O que é o “stalinismo”?
José Paulo Netto
Escrito em 1985 para a coleção Primeiros Passos, esse esquecido livrinho apresenta a forma como o assunto “Stálin” é tratado ainda hoje, mesmo no campo da esquerda, ou seja, a esquerda continua ignorando totalmente o paradigma histórico pós-Guerra Fria, ou melhor dizendo: consegue sintetizar uma boa quantidade de afirmações contra Stálin, sem nunca imaginar nem sequer a hipótese de que as coisas não tenham se passado como ele apresenta. Para Netto, Stálin “não tinha talento teórico” (p.14), “poucas de suas obras merecem citação” (p. 14), “nessa política prática (...) deu provas de maquiavelismo e genialidade” (p. 16), “foi destruída toda a velha guarda bolchevique” (p. 43), “surge um discreto antissemitismo” (p. 44), “é inegável que a transição socialista vai exigir, mais cedo ou mais tarde, a liquidação total da herança stalinista”. Essa passagem é a mais curiosa, pois Gorbachev e Yeltsin parecem ter levado a ferro e a fogo essa tarefa de liquidar a “herança stalinista” e realizar o que Trotsky não conseguiu realizar. Talvez porque Trotsky nunca foi reabilitado na União Soviética, o marxismo ocidental insiste em ver, após a morte de Stálin, Kruschev, Brezhnev e Gorbachev como “neostalinistas”. Netto chega a dizer que métodos “como a tortura, autorizada pessoalmente por Stálin” (p.43). Que evidências históricas comprovam isso?
As análises de José Paulo Netto baseiam-se principalmente em Lukács (“democracia socialista versus stalinismo”), mas estranhamente esse autor, que participou pessoalmente da contra-revolução de 1956, está quase ausente do texto, talvez porque Lukács é muitas vezes acusado de stalinismo. Netto chega festejar o renascimento do marxismo em 1985. Mal sabia o autor o que lhe esperava: com o tombo do bloco soviético, o marxismo ocidental leva, também, um golpe violentíssimo, ele que, arrogante, se achava bem longe daquela “ideologia de estado”. As obras de Stálin sequer são discutidas a fundo. A teoria da revolução permanente é apresentada como internacionalista e a teoria de Stálin seria nacionalista. A realidade foi bem diversa: Trotsky propôs a restauração do capitalismo ou aventuras militaristas para fazer a revolução na Europa, enquanto Stálin foi fiel ao pensamento de Lênin de que dificilmente o socialismo venceria em vários países e que, mesmo em somente um, ele poderia ser construído e estimular as outras revoluções.
Netto só reconhece que o culto da personalidade não partiu do próprio Stálin, assim como existiam, bem antes de 1941, ameaças fascistas e capitalistas contra a União Soviética, mas ele nunca associa essas ameaças às conspirações de Trotsky, Bukharin e Zinoviev.
O autor conjura Kruschev, Karl Korsch, Anton Pannekoek e Trotsky, sem citar a leitura de Mao e Enver Hohxa. Impressionante “frente” anti-Stálin, ou melhor diria, contra Lênin, pois Stálin foi a vida inteira muito fiel a Lênin e liderou um grupo norteado por seu legado. Kruschev apresentou um leninismo muito próprio (que fracassou definitivamente com Gorbachev), assim como o leninismo de Trotsky (que também terminou mal, ou seja, em colaboração com os alemães e japoneses). Ressalte-se que Kruschev julgava Trotsky liquidacionista e nunca o reabilitou. Pannekoek, assim como Trotsky (“urso menchevique, traiçoeiro”) polemizou com o próprio Lênin e foi chamado de esquerdista, assim como Lukács foi criticado por seu “marxismo puramente verbal”.
Em primeiro, o stalinismo para José Paulo Netto é deformação burocrática do estado operário soviético nos anos 20. No entanto, “stalinismo” não existe; Stálin é um seguidor de Lênin e sempre se definiu assim. E, como disse Stálin em Fundamentos do Leninismo: “o leninismo é o marxismo do nosso tempo”. Mas o problema que obviamente levou Netto a escrever o livro foi o fato de que, no entender de revistas e jornais, toda a esquerda é habitualmente aproximada ao stalinismo. Como a própria esquerda tenta se desvencilhar falando mal do stalinismo e aceitando uma versão histórica que é claramente feita no calor da Guerra Fria, esses ataques voltam-se contra ela própria. Por ignorar totalmente o que se passou no período Stálin, a esquerda como um todo se desqualifica e se desvaloriza aos olhos da opinião pública. Esse é, talvez, o maior imbróglio teórico da esquerda no início do século XXI.
A versão da história da URSS que Netto apresenta é totalmente marcada pelo trotsquismo, ao ponto de que, na bibliografia, está completamente ausente uma biografia de Stálin e alguns de seus livros, mas sugere-se como leitura a biografia de Trotsky por Isaac Deutscher!
Bibliografia: NETTO, José Paulo. O que é o stalinismo. São Paulo: Brasiliense, 1985.
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