilkerry, um Qorpo Santo que a vanguarda teria de desenterrar e lançar novamente entre seus primeiros pelotões.
A observação do diário de Mário não seria capaz de transtornar a recepção de Euclides; ela está voltada contra alguém de uma geração anterior, cuja linguagem a geração de Mário questionou. Os diários parecem ser uma fonte constante de Costa Lima para essa ambivalência entre literatura, ficção e história. Num diário de Benjamim, esse autor curiosamente julgou o texto kantiano “grande prosa de arte”, afirmação a ser problematizada por Costa Lima: realmente, é bastante difícil estabelecer o valor estético da prosa de Kant. Quem sabe Benjamin tenha se equivocado e trocado a palavra “kunst” por “philosophie”. Kant, que delimitou a prosa crítica sobre a arte (a estética), tem uma prosa de valor estético muito questionável, ao contrário da prosa de Nietzsche (esse sim, tem prosa e poesia). Acrescento que existe uma boutade que diz que Kant foi o último grande filósofo a comentar com propriedade a respeito de arte sem entender nada de arte.
Uma passagem do livro foi dedicada a resolver algumas pontos divergente entre Costa Lima e Wolfgang Iser, pois Iser persistiu em ser anti-mimético. O padrão realista que Costa Lima não rejeitou na nota breve e superficial de Mário de Andrade foi, portanto, defendido indiretamente. Afinal, sem algum desejo mimético não será possível pensar na escrita da história, ou em uma literatura que faça referências à história. No caso dos romances de Euclides e de Graciliano, trata-se ainda de romances que buscam trazer dados sócio-históricos reais, em nada falseados ou modificados com finalidade de fazer o “jogo do texto”. Aqui Pierre Menard não foi o autor de Dom Quixote.
Costa Lima mesmo notou o paradoxo: Mário de Andrade cobrou de Euclides a rigidez de um paradigma que ele mesmo não seguiu em Macunaíma e que ele, retrospectivamente, aplica como sendo um peso morto. Ou seja: Mário aplicou um paradigma para ele já morto para uma obra anterior à dele, com saldo negativo. A obra deveria ter sido mais realista, embora, se Mário fosse realista extremamente rigoroso, ambientaria sua rapsódia entre Roraima e Venezuela e seu protagonista se chamaria Makunáima (que é como os índios de região pronunciam o seu nome até hoje).
Costa Lima também optou pela mímesis, mas deixou para trás o diálogo com uma vertente que precisava dela para seu realismo crítico: Lukács e Roberto Schwarz. Ocorreu a opção por Iser (com ressalvas) e Haroldo de Campos. Apareceu também uma observação de Graciliano sobre José Lins do Rego coletada por Costa Lima, bastante semelhante à de Mário de Andrade comentada acima. Memórias do Cárcere se saiu bem ao ser comparado com o diário de um seu contemporâneo (Francisco Theodoro Rodrigues). Costa Lima provou, algumas páginas antes, que um texto aparentemente autobiográfico (De um Castelo a Outro, Louis Ferdinand Céline) contêm delírios e distorções quem sabe deliberadas para tornar o autor empírico um bode expiatório do mundo. Quanto a Memórias do Cárcere, não resta dúvidas quanto ao seu caráter de forma híbrida: autobiografia, ficção, memórias. O relato de Memórias, comparado com as notas de Theodoro Rodrigues permanece bem fundamentado e seguro (Um Castelo a Outro desmoronou como um castelo de areia diante dos dados de seu principal biógrafo; é mais delírio e fruto da paranóia do que autobiografia ou memórias).
Nos “estudos de caso” finais sobre Graciliano e Euclides, ele citou Barthes sobre a narrativa da história (COSTA LIMA, 2006, p. 384), apenas para preferir a posição de Paul Ricoeur, que estabeleceu que, para uma obra ser histórica, ela precisa passar por três fases definitivas: 1) fase documental; 2) estabelecimento da prova documental; 3) fase explicativa. Os Sertões não preencheriam essas três fases e conceitos definidos e seria, portanto, obra de literatura e não de história. Ele finalizou escrevendo que “só a passagem dos anos dirá se a insubordinação aqui praticada terá alguma conseqüência” (COSTA LIMA, 2006, p. 385). Ou seja: Costa Lima pretendeu ter resolvido definitivamente o problema do status de Os Sertões; no entanto, se ele mesmo demonstrou, no início de História. Ficção. Literatura que é fácil aproximar os aedos dos historiés, é bem provável que, no futuro, essa aproximação volte a ser realizada, ou mesmo que a obra seja chamada de “forma híbrida entre ficção e história”. Talvez com o passar do tempo até mesmo História. Ficção. Literatura também possa ser visto assim, como obra híbrida.
Bibliografia:
CALDAS, Pedro. A Consciência Híbrida: História. Ficção. Literatura de Luiz Costa Lima. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Julho/ Agosto/ Setembro de 2006 Vol. 3 Ano III nº 3. ISSN: 1807-6971. www.revistafenix.pro.br. Acesso em 17/11/2007.
LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
quinta-feira, 20 de dezembro de 2007
O Futebol e a Cultura Brasileira
O futebol ocupa uma posição na cultura brasileira. E uma posição privilegiada: é o que os brasileiros fazem de melhor aos olhos do mundo.
Um país como a França tem uma relação com a filosofia muito interessante se comparada com a relação da cultura brasileira com o futebol. Filósofos como Roland Barthes e J-P. Sartre são “tão franceses quanto o croissant”. Um jogador como Pelé é igualmente tão brasileiro quanto o samba, e nos representa frente ao mundo. Só que a população francesa tem acesso a livros e em filósofos como Barthes e Sartre o próprio povo francês se reconhece.
A relação dos intelectuais com o futebol no Brasil já foi melhor. Coelho Neto, escritor da zona sul e fundador do Fluminense, “tinha uma visão olímpica do futebol. Comparava os arredores do campo do Fluminense à Grécia: a rua Farani eram as termópilas, a rua do Roso era a planície de Salamina, onde Temístocles derrotou os citas...A fé, que engrandecia os gregos, era o football, coisa de fortes, escolhidos, guerreiros e jovens atléticos-não fora criado para os esquálidos suburbanos de cor indefinida. Para estes, pedia o serviço militar obrigatório.”
Nossa primeira polêmica intelectual sobre o futebol foi essa de Lima Barreto contra Coelho Neto, de pretos suburbanos contra brancos ricos. Barreto compreendeu que as oligarquias iriam usar a bola como o “ópio do povo”. Não aceitava o nome “futebol”, por ser oriundo do inglês football e preferia chamá-lo de bolapé.
A discussão sobre o futebol não se polarizou desta forma século vinte afora; houve algumas intervenções esporádicas, como a de Nelson Rodrigues, que disse que nenhum dos personagens da literatura brasileira sabia bater um mísero corner. José Lins do Rego, porém, escreveu todo um romance sobre um craque do futebol que vê sua carreira entrar em decadência (Água-Mãe). Como diz Edilberto Coutinho:
“Essa ‘força maior’ de José Lins do Rego, certamente foi alimentada no contato direto com o povo, que nunca deixou de manter. ‘Vou ao futebol e sofro como um pobre-diabo’. Nesta sua frase, muitas vezes repetida, está todo o seu brasileirismo e mais, uma síntese de sua completa integração ao ambiente carioca e com o povo da cidade do Rio de Janeiro. Sobretudo porque a causa maior de seu ‘sofrimento’ eram as campanhas do Flamengo (...) Sua comunicação com o público, por outro lado, se fez mais incisiva, no Rio, pois voltou à prática assídua do jornalismo, com as crônicas para O Globo-‘Conversa de Lotação’-lidas, por vezes, nas viagens que se fazia nesses transportes coletivos (que deixaram de circular no governo de Carlos Lacerda) e escrevendo
Fernando Gabeira expressa uma opinião diferente
“(...) Antes da saída para o exílio, pensava nisso e admitia que os brasileiros mitigavam o desejo de participar de um todo maior, através das grandes torcidas de futebol. Era um espaço de transcendência. Mas limitado sob muitos aspectos: as torcidas não captavam mais do que um traço de união, a preferência pelo mesmo clube, e, além do mais, se faziam umas em oposição às outras, nos grandes estádios.”
Gabeira nos fornece uma visão crítica: se por um lado admite haver transcendência, encontra por outro traços insuficientes unindo cada grupo e ocorre a oposição entre as torcidas, que às vezes tem terminado
Na revista Leia de Junho/1990 foi publicada a matéria “O Futebol na Palavra Escrita”. Lia-se à página 24:
“As polêmicas na esfera da pelota são muitas, tanto entre ficcionistas quanto entre estudiosos do tema. Oswald de Andrade, avesso à modalidade, e José Lins do Rego(flamengista doente) chegaram à agressão nas páginas dos jornais”. Dizia Oswald:
“Quem negará ao futebol esse condão da catarse circense com que os velhos sabidos de Roma lambuzavam o pão triste das massas? Esse novo ópio, enviado para cá(...)pelos amáveis civilizadores saídos do conúbio imperialista”.
Graciliano Ramos colocou-se entre os inimigos do esporte, profetizando ainda em 1921:
“Pensa-se em introduzir o futebol, nesta terra.
É uma lembrança que, certamente, será bem recebida pelo público, que, de ordinário, adora as novidades. Vai ser, por algum tempo, a mania, a maluqueira, a idéia fixa de muita gente. Com exceção, talvez, de um ou outro tísico, completamente impossibilitado de aplicar o mais insignificante pontapé a uma bola de borracha, vai haver por aí uma excitação, um furor dos demônios, um entusiasmo de fogo de palha capaz de durar bem um mês. (...)
Mas por que o futebol?
Não seria, porventura, melhor exercita-se a mocidade em jogos nacionais, sem mescla de estrangeirismo, o murro, o cacete, a faca de ponta, por exemplo?
Não é que me repugne a introdução de coisas exóticas entre nós. Mas gosto de indagar se elas serão assimiláveis ou não.
No caso afirmativo, seja muito bem-vinda a instituição alheia, fecundemo-la, arranjemos nela um filho híbrido que possa viver cá
Para um costume intruso possa estabelecer-se definitivamente em um país, é necessário que se harmonize com a índole do povo que o vai receber, mas que o lugar a ocupar não esteja tomado por outro mais antigo, de cunho indígena. É preciso, pois, que vá preencher uma lacuna, como diz o chavão. (...)
O futebol não pega, tenham a certeza. Não vale o argumento de que ele tem ganho terreno nas capitais de importância. Não confundamos. (...)
Estrangeirices não entram facilmente na terra do espinho. O futebol, o boxe, o turfe, nada pega.
Desenvolvam os músculos, rapazes, ganhem força, desempenem a coluna vertebral. Mas não é necessário ir longe, em procura de esquisitices que têm nomes que vocês nem sabem pronunciar.
Reabilitem os esportes regionais, que aí estão abandonados: a porrete, o cachação, a queda de braço, a corrida a pé, tão útil a um cidadão que se dedica ao arriscado ofício de furtar galinhas, a pega de bois, o salto, a cavalhada, e, melhor que tudo, o camba-pé, a rasteira.
A rasteira! Este, sim, é o esporte nacional por excelência!
Todos nós vivemos mais ou menos a atirar rasteira uns nos outros. Logo na aula primária habituamo-nos a apelar para as pernas quando nos falta a confiança no cérebro-e a rasteira nos salva. Na vida prática, é claro que aumenta a natural tendência que possuímos para nos utilizarmos eficientemente da canela. No comércio, na indústria, nas letras e nas artes, no jornalismo, no teatro, nas cavações, a rasteira triunfa.
Cultivem a rasteira, amigos!
E se algum de vocês tiver vocação para a política, então sim, é a certeza plena de vencer com o auxílio dela. É aí que ela culmina. Não há político que a não pratique. Desde s. ex.a o senhor presidente da república até o mais pançudo e beócio coronel da roça, desses que usam sapatos de trança, bochechas moles e espadagão da Guarda Nacional, todos os salvadores da pátria têm a habilidade de arrastar o pé no momento oportuno.
Muito útil, sim senhor.
Dediquem-se à rasteira, rapazes.”
Continuo citando a Revista Leia:
“Nas voltas irônicas da história, muitos estudiosos de hoje vêem nas posições de Oswald e Graciliano um ressentimento da intelligentzia nacional, que pretendia igualar-se à da metrópole européia pela caneta e não pelas chuteiras.(...)A paixão popular, por seu lado, deu o apito final que escalou o futebol na posição de tema literário, longe das futricas de gabinete. Assim, a emoção das torcidas, o linguajar de jogadores e técnicos, os pênaltis e os gols passaram a alimentar contos, crônicas e romances. Um bom e delicioso exemplo é ‘Corinthians 2 X Palestra
Entre os autores que incursionaram nessa área, estão ainda Nélson Rodrigues, João Cabral de Mello Neto, Orígenes Lessa, Vinícius de Moraes, entre os muitos. Uma obra recente, digna de nota, é Sonata da última Cidade-Romance de São Paulo, do gaúcho/paulistano Renato Modernell, prêmio Jabuti de melhor romance de 1989. Modernell utilizou deliberadamente o futebol, as copas e seus heróis para demarcar épocas e prender a atenção do leitor.(...)
O ensaísta e crítico literário Anatol Rosenfeld levantou a bola dos principais temas de debate,
É a partir de 1970, com tricampeonato no México, que aumenta ‘o medo do intelectual diante do gol’. O governo Médici militarizou o futebol dentro e fora dos estádios, criando o Estatuto do Atleta Convocado (que impunha o corte militar aos jogadores e proibia declarações políticas) e criou o ufanismo do ‘Pra Frente Brasil’. Atribui-se ao clima da euforia nacional parte da impunidade e do silêncio à repressão política, seus torturados e mortos. ‘Médici, no auge da ditadura, dava 80 no Ibope. Uma goleada’, anota o sociólogo José Esmeraldo Gonçalves. ‘A tese de que o futebol atenua as crises políticas e sociais é falsa. Fosse assim, Mussolini, que ganhou duas copas (34 e 38) não teria tido o fim que teve’, contesta o ex-técnico e jornalista João Saldanha. Aqui no Brasil há o exemplo de Jango, que era o presidente em 1962 quando o país venceu a Copa e nem por isso foi poupado do golpe de 64 e de ser o único presidente brasileiro a morrer no exílio.
O psicanalista junguiano Carlos Byington analisa o futebol a partir de duas mandalas rituais: a do gramado, inserida no estádio. A vivência ritualizada na mandala do estádio acompanharia o torcedor para além do jogo. ‘Os que vêem o futebol como ópio popular querem reduzir uma expressão cultural a outras. Essa análise é retrógrada. O símbolo (futebol) deve ser analisado diretamente com o todo e não com um segmento específico, como economia ou política, que tem seus símbolos próprios.’ Byington afirma que o futebol é revolucionário, pois substituiu o padrão patriarcal nos jogos de massa, no qual os embates eram individuais e o oponente acabava morto. Ele cita, em seu estudo, um caso histórico interessante: ‘Numa guerra entre Inglaterra e Escócia, em 1297, os soldados desobedeceram o comando e resolveram a guerra num jogo de futebol’. A base revolucionária do esporte, além de ser grupal e não letal, estaria ainda em ser praticado pelos pés, liberando o lado animal do homem contra o seu lado racional (representado pela parte superior do corpo), uma prática contrária às modalidades militares de interesse do Estado. O futebol, diz Byington, foi fortemente reprimido na Inglaterra do século quatorze ao dezesseis.
Encerro esta transcrição de trechos da hoje extinta Leia com o seguinte comentário do jornalista e escritor Renato Modernell, apaixonado por futebol:‘Qualquer forma de expressão cultural pode ser manipulada por governos. Até há alguns anos, os países desenvolvidos recebiam nossa seleção como se fosse o Balé Bolshoi ou a sinfônica de Nova Iorque. Não acredito que vamos desprezar isso. Eu posso até admitir que quem não torce esteja sendo mais lúcido. Mas no meu caso seria me privar de mais um prazer, num país onde há cada vez menos prazer em se viver.’ ”
Como diz Ivan Cavalcanti Proença, em seu livro Futebol e Palavra:
“Poderíamos convocar todo um time, entre veteranos e novos, composto de pessoas sensíveis, ases da intelligentsia brasileira, só para mostrar as relações de fecunda intimidade entre a vanguarda de nossa intelectualidade e o esporte dito das multidões. Aliás, isto constitui uma tradição que vem desde os tempos de Coelho Neto, que foi sócio fundador do Fluminense.”
São ligados ao tema os seguintes livros:
Sobre O Jogador:
-Infância (Macelo Miranda: O Sol Escuro)
-Ascensão (José Lins do Rego: Àgua-Mãe).
-Genialidade (Carlos Drummond de Andrade: Cadeira de Balanço).
-Ruína (Oduvaldo Vianna Filho: Chapetuba Futebol Clube)
Outros, sobre:
-O Técnico (João Saldanha: Os Subterrâneos do Futebol)
-O Clube (Paulo Mendes Campos: Homenzinho na Ventania)
-A Bola (Marques Rebelo: O Espelho Partido)
-O Pênalti (Antônio de Alcântara Machado: Brás, Bexiga e Barra Funda).
-O Gol (Mário Filho: O Romance do Futebol).
-A Goleada (Mário de Andrade: Gol de letra, organizada por Milton Pedrosa).
-O Juiz (José Condé: Gol de Letra, organizada por Milton Pedrosa).
Sobre o torcedor:
-Paixão (Mário Filho: O Romance do Futebol)
-Fanatismo (Nílson Rodrigues: A Falecida)
-Morte (Dias da Costa: De Tarde e Domingo)
-Belle-époque (Marques Rebelo: O Espelho Partido. Refere-se aos líricos e domésticos estadinhos de partidas domingueiras).
Bibliografia:
-Revista Leia, 1989
-Futebol e Palavra, Ivan Cavalcanti Proença-História Política do Futebol Brasileiro, Joel Rufino dos Santos
-Linhas Tortas, Graciliano Ramos
-O Diário da Salvação do Mundo, Fernando Gabeira
-O Romance da Cana de Açúcar, Edilberto Coutinho