Todas as biografias têm sempre uma conclusão. O biografado morre em certas circunstâncias, ficamos sabendo detalhes - dia, hora, local. Trata-se de um consolo.
Mas Kundry não nos deixou estas satisfações. Evaporou-se, nem sua mãe sabe de seu paradeiro. “Kundry” é um nome que aqui eu lhe dou. É mais por gosto em dar nome às coisas e por uma satisfação maligna em usar um signo que não possui referência. Hoje o nome do meu amigo também não possui igualmente referência. Este nome, “Kundry”, é uma pedra lançada num abismo. Tento ouvir o barulho que ela deveria produzir ao atingir outro elemento sólido--mas nada. Não há nada.
Kundry ziguezagueou na vida, foi da Causa Operária ao curso de Filosofia e daí para a Somaterapia - e daí se liquefez. Ou teria ele se sublimado, passando do estado sólido ao gasoso?
Emil Cioran dizia: “Acredito na salvação da humanidade, no futuro do cianureto...” Kundry não. Ele não nos deixou saber de sua morte. Aniquilou a própria vida para além da nossa percepção sensível, talvez através do deslocamento de seu corpo para um ponto qualquer na galáxia, quem sabe.
Amigo? Eu chamei Kundry de meu amigo? Hipocrisia? Paranóia? Claro: eu escarneci de Kundry em sua cruz e lhe ponho agora uma coroa de espinhos-palavras. “Me dê bastante corda e eu mesmo me enforco”, é como diz o ditado...
Quando conheci Kundry, ele viera da PUC-MG há pouco tempo. Era só louco manso como muitos outros. Um dia um louco bravo surtou e, em plena aula de Filosofia Grega, enfiou um cigarro aceso no braço molhado de chuva do Kundry:
“Meu cigarro está aceso, é fogo, seu braço está cheio de água molhada, apaga o fogo.”
Kundry reconsiderou uma justificativa feita assim com uma lógica tão implacável. Vindo de uma universidade católica, aprendera a perdoar estas pequenas loucuras em nome do espírito cristão.
Um dia fizemos juntos um acampamento. Ele sonhava em voltar à natureza e aos bosques, ser um hippy. Tocava violão e lia o livro “Viva Eu, Viva Tu, Viva o Rabo do Tatu.” Kundry ouvia o canto de sereia psicodélica de Roberto Freire. Enquanto eu contava que lia Cruz e Souza, Álvares de Azevedo, Murilo Mendes, Kundry me olhava e dizia, profético:
“Eu não tive, na sua idade, essas leituras. Eu não era isso, sabe?”
Eu sorri sem achar nenhuma graça.
“Verdade!” Continou ele.
Ele repetiu o “verdade” outras vezes. Depois eu sorria como se tivesse recebido um grande elogio. Kundry movia o bispo três casas à frente, era um jogo de xadrez. Ele, que tinha problemas graves com os pais, gostava às vezes de ser paternal e complacente.
Estava, naquela época, procurando um nome para sua banda. Eu sugeri: “Perdi Minha Bruxinha”. Kundry gostou da idéia, anotou. Era uma banda que levava pitadas de jazz, uma colher de rock progressivo e toques de New Age. Kundry explicava sorridente: “Eles sugerem (os demais componentes da banda) que coloquemos na capa de nosso primeiro disco a imagem de um espermatozóide fertilizando um óvulo.”
Tempos depois, reencontro Kundry:
“Os caras não aceitaram o nome Perdi Minha Bruxinha. Eu acho que quem ouvisse o nome ia viajar perguntando que bruxinha seria essa...” Kundry não atingiu o sucesso com a banda “Gen” nem tampouco continuou com a banda. Kundry ia passando de um projeto a outro e deixava todos incompletos.
O que ele deixou são fragmentos. Cacos de uma vida e da busca: nunca me contou que fora da Causa Operária. Não o vi pregando um governo de operários, camponeses e estudantes, mas Kundry tentaria com audácia e destemor o assalto ao céu.
“Precisamos quebrar este esquema aí”, dizia.
Só não sabia como - e acabaria quebrando a cachola. Fundindo a cuca. Kundry não subiu ao Olimpo da cultura de massa; talvez tenha entrado numa cápsula e ido criar uma utopia
Eu e Kundry fizemos teatro juntos. Abortamos uma peça de criação coletiva, uma colcha de retalhos que acabou ficando pelas metades. Fracassado o grupo, cada um seguiu um rumo diferente. Kundry e sua namorada mergulharam de cabeça na terapia anarquista. Eu não tenho ilusões quanto a ser ator. Mas Kundry não conseguiu se concentrar em nada que tentasse fazer. Acabou deixando a moça que o amava ao léu, ao desaparecer só com a roupa do corpo.
Um colega outro dia me propôs um problema: para onde vai o masoquista após a morte? No céu ele não vai pagar seus pecados. Será no inferno? Lá ele iria se divertir, seria o céu para ele. Meu amigo sugeriu que talvez ele fosse para o limbo, onde estariam os sábios gregos que tiveram o azar de ter vivido antes do cristianismo.
Eu quero propor outra solução. Ele vai ficar na ante-sala do fim do mundo. Vai esperar pacientemente milhões de anos até o sol se tornar uma estrela vermelha gigantesca e devorar Mercúrio; a Terra estará tão quente que quaisquer vestígios de presença humana serão derretidos em meio à lava. Os mares irão se evaporar. Milhões de anos se passando e o masoquista impaciente. Só ficará feliz quando o sol se tornar uma estrela anã branca e ir encolhendo. Aí a Terra será somente um mundo gélido e completamente deserto de vida.
Kundry pode ter escolhido ir fazer companhia ao masoquista e ido esperar sentado num quarto nu, uma solitária onde teria acesso somente a uma estante--mas a estante conteria um livro somente--Vênus em Peles, do barão de Sacher-Masoch. Uma solução para um problema...A ante-sala...Da destruição do mundo... Kundry se foi. Apenas se foi.
Nenhum comentário:
Postar um comentário