quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Observações Sobre a Carta Sobre o Stalinismo: Lukács e a Metamorfose Ambulante

 

Observações Sobre a Carta Sobre o Stalinismo: Lukács e a Metamorfose Ambulante

Lúcio Jr.

 

            Em primeiro, o termo stalinismo. O termo é usado por Trotsky para dissociar bolchevismo e a pessoa de Stálin. Usá-lo já é tomar partido de Trotsky.

Ele fala em culto da personalidade como se Lênin também não dissesse que se deve promover os líderes. Stálin aceitou ser símbolo do poder soviético, o que não quer dizer que tivesse o poder absoluto e fosse um ditador. Suas decisões eram sempre coletivas, dependiam da aprovação do Comitê Central. Ao menos, Lukács vê o problema como do sistema, sistêmico, não ligado a um indivíduo.

Em geral, a partir daí, quando essa expressão culto da personalidade surge, é para decapitar os líderes do partido revolucionário. Ela teve esse uso na China de Deng Siaoping.

Lukács comenta que o problema é, em grande parte, da historiografia. Para ele, Kruschev tratou corretamente a questão de Trotsky e Stálin no XX Congresso. Nem isso parece-me tão bem resolvido. Ele despertou o velho fantasma do trotsquismo. Há muito favorável a Trotsky nessa carta, bem como há muito favorável a Kruschev.

Primeiramente Lukács esclarece que Trotsky colocou, nos anos 20, o dilema entre exportar a revolução militarmente ou retornar ao que havia antes de outubro de 1917, ou seja, uma democracia liberal. O húngaro dá razão a Stálin, comenta que a história refutou essa teoria. Mas logo em seguida, mais uma mancada: afirma que Stálin, na realidade, teria continuado na linha de Trotsky, roubando seu programa, ao militarizar os sindicatos, opondo-se, então, a Lênin. Esta foi uma das poucas passagens em que Lukács deu razão a Stálin nessa Carta.

 E ainda assim, logo em seguida sai-se com algo bastante duvidoso: Stálin seguia muito Lênin e dificilmente retornaria nesse ponto onde Lênin já tinha exposto seu ponto de vista.

Trotsky teria razão ao dizer que Stálin tomou o seu programa, o georgiano estaria realizando “o que havia de despótico e antidemocrático na linha de Trotsky”. Stálin é acusado de ser trotsquista, contra o leninismo!

Ele foge da questão de Bukharin, dando a entender que o problema é apenas teórico e não político. Ele, a seguir, considera os processos supérfluos, uma vez que as oposições não tinham mais força no partido. Logo, ele toma partido a favor de Bukharin: seria vítima de um processo falso, supérfluo, que representou um ataque a uma oposição que já não tinha mais poder. Mas o sentido dos Processos de Moscou não foi mera luta do poder, havia evidências de colaboração com nazistas e japoneses. Lukács nunca menciona isso.

Nos anos 30, Stálin estaria defendendo Lênin apenas da boca para fora. Ele estabeleceu ligações muito imediatas entre teoria e prática, abolindo as mediações. Que mediações seriam essas?

Como fica evidente desde o uso do termo stalinismo, Lukács separa o que há de específico no stalinismo do marxismo-leninismo.

Stálin não teria grandes ações (sic) e nem realizações teóricas a ele devidas (hein?). “Não dispunha da mesma autoridade de Lênin” (como assim? Depois de derrotar Hitler?). As categorias de Lênin desaparecem do horizonte de Stálin. Mas ele não é acusado de citar demais? Ou cita demais, como mania, ou desaparece com as categorias, das duas, uma. 

Lukács entra na questão chinesa, de início dá razão a Stálin, “na ocasião, do ponto de vista tático, estava com toda razão”. Logo a seguir, acusa-o de inventar um feudalismo asiático. Se ele não chama Stálin de culpado pela derrota de 1927 para Chiang Kai Shek, ele acusa de outra coisa, de inventar um feudalismo –conceito falso-- para justificar a idéia da etapa, bem como mobilizar forças em torno de um conceito falso. Mas se a reovlução não é socialista, é que a contradição no país não é entre proletariado e burguesia e há uma etapa anterior a vencer: há o imperialismo, há o latifúndio no papel do feudalismo asiático.

Lukács concorda que Stálin esteve certo ao afastar a idéia da revolução proletária imediata, sem etapas, idéia de Trotsky, mas ridiculariza e destrói o edifício conceitual que refutou os trotsquistas, o que repõe a porta aberta para a volta do mesmo fantasma para nos assombrar.

 As vitórias da revolução chinesa graças a esse arcabouço de reflexões de Stálin são totalmente descontextualizadas, assim com as denúncias de que os trotsquistas se aliaram aos japoneses, realizadas pelos maoístas, não são levadas em conta.

Mesmo o Pacto Ribbentrop-Molotov, que permitiu ganhar a guerra, é visto fora do contexto histórico. É acentuado o erro de entender que essa deveria ser a estratégia internacional do proletariado, a aliança com Hitler. A importância história e estratégia do Pacto, historicamente um acerto, é obscurecida.

Kruschev é chamado de herdeiro das idéias do stalinismo, única crítica a Kruschev nessa carta, mas a Carta parece ir também no sentido contrário, de que no XX Congresso, Kruschev refutou essas teses falsas.  Stálin e suas justificações teóricas seriam agradáveis para os pensadores burgueses. Quais? Ele fala que Salvador Madariga (liberal espanhol anticomunista) e Hoxha convergem no elogio a Stálin. Talvez esteja ocultando justamente o contrário: o entusiasmo de ideólogos burgueses a ataques a obras de Stálin tanto no campo teórico quanto às suas ações.

É preciso liquidar a metodologia staliniana. Lukács não faz isso? Faz tábula rasa da obra econômica staliniana e seu ensaio sobre Linguística nessa Carta, com poucos argumentos, apenas argumenta que Stálin cria “leis fundamentais” que seriam levianas, falsas, bem como analisa que a decadência da estrutura não seria a decadência da ideologia (superestrutura). É saber se para o teórico húngaro a estrutura ainda determinada a superestrutura ou isso é subjetivismo staliniano. Lukács não menciona ter elogiado esse ensaio sobre Linguística anos antes.

Para Lukács, Stálin era subjetivista em economia, isso faria parte de seu método. Ele transformou um texto de Lênin de 1905 em “Bíblia”. Stálin deformou textos de Lênin. A continuidade entre Lênin e Stálin era “citacional”, ou seja, Stálin tentou sempre fundamentar tudo o que dizia citando Lênin. Lukács não contesta, mas a seguir afirma que Kruschev já deixou isso de lado, afirmando que Lênin não se preocuparia com isso. Disso resulta que Stálin está sempre muito bem fundamentado em seu líder.

Lukács denuncia que Hegel, durante a II Guerra, virou opositor da Revolução Francesa, que teria defendido a vida inteira, enquanto o general Suvorov virou um revolucionário. Como Lukács escreveu durante a II Guerra um livro sobre o jovem Hegel, é possível que ele tenha abordado esse tipo de questão enquanto os outros lutavam nos campos de batalha. Ao invés de encomendar a ele uma análise da situação das classes na Hungria, que serviria ao pós-guerra, Lukács teve liberdade para escrever e pesquisar o que lhe interessava, embora a URSS vivesse as condições mais precárias e terríveis.

Segundo Lukács, na História do Partido Comunista da URSS, só Lênin e Stálin teriam existência concreta, outros nomes não são citados. Ao verificar, notei que Lukács errou, outros nomes são extensamente citados. Lukács faz tábula rasa do período Stálin, afirmando que Historiografia, Filosofia e Economia ficaram estagnadas. Reconhece como obras importantes apenas as de Lênin de 1915-16 sobre esses assuntos. Lukács deixa para estudiosos do assunto decidirem se as lutas de classes agravam-se durante o socialismo. Stálin teria transformado isso em lei fundamental. Essa tese falsa teria sido desmascarada no XX Congresso. Possivelmente é parte do “falso sistema de idéias gradualmente montado” por Stálin.

            O marxismo de Stálin tem atração sobre ideólogos burgueses. Em que sentido? Adesão? Logo a seguir, ele diz que o marxismo reduzido tem menos atração sobre as massas que o marxismo genuíno. Não seria, nos ambos os casos, justamente o contrário? Os burgueses com repulsa a Stálin, as massas com simpatia por textos didáticos, “reduzidos”.

            Lukács conta que, no período Stálin, se uma enciclopédia ia rodar (ser publicada), logo a seguir passava a ter erros e mentiras, era preciso rodar de novo. Muito bizarro o que acontecia. Questão de Historiografia, realmente. Afinal, tudo converge no sentido de incompetência da “burocracia cultural stalinista” (termo que ele usa e que mais uma vez remete e valida Trotsky).

Enfim, a carta: 1) reintroduz Trotsky, reavivando seus debates e terminologia; 2) toma partido de Kruschev, criticando-o muito pouco e louvando o XX Congresso com suas reflexões, sem voltar às análises anteriores de Lukács louvando Stálin, o que dá a entender que Lukács acusa Stálin daquilo que ele mesmo faz, mudar de posição de forma oportunista, sempre em metamorfoses oportunistas, para acolher decisões do poder, sem voltar ao que foi dito antes e explicar como foi possível dizer justamente.

 

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