Dos Gregos ao Big Brother: Confluências e Divergências Entre Ficção, História e Literatura
Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
O livro História. Ficção. Literatura (Companhia das Letras, 2006) de Luiz Costa Lima é um texto onde o autor buscou elaborar e aplicar esses três conceitos referidos logo no título. O autor, trabalhando a história e a linguagem sucessivamente, transitou entre esses campos, a bem dizer, por todo o livro. Inicialmente, ocupou-se em aproximar aedos e historiés, que a historiografia habitualmente afastava. Afastou também a inclusão do ficcional no literário, encontrando para ele uma categoria própria e afastando a conceituação medieval da “fictio” como fraude. A literatura seriam “textos oscilantes”. No entanto, se a princípio, quando se tratava de Homero, Heródoto e Tucídides, foi preciso aproximar poesia e história, minorar o ataque que eles fazem a uma base comum (Homero), mais adiante, porém, foi preciso fazer uma separação entre história e literatura para melhor definir Os Sertões.
Para Costa Lima, literatura e ficção não são sinônimos. A reflexão foi também movida pela situação de Costa Lima, que leciona ao mesmo tempo no Instituto de Letras da UERJ e no Departamento de História da PUC-RJ. Ele não é tão estranho ao meio como parece. Se é um estranho no ninho, é um estranho aceito.
A aceitação da mímesis abre para uma relação do crítico literário tanto com a sociologia quanto com a história. Mas Costa Lima claramente optou pela história: a sociologia foi deixada de lado, juntamente com as vertentes dos Estudos Culturais e da crítica sociológica. Para Costa Lima, o problema fundador da história (“tudo remetia à verdade, à verdade do sucedido”) (COSTA LIMA, 2006, p. 104) mais adiante, transformou o princípio (a poesia) em aporia (história). A aporia da história deve considerar que seu conteúdo, a verdade, é sempre incerto. Permaneceu intocada, além da questão de saber porque os homens guerreiam, um mau tratamento da res facta e da res ficta.
Tempos depois, no Renascimento, ainda existia distância entre poesia e literatura, poesia era um termo específico e literatura era algo geral; foi quando Schlegel, autor da admiração de Costa Lima, aproximou esses conceitos. O hístor apresentava semelhanças com a formulação verbal da poesia e da literatura, das quais ele procurava se distinguir. Para Costa Lima, o historiador não se liberta de uma certa mímesis: existe uma marca do tempo que a fez e um lugar social que aí ocupava. A mímesis do historiador é mímesis-estigma e a do “poeta ou de ficcionista” (nessa passagem, se equivalem, p.156) é mímesis ativa. Se o historiador não consegue mesmo se libertar de uma certa mímesis, o crítico literário pode optar por mantê-la cativa e ativa, a propósito de alimentar a partir dela a “sua” questão.
No decorrer das reflexões sobre a narrativa e a história, Barthes é evitado, mas não só por ser escritor e não crítico, mas também ser anti-mimético. Iser é polemizado por não concordar nesse ponto, mas seus conceitos são levados mais a sério: a ficção ganhou um alto estatuto com Iser. A mímesis, afinal, não é a imitatio, ela faz a seleção de aspectos da realidade que desorganizam a representação de mundo seja porque não é sua repetição, seja porque não obedece a seus campos de referência. Para Costa Lima, a mímesis “fixa a ancoragem do ato ficcional no interior de um quadro de usos e valores e, portanto, de valores vigentes em uma certa sociedade” (COSTA LIMA, 2006, p. 291). A obra, no caso a de um escritor como Herman Broch, salva-se ao se esquivar da ficcionalidade na qual nasceu. A ficcionalidade é “poiesis em estado puro, a ficcionalidade concentra-se em uma forma discursiva que retira de si a possibilidade de exercício do poder” (COSTA LIMA, 2006, p. 310).
Em História. Ficção. Literatura, Costa Lima vai dos gregos ao Big Brother. É assim a linha de raciocínio que levou ao “show de realidade”: a existência de uma moldura (frame) mesmo mínima, identifica um discurso. Por isso, embora multiforme, o discurso do cotidiano contêm modalidades reconhecidas. É o discurso da moda, o discurso televisivo, diverso do discurso midiático em geral. Daí a industrialização do privado, em programas em que um grupo de anônimos é trancado durante meses, enquanto o público, reduzido à situação de voyeur, tem o direito de ver e acompanhar o que fazem durante todo o dia. Se, do ponto de vista do cotidiano em geral, a delação é considerada detestável, aqui ela se torna uma regra. Voto pela exclusão de X porque...qualquer razão é válida. Todos os motivos são aceitáveis, salvo um: ninguém dirá que o excluído será menos um a concorrer no recebimento do prêmio reservado ao último sobrevivente. Á delação oficializada se acrescenta a hipocrisia, não menos solidificada como regra de conduta (COSTA LIMA, 2006, p. 77).
Se, nos textos dos anos 70, os conceitos marxistas que impregnavam algumas passagens de Dispersa Demanda, por exemplo, esses conceitos conflitavam com a vocação anti-mimética da Escola de Constança (Iser, Jauss, entre outros), mais próxima de um subjetivismo que de um realismo crítico. Com o passar dos anos, parece que Costa Lima deixou o diálogo com Roberto Schwarz e Lukács e decolou para as galáxias de Haroldo de Campos. Costa Lima fez um longo percurso que partiu por Benveniste e chegou a Austin. Ele comentou: ao lado dos atos locucionários correspondentes aos enunciados, a frase ou conjunto de frases transmitem um significado; Austin distinguia a possibilidade do ilocucionário e do perlocucionário. O locucionário seria realizar o ilocucionário. Essa digressão formou uma ilha linguística em meio aos continentes conceituais da história, ficção e literatura.
Costa Lima aventurou-se com paixão aos domínios da escrita da história, mergulhando nos meandros entre a poesia e a história, aproximando-as. Quando ele enfocou a história, citou a aplicação dos métodos narratológicos por Mieke Bal (que nada mais faz do que aplicar um apanhado daqueles autores que Costa Lima substituiu por Iser e Jauss no passado: Barthes, Bremmond, Greimas, entre outros). A razão pela qual Costa Lima não se interessou pelos Estudos Culturais talvez seja porque ele está voltado para algo permanente (quase uma fome de absoluto): a herança cultural greco-romana. Não vejo, no entanto, como obras como Orientalismo, de Edward Said, e outras de Benedict Andersen e Homi Bhabha, que se incluem nos chamados Estudos Culturais, poderiam ser consideradas amadorísticas, como considerou Costa Lima quando afirmou que os Estudos Culturais estariam “cumprindo o papel de profissionalizar o amadorismo” (COSTA LIMA, 2006, p. 28).
Mais adiante, o crítico debruçou-se sobre objetos estéticos, o que só fez no final de História. Ficção. Literatura. Para isso ele tomou Memórias do Cárcere e Os Sertões, “romances” permeados de uma narrativa não-ficcional, a história. Nessas passagens, como em algumas sobre Saint-Beuve e Proust, sente-se menos o criar e lapidar de conceitos dos capítulos sobre história, escrita da história e ficção do que a análise crítica de inegável brilho.
Há um ensaio sobre Euclides da Cunha onde história e ficção são imbricadas novamente – e fatalmente o serão ao se tratar de Os Sertões. Para a análise, Costa Lima levou demasiadamente a sério um apontamento ligeiro de Mário de Andrade, que considerou a epopéia fantasiosa, construída sem fundamentos reais a partir do sol do Nordeste e da miséria pura.
Difícil compreender porque o texto fala tanto sobre poesia-história, depois poesia-literatura, mas quando se trata de analisar um texto literário, analisa apenas prosa. E ele deu muito realce a uma observação a nosso ver superficial de Mário sobre Euclides. Mário ao chegar ao Nordeste e não encontrar messias rebeldes, cangaceiros em fúria e cidades sublevadas devastando guarnições do exército, desmereceu Euclides seria preciso uma linguagem despida de luxo e requinte, seca como ela – e tal como os romancistas de 30 teriam realizado.
Depende do ponto de vista de onde se olha: do ponto de vista de um sertanejo como Fabiano, personagem de poucas palavras em Vidas Secas, o vocabulário do livro que o retratou seria pleno de luxo e de requinte. Do ponto de vista de quem fala português não-padrão, essa literatura se encaixa melhor no padrão culto.
O luxo e o requinte da linguagem precisariam (uma vez que Costa Lima concordou com Mário de Andrade) de se encaixar num padrão realista. Padrão que a rapsódia Macunaíma não seguiu. A linguagem deveria exprimir “miséria pura” e não “epopéia”.
No entanto, poder-se-ia dizer o contrário: a grandeza e a força de Euclides foi ver a grandeza da batalha que se travou e a importância histórica daquele levante para as lutas do povo brasileiro. A linguagem usada em 1902 não era “neoparnasiana”, mas parnasiana de boa cepa. Se Euclides usasse outra linguagem, talvez não tivesse obtido a recepção que obteve em seu tempo. Seria um Sousândrade, um Kilkerry, um Qorpo Santo que a vanguarda teria de desenterrar e lançar novamente entre seus primeiros pelotões.
A observação do diário de Mário não seria capaz de transtornar a recepção de Euclides; ela está voltada contra alguém de uma geração anterior, cuja linguagem a geração de Mário questionou. Os diários parecem ser uma fonte constante de Costa Lima para essa ambivalência entre literatura, ficção e história. Num diário de Benjamim, esse autor curiosamente julgou o texto kantiano “grande prosa de arte”, afirmação a ser problematizada por Costa Lima: realmente, é bastante difícil estabelecer o valor estético da prosa de Kant. Quem sabe Benjamin tenha se equivocado e trocado a palavra “kunst” por “philosophie”. Kant, que delimitou a prosa crítica sobre a arte (a estética), tem uma prosa de valor estético muito questionável, ao contrário da prosa de Nietzsche (esse sim, tem prosa e poesia). Acrescento que existe uma boutade que diz que Kant foi o último grande filósofo a comentar com propriedade a respeito de arte sem entender nada de arte.
Uma passagem do livro foi dedicada a resolver algumas pontos divergente entre Costa Lima e Wolfgang Iser, pois Iser persistiu em ser anti-mimético. O padrão realista que Costa Lima não rejeitou na nota breve e superficial de Mário de Andrade foi, portanto, defendido indiretamente. Afinal, sem algum desejo mimético não será possível pensar na escrita da história, ou em uma literatura que faça referências à história. No caso dos romances de Euclides e de Graciliano, trata-se ainda de romances que buscam trazer dados sócio-históricos reais, em nada falseados ou modificados com finalidade de fazer o “jogo do texto”. Aqui Pierre Menard não foi o autor de Dom Quixote.
Costa Lima mesmo notou o paradoxo: Mário de Andrade cobrou de Euclides a rigidez de um paradigma que ele mesmo não seguiu em Macunaíma e que ele, retrospectivamente, aplica como sendo um peso morto. Ou seja: Mário aplicou um paradigma para ele já morto para uma obra anterior à dele, com saldo negativo. A obra deveria ter sido mais realista, embora, se Mário fosse realista extremamente rigoroso, ambientaria sua rapsódia entre Roraima e Venezuela e seu protagonista se chamaria Makunáima (que é como os índios de região pronunciam o seu nome até hoje).
Costa Lima também optou pela mímesis, mas deixou para trás o diálogo com uma vertente que precisava dela para seu realismo crítico: Lukács e Roberto Schwarz. Ocorreu a opção por Iser (com ressalvas) e Haroldo de Campos. Apareceu também uma observação de Graciliano sobre José Lins do Rego coletada por Costa Lima, bastante semelhante à de Mário de Andrade comentada acima. Memórias do Cárcere se saiu bem ao ser comparado com o diário de um seu contemporâneo (Francisco Theodoro Rodrigues). Costa Lima provou, algumas páginas antes, que um texto aparentemente autobiográfico (De um Castelo a Outro, Louis Ferdinand Céline) contêm delírios e distorções quem sabe deliberadas para tornar o autor empírico um bode expiatório do mundo. Quanto a Memórias do Cárcere, não resta dúvidas quanto ao seu caráter de forma híbrida: autobiografia, ficção, memórias. O relato de Memórias, comparado com as notas de Theodoro Rodrigues permanece bem fundamentado e seguro (Um Castelo a Outro desmoronou como um castelo de areia diante dos dados de seu principal biógrafo; é mais delírio e fruto da paranóia do que autobiografia ou memórias).
Nos “estudos de caso” finais sobre Graciliano e Euclides, ele citou Barthes sobre a narrativa da história (COSTA LIMA, 2006, p. 384), apenas para preferir a posição de Paul Ricoeur, que estabeleceu que, para uma obra ser histórica, ela precisa passar por três fases definitivas: 1) fase documental; 2) estabelecimento da prova documental; 3) fase explicativa. Os Sertões não preencheriam essas três fases e conceitos definidos e seria, portanto, obra de literatura e não de história. Ele finalizou escrevendo que “só a passagem dos anos dirá se a insubordinação aqui praticada terá alguma conseqüência” (COSTA LIMA, 2006, p. 385). Ou seja: Costa Lima pretendeu ter resolvido definitivamente o problema do status de Os Sertões; no entanto, se ele mesmo demonstrou, no início de História. Ficção. Literatura que é fácil aproximar os aedos dos historiés, é bem provável que, no futuro, essa aproximação volte a ser realizada, ou mesmo que a obra seja chamada de “forma híbrida entre ficção e história”. Talvez com o passar do tempo até mesmo História. Ficção. Literatura também possa ser visto assim, como obra híbrida.
Bibliografia:
CALDAS, Pedro. A Consciência Híbrida: História. Ficção. Literatura de Luiz Costa Lima. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Julho/ Agosto/ Setembro de 2006 Vol. 3 Ano III nº 3. ISSN: 1807-6971. www.revistafenix.pro.br. Acesso em 17/11/2007.
LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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